Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
113/18.2T8BCL.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SUPRESSIO
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO (AUTOR E RÉS)
Decisão: TOTAL IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO DO AUTOR; TOTAL PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO DOS RÉUS
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Quando, numa ação em que se pede a demarcação entre prédios por uma determinada linha, não é especialmente em torno da definição e marcação in loco da estrema entre os prédios que o litígio nasce e se desenvolve, mas apenas da alegação e prova de certa configuração e da precisa e localizada linha delimitadora do terreno, de nenhuma especificidade típica a ação em causa se reveste, tudo se devendo passar no quadro de normal ação declarativa comum, sem aplicação ao caso do disposto no art. 1354º CC que determina o modo de realizar a demarcação em termos de subsidiariedade sucessiva;
II- Enquanto o venire contra factum proprium pressupõe duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé, o abuso de direito, na modalidade de neutralização do direito ou supressio, tem na sua base uma realidade social correspondente à “ruptura das expectativas de continuidade da auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, de súbito, o estado gerado”;
III- A diferenciação da supressio em face do venire contra factum proprium reside, pois, na ausência do factum, certo que na primeira há uma mera abstenção, pelo que, em tais casos, se entende ser de “exigir um decurso significativo de tempo, acompanhado de outras circunstâncias – por exemplo: um conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer – para que se possa falar em confiança justificada de que ele não mais seria exercido”;
IV- Nada obsta a que o proprietário de um prédio constitua uma servidão sobre um outro, de que ele seja mero comproprietário, ou a que, inversamente, os comproprietários de certo prédio adquiram uma servidão sobre um outro prédio, pertença exclusiva de um deles e, nada obstando a que assim seja, quando o autor da destinação ou afetação é proprietário de um dos prédios e comproprietário do outro, a servidão, nesse caso, só poderá ser constituída por um dos títulos normais, que são os três primeiros referidos no art. 1547º, 1), do CC, estando excluída a possibilidade de constituição por destinação de pai de família;
V- A servidão por destinação de pai de família constitui-se no preciso momento em que os prédios ou as frações de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes, pelo que que a pretensão de reconhecimento da constituição de uma servidão de passagem com esse fundamento nunca pode deixar de passar pelo apuramento do momento em que se celebrou a separação e pela aferição da existência dos sinais reveladores da serventia em função desse específico momento, sendo ainda relativamente a tal momento que deverá ser demonstrada a inexistência de qualquer convenção em que se tenha declarado coisa diferente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

C. A. intentou ação declarativa sob a forma de processo comum contra G. S. e M. C. pedindo:

a)- Ser reconhecida a existência da servidão a favor do prédio do autor com o artigo matricial rustico ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ... e a onerar o prédio dos réus com o artigo matricial rustico ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...
b)- Ser reconhecido que essa servidão se desenvolve no sentido Poente / Nascente começando a poente no caminho público na entrada existente no prédio dos réus Bouça X
c)- Ser reconhecido que essa servidão tem em toda a sua extensão uma largura, mais ou menos constante de 3,00 (três) m e se destina a aceder ao prédio da autora a pé, de trator ou outros veículos
d)- Se proceda à demarcação entre o prédio do autor e o prédio dos réus, em toda a confrontação sul do prédio do autor, sendo certo que essa demarcação deve acompanhar o rego de águas ou ribeiro aí existente desde sempre existente
e)- Se condenem os réus a reconhecerem a servidão supra referida constituída por destinação de pai de família e igualmente por usucapião a favor do prédio do autor e nos termos supra descritos
f)- Se condenem os réus na demarcação ou delimitação do seu prédio Bouça X na parte norte / nascente pelo rego ou ribeiro de águas pluviais e outras lá existente.
Alegou, para o efeito, ser dono de um prédio rústico, designado por “Bouça Y”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ... e, por seu turno, serem os réus donos de um prédio rústico denominado “Bouça X”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..., tendo ambos os referidos prédios pertencido a A. M., fazendo parte da denominada Quinta ..., em ..., Barcelos, sendo que o seu prédio é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, caminho esse, de servidão, que se inicia no caminho a sul do prédio dos réus, numa entrada a sul/poente do prédio dos réus e corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro do prédio dos réus, numa extensão de cerca de 210 (duzentos e dez) metros de comprimento no sentido poente/nascente, até infletir para norte durante cerca de 90 metros ainda dentro do prédio dos réus e depois penetrar no prédio do autor, por onde continua o seu percurso até chegar ao Cruzeiro da Capela de Y, freguesia de ..., Barcelos. Durante todo o seu percurso este caminho de servidão encontra-se perfeitamente demarcado, sem vegetação a ocupar o seu leito e tem uma largura mais ou menos constante de cerca de 3 metros.
Mais diz que este caminho desde sempre foi usado pelos antecedentes quer do autor, quer dos réus, antigos proprietários da Quinta ... em ..., Barcelos, que o criaram quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade, quer para transporte de lenhas e madeiras, matos e outros produtos florestais. Aquando da venda quer ao autor, quer aos réus, o anterior proprietário, A. M., fez questão de anotar e avisar a existência do caminho e o direito que o prédio vendido ao autor tinha desta mesma servidão.
Sustenta, ainda, o Autor a titularidade do referido direito de servidão de passagem por o ter adquirido por usucapião, pois desde a data em que adquiriu o prédio supra referido, o autor sempre usou e desfrutou do dito caminho, para aceder a pé, de trator e mesmo de veículo todo o terreno ao seu prédio.
Alega, ainda, que o prédio Bouça X desde sempre foi delimitado pelo seu lado norte pelo rego de água ou ribeiro que é o único elemento de separação entre o prédio Bouça X e o vizinho Bouça Y, o qual corre desde sempre desde o sul (sul/nascente) em direção a norte (norte/poente) para uma poça ou lago existente na Bouça Y pertença do autor. Porém os réus colocaram marcos, sozinhos, sem a presença do aqui autor para norte e nascente daquele rego ou ribeiro pretendendo desta forma demarcar o seu prédio (Bouça X) para além dos seus limites naturais e reais.
Os Réus contestaram, impugnando parte da factualidade alegada pelo Autor e pugnaram pela condenação deste como litigante de má fé.

Efetuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, atentas as considerações expendidas e as normas legais citadas, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, decide-se:
a) reconhecer a existência de uma servidão de passagem a favor do prédio rústico de mato e pinhal, denominado “Bouça Y”, situado em X ou Y, freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., que corresponde ao anterior artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ... e a onerar o prédio rústico de mato, pinheiro e eucaliptos, denominado “Bouça X”, situado em …, freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...;
b) reconhecer que essa servidão se desenvolve no sentido Poente / Nascente começando a poente no caminho público na entrada existente no prédio rústico de mato, pinheiro e eucaliptos, denominado “Bouça X”, situado em Pinheiro, freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..., que tem em toda a sua extensão uma largura, mais ou menos constante de 3 metros e se destina a aceder ao prédio rústico de mato e pinhal, denominado “Bouça Y”, situado em X ou Y, freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., que corresponde ao anterior artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ... a pé e de trator;
c) condenar os Réus G. S. e esposa M. C. a reconhecer tal direito de servidão a favor do prédio rústico de mato e pinhal, denominado “Bouça Y”, situado em X ou Y, freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., que corresponde ao anterior artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ..., pertencente ao Autor C. A.;
d) absolver os Réus do demais contra si peticionado.
Custas a cargo de Autor e Réus na proporção de metade para cada um – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
*
Inconformado, o Autor interpôs recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

1. Vem o presente Recurso interposto pela aqui recorrente da Douta decisão proferida pelo juiz 1 do juízo Local Cível de Barcelos, da Comarca de Braga, no âmbito do Proc. nº 113/18.2T8BCL que decidiu julgar improcedente a presente acção e, consequentemente, absolver as rés do pedido formulado.

2. A aqui recorrente delimita o presente recurso quer para reapreciação, nesta instância, da matéria de facto quer a dada como provada quer a dada como não provada pelo Tribunal de Primeira Instância, quer ainda relativamente ao direito aplicado na decisão sub judice apenas na parte respeitante pedido de demracção dos prédios confinantes.

3. Fundamentou o Tribunal a quo na decisão ora recorrida que, e se passa a citar, “Assim, ao vir agora, depois de ter induzido os Réus a proceder à demarcação entre os prédios de acordo com o constante do levantamento topográfico que mandou realizar e que foi efectuado seguindo as suas indicações, alegar e sustentar facto contrário, está o Autor a agir em abuso de direito.”

4. Pelo que, concluiu o Tribunal a quo “entendemos não ser de deferir o peticionado pelo Autor, ou seja, proceder à demarcação entre o seu prédio e o prédio dos réus, em toda a confrontação sul do prédio do autor, demarcação essa que deve acompanhar o rego de águas ou ribeiro aí existente desde sempre existente e que os Réus sejam condenados na demarcação ou delimitação do seu prédio Bouça X na parte norte / nascente pelo rego ou ribeiro de águas pluviais e outras lá existentes.”

5. Entende o aqui recorrente que, da conjugação crítica de todos os elementos probatórios, nomeadamente, da missiva datada de 27.06.2008 junta aos autos a fls. 89 a 91 com os depoimentos das testemunhas, A. M., M. L. e J. S., resulta demonstrado, e de forma inequívoca, que o Réu G. S. tinha pleno conhecimento, ainda antes da celebração da escritura, de que a estrema da Bouça X a norte se fazia pelo rego de águas pluviais e das nascentes.

6. Para tanto, fazemos nota da carta datada de 27.06.2008 junta aos autos a fls. 89 a 91 remetida pelo senhor A. M. (anterior proprietário das propriedades) ao senhor G. S., o aqui Réu, onde nela o alerta e avisa que “As estremas estão marcadas por paredes excepto a norte que é definida pelo regueiro”.

7. Carta essa, cujo teor foi atestado pelo seu autor, Testemunha A. M., e corroborado pelos depoimentos das Testemunhas, M. L. e J. S..

