Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
99/20.3T8CMN.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
DIREITO REAL DE USO
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRÉDIO AUTÓNOMO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)

1- No âmbito de processo de inventário, havendo um estabelecimento comercial que à data da morte do inventariado se encontrava aberto ao público ou apto a entrar em funcionamento, instalado no rés-do-chão de um prédio, também ele a partilhar, independentemente dos rendimentos que a exploração desse estabelecimento comercial proporcionava, e continua a proporcionar, salvo acordo em contrário de todos os interessados na partilha, atenta a natureza jurídica do estabelecimento comercial, o qual consubstancia uma unidade jurídica, o estabelecimento comercial e o prédio em que se encontra instalado têm de ser relacionados e licitados, no âmbito do processo de inventário, de forma autónoma.
2- Caso o estabelecimento comercial e o prédio em que se encontre instalado venham a ser adjudicados a interessados distintos no âmbito do processo de inventário, e nada resultando desse processo ter sido acordado entre os interessados em contrário, tem de se entender que, no momento da adjudicação do estabelecimento e do prédio a interessados distintos, constituiu-se ope legis um direito real de uso, nos termos do art. 1484º do CC, em benefício do estabelecimento comercial e que onera o direito de propriedade que incide sobre o prédio em que o estabelecimento se encontra instalado.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório

M. L., residente na Rua …, n.º …, …, requereu inventário facultativo junto do Cartório Notarial de Dr. B. C., sito em …, por óbito de sua mãe, E. F., falecida em -/012019, com última residência sita na Rua ..., n.º .., Caminha, indicando para o cargo de cabeça de casal o seu irmão, J. C., residente na Rua ..., n.º … Caminha.
Tomou-se compromisso e declarações ao cabeça de casal J. C., em 09/07/2019.
Em 21/11/2019, o cabeça de casal J. C. apresentou relação de bens em que relaciona duas frações autónomas (verbas n.ºs um e dois) e um “estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua ..., em Caminha, composto pelos bens constantes do inventário adrede junto”, que relaciona como verba n.º 3.
Entretanto, a inventariante e o cabeça de casal requereram, em 20/02/2020, ao abrigo do n.º 3 do art. 12º da Lei n.º 117/2019, de 13/09, a remessa dos presentes autos de inventário à Comarca de Viana do Castelo, Juízo de Competência Genérica de Caminha.
Por despacho proferido pela Senhora notária em 09/03/2020, deferiu-se ao requerido e remeteu-se o presente processo de inventário ao Juízo de Competência Genérica de Caminha.
Notificada a inventariante para, no prazo de trinta dias, reclamar, querendo, contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal, esta, por requerimento entrado em juízo em 02/07/2020, reclamou dessa relação, requerendo a eliminação da verba n.º 3, alegando, em síntese, não aceitar “o relacionamento do estabelecimento como verba autónoma e, como tal, passível de objeto de licitação, ou de preenchimento, de forma autónoma à verba n.º1”, porquanto o estabelecimento em causa encontra-se instalado no rés-do-chão do prédio relacionado sob a verba n.º1, pelo que caso seja objeto de relacionamento e licitação autónomas, tal irá implicar que se constitua um direito real de uso sobre esse rés-do-chão, o que levará à desvalorização do prédio.
Mais argumenta que “o dito estabelecimento sempre foi explorado pela inventariada e seu falecido marido como parte integrante do prédio onde se encontra instalado”, tendo sido adquirido pela inventariada por óbito de seus pais e “não goza de valor económico relevante, como resulta do que consta do inventário adrede junto à relação de bens, não tendo dignidade necessária à sua discriminação como verba autónoma, ou da sua licitação autónoma do prédio onde se encontra instalado”, uma vez que “há muito que não tem movimento económico relevante, sendo despiciendo e até ridículo o vertido em sede de IRS ao longo dos últimos anos”.
O cabeça de casal opôs-se à reclamação apresentada, sustentando que sendo o estabelecimento comercial uma unidade jurídica, este tem de ser objeto de relacionamento e licitação autónomas no âmbito do processo de inventário.
Por decisão proferida em 16/12/2020, a 1ª Instância julgou a reclamação apresentada improcedente, constando essa decisão do seguinte:
M. L., interessada e inventariante, deduziu reclamação quanto à relação de bens, ao abrigo do disposto no art.º 1104º do CPC, por pretender ver reconhecida a sua pretensão de não ser admitida a licitação em separado da verba 3 correspondente ao estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão da verba nº 1, essencialmente, por a requerida se opor à constituição do direito real de gozo que dessa licitação ou adjudicação emergiria, no caso de o licitante ou adjudicante não ser a mesmo a licitar a verba nº 1, situação que conduziria à desvalorização do imóvel aí descrito (neste sentido e entre outros, Acórdão do STJ de 16/03/2017, 7º secção, processo nº 185/12.3TBSBR.G1.S1- www.dgsi.pt, Acórdão STJ de 12.12.2013, Processo nº1355/11, Sumários, 2013, p 787).
O cabeça de casal, J. C., respondeu a esta reclamação, alegando, em súmula, que como consta da verba 3 da relação de bens apresentada, existe um estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua ... em Caminha, correspondente à verba 1 da relação de bens, composto pelos bens constantes do inventário adrede junto. Atendendo a que o estabelecimento comercial é uma realidade que envolve um conceito normativo, cuja identidade se revela através da funcionalidade económica e destino comercial, ou outro fim empresarial lícito como objeto negocial de livre circulabilidade como individualidade de direito, e diferente da soma atomística das partes dos seus valores componentes. É uma unidade jurídica objetiva, suscetível de admitir a existência de um direito autónomo. Razão pela qual pode e deve ser objeto de licitação, como verba autónoma e separada da verba onde o mesmo se encontra instalado. Termos em que devem as verbas relacionadas ser licitadas de forma individual.
Nos termos previstos no art.º 1105 nº 3 do CPC, uma vez que estamos perante uma questão meramente jurídica, cumpre, desde já, decidir.
O inventário divisório (como este é) tem por finalidade não, apenas, relacionar, avaliar e descrever os bens a partilhar como, também, determinar o modo como esses bens devem ser partilhados.
Compete ao cabeça de casal relacionar todos os bens que hão-de figurar no inventário - artigo 1097º nº 3, alínea c), do Código de Processo Civil.
