Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1393/24.0T8BGC.G1
Relator: JOÃO PAULO PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO
FORMA VOLUNTÁRIA
ESTIPULAÇÕES VERBAIS ACESSÓRIAS
CLÁUSULA CONTRÁRIA À LEI
DECLARAÇÃO DE NULIDADE
ENTREGA DA COISA LOCADA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Celebrados contratos de locação de helicópteros sob a forma escrita, apesar de esta forma não ser exigida por lei, nada obsta à validade de quaisquer estipulações verbais não contempladas nos documentos escritos, como prevê o art.º 222.º n.º 1 do Cód. Civil, decorrência do princípio da liberdade de forma que tem concretização legal no art.º 219.º do mesmo código.
II – Normas imperativas são aquelas cuja disciplina, atenta a importância dos interesses tutelados (indisponíveis por natureza), se impõe às partes, de forma que nem sequer por acordo destas é possível estabelecer disciplina oposta ou divergente àquelas. A natureza desses interesses é tal que se sobrepõe à vontade negocial das partes, qualquer que ela seja. A nulidade de um negócio jurídico ou de uma cláusula que contrarie uma norma imperativa determina que a vontade das partes não é relevante para conferir validade ao acordo firmado. Daí que, por maioria de razão, a interpretação da vontade negocial das partes não tenha qualquer relevo quando estamos perante declarações negociais contrárias a normas imperativas.
III – Tendo ficado convencionado pelas partes nessas estipulações verbais que os helicópteros deveriam estar equipados para o combate a incêndios e não tendo os mesmos sido entregues com as condições e documentação necessária para o exercício dessa actividade, existe incumprimento contratual culposo por parte da locadora, determinando a sua responsabilidade pela reparação dos prejuízos causados (art.º 798.º do Cód. Civil).
IV – Os danos indemnizáveis podem incluir prejuízos derivados do incumprimento de contratos celebrados com terceiros, desde que tais danos sejam causa adequada do primeiro incumprimento. Para tanto, não deverá recorrer-se à teoria da relatividade dos direitos de crédito e da eficácia externa das relações, mas sim à análise da existência de “nexo de causalidade” entre o dano e a lesão.
V – Os recursos não são um meio para obter decisões de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido, destinando-se apenas à reapreciação de uma decisão já proferida sobre determinada questão. Como tal, as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos.
VI – A al. a) do art.º 756.º do Cód. Civil, que exclui o direito de retenção nos casos em que a coisa a entregar tenha sido obtida por meios ilícitos, remete-nos para o momento em que a coisa foi obtida, ou seja, para o momento em que o gozo da mesma passou para outra pessoa. Essa transmissão, ainda que temporária, tem que resultar de acto ilícito, o que não acontece quando o gozo da coisa tenha sido proporcionado através de um contrato de locação.
VII - Sendo a recorrida titular de um crédito sobre a recorrente relacionado com o incumprimento do contrato de locação dos helicópteros e estando aquela obrigada à sua entrega à recorrente após o decurso do prazo estipulado, é lícita a sua detenção por via do direito de retenção (retenção esta que só é possível, precisamente, porque os aparelhos não foram entregues à recorrente e ainda se encontram na sua posse).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães,

I – Relatório

EMP01..., S.A., com sede no Edifício ..., Heliporto ..., ..., propor o presente procedimento cautelar comum contra EMP02... SARL, com sede no n.º ... – ...00 ... ..., ..., ..., pedindo que seja:
a) provisoriamente reconhecido o direito de retenção da requerente, até à prolação de
decisão na ação principal, sobre as aeronaves com as matrículas ... e ....C;
b) decretada a manutenção na posse da requerente sobres as mesmas aeronaves.
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Para tanto, alegou, em síntese, ter celebrado com a requerida dois contratos de locação de helicópteros para combate a incêndios e que teve que suportar despesas por aqueles helicópteros não apresentarem os requisitos acordados.
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Dispensado o contraditório prévio, foi produzida prova, após o que foi proferida decisão que decretou a providência nos termos requeridos.
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Notificada desta decisão, a requerida deduziu oposição na qual arguiu as excepções da nulidade da citação e da incompetência internacional dos tribunais portugueses, bem como impugnou a probabilidade de existência séria do direito invocada pela requerida, dado ter cumprido a obrigação a que se vinculou com a requerente e a final invocou a ausência de verificação dos requisitos do direito de retenção.
Concluiu pelo levantamento da providência.
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Por despacho de 12.5.2025 (ref.º ...71) decidiu-se pela competência internacional dos tribunais portugueses e indeferiu-se a arguição de nulidade da citação da requerida.
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Posteriormente foi proferida decisão final, a qual manteve a providência decretada, nos mesmos termos, reconhecendo o direito de retenção da requerente sobre as aeronaves com as matrículas ... e ....C, mantendo-as na sua posse até à prolação de decisão na ação principal.
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Inconformada, a requerida interpôs recurso desta decisão final, pugnando pela sua revogação e pelo levantamento do direito de retenção da requerente sobre as aludidas aeronaves.
Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:

A. O presente recurso tem por objeto a Sentença proferida a 03.06.2025 pelo Tribunal Judicial da Comarca de Bragança que manteve a decisão que o mesmo havia tomado anteriormente de decretar o a providência cautelar não especificada requerida pela Requerente, i.e., permitir a esta última manter na sua posse as aeronaves com as matrículas ... e ....C (“Helicópteros”), por julgar sumariamente provado o direito de retenção da Requerente sobre os mesmos (“Sentença Recorrida”).
B. Porém, salvo melhor entendimento, a Sentença Recorrida assenta numa interpretação jurídica errada da factualidade dos autos e, além do mais, desconsidera por completo factos essenciais à boa decisão da causa.
C. Com efeito, apesar de a matéria de facto da Sentença Recorrida incluir a existência de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância do Principado do Mónaco de 25.10.2024 que ordenou o arresto dos Helicópteros, a mesma ignorou, por completo, a circunstância de essa decisão ter sido revogada pelo mesmo Tribunal em 26.02.2025 após o exercício do contraditório pela aqui Requerida, decisão que a Requerida juntou aos autos a 15.05.2025.
D. Além disso, a Sentença Recorrida omitiu também factos essenciais relativos às ocorrências dos dias 31.10.2024 e 01.11.2024 no Aeroporto ..., adotando uma versão distorcida e parcial dos acontecimentos, em claro desfavor da Requerida.
E. Assinala-se, sobretudo, a omissão da realização de uma reunião extraordinária do Conselho de Administração do referido aeroporto de 01.11.2024, em foi decidido autorizar os voos dos Helicópteros pela Requerida, que havia sido negado na véspera com base na decisão do Tribunal monegasco de 25.10.2024.
F. Mais omitindo que a Requerente, logo após ser informada daquela autorização pela Direção do Aeroporto, deu instruções à EMP03... para esta trancar os Helicópteros num hangar, ato que Tribunal da Relação de Lisboa qualificou como esbulho violento: Os atos da requerida de levar os helicópteros para zona por si detida e de aí os manter fechados, impedindo à dona, que se encontrava no local para os levantar, o acesso aos mesmos, reconduz-se ao conceito de esbulho. (…) Ou seja: i. a requerida exerceu violência sobre as coisas, transportando-as e fechando-as num hangar que lhe está reservado e ao qual recusa o acesso à requerente; (…)
G. Donde se conclui que, em rigor, este procedimento cautelar não deveria ter sequer existido, pois o mesmo decorre tem origem num ato ilícito da Requerente que impediu a Requerida de retomar a posse dos Helicópteros após o término dos contratos de locação, como deveria ter ocorrido.
H. De facto, a Requerente conseguiu apoderar-se de forma ilegal dos Helicópteros da Requerida, instaurando depois este procedimento cautelar, numa tentativa de justificar o seu comportamento ilegal a posteriori.
I. Por outro lado, não se encontra sumariamente demonstrada a probabilidade séria da existência do direito de crédito invocado pela Requerente.
J. Os Helicópteros foram entregues à Requerente em condições de aeronavegabilidade, sendo que o atraso na obtenção dos COTA se deveu à ausência de documentação e equipamentos específicos para o combate a incêndios, finalidade que não foi contratualizada entre as partes, o que resulta quer das comunicações da Requerente com a ANAC, quer do teor dos contratos celebrados entre a Requerente e a Força Aérea Portuguesa.
K. De facto, o que cabia à Requerida assegurar era a entrega dos Helicópteros em condições de aeronavegabilidade (tout court), isto é, aptos a navegar com segurança no espaço aéreo.
L. O Tribunal a quo incorre num claro erro de interpretação ao entender que, pela circunstância de a Requerida ter declarado saber que a finalidade pretendida pela Requerente com cedência temporária dos Helicópteros era o combate aos incêndios rurais, a Requerida seria responsável por assegurar o cumprimento de todas as disposições legais e regulamentares aplicáveis da Aviação civil em Portugal especificamente para esse fim.
M. O Tribunal de Primeira Instância do Mónaco, na sua decisão de 26.02.2025, também contraria aquela visão do Tribunal a quo: Além disso, embora a EMP01... S.A. afirme que a intenção comum das partes era alugar helicópteros para o combate a incêndios em Portugal, tal não resulta de todo das estipulações contratuais e o facto de o locador ter sido inicialmente informado do destino dos helicópteros não torna, no caso vertente, suficientemente claro que a EMP02... S.A.R.L. tenha uma obrigação a este respeito. (…) Por conseguinte, tendo em conta a necessidade de avaliar e interpretar os acordos e a intenção comum das partes, bem como a natureza e o alcance dos seus compromissos, para decidir este litígio em matéria de responsabilidade contratual, não se pode aceitar, em princípio, a aparência de um crédito.
N. O teor da cláusula 8.ª dos contratos de locação, nos termos da qual a Requerente renuncia ao direito de exigir uma indemnização por qualquer prejuízo que possa sofrer em consequência da imobilização dos Helicópteros, deve ser tida em conta para efeitos da interpretação da vontade das partes, na medida em que evidencia que a Requerente não considerou ser essencial salvaguardar-se para os casos uma eventual imobilização dos Helicópteros.
O. Mais ainda, importa notar que responsabilização da Requerida por obrigações assumidas pela Requerente perante a FAP configura violação do princípio da relatividade dos contratos nos termos do Código Civil francês (cfr. artigo 1199.º) uma vez que a Requerida não tem qualquer vínculo jurídico com a FAP.
P. A alocação dos Helicópteros à execução de um futuro contrato com a FAP constitui uma decisão inerente ao exercício da atividade da Requerente, devendo esta assumir os riscos inerentes a esse negócio, que não podem ser repercutidos na esfera jurídica da Requerida.
Q. Por outro lado, a providência cautelar decretada revela-se manifestamente desproporcional, uma vez que o prejuízo que já causou – e continua a causar - à Requerida excede largamente o hipotético dano que a providência pretende evitar.
R. Veja-se que o valor do hipotético crédito reclamado pela Requerente é manifestamente exagerado, já que inclui prejuízos resultantes da violação de obrigações contratuais assumidas por aquela perante a Força Aérea Portuguesa, às quais a Requerida é totalmente alheia.
S. Em contrapartida, a privação, há já cerca de oito meses, dos Helicópteros - que compõem a grande maioria do património da Requerida, representa para esta uma enorme perda
financeira, ao que acresce a desvalorização dos Helicópteros derivada da sua imobilização prolongada.
T. Ademais, ao contrário do que defende o Tribunal a quo, não existe qualquer garantia de que a “detenção das aeronaves por parte da Requerente não é suscetível de causar a depreciação das referidas aeronaves” uma vez que os trabalhos de manutenção nos Helicópteros realizados suportados pela Requerente destinaram-se, apenas, a suprir insuficiências dos mesmos para efeitos do cumprimento dos acordos celebrados entre a Requerente e a FAP, inexistindo qualquer garantia de que os trabalhos de manutenção continuem a ser realizados.
U. Mais ainda, a circunstância de quer a Requerente, quer a EMP03..., em cujas instalações se encontram os Helicópteros, terem sido alvo buscas e serem arguidas em processo-crime, criam sérias dúvidas na Requerida de que aquelas entidades estão a fazer uma adequada
conservação dos Helicópteros.
V. Donde se conclui que o decretamento da providência deve ser revertido pelo Tribunal ad quem, já que a manutenção da mesma conduz a um resultado injusto e potencialmente irreversível, considerando a gravidade dos seus efeitos na esfera jurídica da Requerida, que se encontra numa situação de pré-insolvência em função da privação daqueles bens.
W. Por fim, importa ainda assinalar que não se encontra preenchido o pressuposto essencial do direito de retenção alegado pela Requerente: a detenção lícita dos Helicópteros.
X. Com efeito, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu expressamente que existiu um esbulho violento dos Helicópteros, sendo a Requerente a única legítima possuidora dos mesmos
após o termo dos contratos de locação.
Y. Neste contexto, o Tribunal a quo incorre numa grave contradição lógica quando afirma que o referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não obsta à conclusão de que a Requerente tenha obtido os Helicópteros de forma ilícita.
Z. Efetivamente, seguindo a linha de raciocínio do Tribunal a quo, a Requerente não realizou qualquer esbulho, mas sim a EMP03..., donde decorreria necessariamente que a atual detentora dos Helicópteros é a EMP03... e não a Requerente, donde resultaria, por sua
vez, que todo o pressuposto deste procedimento cautelar – um alegado direito de retenção dos Helicópteros fundado na detenção lícita pela Requerente – deixaria de existir, sendo a Requerente parte ilegítima nestes autos.
AA. Ora, aquela argumentação é insustentável: ou bem que houve esbulho pela Requerente, sendo a sua detenção ilícita, ou bem que o esbulho é atribuível à EMP03..., sendo esta a detentora e não a Requerente, falhado o pressuposto basilar de qualquer direito de
retenção: a detenção da(s) coisa(s) retida(s).
BB. Neste caso, é evidente que a EMP03..., quando trancou os Helicópteros num hangar, fê-lo por instrução da Requerente, sendo por isso a sua detenção ilícita e devendo, por
conseguinte, ser levantada a providência decretada pelo Tribunal a quo por inexistência de um qualquer direito de retenção!
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A requerente/recorrida apresentou resposta às alegações de recurso dos Autores, defendendo a improcedência das mesmas e a manutenção da providência decretada.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.
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Nesta Relação foi considerado o recurso corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Das questões a decidir

O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
O presente procedimento cautelar comum foi intentado com fundamento num alegado direito de retenção sobre os helicópteros identificados nos autos, em consequência de despesas que a requerente afirma ter tido com estes e de prejuízos sofridos, atenta a sua inoperacionalidade para o fim visado com a locação das mesmas à requerida: o combate aos incêndios.
Assim, tendo por base estes pressupostos, as questões que importa apreciar e decidir, neste recurso (conforme aliás indicado pela própria recorrente no índice das suas alegações de recurso) são as seguintes:

a) impugnação da matéria de facto propugnada pela recorrente;
b) ausência de probabilidade séria da existência do direito de crédito da requerente;
c) desproporcionalidade do dano provocado à requerida com o decretamento da providência cautelar; e
d) inexistência do direito de retenção por detenção ilícita dos helicópteros.
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III – Fundamentação

III – I. Da Fundamentação de facto
           
Na decisão final sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:

1. A Requerente é uma sociedade comercial de direito português, que tem por objeto a exploração da indústria de transporte aéreo regular e não regular de passageiros e respetiva bagagem de carga e correio, incluindo a gestão de aeronaves, assim como a consultoria, exploração de serviços e a realização de operações comerciais, industriais e financeiras relacionadas direta ou indiretamente com aquela atividade, incluindo investimentos mobiliários e imobiliários, bem como a aquisição e gestão de ativos, mobiliários sujeitos ou não a registo e imobiliários e todas as atividades com estes relacionadas, designadamente através da subscrição ou aquisição de participações sociais e realização de investimento noutras sociedades incluindo em sociedades com um objeto social diferente do seu ou em sociedades reguladas por lei especial; exploração de serviços complementares à realização do seu objeto social, incluindo a assistência a aeronaves nos aeroportos, a formação de pessoal técnico e a assistência a outras empresas do sector com cedência e fornecimento de equipamentos e de meios técnicos e humanos.
2. No exercício da sua atividade, a Requerente efetua diversas missões de transporte aéreo e de trabalho aéreo com helicópteros, incluindo combate a incêndios florestais.
3. Em março de 2024, a Requerente foi convidada a apresentar proposta no âmbito do ajuste direto com o n.º ...24, que tinha por objeto a “AQUISIÇÃO DE SERVIÇOS DE DISPONIBILIZAÇÃO E LOCAÇÃO DOS MEIOS AÉREOS QUE CONSTITUEM O DISPOSITIVO AÉREO DO DECIR DE 2024 – HEBL A e B”;
4. Tendo em vista a possível adjudicação desta proposta e de outas semelhantes que sabia estarem em preparação e com o objetivo de otimizar a gestão da sua frota de aeronaves, a Requerente iniciou a pesquisa de empresas que disponibilizassem aeronaves que esta pudesse alugar e afetar aos seus futuros acordos que tivessem por objeto helicópteros ligeiros.
5. A Requerida é uma sociedade comercial de direito monegasco, especializada no aluguer de helicópteros caso a caso (sem piloto), na compra e venda de helicópteros usados e na venda de peças sobresselentes para helicópteros usados.
6. A Requerente contactou a sociedade comercial EMP02..., aqui requerida, para com a mesma realizar acordos reduzidos a escrito para cedência onerosa temporária de aeronaves.
7. Em 18.03.2024, em 26.03.2024 e em 17.04.2024, respectivamente, a requerente e a requerida firmaram três acordos reduzidos a escrito denominados pelas partes como acordo de locação de helicóptero
8. Em cada um desses acordos reduzidos a escrito, a Requerida obrigou-se a fornecer à Requerente um helicóptero ligeiro, modelo Écureuil AS 350 B2, equipado para o combate a incêndios.
9. As aeronaves objetos desses acordos tinham, respetivamente, as matrículas ..., ... e ....C.
10. Os períodos de cedência onerosa das aeronaves foram os seguintes:
. o acordo reduzido a escrito datado de 18/03/2024, relativo à aeronave com a matrícula ... tinha início em 01/06/2024 e fim em 15/10/2024;
. o acordo reduzido a escrito datado de 26/03/2024, relativo à aeronave com a matrícula ... tinha início em 01/06/2024 e fim em 15/10/2024;
. o acordo reduzido a escrito datado de 17/04/2024, relativo à aeronave com a matrícula ....C tinha início em 15/06/2024 e fim em 01/10/2024;
11. Em 08.05.2024 a requerente realizou com a Força Aérea Portuguesa um acordo reduzido a escrito denominado pelas partes como “ACORDO REFERENTE À AQUISIÇÃO DE SERVIÇOS DE DISPONIBILIZAÇÃO E LOCAÇÃO DOS MEIOS AÉREOS QUE CONSTITUEM O DISPOSITIVO AÉREO DO DECIR 2024” – sob o n.º ...4;
12. Tal acordo com o n.º ...4 previa o fornecimento pela aqui requerente de três helicópteros ligeiros de combate a incêndios de 1 de junho a 15 de outubro de 2024.
13. Em 24.07.2024, a requerente realizou outro acordo reduzido a escrito com a Força Aérea Portuguesa, desta vez, para o fornecimento de um único helicóptero ligeiro de combate a incêndios sob a designação “acordo n.º ...59”.
14. Tal acordo com o n.º ...59 previa o fornecimento pela aqui requerente de um helicóptero ligeiro de combate a incêndios de 17 de julho a 31 de outubro de 2024.
15. Os períodos de cedência onerosa das aeronaves ao abrigo dos acordos realizados entre a requerente e a requerida, correspondiam ao início do período operacional ao abrigo do Acordo ....
16. Os pagamentos das rendas a efetuar pela Requerente ao abrigo dos acordos de cedência temporária onerosa só eram devidos em 1 de julho de 2024.
17. Este calendário refletia a intenção das partes e, em especial, da requerente, de alinhar as suas saídas de caixa (as rendas de locação) com as suas entradas de caixa (remuneração pela disponibilidade dos helicópteros ao abrigo dos acordos escritos ... e ...59).
18. A requerente afetou as supra mencionadas três aeronaves da requerida ao acordo n.º ... até ao seu termo.
19. Terminando este acordo, poderiam estas aeronaves ser transferidas para o acordo ...59, no caso de não estar disponível qualquer outro helicóptero da frota da Requerente.
20. No que se refere ao período de sobreposição dos períodos operacionais dos acordos ... e ...59, ou seja, de 17 de julho a 15 de outubro de 2024, a Requerente previa afetar ao acordo ...59 qualquer outro helicóptero da sua frota disponível nessa altura.
21. A disponibilidade dos três helicópteros cedidos pela Requerida à requerente libertaria outras aeronaves desta que poderiam ser afetadas ao acordo ...59.
22. A cláusula 4.1. dos três acordos reduzidos a escrito realizados entre as partes prevê que “a Locadora – no caso, a Requerida – “é responsável pela gestão aeronáutica do Helicóptero objeto de locação, obrigando-se aquela a respeitar as disposições legais e regulamentares da Aviação Civil nessa matéria.
23. A cláusula 4.2. dos acordos prevê a obrigação de a Requerida colocar à disposição da Requerente o helicóptero objeto do acordo em perfeito estado de funcionamento e nas condições estabelecidas em conjunto pelas partes, bem como toda a documentação necessária à circulação da aeronave.
24. A mesma cláusula estabelece ainda a obrigação da Requerida – “fornecer à Requerente um helicóptero que satisfaça todas as obrigações decorrentes regulamentação em vigor e que possua todos os documentos de bordo válidos para as atividades autorizadas pelo Acordo”.
25. Logo no início da execução dos acordos realizados entre a Requerente e a Requerida, verificou-se que as aeronaves fornecidas por esta não se encontravam em condições de aeronavegabilidade para o fim acordado, pois não dispunham da documentação regulamentar relevante, incluindo todos os Form 1s da EASA, completa e atualizada.
26. A ANAC recusou as autorizações de navegabilidade solicitadas pela Requerente devido à ausência de documentação regulamentar relevante, bem como anomalias físicas relativas ao estado e aos componentes dos helicópteros, não dispondo estes de condições de aeronavegabilidade e, em particular, as necessárias para realizar missões de combate a incêndios.
27. Tendo verificado que os helicópteros fornecidos pela Requerida não estavam em condições de aeronavegabilidade pretendida, a Requerente encomendou à empresa de manutenção EMP04..., S.A. diversos trabalhos para que as aeronaves ficassem em conformidade com a regulamentação em vigor e com os requisitos de combate a incêndios.
28. O helicóptero com matrícula ....C recebeu o seu COTA (Certificado de Operador de Trabalho Aéreo) e foi declarado operacional pela Força Aérea Portuguesa ao abrigo do acordo ... em 24 de julho de 2024 (ou seja, 39 dias após o início do período operacional do acordo).
29. O helicóptero ... recebeu o seu COTA e foi declarado operacional pela Força Aérea Portuguesa ao abrigo do Acordo ..., em 31 de julho de 2024 (ou seja, 60 dias após o início do período operacional do acordo).
30. A aeronave com a matrícula ... não recebeu o seu COTA durante o período e vigência do acordo e nunca voou, seja no âmbito do Acordo ..., seja no âmbito do Acordo ...59.
31. Os trabalhos orçamentados ascendem ao montante global de € 40.593,98, conforme Orçamentos (ou 2quotes”) a que acrescem a margem de 10% de lucro que a organização de manutenção de nome EMP04... (do grupo do operador subcontratado pela Requerente, a empresa EMP03...) comunicou à Requerente que iria aplicar, que ascende ao montante de € 4.059,40, ficando, portanto, estes trabalhos num montante global de € 44.657,38, a que acrescerá IVA à taxa legal de 23%, resultando num global de € 54.923,66 relativo a despesas direta e expressamente decorrentes da reparação e/ou reposição da aeronavegabilidade dos helicópteros com as matrículas n.º ... e ....C.
32. Alguns trabalhos de desconfiguração dos helicópteros ....C e ... ainda não foram efetuados, pelo que não foi ainda apurado o montante global.
33. Para além das despesas supra, a Requerente teve ainda despesas com a alocação de pessoal da empresa para a gestão de todo o processo, as quais, relativamente às aeronaves com as matrículas n.º ... e ....C, ascendem ao montante global de € 5.658,00.
34. A Requerente teve ainda despesas com a hangaragem destas aeronaves – ... e ....C -, pelos períodos em que as mesmas estiveram a ser objeto de reparação e/ou reposição de aeronavegabilidade, num total de € 4.213,62.
35. A requerente pagou à requerida as rendas ao abrigo dos Acordos de Locação relativamente às aeronaves ... e ....C as quais ascenderam ao montante global de € 364.000,00.
36. A requerente entregou à requerida uma caução bancária em cada um dos acordos relativos às aeronaves ... e ....C que ascenderam, ao montante de € 50.000,00 cada uma, num total de € 100.000,00.
37. Durante o período decorrido entre 01.06.2024 e 24.07.2024, para suprir ou compensar a falta das aeronaves cedidas pela requerida à requerente, esta teve, a partir de 01.06.2024, de efectuar um acordo de cedência temporária onerosa de uma aeronave à sociedade comercial EMP05..., Lda., que se manteve até ao final do Acordo ....
38. A partir de 07.06.2024 a requerente teve de utilizar uma aeronave que estava a ser utilizada no Acordo n.º ...75, que a Requerente tinha em vigor com a Força Aérea Portuguesa desde 2023, realocando-a desse Acordo para o Acordo ....
39. A partir de 05.07.2024 a requerente teve de utilizar uma aeronave que estava a ser utilizada no Acordo n.º ..., que a Requerente tinha em vigor com a Força Aérea Portuguesa desde 2023, realocando-a desse Acordo para o Acordo ....
40. Entre 01.06.2024 e 06.06.2024, apenas uma aeronave esteve disponível: a cedida pela EMP05..., no âmbito do Acordo ....
41. Entre 07.06.2024 e 04.07.2024, apenas duas aeronaves estiveram disponíveis: a cedida pela EMP05... e a aeronave que foi realocada do Acordo ...75.
42. Só a partir de 05.07.2024 passaram a estar três aeronaves disponíveis, mas nenhuma destas três aeronaves corresponde às aeronaves cedidas pela requerida à requerente.
43. Durante o período decorrido entre 25.07.2024 e 31.07.2024, a Requerente pôde já utilizar a aeronave com a matrícula ....C.
44. Em 25.07.2024 a aeronave da Requerida com a matrícula ....C entrou em operação, em virtude de ter sido inserida no COTA do operador subcontratado pela Requerente - a EMP03...- a 24.07.2024.
45. No entanto, continuavam a estar em falta 2 (duas) das aeronaves cedidas pela Requerente à Requerida.
46. Assim, no âmbito do Acordo ..., entre 25.07.2024 e 31.07.2024, para suprir ou compensar a falta das 2 (duas) aeronaves fornecidas pela Requerida, a Requerente teve que manter o acordo de fornecimento da aeronave pela sociedade comercial EMP05..., Lda. e manter a utilização da aeronave que, até 04.07.2024, estava a ser utilizada no Acordo n.º ..., que a Requerente tinha em vigor com a Força Aérea Portuguesa.
47. Relativamente à terceira aeronave, a Requerente pôde finalmente libertar a aeronave que até 06.06.2024 tinha estado afeta ao Contrato n.º ...75, que a Requerente tinha em vigor com a Força Aérea Portuguesa, e substituí-la pela aeronave da Requerida com a matrícula ....C.
48. Durante o período decorrido entre 01.08.2024 e 01.10.2024 a gestão de meios no âmbito do Acordo ... sofreu uma nova alteração.
49. Com efeito, em 01.08.2024 a aeronave da Requerida com a matrícula ... entrou em operação, em virtude de ter sido inserida no COTA do operador subcontratado pela ora Requerente a 31.07.2024.
50. Esta entrada de uma das aeronaves locadas pela Requerente à Requerida permitiu, enfim, a libertação da aeronave que até 04.07.2024 estava a ser utilizada no Acordo n.º ..., que a Requerente tinha em vigor com a Força Aérea Portuguesa.
51. Porém, relativamente à terceira aeronave a operar no âmbito do Acordo ..., continuou a haver de necessidade de se manter o acordo para fornecimento de uma aeronave pela sociedade comercial EMP05..., Lda..
52. Durante o período decorrido entre 02.10.2024 e 15.10.2024, a gestão de meios no âmbito do Acordo ... sofreu uma nova e última alteração.
53. Em 01.10.2024 chegou ao fim o período do acordo realizado entre a Requerente e a Requerida relativo à aeronave com a matrícula ....C.
54. Pelo que, a partir de 02.10.2024, das 3 (três) aeronaves da Requerida manteve-se em operação somente a aeronave com a matrícula ....
55. Para observância do Acordo ... entre 02.10.2024 até ao fim do período operacional previsto nesse Acordo (15.10.2024) a Requerente teve que manter o fornecimento da aeronave pela sociedade comercial EMP05..., Lda. e utilizar outra aeronave que, entretanto, ficou liberta em virtude da cessação do Acordo n.º ..., que a Requerente tinha em vigor com a Força Aérea Portuguesa.
56. O Acordo ... previa a remuneração da Requerente nos seguintes termos:
- Um montante diário fixo de € 4.437,95 por dia e por helicóptero, sendo que neste caso a remuneração é por simples disponibilidade dos helicópteros fornecidos, independentemente de estes estarem ou não a efetuar missões;
- Um montante variável, remunerado a cada hora de voo, de € 1.189,00;
57. Em face das indisponibilidades verificadas no início do Acordo, a Requerente teve uma perda de remuneração fixa por disponibilidade que ascende ao montante de € 177.518,00.
58. O Acordo n.º ... também previa que, por cada dia de indisponibilidade de cada um dos helicópteros previstos no Acordo, a Requerente ficaria sujeita a uma penalidade correspondente a 100% da remuneração diária fixa a que teria direito, por helicóptero, acrescida de 50% se o tempo de indisponibilidade fosse igual ou superior a 2 dias.
59. A aplicação de penalidades por indisponibilidade das aeronaves nos termos descritos supra, ascendeu a um total de € 257.401,10.
60. A Requerente pagou pela aeronave cedida pela sociedade comercial EMP05..., Lda., durante o período operacional do Acordo ..., o valor global que ascende ao montante de € 215.245,90.
61. Atendendo a que, entre 07.06.2024 e 24.07.2024, a Requerente teve de realocar uma aeronave que estava adstrita ao Acordo ...75 para o Acordo ..., a mesma sofreu uma perda de remuneração naquele Acordo ...75, no valor de € 145.392,00, bem como a aplicação de penalidades por indisponibilidade dessa aeronave.