8. Pelo que, entendemos, pois, que existem nos autos todos os elementos necessários para que o facto constante na alínea d) dos factos dados como não provados possa ser dado como provado, mormente pela leitura da missiva do anterior proprietários dos prédios, A. M., enviada aos Réus em data anterior à data da celebração da escritura publica de compra e venda da “Bouça X” celebrada entre ambos e que se encontra junta os autos a fls. 89 a 91, e da sua confrontação com o depoimento prestado pela Testemunha A. M., e totalmente confirmado pelos depoimentos de M. L. e J. S..

9. Assim, em nosso modesto entendimento, existem, pois, nos autos, todos os elementos necessários e em resultado da prova produzida que aqueles factos constantes em d) dos factos dados como não provados, possam ser dados como provados (denominando-o como ponto 38) com as seguintes redações: “O anterior proprietário da Bouças X, A. M., sempre avisou os Réus, mesmo antes da celebração da escritura pública de compra e venda, que a delimitação a norte do prédio dessa Bouça era pelo rego.”

10. De igual modo, entendemos que da prova produzida resulta demonstrado que os factos constantes nos pontos 25º e 35º dos factos dados como provados, sejam alterados e passem a ter as seguintes redações:

11. “25 – Em data não concretamente apurada, mas certamente antes de finais de Junho de 2008, os Réus colocaram marcos, sem a presença do Autor, para norte e nascente do referido rego.“ e

12. “35 – Os Réus, em circunstâncias não concretamente apuradas, tiveram acesso ao levantamento topográfico referido em 33) e os marcos por eles colocados no limite norte/nascente da “Bouça X” estão no mesmo alinhamento do traçado no dito levantamento”.

13. Porquanto, e quanto ao ponto 25., o Tribunal a quo deu como provado que “Os Réus colocaram marcos, sem a presença do Autor, para norte e nascente do referido rego”.

14. Contudo, não inferiu o Tribunal a quo, como devia no nosso entendimento pois a sua consideração poderá ser relevante para o desfecho da causa, sobre o período temporal em que essa demarcação foi feita.

15. Nessa linha de raciocínio, se a missiva remetida por A. M. (testemunha e anterior proprietário dos prédios do Autor e dos Réus) ao Réu G. S. - cujo teor foi, conforme já supra se disse, confirmado em Audiência Final pelo respectivo autor -, é datada de 27.06.2008 e nela expressamente se refere que “Portanto, além do derrube de árvores, descarga de entulhos, tenta ocupar terrenos que não são seus, poças de água e nascentes que fazem parte da minha propriedade, e que parte está arrendada, assim como tem outros proprietários e o acesso aos mesmos. As estremas estão marcadas por paredes excepto a norte que é definida pelo regueiro (o sublinhado e negrito é nosso)”, é sinal de que os Réus já haviam procedido, em data anterior aquela, à referida demarcação com a colação de marcos.

16. Razão pela qual, naquele facto deve ser atribuído pelo menos o seu limite temporal.

17. Porque, atento a essa premissa, e tendo por assente que o levantamento topográfico feito a pedido do Autor C. A. foi realizado em Julho de 2008, é sinal que foi feito em data posterior à missiva junta a fls. 89 a 91 e,

18. Assim, é sinal mais que evidente que quando se procedeu ao levantamento topográfico, já se encontravam naquele local os marcos colocados pelos Réus a definirem as estremas de ambos os prédios.

19. Quanto ao ponto 35., o Tribunal a quo deu como provado que “Os Réus, em circunstâncias não concretamente apuradas, tiveram acesso ao levantamento topográfico referido em 33) e colocaram marcos no limite norte/nascente da “Bouça X” de acordo com o alinhamento traçado no dito levantamento”.

20. Ora, atenta a sua redacção e da sua leitura, infere-se ou dá a entender-se que a colocação dos marcos por parte dos Réus foi feita posteriormente ao levantamento topográfico feito a pedido do Autor C. A. e respeitando o alinhamento traçado nesse documento.

21. Contudo, disso nada resulta da prova que foi produzida.

22. Aliás, das conclusões que se retira das premissas consideradas quanto ao ponto 25. dos factos provados, tudo leva a crer o contrario, isto é, atento a data da missiva junta aos autos a fls. 89 a 91, tudo leva a crer que tenha sido o referido levantamento topográfico a respeitar a linha demarcada pelos Réus com a colocação dos marcos, e não o seu contrário.

23. Pelo que, e em nosso modesto entendimento, existem, pois, nos autos, todos os elementos necessários, em resultado da prova produzida e que constam plasmados e descritos na sentença por recorrida, para que os factos constantes nos pontos 25º e 35º dos factos dados como provados, sejam alterados e passem a ter as redações supra descritas nos pontos 11. e 12. destas Conclusões.

24. Pelo que, se requer a V/Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, seja a matéria de prova reapreciada e sejam alteradas as redações dos pontos 25. e 35. dos factos dados como provados, e, ainda, seja dado como provado o ponto d) dos factos dados como não provados.

25. O aqui Recorrente delimita ainda o presente recurso quanto à matéria de direito, na medida em que entende, no que toca ainda à questão da demarcação, o Tribunal a quo aplicou erradamente o direito, mormente pelo facto de ter julgado que o Autor age nos presentes autos em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

26. O Tribunal a quo deu como provado que “efectivamente, o prédio ora pertencente aos Réus – a denominada Bouça X – era naturalmente delimitado pelo seu lado norte, ou seja, na confrontação com o prédio ora do Autor, por um rego de águas”.