O artigo 1098º, n. 2 do mesmo Código estabelece que os bens que integram a herança são especificados na relação por meio de verbas, sujeitas a uma só numeração, pela ordem seguinte: direitos de crédito, títulos de crédito, valores mobiliários e demais instrumentos financeiros, participações sociais, dinheiro, moedas estrangeiras, objetos de ouro, prata e pedras preciosas e semelhantes, outras coisas móveis e, por fim, bens imóveis.
O estabelecimento comercial é uma universalidade ou unidade jurídica. Na universalidade depara-se-nos um complexo de coisas pertencentes ao mesmo sujeito e tendentes ao mesmo fim, que a ordem jurídica reconhece e trata como formando uma coisa só (Castro Mendes Dir. Civil, Teoria Geral 1979, II-222, nota 2).
Com efeito, o estabelecimento comercial, no seu sentido amplo, é geralmente entendido como uma organização versando sobre um conjunto unificado de elementos corpóreos e incorpóreos, de direito e de facto, mas que no conjunto forma uma universalidade de direito, objeto de direitos e relações jurídicas distintos dos que incidem sobre os respetivos componentes, individualmente considerados (PUPO CORREIA, in Direito Comercial, 10ª ed, pág. 50 e segs; e FERRER CORRREIA, in Lições de Direito Comercial, 1973, vol. I pag 201 e segs).
Existem universalidades de facto, a que alude o artigo 206º do Código Civil e universalidades de direito. Na universalidade de facto, a pluralidade de coisas que a compõem, pertencem à mesma pessoa e têm um destino unitário. Contudo - n. 2 do artigo 206º - as coisas singulares que formam a universalidade, podem ser objeto de relações jurídicas próprias.
Quer dizer, existe, na universalidade, um conjunto de coisas simples que tem uma individualidade económica própria, mas, por outro lado, aquelas coisas que integram o conjunto têm, também, uma individualidade económica, um valor próprio no comércio, independente da agregação em que se encontram.
O estabelecimento comercial deve ser relacionado, havendo um inventário, pois que, em si, ele constitui uma coisa diferente da pluralidade de coisas que daquela fazem parte.
O somatório do valor de cada coisa que compõe uma universalidade não é igual ao valor da universalidade em si, valor este que, quase sempre, é muito superior àquele somatório, podendo, em nossa opinião, o estabelecimento comercial como um todo unitário ser objeto de direito de propriedade, com o complexo de bens que o componham.
Por outro lado, é uma unidade jurídica objetiva, suscetível de admitir a existência de um direito autónomo. Razão pela qual pode e deve ser objeto de licitação, como verba autónoma e separada da verba (imóvel) onde o mesmo se encontra instalado.
Assim sendo, não se verificando acordo entre os interessados quanto à descrição conjunta da verba correspondente ao imóvel e à que respeita ao estabelecimento comercial, entendo que devem constituir verbas autónomas e como tal manter-se relacionadas, cabendo eventualmente aos interessados definir a situação que respeita à utilização do imóvel, caso a titularidade do direito de propriedade não se venha a consolidar, em relação às duas verbas, na esfera jurídica do mesmo titular.
Pelo exposto, julgo improcedente a reclamação apresentada, quanto à relação de bens.

Inconformada com o assim decidido, a inventariante e reclamante M. B. interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

1 - O direito de uso só pode constituir-se nos termos do disposto no art.º 1485º do Código Civil.
2 - Nos presentes autos de inventário o estabelecimento autonomizado sob a verba nº 3, está instalado no prédio que enforma a verba nº 1, prédio esse que integra como verba nº 1 o acervo dos bens a partilhar.
3 - Esse estabelecimento existiu e existe como uma exploração familiar, ocupando parte da casa de morada do extinto casal da inventariada.
4 - Opondo-se a Recorrente / Interessada á licitação em separado das verbas 1 e 3 - imóvel e estabelecimento comercial, respetivamente - não pode o estabelecimento ser alvo de licitação autónoma, por daí poder resultar diretamente dessa licitação, ou do preenchimento do quinhão do não licitante, um ónus real emergente do direito de uso que assim se constituiria por imposição judicial, contra a vontade expressa da Recorrente.
5 - Mesmo que se lançasse mão da avaliação das verbas correspondentes ao imóvel e ao estabelecimento, tendo em conta o direito de uso, como se poderia quantificar o seu valor atendendo á incerteza do tempo em que o mesmo se manteria até á morte ou renúncia do usuário.
6 - A possibilitar-se a licitação autónoma da verba correspondente ao estabelecimento e a consequente possibilidade da cisão de titularidade entre imóvel e estabelecimento comercial, estaríamos em face de um claro enriquecimento ilegítimo de um dos Interessados em detrimento do outro.
7 - A Sentença / Despacho proferido, ora posto em crise, viola claramente o disposto no art.º 1485º do Código Civil ao permitir que seja constituído um direito de uso ao arrepio da oposição expressa da Recorrente / Interessada.
8 - A Sentença / Despacho ao não se pronunciar sobre a questão da Recorrente, relegando as partes para um entendimento posterior ao Inventário quanto á questão do direito de uso, é nula por manifesta omissão de pronuncia e ilegal na exata medida que viola claramente a norma do artigo 1485º do Código Civil.
9 - Revogando a Sentença deduzida e dando provimento ao Recurso, daí resultando a prolação de Acórdão que claramente imponha que face á oposição da recorrente/interessada, a verba nº 3 correspondente ao estabelecimento comercial, não poderá ser licitada em separado da verba nº 1, prédio onde se encontra instalado o estabelecimento comercial, farão V. Exas Venerandos Desembargadores a habitual Justiça.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, as questões que se encontram submetidas à apreciação desta Relação consistem em saber se:

a- a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, em virtude de nela a 1ª Instância “não se pronunciar sobre a questão da recorrente, relegando as partes para um entendimento posterior ao inventário quanto à questão do direito de uso”;
b- se essa decisão ao julgar improcedente a reclamação apresentada pela apelante quanto à relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, em que este relacionou autonomamente, sob a verba n.º 3, o estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão do prédio que relacionou sob a verba n.º 1, sancionando, assim, no âmbito dos presentes autos de inventário facultativo o relacionamento autónomo pelo cabeça de casal do estabelecimento comercial em relação ao prédio em que este último se encontra instalado (verba n.º 1), padece de erro de direito.
Note-se que do objeto do presente recurso não faz parte a apreciação da legalidade da junção aos autos pela apelante, em anexo às suas alegações de recurso, dos documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4.