62. O Acordo ...75 prevê, no n.º 2 da sua cláusula 24.ª a remuneração da Requerente nos seguintes termos:
- Um montante diário fixo de € 3.029,00 por dia e por helicóptero, sendo que neste caso a remuneração é por simples disponibilidade dos helicópteros fornecidos, independentemente de estes estarem ou não a efetuar missões;
- Um montante variável, remunerado a cada hora de voo, de € 1.200,00.
63. A aeronave que se encontrava alocada a este Acordo passou a estar alocada ao Acordo n.º ... entre 07.06.2024 e 24.07.2024, num total de 48 dias, pelo que requerente deixou de receber a remuneração por disponibilidade, por essa aeronave, no valor de € 145.392,00.
64. Tendo em conta um período de indisponibilidade de 48 dias (entre 07.06.2024 e 24.07.2024), a Requerente sofreu penalidades aplicadas no Acordo ...75 pela indisponibilidade da aeronave que foi realocada do mesmo para o Acordo ..., no montante total de € 215.059,00.
65. Atendendo a que, entre 04.07.2024 e 24.07.2024, a Requerente teve que realocar uma aeronave que estava adstrita ao Acordo ... ao Acordo ..., a mesma sofreu perda de remuneração naquele Acordo ..., bem como a aplicação de penalidades por indisponibilidade dessa aeronave.
66. O Acordo ... prevê, na sua cláusula 24.ª a remuneração da Requerente nos seguintes termos:
- Um montante diário fixo de € 2.625,74 por dia e por helicóptero, sendo que neste caso a remuneração é por simples disponibilidade dos helicópteros fornecidos, independentemente de estes estarem ou não a efetuar missões;
- Um montante variável, remunerado a cada hora de voo, de € 990,00.
67. A Requerente logrou alocar a esse Acordo uma outra aeronave, que lhe foi fornecida pela EMP06... - Operações, Actividades e Serviço Aéreo Lda, entre 04.07.2024 e 15.07.2024.
68. Neste âmbito teve uma perda de renumeração entre 16.07.2024 e 24.07.2024 (9 dias), o que perfaz uma perda de remuneração por disponibilidade no montante de € 23.631,66.
69. Para além da perda da remuneração por disponibilidade, a Requerente também sofreu penalidades naquele Acordo, por indisponibilidade da aeronave que devia estar afeta ao mesmo.
70. Tendo em conta um período de indisponibilidade de 9 dias (entre 16.07.2024 e 24.07.2024), a Requerente sofreu penalidades aplicadas no Acordo ... pela indisponibilidade da aeronave que foi realocada do mesmo para o Acordo ... no montante total de € 32.821,75.
71. A Requerente pagou pela aeronave que lhe foi disponibilizada pela sociedade comercial EMP06... Operações, Actividades e Serviço Aéreo Lda, o montante de € 52.685,24.
72. A indisponibilidade da aeronave com a matrícula ..., que se manteve ao longo de todo o período de locação, nunca tendo sequer sido possível ser utilizada pela Requerente em qualquer acordo que fosse, teve as seguintes consequências:
- por um lado, a Requerente teve que substituir esta aeronave ao abrigo do Acordo ... por helicópteros alugados à sociedade comercial EMP05..., Lda. para a base de ....
- por outro lado, o plano de recurso da Requerente para dar uso a esta aeronave afetando-a a missões de observação ao abrigo do Acordo ...59 também falhou, uma vez que nem para esse efeito foi possível inserir esta aeronave no COTA da operadora subacordada pela Requerente.
73. Durante o mês de julho de 2024, e tendo em conta as deficiências e irregularidades da aeronave com a matrícula ... em termos de documentos e equipamento, as Partes (Requerente e Força Aérea Portuguesa) acordaram “alterar” o seu funcionamento para missões de observação.
74. Porém, também este plano de recurso para contenção de prejuízos falhou, dado que a aeronave com a matrícula ... nunca ficou aeronavegável, uma vez que nunca foi possível inserir esta aeronave no COTA da operadora subacordada pela Requerente, independentemente do tipo de missão em causa.
75. A Requerente apenas conseguiu adjudicar uma aeronave a entidade terceira, no caso à sociedade comercial EMP05..., Lda., & partir do dia 04.10.2024 e até ao dia 15.10.2024.
76. Entre o dia 24.07.2024 e 0 dia 03.10.2024 nenhuma aeronave voou ao abrigo deste Acordo.
77. A Requerente teve, portanto, perda de remuneração por disponibilidade, já que a Cláusula 24.ª do Acordo (24IN5003 59) previa:
- Um montante diário fixo de € 5.348,00 por dia e por helicóptero, sendo que neste caso a remuneração é por simples disponibilidade dos helicópteros fornecidos, independentemente de estes estarem ou não a efetuar missões;
- Um montante variável, remunerado a cada hora de voo, de € 1.489,00;
78. Quanto à aeronave com a matrícula ... & Requerente teria a receber a remuneração por disponibilidade no valor de € 443.884,00.
79. Porém, tendo em conta que a Requerente apenas conseguiu alocar a este Acordo uma aeronave (requisitada à EMP05...) a partir de 04.10.2024, a Requerente apenas recebeu uma remuneração por disponibilidade no montante de € 64.176,00.
80. Tendo sofrido um prejuízo — no que à matéria de remuneração por disponibilidade diz respeito no montante de € 379.708,00.
81. A EMP05..., Lda. cobrou à Requerente pela cedência da aeronave, propriedade daquela empresa, que voou neste acordo entre 04.10.2024 e 15.10.20244, o valor global de € 51.660,00 (fazendo-se o cálculo do preço unitário por dia de operação (€ 3.500,00 x 12), chegamos a um total de € 42.000,00, a que acresce IVA à taxa legal em vigor, no montante de € 9.660,00, perfazendo assim O montante global de € 51.660,00).
82. No âmbito dos acordos ... e ...59, a remuneração da Requerente incluía um montante diário fixo – de € 4.437,95 e de € 5.348,00 por dia e por helicóptero, respetivamente – que remunera a simples disponibilidade dos helicópteros fornecidos, independentemente de estes estarem ou não a efetuar missões.
83. Esta remuneração destina-se a cobrir os custos fixos dos operadores de helicópteros, que são muito elevados (nomeadamente devido à manutenção constante que têm de efetuar nas suas máquinas).
84. No âmbito dos acordos ... e ...59, & remuneração da Requerente incluía ainda um montante variável, remunerado a cada hora de voo, de € 1.189,00 e € 1.489,00, respetivamente.
85. Os acordos ... e ...59 previam que, por cada dia de indisponibilidade de cada um dos helicópteros previstos nos acordos, não só o volume de negócios da Requerente seria reduzido no montante correspondente à remuneração diária fixa da Requerente por helicóptero, como & Requerente ficaria igualmente sujeita a uma penalização correspondente a 100% da remuneração diária fixa a que teria direito, por helicóptero, acrescida de 50% se o tempo de indisponibilidade fosse igual ou superior a 2 dias.
86. Tendo em conta que a aeronave com a matrícula ....C só passou a estar disponível a partir de 24 de julho de 2024, que a aeronave ... só passou a estar disponível a partir de 31 de julho de 2024, e que a aeronave com a matrícula ... nunca esteve disponível, 0 prejuízo da EMP07... relativamente à sua remuneração fixa e às penalidades aplicadas ascende & € 2.082.111,03 (dois milhões e oitenta e dois mil, cento e onze euros e três cêntimos).
87. O número de horas de voo realizadas no âmbito dos acordos de combate a incêndios que & Requerente pôde honrar situou—se entre 120 e 150 horas.
88. No dia 10 de outubro de 2024, os advogados da Requerente enviaram uma carta oflcial aos advogados da Requerida, detalhando as falhas daquela empresa, quantificando os prejuízos da Requerente e requerendo o ressarcimento desta.
89. Em face da ausência de resposta, & Requerente recorreu ao Tribunal de Primeira Instância do Mónaco, requerendo o arresto ou a retenção das aeronaves com as matrículas ... e ....C.
90. Em 25.10.2024 0 Tribunal do Mónaco proferiu a decisão, deixando à Requerente a livre escolha entre reter as aeronaves com as matrículas ... e ....C, caso estivessem na sua posse, ou mandar arrestá-las no caso contrário, limitando, porém, o âmbito territorial desta segunda opção ao território da Principalidade de Mónaco.
91. O Mandatário da Requerente, deu conhecimento da decisão proferida pelo Tribunal do Mónaco aos Mandatários da Requerida no dia 29.10.2024, referindo que ia exercer o seu direito de manter a sua posse nas aeronaves ....C e ....
92. A Sentença foi também comunicada verbalmente por Oficial de Justiça ao Gerente da Requerida no passado dia 31.10.2024.
93. No dia 31.10.2024, a Requerente recebeu a notícia de que três indivíduos cuja identidade desconhecia, se deslocaram ao Aeroporto ..., onde as aeronaves se encontram à guarda da Requerente — concretamente junto das empresas EMP03... e EMP04..., entidades subcontratadas por esta -, e, munidos de um plano de voo referente à aeronave corn a matrícula ..., se dirigiram também às aeronaves com as matrículas ... e ... e ....C e começaram & intervencionar nas mesmas.
94. A equipa de safety do Aeroporto ... verificou e transmitiu à Direção do Aeroporto que os mencionados indivíduos se deslocaram às três aeronaves, abastecendo-as, e tirando as tampas das hélices e se preparavam para descolar as mesmas.
95. O Presidente do Conselho de Administração desta deslocou-se ao local onde se encontravam os indivíduos em causa e comunicou-lhes que os mesmos não podiam descolar nenhuma das aeronaves.
96. Mais ordenando que parassem de intervencionar nas aeronaves, como até então estavam a fazer.
97. Os indivíduos desde logo manifestaram que conheciam a ordem judicial de arresto das aeronaves.
98. Sendo que, ainda assim, declararam que pretendiam agir à sua revelia.
99. Perante estes factos, 0 Presidente do Conselho de Direção da Denunciante, AA, chamou ao local & Esquadra de Segurança Aeroportuária da PSP, que se dirigiu ao local, identificou os três indivíduos e elaborou um auto de ocorrência.
100. A Requerente tomou conhecimento que um deles é o Gerente da Requerida, BB.
101. A Requerida tinha conhecimento da decisão proferida pelo Tribunal Monegasco quando foram praticados os actos supra descritos.
102. Existe um mecanismo específico acordado entre as partes no artigo 6º dos Acordos para a recolha das aeronaves, que não foi observado pela requerida.
103. A requerida tentou descolar as três aeronaves sem qualquer tipo de documentação e sem auto de receção das mesmas.
104. Naquele dia — 31.10.2024 — a Requerente conseguiu impedir a retirada de todas as aeronaves.
105. Porém, no dia 01.1 1.20241, os mesmos indivíduos, onde se incluí o Gerente da Requerida, voltaram a dirigir-se ao Aeroporto ..., desta feita acompanhados por advogados, e conseguiram acesso à aeronave com a matrícula ..., que não se encontrava abrangida pela Ordem do Tribunal do Mónaco.
106. Sem observância do conjunto de atos prévios à devolução da aeronave, que se encontram elencados na cláusula 6.ª de todos os Acordos realizados entre a requerente e a requerida, os indivíduos identificados, & mando e em representação da Requerida, descolaram esta aeronave com a matrícula ....
107. A Requerida descolou a aeronave com a matrícula ... sem parte da sua documentação regulatória de bordo e com instalação de um duplo comando sem que a Requerente tenha conhecimento sobre a existência ou não da respetiva documentação obrigatória de suporte.
108. Acresce que a aeronave ainda se encontrava sob a apólice de seguro da Requerente, o que levou a que esta se visse obrigada a cancelar, com efeitos imediatos, o seguro da aeronave.
109. A Requerente tem conhecimento de que a Requerida pretende e se prepara para realizar todos os atos — judiciais ou extrajudiciais — ao seu alcance para retirar também as aeronaves com as matrículas ... e ....C da posse da Requerente.
110. Esta decisão é exequível imediatamente (“Autorisons l'exécution de la presente ordonnance sur minute”), e é' oponível à Requerida, tendo-lhe sido verbalmente notificada no dia 31.10.2024 e por Via edital no dia 04.11.2024.
111. (este facto é uma repetição do facto 110.)
112. Resulta da comunicação remetida pelos mandatários da Requerida que “Em todas as circunstâncias, O nosso cliente contesta vigorosamente qualquer pedido de indemnização, nomeadamente no que se refere aos “danos causados pelo incumprimento” a que se refere. A EMP02... sempre respondeu aos pedidos da EMP01... e cumpriu escrupulosamente todas as suas obrigações contratuais.”
113. Caso a Requerida consiga retirar as aeronaves da posse da Requerente, sem que sejam praticados os atos previstos na cláusula 6.ª dos Acordos de locação, a mesma poderá vir a imputar à Requerente quaisquer eventuais danos e/ou desconformidades que se verifiquem nas aeronaves.
114. Tornando-se extremamente difícil, ou mesmo impossível, à Requerente fazer a prova de que tais danos e/ou desconformidades não existiam na data em que as aeronaves lhe foram retiradas e não lhe são atribuíveis.
115. A qualquer momento a Requerida pode dirigir-se ao Aeroporto ... — onde as aeronaves se encontram - e encetar nova tentativa de deslocar as aeronaves para país que não tenha qualquer competência ou conexão com os factos descritos.
116. Existindo ainda o risco de a Requerida, junto da ordem jurídica portuguesa, levar a cabo tentativas de recuperação dos bens.
117. As aeronaves com as matrículas ... e ....C têm o valor, em conjunto, de € 1.550.000,00 (um milhão quinhentos e cinquenta mil euros).
118. A detenção das aeronaves por parte da Requerente não é suscetível de causar a depreciação das referidas aeronaves, pois as mesmas encontram-se em hangar, com pessoal qualificado em matéria de manutenção e gestão de aeronavegabilidade, aptos a praticar todos os atos de preservação que se revelem necessários.
119. Foi emitido em 11/08/2023 Certificado de Avaliação da Aeronavegabilidade, pela ..., em nome do Estado francês da Aviação Civil, para a aeronave ....
120. Foi emitido em 11/08/2023 o Certificado de Avaliação da Aeronavegabilidade, pela ..., em nome do Estado francês da Aviação Civil, para a aeronave ..., inicialmente emitido em 17/12/2021 e prorrogado em 12/12/2022 e 15/12/2023, com validade até 17/12/2024.
121. Foram emitidos em 06/04/2023 e 12/04/2024 Certificados de Avaliação da Aeronavegabilidade, pela Direção da Aviação Civil do Governo do Principado do Mónaco, para a aeronave ....C, sendo que o certiflcado atualmente em Vigor expirou em 11/04/2025.
122. A Requerente recebeu as aeronaves e emitiu boletins de receção com reservas apenas mínimas.
123. Em 30.1.2025, o Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de recurso de apelação da aqui requerida no procedimento cautelar de restituição provisória da posse, sem contraditório da ali requerida EMP03..., Importação e Exportação, S.A., decidiu julgar procedente a apelação da aqui requerida e, revogando a decisão recorrida, devolver a posse dos helicópteros à (ali) requerente, aqui requerida EMP02... SARL, sua proprietária.
124. Aquando da realização dos acordos referidos em 7. a requerida sabia que os helicópteros seriam disponibilizados pela requerente à Força Aérea Portuguesa para combate aos incêndios rurais em Portugal.
125. A requerida dispõe apenas das aeronaves ... e ....C para garantir o pagamento do crédito invocado nos autos pela requerente.
*
Na mesma decisão foram considerados não provados os seguintes factos:

i. Sem observância do clausulado em 6.º dos acordos escritos as aeronaves não podem ser retiradas da guarda da Requerente.
ii. A Requerida descolou a aeronave com a matrícula ... sem plano de voo.
iii. O que significa que, com grande probabilidade, esta aeronave deslocou-se e sobrevoou diversas populações sem qualquer seguro em Vigor.
iv. A requerente decidiu alocar os helicópteros ao combate aos incêndios depois fixados os termos dos acordos reduzidos a escritos mencionados nos factos provados.
v. A responsabilidade pelo cumprimento das especificidades administrativas atinentes ao combate aos incêndios dos helicópteros objectos dos acordos reduzidos a escritos mencionados nos factos provados competiam, nos termos desses acordos, à requerente.
vi. As atividades abrangidas pelos acordos eram aquelas para as quais os helicópteros são normalmente utilizados, como por ex. o transporte de passageiros de A para B.
vii. A requerente trancou os aviões no hangar após premeditada manobra para desviar a atenção da requerida.
***
III - II. Do objeto do recurso
           
a) Impugnação da decisão da matéria de facto
A primeira questão a apreciar versa sobre a impugnação da matéria de facto constante da decisão final sob recurso (a que correspondem as conclusões B. a H.), invocando a recorrente a omissão de factos que reputa essenciais para a decisão da causa.
Na sua resposta, a recorrida advoga o incumprimento por parte da recorrente do ónus previsto no artigo 640.º do CPC, isto é, o dever de indicação clara e taxativa do facto impugnado, do meio probatório que sustenta decisão diversa acerca de tal facto e, por último a decisão que, no entender da Recorrente, deveria ter sido proferida com relação à matéria de facto.
Vejamos, então, se se mostram cumpridos pela recorrente os pressupostos legais para que se proceda à reapreciação da matéria de facto.