27. Contudo, e erradamente conforme supra se disse, entendeu igualmente o Tribunal a quo que “Os Réus procederam, efectivamente, sozinhos à colocação dos marcos que delimitam o seu prédio – Bouça X – do prédio do Autor - Bouça do Monte de Y -, mas fizeram-no, conforme se apurou nos autos, nos termos constantes do levantamento topográfico realizado pelo Autor.

28. O aqui recorrente não pode de forma alguma concordar com o ora decidido, porquanto, e em nosso modesto entendimento, o Tribunal a quo aplicou erradamente o direito bem como assenta em premissas que não se demonstraram. Senão vejamos:

29. É falso, em primeiro lugar, que o Autor indicado aos Réus qual era a linha divisória do prédio da Bouça X em face ao seu.

30. Até porque disso nada resulta dos factos dados como provados.

31. Aliás, não consta em lado nenhum dos factos dados como provados nem foi demonstrado de qualquer forma ou feitio – diga-se -, que o Autor tenha indicado aos Réus a estrema do prédio.

32. Razão pela qual, improcede também a consideração do Tribunal quando fundamenta que Autor tenha “induzido os Réus a proceder à demarcação entre os prédios de acordo com o constante no levantamento topográfico que mandou realizar”.

33. Estas considerações, feitas pelo Tribunal a quo, não tem qualquer fundamento ou assento na matéria dada como provada, e, por essa razão, não podem servir de base nem de fundamento para justificar a aplicação do instituto do abuso de direito, na vertente no venire contra factum proprium.

34. De igual modo, dir-se-á quanto à consideração feita pelo Tribunal a quo ao referir que a linha divisória dos prédios que ficou a constar no levantamento topográfico é crível (“já que, com a mesma, a área da Bouça X está conforme o título aquisitivo da mesma e a respectiva descrição predial”) é manifestamente contraditória em face da matéria de facto por si dada como provada, mormente a constante no ponto 22. e 25. (mesmo na actual redação que se pretende a sua alteração nesta sede), quando dá como provado, e que se passa a citar, «O prédio “Bouça X” era naturalmente delimitado pelo seu lado norte por um rego de água» e que «Os Réus colocaram os marcos, sem a presença do Autor, para norte e nascente do referido rego».

35. Aqui chegados, e tendo por base a definição de Abuso de Direito, na modalidade de venire contra factum proprium, e dos seus pressupostos legais, cuja definição e alcance é partilhada de forma unanime quer jurisprudencial quer doutrinalmente, cumpre verificar se, in casu, o aqui Recorrente agiu desse modo ao peticionar nestes autos a demarcação do seu prédio do prédio dos Réus, em toda a confrontação a sul do seu prédio, cuja demarcação deva realizar-se pelo rego das águas pluviais e das nascentes aí existentes.

36. Consideramos que, seja qual for a decisão dos Venerandos Juízes Desembargadores quanto à reapreciação da matéria de facto requerida e sua alteração ou não, os pressupostos do Abuso de Direito na modalidade do venire contra factum proprium não se encontram verificados.

37. Desde logo porque, mesmo a manter-se a redacção actual do ponto 25. dos factos provados, resulta demonstrado que os Réus colocaram os marcos sem a presença de ninguém, nem do Autor nem do anterior proprietário nem dos seus representantes.

38. Resulta, pois, da prova produzida, nomeadamente dos depoimentos prestados pela Testemunha M. L. e do marido J. S. – cujos depoimentos se encontram parcialmente supra transcritos -, que os Réus, aquando da colocação dos marcos, recusaram a presença daqueles, cuja presença havia sido requisitada pelo senhor A. M. (anterior proprietário dos prédios confiantes) para aquele especificado fim.

39. E, por isso, tendo-se recusado àquelas presenças e tendo colocado os marcos sem a presença do Autor, os Réus não agiram, de todo modo, com cuidado e/ou precaução, pelo que, o seu comportamento é tudo menos cuidadoso e preventivo.

40. Pelo que, no nosso modesto entendimento, não se encontra por verificado o pressuposto da boa-fé da contraparte, neste caso dos Réus, e cujo comportamento não merece tutela ou protecção jurídica que lhe era confiada pelo instituto do abuso de direito.

41. Do mesmo modo, entendemos que, e ao contrário do decidido, não obstante o Réu ter mandado fazer o levantamento topográfico e ter instruído o seu feitor aquela linha de estrema e não a verdadeira/real, jamais se poderá entender que o Autor aquele se vinculou.

42. Até porque, para assim se verificar e assim se considerar vinculado, tornar-se-ia necessário que o tivesse indicado aos Réus, o que não sucedeu.

43. Ainda quanto a este pressuposto, é nosso entendimento que o Autor não adopotu duas posições contraditórias, do modo a que a primeira o vincule em relação á sua segunda tomada de posição.

44. Porque não podemos agora culpar e/ou condenar o Autor, quando, induzido em erro pelos Réus e não o seu contrário, deu instruções ao topógrafo para que fizesse constar uma linha divisória com o mesmo alinhamento dos marcos - e não sobre o rego das águas pluviais e das nascentes -, quando apenas posteriormente veio a tomar conhecimento da verdadeira e real estrema.