Com efeito, apesar de no ponto 15º da motivação de recurso, a apelante sustentar que para prova da facticidade que aí alega e, bem assim, no ponto 14º dessa motivação de recurso (nos quais sustenta que “o estabelecimento comercial há muito não tem movimento económico relevante, sendo despiciendo e até ridículo o vertido em sede de IRS ao longo dos últimos anos” – facticidade essa que foi igualmente por si alegada em sede de reclamação que apresentou à relação de bens - , junta os documentos n.º 1, 2, 3 e 4, dando-os inclusivamente por reproduzidos, verifica-se que, em anexo a essas alegações de recurso, sequer posteriormente, a apelante não juntou aos autos efetivamente tais documentos, pelo que perante essa não junção não há naturalmente que se apreciar da legalidade jurídica da pretensa junção de tais documentos aos autos na presente fase de recurso.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para apreciar o objeto da presente apelação são os que constam do relatório acima elaborado, que aqui se dão por reproduzidos.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURIDICA

B.1- Da nulidade do despacho recorrido com fundamento em omissão de pronúncia.

A apelante imputa ao despacho recorrido o vício da nulidade por omissão de pronúncia, porquanto nele a 1ª Instância não se pronúncia “sobre a questão da recorrente, relegando as partes para um entendimento posterior ao inventário quanto á questão do direito de uso”.
Enuncie-se que uma das causas taxativas de invalidade da sentença, enunciadas no n.º 1 do art. 615º do CPC, é a nulidade por omissão ou por excesso de pronúncia, a que se reporta a al. d).
Trata-se de nulidade que se relaciona com o disposto no art. 608º, n.º 2 do CPC, que impõe ao juiz a obrigação de resolver na sentença (despacho ou acórdão – arts. 613º, n.º 3 e 666º, n.º 1 do CPC) todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e que lhe veda a possibilidade de conhecer de questões não suscitadas pelas partes, exceto se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Na verdade, devendo o tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos pelo autor com fundamento em todas as causas de pedir por ele invocadas na petição inicial para ancorar o pedido e, bem assim conhecer de todas as exceções invocadas pelo réu, na contestação, para extinguir, impedir ou modificar o pedido que o autor pretende que o tribunal lhe reconheça e, bem assim, de todas as contraexceções que o autor, em sede de réplica, na ausência desta, em sede de audiência prévia, ou não havendo lugar a esta lugar, no início da audiência final, oponha às exceções invocadas pelo réu na contestação, o não conhecimento de pedido, causa de pedir, de exceção ou de contraexceção (desde que suscitada/arguida pelas partes, pelo que não integra nulidade da sentença o não conhecimento de exceção que seja de conhecimento oficioso do tribunal, mas que não tenha sido arguida pelas partes – o que se reconduz a erro de direito) cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade por omissão de pronúncia, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes na sentença, que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC).
Inversamente, o conhecimento de pedido, causa de pedir, de exceção ou contraexceção não arguidos pelas partes e de que não era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente, configura nulidade por excesso de pronúncia.
Precise-se que a invalidade da sentença, despacho ou acórdão por omissão ou excesso de pronúncia é uma decorrência do princípio do dispositivo, na medida em que cabendo, por força desse princípio, ao autor propor a ação (art. 3º, n.º 1 do CPC), mediante a apresentação em juízo, da petição inicial, em que terá de delimitar subjetiva e objetivamente a relação jurídica que submete a julgamento, o pedido e a causa de pedir, mas também as exceções que venham a ser deduzidas pelo réu em sede de defesa (na contestação) e, bem assim as contraexceções que venham a ser opostas pelo autor na réplica, na ausência desta, na audiência prévia, ou não havendo lugar a ela, no início da audiência final (arts. 584º, n.º 1 e 3º, n.º 4 do CPC) às exceções invocadas pelo réu, delimitam necessariamente o thema decidendum a que o tribunal vê toda a sua atividade instrutória e decisória delimitada e conformada no processo, mas é igualmente uma emanação do princípio do contraditório, o qual, na sua dimensão tradicional negativa, impede que o tribunal resolva o conflito que a ação pressupõe sem que o autor lhe submeta esse conflito e sem que o réu seja devidamente chamado para deduzir oposição (n.º 1 do art. 3º do CC), e que na sua atual dimensão positiva, proíbe a prolação de decisões surpresa (n.º 3 do art. 3º), ao postergar a indefesa e ao reconhecer às partes o direito de conduzirem ativamente o processo e de contribuírem positivamente para a decisão a ser nele proferida.
Deste modo, é que o juiz terá de conhecer de todas as questões que as partes lhe colocam, sob pena da sentença (acórdão ou despacho) que venha a proferir ser nula por omissão de pronúncia, e nela não pode conhecer de questões que as partes não lhe tenham submetido a julgamento, salvo se essas questões forem do conhecimento oficioso.
No entanto, incumbe precisar que uma coisa são “questões” e outra, bem diversa, são os “argumentos”.
Na verdade, conforme já alertava Alberto dos Reis, impõe-se distinguir, por um lado, entre “questões” e, por outro, “razões ou argumentos”. “Uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”.
Destarte, apenas a não pronúncia pelo tribunal quanto a “questões” que lhe são submetidas pelas partes determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, mas já não a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.
Do mesmo modo, apenas o conhecimento pelo tribunal de questões não suscitadas pelas partes nos seus articulados e de que o tribunal não possa conhecer oficiosamente, determina a invalidade da sentença por excesso de pronúncia.
Na esteira da doutrina e da jurisprudência, dir-se-á que “questões” são os pontos de facto e/ou de direito centrais, nucleares, relevantes ou importantes submetidos pelas partes ao escrutínio do tribunal para dirimir a controvérsia entre elas existentes e cuja resolução lhe submetem, atentos os sujeitos, os pedidos, causas de pedir e exceções por elas deduzidas ou que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, e não os simples argumentos, opiniões, motivos, razões, pareceres ou doutrinas expendidos no esgrimir as teses em presença.
Revertendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis, “…assim como a ação se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir (…), também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objeto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)”.
Acresce precisar que apenas ocorre nulidade por omissão de pronúncia quando o tribunal, na sentença (acórdão ou despacho) silencie, total e absolutamente, qualquer pronúncia quanto à questão e não quando a aprecia de forma sintética e escassamente fundamentada (1).