A recorrente concretiza nas conclusões os factos omitidos que reputa essenciais à boa decisão da causa, que são os seguintes:
- a decisão do Tribunal de Primeira Instância do Principado do Mónaco de 25.10.2024 (aludida no ponto 90.º da matéria de facto indiciada) que ordenou o arresto dos Helicópteros, foi revogada pelo mesmo Tribunal em 26.02.2025 após o exercício do contraditório pela Requerida, decisão que a Requerida juntou aos autos a 15.05.2025;
- foi realizada em 01.11.2024 uma reunião extraordinária do Conselho de Administração do Aeroporto ..., em que foi decidido autorizar os voos dos Helicópteros pela Requerida, que havia sido negado na véspera com base na decisão do Tribunal monegasco de 25.10.2024.
- logo após ser informada daquela autorização pela Direção do Aeroporto, a requerente deu instruções à EMP03... para esta trancar os Helicópteros num hangar, acto que o Tribunal da Relação de Lisboa qualificou como esbulho violento: Os atos da requerida de levar os helicópteros para zona por si detida e de aí os manter fechados, impedindo à dona, que se encontrava no local para os levantar, o acesso aos mesmos, reconduz-se ao conceito de esbulho. (…) Ou seja: i. a requerida exerceu violência sobre as coisas, transportando-as e fechando-as num hangar que lhe está reservado e ao qual recusa o acesso à requerente; (…).
Parecem, pois, ser estes os três factos que a requerida pretende ver incluídos na matéria de facto provada, defendendo que dos mesmos resultará que o presente procedimento cautelar “tem origem num ato ilícito da Requerente que impediu a Requerida de retomar a posse dos Helicópteros após o término dos contratos de locação, como deveria ter ocorrido.”.

De acordo com o disposto no art.º 640.º, n.º 1, do C.P.C.:
Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”.
Acrescenta a al. a) do n.º 2 do mesmo artigo:
No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;”.

Desta norma resulta que recai sobre o recorrente que impugna a decisão da matéria de facto um triplo ónus (cfr., neste sentido e entre vários outros, o Ac. do STJ, de 01/10/2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Rel. Ana Luísa Geraldes, in www.dgsi.pt):
1. circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
2. fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
3. enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.

Este ónus tripartido “…encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e (…) visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.” (cfr. O mesmo acórdão, citando aqui Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, pág. 465), sendo um “… reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente” (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014, 2ª Edição, pág. 133).
Impõe-se, assim, que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser assente, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de molde a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto, e saber claramente em que sentido pretende que a matéria de facto provada seja alterada.
Começando pelo primeiro facto, resulta efectivamente dos autos que no dia 15/05/2025 (4 dias antes da audiência final) a requerida/recorrente juntou cópia traduzida de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância do Principado do Mónaco, datada de 26.02.2025, revogando a primeira decisão mencionada no ponto 90.º da matéria de facto indiciada.
A requerida foi notificada deste documento no dia 16/05/2025 e nada veio dizer, não tendo impugnado a genuinidade e veracidade desta reprodução.
Neste particular mostram-se preenchidos todos os supra mencionados requisitos, pois a requerida indicou o facto a aditar, o meio probatório em que se baseia e a decisão que deve ser proferida, não havendo aqui necessidade de alguma apreciação crítica.
Nada obstaria, pois, a que a referida factualidade tivesse sido dada como indiciada (como o foi relativamente à primeira decisão  -  cfr. o já mencionado ponto 90.º da matéria de facto), pelo que se determina a alteração da matéria de facto indiciada, aditando-se a seguinte factualidade:
Ponto 90.º-A: “A decisão do Tribunal de Primeira Instância do Principado do Mónaco de 25.10.2024 foi revogada pelo mesmo Tribunal em 26.02.2025 após o exercício do contraditório pela Requerida.”.
*
No tocante aos restantes factos que a recorrente pretende ver incluídos na matéria de facto indiciada, a decisão já não poderá ter o mesmo desfecho positivo.
Sobre esta parte da impugnação da matéria de facto recaíram os factos elencados nos pontos 93.º a 107.º dos factos indiciados.
Perante estes factos, cabia à recorrente, como se viu, concretizar os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados  -  indicando as passagens da gravação, caso esses meios de prova sejam declarações gravadas - que poderiam servir para dar como provados estes factos.
Ora, face ao teor da alegação e das conclusões a este respeito apresentadas, facilmente se intui que a recorrente, manifestamente, não cumpre o ónus de impugnação, como bem observa a recorrida na sua resposta.
Para além de não ter indicado os meios de prova, naturalmente que também os não analisou ou apreciou de forma crítica, por forma a esclarecer as razões que poderiam levar a considerar esses meios de prova credíveis e, assim, levar à sua inclusão na matéria de facto.
Limitou-se, por isso, a discordar da não inclusão destes factos na matéria de facto provada, sem qualquer apreciação crítica, não permitindo circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso.
Assim, esta parte da impugnação da matéria de facto não respeita o ónus de alegação, sendo o recurso genérico, inconsequente e imotivado, não observando por isso os requisitos previstos no art.º 640.º n,º 1 do CPC.
Pelo que se rejeita a impugnação da decisão da matéria de facto nesta parte.
*
b) Probabilidade séria da existência do direito de crédito da requerente.
A segunda questão a tratar neste recurso consiste em apreciar a apontada ausência de probabilidade séria da existência do direito de crédito da requerente.
Como já foi referido, o presente procedimento cautelar não especificado foi intentado com fundamento num alegado direito de retenção sobre os helicópteros identificados nos autos e num direito de crédito decorrente de despesas que a requerente afirma ter tido com estes e de prejuízos sofridos, atenta a sua inoperacionalidade para o fim visado com a locação dos mesmos: o combate aos incêndios.
No presente recurso a recorrente invoca a inexistência desse crédito, pois defende que os contratos de locação foram por si cumpridos na íntegra.
Defende que o atraso na obtenção dos Certificados de Operador de Trabalho Aéreo (“COTA”), emitidos pela ANAC, não se deveu à falta de aptidão dos helicópteros para navegarem no espaço aéreo, mas sim à ausência de documentação regulamentar e de equipamentos especificamente necessários para a missão do combate de incêndios, o que não era da sua responsabilidade pois o combate aos incêndios não foi a finalidade contratualizada entre as partes.
Vejamos, então, o que resultou indiciado (devendo atentar-se que a recorrente não impugna a decisão de facto, para além do já apreciado).
Em primeiro lugar, em cada um dos três acordos escritos firmados entre as partes, denominados “acordo de locação de helicóptero”, ficou expressamente convencionado que a Requerida se obrigava a fornecer à Requerente um helicóptero ligeiro, modelo Écureuil AS 350 B2.

Ficou, também, convencionado por escrito (pontos 22.º, 23.º e 24.º) que:
- “O Locador é responsável pela gestão aeronáutica do Helicóptero e compromete-se a cumprir as disposições legais e regulamentares aplicáveis da Aviação Civil na matéria.” (cláusula 4.1);
- “O Locador compromete-se a colocar à disposição do Locatário o Helicóptero (…) em perfeito estado de funcionamento, e nas condições estabelecidas conjuntamente pelas partes, bem como toda a documentação administrativa necessária à operação do Helicóptero (certificado de matrícula, manual de voo, certificado de limitação de perturbações, seguro em dia). Compromete-se a colocar à disposição do Locatário um Helicóptero que satisfaça todas as obrigações da regulamentação em vigor e que disponha de todos os documentos de bordo válidos para as actividades autorizadas pelo presente contrato.” (cláusula 4.2).
Nestes escritos não foi concretizado de forma expressa quais as obrigações decorrentes das regulamentações em vigor, quais os documentos de bordo necessários e quais as actividades e condições estabelecidas conjuntamente pelas partes.
Porém, não estando perante contratos para a celebração dos quais a lei exija a forma escrita nada obsta à validade de quaisquer estipulações verbais não contempladas nos documentos escritos, como prevê o art.º 222.º n.º 1 do Cód. Civil, decorrência do princípio da liberdade de forma que tem concretização legal no art.º 219.º do mesmo código.

Aliás, a cláusula 4.2 supra citada constitui uma cláusula aberta relativamente a todas as situações aí previstas:
- condições estabelecidas conjuntamente pelas partes;
- obrigações da regulamentação em vigor que os helicópteros teriam que satisfazer;
- documentos de bordo válidos que os helicópteros deveriam ter;
- actividades autorizadas pelos contratos.