45. Já quanto ao terceiro pressuposto, já referido anteriormente mas por diferentes fundamentos, dir-se-á ainda que, tal como já supra se referiu, em nosso entendimento, alterando-se a matéria dada como não provada no ponto d) e, ainda alterando-se as redações das aos pontos 25. e 35. dos factos dados como provados, tal como se supra expos e se requer, ter-se-á que concluir que os Réus não actuaram de boa – fé.

46. Isto porque, os Réus, quando colocaram os marcos, sabiam perfeita e antecipadamente que aquele alinhamento não era a estrema do seu prédio com o prédio do Autor.

47. E porquanto, aproveitando-se do desconhecimento do Autor, quiseram os Réus com isto - e a manter-se com decisão sub judice, assim concretizarão os seus propósitos -adquirir de forma habilidosa e gratuita terreno que não lhes pertence, apropriando-se e acedendo a poças de águas e a nascentes que pertencem ao prédio do Autor.

48. Pelo que, os Réus actuaram de má-fé e em manifesto prejuízo do Autor.

49. Assim, ao “demarcarem” o seu prédio, na ausência do proprietário confinante (o aqui recorrente) e do anterior proprietário, e fazendo-o por uma linha que sabiam de antemão que aquela não era efectivamente a estrema do seu prédio, ter-se-á que forçosamente que se concluir que os Réus agiram de má-fé.

50. Por tudo isto, entendemos que não se encontram por verificados os pressupostos desse instituto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pelo que não se poderá considerar que o autor, aqui recorrente, esetja a agir em abuso de direito.

51. Ao decidir de forma contrária, a sentença ora recorrida violou, entre outros, o disposto no art. 334º do Código Civil e no artigo 1353º, ambos do Código Civil.

Termina as suas conclusões dizendo:

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e a decisão proferida em primeira instancia ser revogada e substituída por outra que altere para factos provado o facto constante no ponto d) dos factos dados como não provados e altere as redações dadas aos pontos 25. e 35. dos factos dados como provados, e, ainda, julgue procedente, por provado, o pedido peticionado pelo Autor e, em consequência, se proceda à demarcação entre o prédio do autor e o prédio dos réus, em toda a confrontação sul do prédio do autor, sendo certo que essa demarcação deve acompanhar o rego de águas ou ribeiro aí existente desde sempre existente.
Os Réus não apresentaram contra-alegações.
***
Por seu turno, os Réus também apresentaram recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:

A) - Conforme se procurou demonstrar, a sentença recorrida traduz um significativo erro na apreciação da prova, justificativo que os Exmos Senhores Desembargadores conheçam de facto e de direito no presente caso, admitindo a renovação da prova – cfr. artigo 662º do C.P. Civil.
Face ao teor dos depoimentos que se vêm de referir, aos dados pelos documentos que foram juntos ao processo até à audiência de julgamento, e na sequência das considerações que antecedem, é de concluir pela absoluta pertinência das considerações dos recorrentes quanto aos referidos pontos da matéria de facto e, nessa decorrência, deve ser dada procedência às alterações por si sugeridas quanto aos mesmos.

B).- DEVENDO SER DADA COMO PROVADA A SEGUINTE MATÉRIA DE FACTO A QUAL DEVE SER INTEGRADA NA SENTENÇA RECORRIDA:

Foi dado como provado na sentença recorrida sob os nºs 11, 12, 20 e 30, que:
11 – O prédio escrito em 1) é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, serpenteando esse caminho no aludido prédio, mas tendo o seu começo no caminho público que pelo sul delimita o prédio referido em 7).
12 – O caminho mencionado em 11) inicia-se no caminho a sul do prédio indicado em 7), numa entrada a sul / poente desse prédio e corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro desse prédio, numa extensão de 210 metros de comprimento no sentido poente / nascente.
20 – Há cerca de 4 ou 5 anos, os Réus colocaram uma cancela, com cerca de 4 metros de largura delimitada por dois tranqueiros em pedra, na entrada do caminho enunciado em 11) a 13), localizada a sul/poente do prédio denominado “Bouça X”.
30 – Em data não concretamente apurada, os Réus procederam ao melhoramento do caminho referido em 11) a 13), na parte em que o mesmo se inicia.
B)-1- Do supra exposto, resulta que devem ser alteradas as respostas à matéria de facto dada como provada na sentença recorrida sob os nºs 11, 12, 20 e 30, devendo os mesmos factos ser dados como provados com a redacção resultante da prova, que se sugere ter o seguinte teor:
11 – O prédio escrito em 1) é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, serpenteando esse caminho no aludido prédio.
12 – O prédio indicado em 7), tem caminho com entrada a sul / poente desse prédio e corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro desse prédio, numa extensão de 210 metros de comprimento no sentido poente / nascente.
20 –Os Réus colocaram uma cancela, com cerca de 4 metros de largura delimitada por dois tranqueiros em pedra, na entrada do caminho enunciado em 12), localizada a sul/poente do prédio denominado “Bouça X”.
30 – No ano de 2002/2003 os Réus procederam à construção do caminho referido em 12) e à colocação da cancela referida em 20).
B)-2- A alteração das respostas relativamente à matéria de facto a ser dada como provada pela Relação com a redacção sugerida ou outra que se enquadre na prova produzida, tem a sua fundamentação nos seguintes elementos do processo:
1)- Contrato promessa de compra e venda reproduzido no nº 26 dos factos provados na sentença:
“…por si e seus herdeiros ou sucessores se comprometem a vender ao segundo actuante, e este promete comprar, livre de quaisquer encargos ou ónus o prédio anteriormente descrito…”
2)- Escritura publica de compra e venda reproduzida no nº 17 e 18 dos factos provados:
“este prédio tem entrada pelo lado poente, conforme o uso e costume.”.
Conjugado este documento com os esclarecimentos da testemunha e outorgante vendedor A. M.:
«P: Tem um acesso… quando o Sr. diz que ficou estipulado aqui nesta escritura de compra e venda, diz-se o seguinte a determinada altura, neste tal documento 5 junto com a petição. Que este prédio tem entrada pelo lado poente conforme uso e costume. Está aqui escrito também na escritura.
R (A. M.): Sim, sim.
P: O Sr. quando puseram isto nesta escritura o que é que o Sr. queria dizer com isto?
Qual era a finalidade? Esta entrada conforme usos e costume, o que é que isto significava?
R (A. M.): A finalidade de uso e costume era precisamente por causa da servidão de água. São ancestrais há vários partidores e todos eles têm direito a água.»
3)- Relatório pericial.
4)- Depoimentos das testemunhas que aqui se dão por integralmente reproduzidos:
- A. M., vendedor do prédio “Bouça X”;
- M. B., comproprietário conjuntamente com o A. M. do prédio “Bouças Y” à data do negócio efectuado com os réus;
- M. P.; vizinha do prédio “Bouça X”;
- M. F., vizinha do prédio “Bouça X”;
- C. P., filho dos réus que trabalhou na construção da entrada e na colocação dos marcos; e
- D. M., filho dos réus que trabalhou na construção da entrada e colocação dos marcos;

C)- MATÉRIA DE FACTO dada como PROVADA cuja resposta deve ser alterada para NÃO PROVADA:

16 – Esse caminho desde sempre foi usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais.
19 – Desde a data da aquisição do prédio descrito em 1) e até há cerca de 4 a 5 anos a esta parte, o Autor utilizou o caminho descrito nos pontos 11) a 13) para aceder a pé e de tractor ao prédio enunciado em 1) e para dele retirar mato e outros produtos florestais, de forma contínua, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.

C)-1- A alteração das respostas relativamente à matéria de facto dos nºs 16 e 19 a ser dada como não provada pela Relação, tem a sua fundamentação nos seguintes elementos do processo:
1)- Contrato promessa de compra e venda reproduzido no nº 26 dos factos provados na sentença:
“…por si e seus herdeiros ou sucessores se comprometem a vender ao segundo pactuante, e este promete comprar, livre de quaisquer encargos ou ónus o prédio anteriormente descrito…”
2)- Escritura publica de compra e venda reproduzida no nº 17 e 18 dos factos provados:
“este prédio tem entrada pelo lado poente, conforme o uso e costume.”.