Também não existe nulidade por omissão de pronúncia quando o juiz tenha erroneamente considerado que o conhecimento de uma outra questão de que conheceu e decidiu prejudicou a apreciação daquela outra em relação à qual se acusa a falta de pronúncia. Nessa situação, o que existe é uma situação de erro de julgamento (uma decisão que do ponto de vista jurídico é errónea), onde esse erro, a verificar-se, terá de ser corrigido pelo tribunal ad quem.

No caso dos autos, a apelante veio reclamar da relação de bens apresentada pelo cabeça-e-casal solicitando que fosse eliminada dessa relação a verba n.º 3, em que o último relaciona o estabelecimento comercial que funciona no rés-do-chão do prédio aí também relacionado sob a verba n.º1, alegando como fundamento desta sua pretensão que o relacionamento e licitação autónomos desse estabelecimento comercial e prédio em cujo rés-do-chão se encontra instalado irá implicar a constituição sobre o prédio de um direito real de uso, em beneficio do estabelecimento comercial, o que levará à desvalorização do prédio e, bem assim que o referido estabelecimento sempre foi explorado pela inventariada e pelo falecido marido desta como parte integrante do prédio, além de que aquele não goza de valor económico relevante, conforme resulta do inventário adrede junto à relação de bens e quando há muito que esse estabelecimento comercial não tem movimento económico relevante, sendo despiciendo e até ridículo o vertido em sede de IRS ao longo dos últimos anos.
Dir-se-á perante o que se vem dizendo que a questão a decidir em sede da presente reclamação consistia (e consiste) em se determinar a exclusão ou não do relacionamento autónomo do estabelecimento comercial em relação ao prédio em cujo rés-do-chão aquele se encontra instalado, o que passa, conforme infra se verá, pelo enquadramento jurídico do estabelecimento comercial, nomeadamente verificar se a natureza jurídica deste reclama ou não o seu relacionamento autónomo em relação ao prédio em que se encontra instalado.
Sendo absolutamente pacífico nos autos entre as partes que o estabelecimento comercial existia à data da abertura da sucessão da inventariada e, bem assim que esse estabelecimento comercial se encontrava, e encontra, instalado no rés-do-chão do prédio relacionado pelo cabeça de casal sob a verba n.º 1, aferido que foi pela 1ª Instância, em sede de decisão recorrida, que esse estabelecimento comercial consubstancia uma unidade jurídica que, face à ausência de acordo de todos interessados no sentido de ser relacionado conjuntamente com o prédio relacionado sob a verba n.º 1, em cujo rés-do-chão se encontra instalado, e decida a “questão” que foi colocada à 1ª Instância e que lhe incumbia decidir, no sentido da improcedência da reclamação e que o estabelecimento comercial relacionado sob a verba n.º 3 e o prédio relacionado sob a verba n.º 1 tinham de ser relacionados autonomamente, salvo o devido respeito por entendimento contrário, não cabia à 1ª Instância pronunciar-se quanto à alegação da apelante que tal implicaria a constituição de um direito real de gozo de uso sobre o prédio em beneficio do estabelecimento comercial fora dos modos de constituição desse direito real menor previstos no CC; que a constituição desse direito real de uso iria provocar a desvalorização do prédio; que a inventariada e o falecido marido desta exploraram sempre o estabelecimento comercial em causa como fazendo parte integrante do prédio e/ou que o estabelecimento não goza de valor económico relevante, como resulta do que consta do inventário adrede junto à relação de bens, não tendo dignidade necessária à sua discriminação como verba autónoma ou da sua licitação autónoma do prédio onde se encontra instalado, até porque há muito que não tem movimento económico relevante, sendo despiciendo e até ridículo o vertido em sede de IRA ao longo dos últimos anos.
Na verdade, essa alegação da apelante não passa de argumentos por si aduzidos e que, na sua perspetiva, justificariam o não relacionamento autónomo do estabelecimento comercial em causa em relação ao prédio em que cujo rés-do-chão aquele se encontra instalado.
Ora, quanto aos argumentos invocados pela apelante não tem o tribunal que se pronunciar, mas unicamente sobre a questão que lhe foi colocada e que consiste, reafirma-se, se esse estabelecimento comercial carece ou não de ser relacionado autonomamente em relação ao prédio em que se encontra instalado e que se encontra relacionado sob a verba n.º 1.
Quanto a essa questão o tribunal a quo pronunciou-se, expressa e inequivocamente, no despacho sob sindicância no sentido do relacionamento autónomo do estabelecimento e do prédio em que este se encontra instalado.
Se essa decisão se mostra errónea face ao quadro jurídico aplicável, nomeadamente, perante os argumentos inovados pelo apelante, não se está perante qualquer causa determinativa de invalidade do despacho recorrido, nomeadamente, por omissão de pronúncia, mas perante erro de julgamento.
Decorre do exposto que o despacho recorrido não padece do vício da invalidade, nomeadamente por omissão de pronúncia.

B.2- Do erro de direito.

O cabeça de casal relacionou autonomamente o estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão do prédio que relaciona sob a verba n.º um, o que foi objeto de reclamação por parte da apelante, postulando que o estabelecimento comercial em causa deve ser eliminado da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, isto porque esse estabelecimento sempre foi considerado pela inventariada E. F. e pelo seu falecido marido como não tendo autonomia em relação ao prédio em que se encontra instalado e que se encontra relacionado sob a verba n.º 1; que o relacionamento do estabelecimento como verba autónoma em relação ao prédio e, como tal, passível de licitação ou de preenchimento autónomo em relação ao prédio, irá constituir um direito real de uso sobre esse prédio contra legem, dado que a forma de constituição desse direito real menor de gozo não se subsume a nenhuma das modalidades previstas no CC para a constituição do direito real de uso; acresce que o relacionamento autónomo do estabelecimento irá provocar a desvalorização do prédio relacionado sob a verba n.º 1, em cujo rés-do-chão se encontra instalado e, finalmente, que esse estabelecimento “não goza de valor económico relevante, como resulta do que consta do inventário adrede junto à relação de bens, não tendo dignidade necessária à sua discriminação como verba autónoma, ou da sua licitação autónoma do prédio onde se encontra instalado”, porquanto “há muito que não tem movimento económico relevante, sendo despiciendo e até ridículo o vertido em sede de IRS ao longo dos últimos anos”.