Daí que a sua concretização, que não ficou a constar do escrito, tenha sido relegada para estipulações verbais, em particular no tocante às condições que os helicópteros deveriam apresentar e às actividades autorizadas.
Na verdade, para além do que ficou clausulado por escrito, foi dado, também, como suficientemente indiciado que os helicópteros a fornecer pela requerida deveriam estar equipados para o combate a incêndios (cfr. ponto 8.º).
E relembramos que esta factualidade não foi objecto de impugnação nos termos do disposto no art.º 640.º do CPC, como deveria e teria que ser para poder ser alvo de sindicância por esta segunda instância. Ao invés, a apelante limitou-se a contrariar a matéria de facto indiciada, dizendo que o combate aos incêndios não foi a finalidade contratualizada entre as partes e que lhe cabia apenas a entrega dos helicópteros em condições de aeronavegabilidade
Assim e ao contrário do que defende a recorrente, tendo ficado assente que foi convencionado pelas partes que os helicópteros deveriam estar equipados para o combate a incêndios (o que significa que era esta a actividade para a qual os aparelhos haviam sido locados), a verdade é que os mesmos não foram entregues com as condições e documentação necessária para o exercício dessa actividade.

É o que resulta de forma abundante da matéria de facto indiciada, destacando-se os pontos 25.º e 26.º:
25. Logo no início da execução dos acordos realizados entre a Requerente e a Requerida, verificou-se que as aeronaves fornecidas por esta não se encontravam em condições de aeronavegabilidade para o fim acordado, pois não dispunham da documentação regulamentar relevante, incluindo todos os Form 1s da EASA, completa e atualizada.
26. A ANAC recusou as autorizações de navegabilidade solicitadas pela Requerente devido à ausência de documentação regulamentar relevante, bem como anomalias físicas relativas ao estado e aos componentes dos helicópteros, não dispondo estes de condições de aeronavegabilidade e, em particular, as necessárias para realizar missões de combate a incêndios.”.
Assim, a primeira instância não poderia concluir de outra forma que não fosse pela existência de incumprimento contratual culposo por parte da requerida (culpa esta que, aliás, se presume nos termos do disposto no art.º 799.º do Cód. Civil), determinando a responsabilidade da recorrente pela reparação dos prejuízos causados (art.º 798.º do Cód. Civil).
Quanto a estes, envolveram trabalhos realizados com vista a adaptar os helicópteros à actividade em causa, despesas com a alocação de pessoal e hangaragem que se encontram descritos nos pontos 31.º, 32.º, 33.º, 34.º dos factos indiciados.
Para além disso, a recorrida ainda suportou todos os prejuízos identificados nos pontos 37.º a 86.º.
Com vista a eximir-se a esta responsabilidade, a recorrente invoca o teor da cláusula 8.ª dos contratos de locação, que prevê o seguinte: “A imobilização do Helicóptero, seja por que motivo for, não dará lugar a qualquer indemnização a pagar pelo Locador, renunciando o Locatário ao direito de exigir uma indemnização por qualquer prejuízo direto ou indireto que possa sofrer em consequência dessa imobilização.”.
O tribunal de primeira instância considerou esta cláusula nula por violação de norma de carácter imperativo que confere ao credor o direito à indeminização, no caso o art.º 280.º do Cód. Civil, solução que a recorrente não contraria, nem coloca em crise.
Nas suas alegações de recurso, a mesma apenas refere que, independentemente da nulidade desta cláusula, a mesma deve ser considerada no plano da interpretação da vontade negocial das partes, pois revela que a recorrida não considerou essencial salvaguardar-se de uma eventual imobilização dos helicópteros.
Esta argumentação, porém, não faz qualquer sentido.
Com efeito, como resulta do disposto no art.º 280.º n.º 1 do Cód. Civil, “É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.”.
Centrando-nos, apenas, no negócio contrário à lei, a sua nulidade encontra-se expressamente prevista no art.º 294.º, ainda do Cód. Civil, sendo “…nulo, manifestamente, aquele que contrarie normas imperativas, pois as supletivas podem ser sempre derrogadas ou modificadas pela vontade das partes.” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 258).
Normas imperativas são, precisamente, aquelas cuja disciplina, atenta a importância dos interesses tutelados (indisponíveis por natureza), se impõe às partes, de forma que nem sequer por acordo destas é possível estabelecer disciplina oposta ou divergente àquelas. A natureza desses interesses é tal que se sobrepõe à vontade negocial das partes, qualquer que ela seja.
A nulidade de um negócio jurídico ou de uma cláusula que contrarie uma norma imperativa determina, precisamente, que a vontade das partes não é relevante para conferir validade ao acordo firmado.
Dai que, por maioria de razão, a interpretação da vontade negocial das partes não tenha qualquer relevo quando estamos perante declarações negociais contrárias a normas imperativas.
De todo o modo sempre se acrescenta que a cláusula em questão, apesar de aí ser mencionado “seja por que motivo for”, apenas refere que a imobilização do helicóptero não dá lugar a qualquer indemnização. No caso em presença, não estamos perante uma mera imobilização da aeronave, mas sim perante um fornecimento que não observa o fim para o qual se destinava, algo que não serve para a actividade pretendida e contratada, o que naturalmente é bem distinto de uma simples paralisação ou não uso.
Em face do exposto, conclui-se como na decisão da primeira instância pela verificação de incumprimento contratual por parte da recorrente.
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Invoca, ainda, a recorrente a violação do princípio da relatividade dos contratos, uma vez que não tem qualquer vínculo jurídico com a Força Aérea Portuguesa (FAP), acrescentando que a alocação dos helicópteros à execução de um futuro contrato com a FAP constitui uma decisão inerente ao exercício da atividade da Requerente, devendo esta assumir os riscos inerentes a esse negócio, que não podem ser repercutidos na esfera jurídica da Requerida.
Mais uma vez não assiste razão à recorrente.
Como já foi afirmado, o incumprimento contratual culposo por parte da requerida determina a responsabilidade da recorrente pela reparação dos prejuízos causados (art.º 798.º do Cód. Civil).
Estamos, pois, no âmbito da obrigação de indemnizar, estabelecendo-se no art.º 562.º do Cód. Civil, como princípio geral, o dever de reconstituição da situação anterior à lesão, ou seja, de reposição das coisas no estado em que estariam, se não se tivesse produzido o dano (princípio da reposição natural) – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 576).
A obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, como resulta do disposto no art. 563.º do Cód. Civil que, como é unanimemente reconhecido, consagra o princípio da causalidade adequada na sua formulação negativa.
Ou seja, o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto (a este propósito, cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 10.ª ed, Vol. I, págs. 893, 899, 890 e 891).
E acrescenta o mesmo professor que “desde que o devedor ou o lesante praticou um facto ilícito e este actuou como condição de certo dano, compreende-se a inversão do estado normal das coisas. Já se justifica que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano”.
Importa, assim, saber se, em condições normais da vida (e não excepcionais ou anómalas), aquele facto tem aptidões causais para provocar esse tipo de consequências danosas. Daí o art.º 563.º fazer uso do advérbio “provavelmente”
Ou como se escreveu no Ac. do STJ de 02/11/2010 (Proc.º n.º 2290/04 – 0TBBCL.G1. S1; Rel.: Sebastião Póvoas) “Parte-se de uma situação real, posterior ao facto e até ao dano, e afirma-se que o segundo decorreria daquele perante um desenvolvimento normal, ou seja, o dever de indemnizar existe em relação aos danos que terão provavelmente resultado da lesão.”.
Mas qual a extensão que estes danos indemnizáveis poderão ter? Poderão incluir prejuízos derivados do incumprimento de contratos celebrados com terceiros e cujo cumprimento dependia, por sua vez, do cumprimento do contrato que o credor celebrou com o aqui devedor?
A resposta a esta questão terá que ser positiva e não (ao contrário do que invoca a recorrente) com recurso à teoria da relatividade dos direitos de crédito e da eficácia externa das relações, mas sim com base precisamente no “nexo de causalidade”.
Com efeito e aplicando os conceitos enunciados, todas as despesas suportadas pela recorrida descritas nos pontos 31.º, 32.º, 33.º, 34.º dos factos indiciados, bem como os prejuízos identificados nos pontos 37.º a 86.º são causa adequada do incumprimento contratual da recorrente.
Para tanto, não é necessário que esta última tivesse qualquer vínculo jurídico com a FAP, para se concluir nesse sentido. Também não se pode dizer que caberia à recorrida assumir os riscos inerentes ao negócio que celebrou com a FAP.
Os prejuízos reclamados à recorrida pela FAP são decorrentes (foram causa adequada) do incumprimento contratual da recorrente perante a recorrida. Com efeito, esta última não logrado cumprir o acordado com a FAP em virtude das aeronaves fornecidas pela recorrente não apresentarem as características necessárias ao desempenho da actividade de combate aos fogos, sendo certo que, como já foi referido, a recorrente sabia e acordou com a recorrida que os helicópteros se destinavam a essa actividade.
Esses prejuízos reclamados pela FAP à recorrida não teriam tido lugar não fora o incumprimento da recorrente e este incumprimento não ocorreu por circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas. Ocorreu apenas porque a recorrente não forneceu os aparelhos de acordo com aquilo a que se comprometeu e, devido a isso, a recorrida não pôde honrar o compromisso celebrado com a FAP.
Por outro lado, a existência de prejuízos decorrentes do seu incumprimento não poderia ser ignorado pela recorrente. Não na sua amplitude total, mas a sua ocorrência era absolutamente previsível face ao facto dos aparelhos não terem sido entregues apetrechados para o combate a incêndios, o que naturalmente impediria a recorrida de os destinar a essa actividade.
Assim, conclui-se que todos os danos invocados e dados como indiciados são causa adequada do incumprimento contratual da recorrente e só existiram por esse motivo.
Esta conclusão é suficiente para se concluir pela probabilidade séria da existência do direito à indemnização peticionada.
A teoria da relatividade dos direitos de crédito e da eficácia externa das relações, por seu turno, não se nos afigura ter aplicação prática à situação em apreço.
Na verdade, o que aqui se pretende não é a responsabilização directa de terceiros (no caso a recorrente) pelo não cumprimento por parte da recorrida da obrigação assumida perante a FAP. Neste procedimento cautelar apenas está em apreciação a existência de um dano que é causa adequada do inadimplemento de parte da recorrente.
Tratam-se de duas relações contratuais distintas, sendo certo que a recorrente não interferiu ou sequer interveio directamente na prática de um acto lesivo no âmbito execução do contrato celebrado entre a recorrida e a FAP. Pelo que não tem que ser chamada à responsabilidade nesta relação contratual na qualidade de terceiro.
Ao invés, o acto lesivo foi praticado na execução do contrato de locação celebrado entre a recorrente e a recorrida, cabendo aqui apurar as repercussões danosas na esfera jurídica da recorrida do incumprimento contratual da recorrente.