Conjugado este documento com os esclarecimentos da testemunha e outorgante vendedor A. M.:
«P: Tem um acesso… quando o Sr. diz que ficou estipulado aqui nesta escritura de compra e venda, diz-se o seguinte a determinada altura, neste tal documento 5 junto com a petição. Que este prédio tem entrada pelo lado poente conforme uso e costume. Está aqui escrito também na escritura.
R (A. M.): Sim, sim.
P: O Sr. quando puseram isto nesta escritura o que é que o Sr. queria dizer com isto? Qual era a finalidade? Esta entrada conforme usos e costume, o que é que isto significava?
R (A. M.): A finalidade de uso e costume era precisamente por causa da servidão de água. São ancestrais há vários partidores e todos eles têm direito a água.»
3)- Relatório pericial.
4)- Depoimentos das testemunhas:
- A. M., vendedor do prédio “Bouça X” aos réus e comproprietário com o M. B. das “Bouças Y”;
- M. B., comproprietário conjuntamente com o A. M. do prédio “Bouças Y” à data do negócio efectuado com os réus;
- M. P.; vizinha do prédio “Bouça X”;
- M. F., vizinha do prédio “Bouça X”;
- C. P., filho dos réus que trabalhou na construção da entrada e na colocação dos marcos;
- D. M., filho dos réus que trabalhou na construção da entrada e colocação dos marcos;
Depoimentos já transcritos supra que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
- A M. L., indicada como testemunha pelo autor, que diz que a entrada para os prédios do Sr C. A. processa-se pelo que é dele e para o que é dele:
Depoimento gravado em 14/05/2019, das 11:17:32 às 11:39:50
P: Então o Sr. C. A. quando quer ir para o Monte Y por onde é que vai?
R: Vai pela entrada dele, vai por cima pelo Y ou vai pela entrada dele.
P: Ou vai pela mata?
R: Pela mata sim, pela única solução que ele tem.
P: Ou então tem que ir pelo Y?
R: Ou então tem que ir pelo Y para descer pelo monte abaixo.
P: Há pouco falou-se aqui que tinha de uma entrada de homem por causa de ir ver as águas, essa entrada de homem, que só entrava uma pessoa a pé.
R: Sim, sim.
P: Essa entrada tem alguma coisa a ver com este caminho que o Sr. G. S. pôs a cancela?
R: Não.
P: É no mesmo sítio?
R: Não. A cancela é ao par do caminho da Rua do …. É a par do caminho público. Essa cancela não, esse tal portelo, que era só dava para uma pessoa entrar.
P: Esse portelo em propriedade de quem está?
R: Está no Senhor C. A..
P: Quem é que obstruiu? Pôs lá pedras ou…
R: Foi o Sr. C. A., porque o Sr. C. A. não tinha direito de deixar passar as pessoas pelo que era dele.
P: Ai o Sr. C. A. é que obstruiu essa passagem?
R: Com certeza, tapou aquilo que era dele.
P: Por onde é que passa de automóvel o Sr. C. A.?
R: O automóvel do Sr. C. A. passa pelo que é dele.
P: Há bocado já disse que vai pela entrada dele.
R: Sim.
P: E por onde é que é essa entrada dele?
R: A entrada dele é em frente à minha casa, à casa onde eu vivo. Que é do Sr. A. M..
P: Ou antes de chegar a ela não?
R: Sim é quase pegar… é em frente a uma capelinha que lá está na casa.
P: E vai por aí fora…
R: E vai para o que é dele. Entra no que é dele e vai para o que é dele.
E o marido da M. L., J. S., presta depoimento que afasta de todo quaisquer passagens de tractor pelo prédio dos réus:
Depoimento gravado em 14/05/2019, das 12:10:02 às 12:40:56
P: Vocês quando iam ao mato mesmo para esta Bouça X ou ao mato para a Bouça de Y iam de trator…
R: Não senhor, com uma carreta de mão.
P: Uma carreta de mão que era perto de casa?
R: Era.
P: Mas se fosse à Bouça Y não iam de carreta de mão certamente?
R: Nunca lá fui buscar mato.
P: Nunca lá foi buscar mato a essa…
R: Não senhora.
P: Então o que é que faziam nessa Bouça Y?
R: As bouças do Monte davam madeira.
P: E vocês é que cortavam ou contratavam?
R: Não Senhor.
0:12:27
P: Era o Sr. A. M. que vendia?
R: O Sr. A. M. nunca vendeu madeira.
P: Então quem vendia?
R: Chegou a vender o Sr. arquiteto quando se despediu da quinta.
P: E por onde é que essa madeira entrava e saía?
R: Por esse sítio.
P: Por este?
R: Não senhora, para o lado de Y, saía para cima.
P: Saía junto da Capela de Y?
R: Sim Senhor.
P: O Sr. está a ver onde é que havia a tal entrada de homem?
R: Sim.
P: E é junto a isto? Junto a esta bouça do Sr. G. S.?
R: Não Senhor. É a par do caminho público que vai até às últimas casas.
P: Não tem nada a ver com a bouça das…
R: Não. E essa entradinha que passava uma pessoa só, antigamente as pessoas que iam, os caçadores e iam à água para regar como eu fui muitas vezes para mim, ia por ali e o Sr. arquiteto disse basta deixar para passar um homem e eu deixei aquilo.
P: Não tem nada a ver com esta Bouça X?
R: Não. A bouça passasse a mata toda e só depois é que tem a bouça lá para trás.
P: Onde é a entrada do caminho do Sr. C. A. para a casa dele e por onde passa de automóvel?
R: É em frente à capela da quinta.
P: Passa pela beira da mata?
R: Não Sr., ainda tem lavradio até à mata depois é que entra na mata, mas o lavradio é do Sr. C. A..
P: Ai o lavradio já é do Sr. C. A.?
R: Já é do Sr. C. A..
P: Entra por aí pelo lavradio, entra na mata?
R: Quando comprou a mata, comprou o lavradio também.
P: E chega lá à Bouça X. Não passa pela, chega às poças…
R: Não chega às poças.
P: Não chega às poças?
R: O caminho é outro, é mais cá em baixo.
P: E onde é que tem aquela casa pré-fabricada onde é que está situada?
R: É na mata.
P: Há quantos anos é que o Sr. G. S. construiu o caminho?
R: Não me lembra disso, já vai há muitos anos.
P: Foi antes de fazer a escritura ou depois?
R: O caminho?
P: Sim.
R: Foi depois de fazer a escritura. Foi depois, não sei, não sei porque o Sr. A. M. chegou-me a dizer que o Sr. G. S. não se apressava a fazer a escritura e o caminho já se andava lá por dentro, sempre se andou.