A 1ª Instância sufragando basicamente a posição do cabeça de casal segundo a qual o estabelecimento comercial consubstancia uma unidade jurídica, julgou a reclamação apresentado pela apelante à relação de bens improcedente, com o argumento de que face à natureza jurídica do estabelecimento comercial, “não se verificando acordo entre os interessados quanto à descrição conjunta da verba correspondente ao imóvel e à que respeita ao estabelecimento comercial, entendo que devem constituir verbas autónomas e como tal manter-se relacionadas, cabendo eventualmente aos interessados definir a situação que respeita à utilização do imóvel, caso a titularidade do direito de propriedade não se venha a consolidar, em relação às duas verbas, na esfera jurídica do mesmo titular”, decisão essa com a qual não se conforma a apelante, imputando-lhe erro de direito basicamente com os mesmos argumentos que já tinha invocado em sede de reclamação.
Destarte, está em causa nos autos saber se no âmbito do processo de inventário o estabelecimento comercial que se encontra instalado no rés-do-chão do prédio relacionado sob a verba n.º 1 da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, carece de ser relacionado autonomamente em relação a esse prédio ou conjuntamente com o mesmo, o que conforme foi bem ponderado pela 1ª Instância, passa por se indagar da natureza jurídica do estabelecimento comercial.
A esse respeito diremos ser absolutamente pacífico na doutrina e na jurisprudência que o estabelecimento comercial é integrado pelo complexo da organização comercial do comerciante, o seu negócio em movimento ou apto para entrar em movimento.
Tal organização versa, antes de mais, sobre um conjunto de bens de vária natureza: coisas corpóreas, móveis ou imóveis, dinheiro, títulos de crédito, mercadorias, máquinas, mobiliário, prédios – e incorpóreas ou imateriais: patentes de invenção, modelos e desenhos industriais, marcas, o nome ou insígnia do estabelecimento, a própria firma, os próprios direitos ou relações jurídicas como instrumentos do exercício do comércio (2).
Dito por outras palavras e citando Fernando Olavo, o estabelecimento comercial é “um conjunto de coisas corpóreas e incorpóreas de bens e serviços, organizados pelo comerciante com vista ao exercício da sua atividade mercantil, de sorte que, em última análise, o que o compõe são os elementos aptos para o desempenho da atividade do comerciante e que este agregou e organizou para a realização de tal empresa” (3).
Quanto à natureza jurídica, impõe-se precisar que o estabelecimento comercial não constitui uma universalidade de facto, técnica ou económica, mas sim uma universalidade de direito, que como tal é suscetível de ser objeto de relações jurídicas autónomas e próprias, ou seja, o direito não olha para as diversas e variadas partes componentes do estabelecimento comercial atomisticamente e não as regula atomística e individualmente, mas como um todo, e regula-o como tal, isto é, o conjunto, em síntese, o estabelecimento comercial.
Conforme já ponderava Ferrer Correia, a lei “vê o conjunto, o todo, como algo distinto da mera pluralidade das partes componentes” (4), e considera esse todo, que é o estabelecimento comercial, como uma universalidade de direito e é essa universalidade (o todo) que cuida em considerar e regular.
Porque assim é, compreende-se que o estabelecimento comercial seja suscetível de trespasse e quando este se localize em prédio arrendado a terceiro, a lei, com vista a proteger essa universalidade jurídica que é o estabelecimento comercial, permita o trespasse deste sem dependência de autorização do senhorio.
E sendo o estabelecimento comercial um todo, que como um todo é regulado juridicamente, compreende-se ser pacífico que esse todo, pode ser objeto de relações jurídicas autónomas, nomeadamente, de direito de propriedade, de direitos reais menores e, inclusivamente, de acordo com a posição maioritária, de posse, podendo ser vendido, doado, objeto de direitos reais, designadamente, do direito de usufruto, uso, etc., e que em caso de inventário, nomeadamente, por óbito dos seus proprietários ou partilha subsequente a divórcio destes, o estabelecimento comercial, ainda que funcione em prédio também ele propriedade do ou dos inventariados, terá se ser relacionado autonomamente do prédio em que funciona, e objeto de licitação autónomas, salvo convenção em contrário dos interessados.
Na verdade, no caso do estabelecimento comercial se encontrar instalado em prédio, também ele a partilhar, está-se perante duas realidades distintas, por um lado, o estabelecimento comercial, que além de ser uma unidade económica, é uma unidade jurídica, sendo objeto de relações jurídicas próprias e que a lei tutela, considera e regula nessa sua universalidade e, por outro, o prédio em que o estabelecimento se encontra instalado, que é objeto de outra realidade jurídica, podendo, nomeadamente, ser objeto do direito de propriedade, de outros direitos reais menores ou de relações obrigacionais distintas daquelas que incidem sobre o estabelecimento, pelo que se impõe relacionar essas duas realidades jurídicas de modo autónomo e que serão objeto de licitação autónoma, nada impedindo, portanto, que o estabelecimento seja adjudicado a um interessado no âmbito do processo de inventário, e o prédio em que o mesmo se encontra instalado venha a ser adjudicado a um outro interessado no âmbito desse mesmo processo.
Claro está que a circunstância do estabelecimento comercial consubstanciar uma unidade jurídica não significa que este tenha, necessária e forçosamente, de ser objeto de relação e licitação no âmbito do processo de inventário, com todas as partes componentes que o integram á data do facto que determina a partilha, na medida em que dentro da sua liberdade contratual assiste aos interessados o direito de, por mútuo consenso, excluírem do estabelecimento uma ou mais das suas partes componentes por forma a que este seja relacionado, licitado e adjudicado no âmbito do processo de inventário sem essas partes componentes que o integravam á data da ocorrência do facto que justifica a partilha, designadamente, do local em que o mesmo se encontre instalado, contanto que essas partes componentes excluídas não levem á destruição do estabelecimento comercial enquanto unidade jurídica (pense-se num estabelecimento comercial que funciona num prédio e que existe viabilidade prática e económica desse estabelecimento comercial ser instalado num outro prédio, sito nas redondezas daquele em que se encontra instalado á data do facto gerador da partilha, como seja, a morte do proprietário ou proprietários do estabelecimento comercial ou industrial em causa, ou do divórcio desses proprietários, sem que essa mudança de local gere a sua destruição enquanto organização apta ao exercício da atividade comercial ou industrial que naquele é desenvolvida, nomeadamente, a perda da clientela).