Nesta conformidade, improcedem as conclusões de recurso formuladas pela recorrente inerentes a esta questão, confirmando-se a existência de probabilidade séria da existência do direito à indemnização, embora com outra fundamentação jurídica.
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c) Desproporcionalidade do dano provocado à requerida com o decretamento da providência cautelar
Passemos, agora, à terceira questão enunciada, que se prende com a invocada desproporcionalidade do dano provocado à recorrente com o decretamento da providência cautelar.
Nos termos do disposto no art. 368.º n.º 2 do CPC, “A providência pode (…) ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.”.
Trata-se aqui um afloramento dos princípios da adequação ou da proporcionalidade.
Assim, só uma considerável desproporção relativamente às consequências para o requerido será capaz de justificar a recusa da providência (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, 4.ª edição, págs. 245 a 251).
No caso em apreço, o valor do crédito provável da requerente ascende a € 2.080.111,03 e, como a própria recorrente reconhece, o valor dos helicópteros é inferior àquele crédito (cfr. ponto 57.º da alegação de recurso), pelo que, a ser assim, o direito de retenção pretendido com o presente procedimento cautelar não será suficiente para acautelar a totalidade do crédito.
Por outro lado, nada na matéria de facto permite concluir que a providência seja desproporcional, nem podia. É que esta é ma questão nova, não tendo sido invocada no decurso do processo em primeira instância.
Ora, como vem sendo entendido de forma unânime na jurisprudência e na doutrina, os recursos não são um meio para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido, destinando-se apenas à reapreciação de uma decisão proferida sobre determinada questão.
Como tal, as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida (neste sentido, por todos, cfr. o Ac. do STJ de 08/10/2020, Proc.º n.º 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, Rel. Ilídio Sacarrão Martins).
Assim, este tribunal da relação não poderia conhecer desta questão em primeira linha.
De todo o modo e em face do exposto e dos elementos constantes dos autos, não pode concluir-se que exista uma desproporcionalidade (que teria que ser flagrante) do dano provocado à recorrente com o decretamento da providência cautelar.
Caso a recorrente esteja, de facto, a suportar prejuízos avultados com a retenção dos aparelhos, sempre poderá optar por requerer a substituição da providência por caução idónea, nos termos do disposto no art.º 368.º n.º 3 do CPC.
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d) Direito de retenção.
Resta a última questão: a invocada inexistência do direito de retenção por detenção ilícita dos helicópteros.
O direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado”, Vol I, pág. 772).
Nos termos do disposto no art. 754º do Cód. Civil, “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.

Por sua vez, o direito de retenção não existe (art.º 756.º do Cód. Civil):
a) A favor dos que tenham obtido por meios ilícitos a coisa que devem entregar, desde que, no momento da aquisição, conhecessem a ilicitude desta;
b) A favor dos que tenham realizado de má fé as despesas de que proveio o seu crédito;
c) Relativamente a coisas impenhoráveis;
d) Quando a outra parte preste caução suficiente.
Da análise destas normas legais resulta que são os seguintes os requisitos essenciais para a existência de direito de retenção:
- a existência de uma obrigação de entrega de certa coisa;
- a existência de um contra-crédito; e
- a detenção legítima da coisa.

Alega a recorrente que a recorrida detém ilicitamente os helicópteros, baseando-se para o efeito na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Janeiro de 2025 (ponto 123.º da matéria de facto indiciada), que ordenou a restituição provisória dos mesmos à recorrente, por ter existido esbulho violento por parte da proprietária do hangar.

Vejamos:
A detenção dos helicópteros por parte da recorrida decorre da celebração dos três contratos de locação referidos nos pontos 7.º a 10.º da matéria de facto indiciada,
A locação, de acordo com o artigo 1022.º do Cód. Civil, é “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”.
Sendo temporário o gozo, no final do contrato existe por parte do locatário a obrigação de entrega da coisa, pelo que se mostra preenchido o primeiro dos pressupostos enunciados.
O segundo pressuposto (a existência de um contra-crédito) também foi já abordado, tendo-se concluído pela sua verificação.
E o que dizer sobre a legitimidade ou licitude da detenção?
Este requisito extrai-se, como vimos, da al. a) do art.º 756.º do Cód. Civil que exclui a retenção nos casos em que a coisa a entregar tenha sido obtida por meios ilícitos.
Esta norma remete-nos para o momento em que a coisa foi obtida, ou seja, para o momento em que o gozo da mesma passou para outra pessoa distinta do proprietário ou detentor com poderes para ceder o gozo da coisa, referindo que essa transmissão, ainda que temporária, tem que resultar de acto ilícito.
Ora, em face da situação em apreço, facilmente se conclui que tal não ocorreu, uma vez que, como já vimos, o gozo dos helicópteros foi proporcionado pela recorrente à recorrida por meio legalmente legítimo, no caso mediante contratos de locação.
É certo que o prazo para a restituição das aeronaves terminou sem que estas tenham sido entregues à recorrente, mas tal deve-se precisamente à sua retenção pela recorrida devido à existência de um contra-crédito por despesas e prejuízos derivados da coisa.
Não há, pois, como afastar a verificação de todos os requisitos do direito de retenção, que legitimam a não entrega dos helicópteros à sua proprietária.
A tal não obsta o teor da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa invocada pela recorrente e indicada no ponto 123.º da matéria de facto indiciada, que determinou a devolução da posse dos helicópteros à aqui recorrente (aí requerente e também apelante).
Na verdade, como resulta do referido ponto da matéria de facto e da cópia da decisão (datada de 30/01/2025) junta pela recorrente com a sua oposição de 20/02/2025 (ref.ª citius 2663936), a referida providência cautelar de restituição provisória de posse foi intentada contra a sociedade “EMP03..., Importação e Exportação, S.A.” (que não é parte do presente procedimento) e não contra a aqui requerente “EMP01..., S.A.”, o que significa que tal decisão não produz caso julgado quanto a esta última (cfr. art.º 580.º do CPC) e não a vincula.
O esbulho violento que a recorrente refere no art.º 81.º das suas alegações, reproduzindo o decidido no referido Acórdão, terá sido praticado pela sociedade “EMP03..., Importação e Exportação, S.A.”, enquanto depositária dos helicópteros, pelo que aí nada se decide quanto a uma eventual ilicitude da detenção da aqui recorrida, que aí não foi ouvida, nem teve a possibilidade de apresentar qualquer defesa, pelo que, a entender-se que esta decisão vincula a recorrida, estaríamos perante uma clara violação do princípio do contraditório, corolário do direito constitucional de agir em juízo através de um processo equitativo (art.º 20.º da CRP).
O certo é que, no âmbito do presente procedimento cautelar e ao contrário do afirmado naquele outro, a detenção dos helicópteros não é atribuída por nenhuma das partes (nem pelo tribunal de primeira instância) à EMP03..., mas sim à aqui recorrida, apenas cabendo aqui decidir se esta detenção pela recorrida é ou não lícita.
Ora, sendo a recorrida titular de um crédito sobre a recorrente relacionado com o incumprimento do contrato de locação dos helicópteros (contrato este que é forma legítima de detenção) e estando aquela obrigada à sua entrega à recorrente após o decurso do prazo estipulado, é pois lícita a sua detenção por via do direito de retenção (retenção esta que só é possível, precisamente, porque os aparelhos não foram entregues à recorrente e ainda se encontram na sua posse).
O direito de retenção aqui reconhecido no âmbito do presente procedimento cautelar existe desde o momento em que os helicópteros deveriam contratualmente ter sido entregues à recorrente (Outubro de 2024, ou seja, data bem anterior à da prolação da referida decisão do Tribunal da Relação de Lisboa), não sendo a presente decisão constitutiva desse direito, mas apenas meramente declarativa.
Em conclusão, a detenção por parte da recorrida é lícita, encontrando-se verificados os demais requisitos para a existência do invocado direito de retenção.
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Apesar da alteração da matéria de facto acima decidida, verifica-se que a solução de direito a que chegou a primeira instância não oferece qualquer censura, sendo por isso de manter a decisão recorrida.
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As custas do presente recurso ficam totalmente a cargo da recorrente/requerida, apesar da decisão sobre a impugnação da matéria de facto, dado que esta acaba por ter decaimento integral no recurso (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).
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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão de primeira instância.
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Custas do presente recurso pela recorrente/requerida.
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Notifique.
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23/10/2025

Relator: João Paulo Pereira
1.º Adjunto: Margarida Alexandra de Meira Pinto Gomes
2.ª Adjunta: Maria Amália Santos
(assinado eletronicamente)