Como tal, conforme bem ponderou a 1ª Instância, nada obsta a que os interessados no processo de inventário acordem, no exercício da sua liberdade contratual e por mútuo consenso, nos casos em que o estabelecimento a partilhar funcione em prédio também ele a partilhar, que o estabelecimento comercial e o prédio sejam relacionados em conjunto, formando uma única verba, ou que, sendo-o em separado, ambos sejam objeto de licitação conjunta por forma a serem adjudicados ao mesmo interessado, ou que o estabelecimento comercial seja relacionado e/ou objeto de licitação sem uma das suas partes componentes que o integram, nomeadamente, do local em que se encontra instalado, a fim de que este seja adjudicado ao interessado sem essa parte componente, que é o local em que funciona.
No entanto, na ausência desse mútuo consenso entre os interessados na partilha, funcionando o estabelecimento comercial no rés-do-chão de um prédio também ele a partilhar, como acontece no caso sobre que versam os autos, sendo o estabelecimento comercial uma unidade jurídica, o estabelecimento comercial terá forçosamente de ser relacionado pelo cabeça de casal autonomamente do prédio em que se encontra instalado e, na ausência desse acordo entre todos os interessados, estabelecimento e prédio em que se encontra instalado terão de ser objeto de licitações autónomas.
Neste sentido já se pronunciava Lopes Cardoso, no âmbito do CPC de 1939, sustentando que contrariamente ao Código de 1876, que continha regras especiais para a descrição do estabelecimento comercial “o Projeto do Código de 1939 não continha qualquer norma a tal respeito. Apontando a omissão e propondo-se supri-la, o Vogal Secretário não se dispensou de fazer preceder a sua proposta das valiosas considerações seguintes: «O estabelecimento comercial ou industrial constitui um todo único e absoluto, composto de elementos imateriais e materiais, sendo estes ainda formados por bens de diversa natureza. Uma vez desagregado, perde certamente grande parte do seu valor, podendo até lançar na miséria os herdeiros do falecido dono, os quais graças àquele, sempre puderam viver na abastança. (…). Assim, devia consignar-se expressamente a descrição «in totum». A tal objeção e proposta respondeu o Autor do Projeto que esta não dizia expressamente como relacionar-se o estabelecimento comercial, mas que «do seu art. 967º não podia deixar de depreender-se que o estabelecimento é considerado uma universalidade e se relaciona como tal»”, e conclui: “E foi de harmonia com esta ligeira controvérsia que a Comissão Revisora «concordou em que se descreva como uma universalidade». (…), quando a lei considera o estabelecimento como uma universalidade quer significar que se relaciona sob uma única verba e se descreve como um todo, um único bloco. Já era assim considerado quando em poder do autor da herança; por seu falecimento permanece a unidade (o cabeça de casal explora a atividade, cobrando receitas, efetuando despesas, vendendo e adquirindo, alienando e produzindo) e a mesma unidade se mantém enquanto não partilhado. De ser imperativo o preceito resulta que não pode o cabeça de casal deixar de descrever o estabelecimento em globo e ainda que para isso não recolha a unanimidade dos interessados. O contrário implicaria a destruição da sua unidade, prática que a lei proíbe” (5).
No mesmo sentido pronuncia-se França Pitão (6) e Carvalho de Sá (7) e, bem assim a generalidade, se não a totalidade, da jurisprudência nacional, tanto mais que desconhecemos jurisprudência que sufrague entendimento contrário ao que se vem propugnando, inclusivamente, os arestos do STJ que são citados pela apelante nas suas alegações de recurso em pretenso abono da sua tese, mas sem manifesta razão, conforme decorre da leitura dos mencionados acórdãos (8).
Na verdade, o Ac. do STJ. de 12/12/2013, Proc. 1355/11.7TVLSB.L1-S1, nada tem a ver com a problemática suscitada nos presentes autos, posto que se debruça sobre a (in)validade de uma disposição testamentária concedida à aí recorrente, em que o testador lhe conferiu o direito de uso e habitação sobre um apartamento, quando esse testador não era proprietário do apartamento em causa, mas mero usufrutuário deste.
Já o aresto do STJ de 16/03/2017, Proc. 185/12.3TBSBR.G1.S1, contrariamente ao pretendido pelo apelante, o teor deste vem justamente corroborar o entendimento que vimos explanando, uma vez que o respetivo sumário consta das seguintes considerações, que aqui se subscrevem integralmente:
“O estabelecimento comercial caracteriza-se por uma diversidade de elementos ou bens de natureza corpórea (móveis e imóveis) e de natureza incorpórea ou imaterial reunidos e organizados com vista ao exercício de uma atividade comercial. O estabelecimento comercial é, para além de uma unidade económica, também uma unidade em sentido jurídico e, como tal, não se resume aos móveis que possam constituir o seu recheio. A circunstância de se ter provado que, após a partilha judicial que se seguiu ao divórcio, a autora providenciou pela remoção do prédio de todos os bens móveis que constituíam o estabelecimento que lhe foi adjudicado é irrelevante, porquanto nada obsta a que o direito de propriedade sobre o estabelecimento seja reconhecido à autora, como complexo de bens que o compunha á data da licitação. Nada tendo a autora e o réu estipulado aquando da partilha ou posteriormente, relativamente ao uso do rés-do-chão e do 2º andar do prédio no qual funcionava o estabelecimento de café, restaurante e residencial anteriormente explorado pelo casal, mas resultando da partilha que á autora foi adjudicado o estabelecimento e ao réu a nu propriedade do imóvel, tal uso deve ser configurado sob a forma de direito real de uso, nos termos previstos no art. 1484º do CC”.
Logo, extrai-se deste aresto que o estabelecimento comercial é uma unidade jurídica, objeto de relações jurídicas autónomas, que tem de ser relacionado como “um todo” no processo de inventário.
Mais se retira que quando o estabelecimento comercial funcione em prédio também ele a partilhar, o estabelecimento e o prédio, salvo convenção em contrário de todos os interessados, têm de ser relacionados e objeto de licitações autónomas.
Retira-se ainda que para que essa unidade jurídica exista, que é o estabelecimento comercial, não é necessário que, no momento da ocorrência do facto gerador da necessidade da partilha – em caso de inventário por morte: óbito do de cuius, proprietário do estabelecimento comercial, ou em caso de partilha subsequente à declaração de nulidade ou anulação de casamento ou extinção deste, por divórcio, dos proprietários do estabelecimento: data do trânsito em julgado da decisão judicial que declarou a invalidade do casamento ou a extinção deste, por divórcio -, este esteja necessariamente em funcionamento, ou seja, aberto ao público, bastando que exista um núcleo essencial organizativo para que o mesmo possa entrar em funcionamento e, assim, funcionar enquanto estabelecimento comercial ou industrial.
Também se retira que desde que o núcleo essencial organizativo do estabelecimento comercial não seja colocado em crise, isto é, o núcleo essencial que o individualiza e lhe confere a unidade jurídica própria de um estabelecimento comercial ou industrial, é consentido que os interessados na partilha, dentro da sua liberdade contratual, por mútuo consenso, quando o estabelecimento comercial funcione, nomeadamente, em prédio a partilhar, relacionem o estabelecimento e o prédio em conjunto, ou na ausência desse acordo, convencionem que ambos sejam licitados em conjunto, por forma a virem a ser adjudicados no âmbito do processo de inventário, ao mesmo interessado, ou que acordem na exclusão do estabelecimento comercial de uma das suas partes componentes, nomeadamente, do local em que este se encontra instalado, por forma a que ao interessado a quem o estabelecimento venha a ser adjudicado na partilha, adquira-o sem o direito de o manter instalado no prédio em que se encontra instalado, por forma a obviar aos inconvenientes decorrentes de eventualmente o estabelecimento vir a ser adjudicado a um interessado e o prédio em que se encontra instalado, a interessado distinto, com a inerente compressão do direito de propriedade deste sobre esse prédio.
Finalmente, propugna-se naquele aresto que na ausência dos identificados acordos entre os interessados, vindo, no âmbito do inventário, o estabelecimento comercial a ser adjudicado a um interessado e o prédio em que se encontra instalado a outro que, por via da especial tutela que a lei confere ao estabelecimento comercial, preservando a unidade jurídica deste, tem de se entender que o prédio em que o estabelecimento comercial ou industrial se encontra instalado foi adjudicado ao interessado onerado com um direito real de uso, nos termos previstos no art. 1484º do CC, isto é, com um direito real menor de gozo, cujo conteúdo se molda em atenção ao seu objeto e ao fim do gozo (9), subsistindo esse direito de uso constituído por imposição legal sobre o prédio e comprimindo o direito de propriedade que incide sobre este, enquanto subsistir o estabelecimento comercial nele instalado e tendo esse direito de uso a dimensão e o conteúdo correspondente às necessidade de uso do prédio decorrente de uma exploração normal do estabelecimento comercial em causa.
Note-se que nos termos do disposto no art. 1485º do CC, sem prejuízo do disposto na al. b) do art. 1293º (que exclui a usucapião como fonte constitutiva do direito real de uso e habitação), os direitos de uso e de habitação constituem-se e extinguem-se pelos mesmos modos que o usufruto.
Por sua vez, nos termos do art. 1440º, o usufruto pode constituir-se por contrato, testamento, usucapião ou disposição da lei.
Destarte, nos casos em que o estabelecimento comercial a partilhar funcione em prédio também ele a partilhar, em que no âmbito do processo de inventário aqueles venham a ser adjudicados a interessados distintos, o nascimento do direito real de gozo de uso que onera o prédio em que o estabelecimento se encontra instalado constitui-se ope legis, em benefício do estabelecimento comercial, fundando-se a constituição deste direito real menor precisamente na lei, a qual confere uma tutela específica com vista a garantir a integralidade da unidade jurídica que é o estabelecimento comercial, fazendo nascer o mencionado direito real de gozo menor em benefício da salvaguarda do estabelecimento comercial enquanto unidade jurídica e onerando o prédio em que se encontra instalado, no momento em que o estabelecimento e o prédio são adjudicados, no processo de inventário, a interessados distintos.
O mencionado direito real de uso sobre o prédio em benefício do estabelecimento apenas se extinguirá quando este último deixar de existir e assim desaparecer a necessidade pessoal do interessado a quem o estabelecimento comercial em causa foi adjudicado no âmbito da partilha efetuada e que justificou a constituição desse direito de uso, pelo que logo que o estabelecimento comercial instalado no prédio deixe de existir, extingue-se automaticamente o direito de uso que onera esse prédio.
Resulta do exposto que a crítica assacada pela apelante em função do qual a constituição do direito de uso que onerará o prédio em benefício do estabelecimento comercial caso sejam adjudicados a interessados distintos não se insere em nenhum dos modos de constituição deste concreto direito real menor de gozo, que é o direito de uso, não tem fundamento legal, uma vez que esse modo constitutivo do direito de uso é a própria lei.
De resto, as críticas que o apelante assaca à decisão recorrida de que o relacionamento autónomo do estabelecimento comercial e do prédio relacionado sob a verba n.º 1 em cujo rés-do-chão aquele se encontra instalado, de que a constituição desse direito de uso irá provocar a desvalorização do prédio não procede por múltiplas e variadas razões.
Na verdade, como dito, nada obsta a que os interessados, por mútuo acordo, convencionem que o prédio e o estabelecimento comercial sejam relacionados em conjunto.
Na ausência desse acordo, nada impede que o prédio e o estabelecimento comercial sejam licitados e adjudicados ao mesmo interessado.
Logo, os interessados dispõem de mecanismos que lhes permitem ultrapassar aquele invocado inconveniente, bastando-lhes para tanto que, por consenso, acordem na licitação conjunta de estabelecimento comercial e prédio.
Depois, na ausência desse acordo entre os interessados, a circunstância de o prédio e o estabelecimento comercial serem relacionados e licitados autonomamente não torna como facto inevitável que os mesmos tenham, ou venham necessariamente a ser adjudicados a interessados distintos no âmbito do processo de inventário.
Acresce que caso o estabelecimento comercial e o prédio em que se encontra instalado venham a ser adjudicados a proprietários distintos no âmbito dos presentes autos de inventário, se tal poderá levar à desvalorização do prédio por via do direito real de gozo de uso com que ficará onerado o prédio em benefício do estabelecimento comercial, não só todos os interessados contarão com esse ónus e com a consequente desvalorização emergente para o prédio desse direito real de uso no momento das licitações, mas contarão com o benefício de contarem com mais um bem a partilhar e que mantém a sua integralidade – o estabelecimento comercial.
Acresce referir que o eventual prejuízo decorrente para o prédio em que o estabelecimento se encontra instalado por via da constituição sobre o mesmo do direito real de uso em favor do estabelecimento comercial, caso ambos venham a ser adjudicados a proprietários distintos, não constitui fundamento legal para afastar o regime imperativo que leva o legislador a olhar e a regular o estabelecimento comercial como unidade jurídica e a preservar essa unidade jurídica.
Finalmente, sendo ambas as partes concordantes entre si que á data da abertura da sucessão da inventariada – data do óbito de E. F., em 26/01/2019 –, existia um estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão do prédio relacionado sob a verba número um, dir-se-á que essa unidade jurídica que é o estabelecimento comercial, existe e, portanto, salvo acordo em contrário de todos os interessados na partilha, carece de ser relacionado e licitado autonomamente do prédio onde se encontra instalado, independentemente de, conforme pretende a apelante, a inventariada E. F. e o pré-falecido marido desta considerarem (ou não) esse estabelecimento comercial e o explorarem como parte integrante do prédio e, bem assim do valor económico desse estabelecimento comercial, designadamente, dos rendimentos que o seu giro comercial proporcionava, ou que continua a proporcionar.
Decorre do exposto, que ao julgar a reclamação apresentada pela apelante improcedente e ao manter o estabelecimento comercial e o prédio em cujo rés-do-chão se encontra instalado (verba n.º 1 da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal) relacionados autonomamente, a decisão recorrida não padece de nenhum dos erros de direito que a apelante lhe imputa, improcedendo a presente apelação e impondo-se a confirmação da decisão recorrida.
*
Decisão:

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a presente apelação totalmente improcedente e, em consequência:
- confirmam a decisão recorrida.
*
Custas pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 07 de outubro de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

José Alberto Moreira Dias (relator)
Alexandra Viana Lopes (1ª Adjunta)
Rosália Cunha (2ª Adjunta).



1. Acs. STJ. de 20/06/2006; Proc. 06A1433; de 01/03/2007, Proc. 07A091, in base de dados da DGSI.
2. Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. I, Universidade de Coimbra, 1973, págs. 201 a 203. No mesmo sentido Ana Prata, “Dicionário Jurídico”, vol. I, 5ª ed., Almedina, pág. 610, em que define estabelecimento comercial como sendo “o conjunto de bens e serviços organizado pelo comerciante em nome individual ou por uma sociedade comercial com vista ao exercício da exploração de certo ramo de atividade comercial ou industrial”. Ainda, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 2 e 3, em que sustentam que o estabelecimento comercial enquanto unidade jurídica pode ser objeto de direito de propriedade, de outros direitos reais menores e é passível de posse. Ac. STJ. de 06/04/2006, Proc. 06B336, em que se propugna que enquanto universalidade, o estabelecimento não pode ser descomposto, autonomizado nos seus elementos componentes, mas pode mesmo existir desde que haja um núcleo essencial organizativo apto a gerar lucros.
3. Fernando Olavo, “Direito Comercial”, vol. I, 2ª ed., 1974, pág. 262.
4. Ferrer Correia, “Direito Civil, Comercial e Criminal”, Almedina, 1985, pág. 262
5. João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, vol. I, Almedina, 1990, págs.481 a 482.
6. França Pitão, “Processo de Inventário (Nova Tramitação)”, Almedina, 1996, pág. 108, em que escreve: Entre os bens a relacionar, (…), já decididos pela nossa jurisprudência e doutrina: a) o direito à exploração de um cinema; b) a renda vitalícia constituída em benefício de ambos os cônjuges, quando haja sido adquirido com rendimentos do casal; c) os frutos existentes à morte do inventariado; d) os bens penhorados e arrestados; e) os bens empenhados; f) o produto da alienação dos bens da herança levado a cabo por acordo entre os interessados, no período decorrente da sua abertura à investidura no cabecelato; g) os direitos de autor; h) os direitos e patentes, marcas e modelos que não façam parte de quaisquer estabelecimentos comerciais ou industriais, de que o inventariado seja dono ou associado; i) os bens que o inventariado prometeu vender por título formalmente idóneo; j) os bens registados em nome do inventariado; k) os bens doados para casamento à inventariante, sem dispensa de colação, sendo o matrimónio segundo o regime da comunhão geral; l) os bens litigiosos; m) os bens sem valor económico; e n) benfeitorias”.
7. Domingos Silva Carvalho de Sá, “Do Inventário, Descrever, Avaliar e Partir”, 3ª ed., Almedina, pág. 102, em que a propósito do valor a atribuir pelo cabeça de casal ao estabelecimento comercial ou industrial, o que denota que segundo este autor estes carecem de ser relacionados autonomamente, ainda que instalado em prédio também ele a partilhar, pondera “i) o valor de estabelecimento comercial ou industrial, considerado como universalidade que compreende tanto o ativo como o passivo, é determinado (…)”.
8. Acs. STJ. de 07/01/93, proc. 084266; de 05/07/2001, Proc. 02B538; de 14/02/2012, Proc. 1176/08.4TVPRT.P1.S1-6, RG. de 08/07/2020, Proc. 3315/19.0T8CVT-B.G1; RP, de 31/03/2013, Proc. 7675/09.3TBVN.G.P1; e4 05/11/2015, Proc. 139/14.5TBVCD.P1; e de 26/09/2016, Proc. 1248/13.2T2AVR.A.P1, todos in base de dados da DGSI, os quais sem se debruçarem diretamente sobre a especifica problemática objeto dos autos, não deixam de afirmar que o estabelecimento comercial é uma unidade jurídica, que é objeto de relações jurídicas próprias e autónomas, podendo ser objeto de direito de propriedade e de outros direitos reais menores, incluindo, de posse, podendo, portanto, o direito de propriedade que sobre o mesmo incide ser adquirido por usucapião, embora com a aplicação dos prazos previstos para os bens imóveis (neste sentido RP 26/09/2016), extraindo-se da jurisprudência explanada nestes arestos que funcionando o estabelecimento comercial em prédio a partilhar entre os interessados, ambas essas realidades jurídicas carecem de ser relacionadas e licitadas autonomamente, salvo acordo expresso de todos os interessados. Por sua vez, no Ac. RP. de 21/06/1999, Proc. 0050247, na mesma base de dados, corroborando o que se vem dizendo, lê-se que: “A morte da inventariada proprietária do estabelecimento comercial em nome individual instalado em imóvel que lhe pertencia, não extingue, necessariamente aquele estabelecimento. Assim, é de mencionar na relação de bens tal estabelecimento comercial”.
9. Ac. RP. 23/03/2005, CJ, 2006, t. 2º, pág. 171; RE. de 12/07/2012, CJ, 2012, t. 3º, pág. 271.