D)- A decisão recorrida ao decidir a matéria de facto como decidiu, desrespeitou o disposto nos artigos 4.º; 411.º; 413º, 414º, 523º e nº 1 do artigo 526º do Cod. Proc. Civil, e ainda o disposto no artigo 346.º do Cód. Civil

E)- O artigo 1549.º do Código Civil, dispõe que: “Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento.”
E)-1- São requisitos fundamentais da existência de servidão por destinação de pai de família:
a) que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fraccionadamente, ao mesmo proprietário, de cujo tempo provenha a servidão;
b) que, quando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário;
c) a existência de sinais visíveis ou aparentes e permanentes, reveladores da serventia de um prédio para com outro anteriores e posteriores à separação do domínio.
E)-2- Existindo sinais visíveis e permanentes de um caminho, anteriores e posteriores à separação dominial e à posse dos réus, estão reunidos os pressupostos para a constituição de uma servidão por destinação do pai de família.
Mas se esse caminho foi construído pelo réu comprador, não há constituição de servidão de passagem por destinação do pai de família.

SEM PRESCINDIR

F)- Quando foi celebrado o negócio da “Bouça X”, o A. M. era o seu único proprietário e era comproprietário da “Bouça Y” conjuntamente com a testemunha M. B. na proporção de metade indivisa para cada – Vd. nºs 2 e 3 dos factos provados e depoimentos testemunhais de ambos.

F)-1- O comproprietário do prédio “Bouças Y” não teve intervenção no contrato-promessa de compra e venda, assim como na escritura pública, conjuntamente com o proprietário vendedor da “Bouça X”, a aceitar ou recusar a eventual constituição de servidão de passagem por destinação do pai de família.

F)-2- Sendo o vendedor, o autor da destinação, proprietário exclusivo de um dos prédios e condómino do outro, não pode ser constituída servidão por destinação do pai de família, por não cumprir os requisitos do disposto no artigo 1549.º do Código Civil, designadamente, porque não estamos perante dois prédios do mesmo dono e pode causar prejuízos ao comproprietário do prédio que vai ficar dominante, não vendedor.

SEM PRESCINDIR
G)- Da matéria de facto resulta que a servidão por destinação do pai de família provada, é uma servidão de passagem a pé, com inicio junto da casa do anterior proprietário com entrada através de uma porta de homem, que passa pela Mata, calca a “Bouça X” e termina nas poças de água situadas na Mata e/ou “Bouça Y”, servidão que se destina aos titulares do direito às águas de rega aí empossadas.
«18 – Mais ficou a constar de tal escritura pública que “este prédio tem entrada pelo lado oente, conforme o uso e costume.”.
26 – Em 25 de Agosto de 2002, foi outorgado um escrito particular, denominado “Contrato promessa compra e venda”, entre A. M., na qualidade de promitente vendedor, e G. S., na qualidade de promitente comprador, com o seguinte teor: “(…)
Declara o primeiro pactuante que é dono legítimo e possuidor do prédio rústico denominado Bouça X,(…)
Que, por si e seus herdeiros ou sucessores se comprometem a vendera ao segundo pactuante, e este promete comprar, livre de quaisquer encargos ou ónus o prédio anteriormente descrito (…)”.
27 – As assinaturas constantes do escrito supra referido foram notarialmente reconhecidas em 30 de Agosto de 2002.»

G)-1- Estamos perante uma escritura publica de compra e venda e um contrato-promessa de compra e venda com assinaturas reconhecidas presencialmente em 30.08.2002 – artigos 363º, nº 2; 371º, nº 1; 375º, nº 1 e 376º nº 1 do Código Civil.

G)-2- A “Bouça X” foi prometida vender livre de quaisquer encargos ou ónus, não pode incidir sobre tal prédio qualquer tipo de servidão ou qualquer outro encargo.
Ao celebrar o contrato promessa, “As partes querem vincular-se não à celebração de um qualquer contrato definitivo, em branco, mas sim à celebração de um futuro contrato definitivo com um determinado conteúdo, indicado no contrato-promessa.” – in “Sinal e Contrato-promessa”, Calvão da Silva, Universidade de Coimbra, 1988, pg.179.

G)-3- Na Escritura publica de compra e venda reproduzida no nº 17 e 18 dos factos provados, as partes não quiseram afastar o conteúdo do contrato-promessa celebrado em 25.08.2002, designadamente a venda deixar de ser feita livre de ónus e encargos. Antes pelo contrário, o promitente- vendedor esclareceu ao comprador o direito de passagem a pé que detinha, cuja entrada era processada por outro prédio sua propriedade.

G)-4- Foi declarado que “este prédio tem entrada pelo lado poente, conforme o uso e costume.”.
O outorgante vendedor e proprietário A. M., explicou o que se referia a entrada conforme o uso e costume e onde se iniciava.
«A finalidade de uso e costume era precisamente por causa da servidão de água. São ancestrais há vários partidores e todos eles têm direito a água.»

G)-5- Ao terem feito esta declaração na escritura de compra e venda, as partes não quiseram afastar a declaração feita no contrato promessa de compra e venda que a venda era feita livre de quaisquer ónus ou encargos. Pretendeu o vendedor esclarecer o direito de passagem pedonal do comprador para o prédio “Bouça X” pela “porta de homem” junto à sua casa, por onde passam os consortes das águas da poça.

G)-6- Mesmo que a entrada Sul/Poente e caminho não tivessem sido construídos pelos réus, estes dois documentos assinados solenemente pelas partes, afastam a constituição de servidão de passagem por qualquer “modo”, por destinação do pai de família.

H)- A sentença recorrida violou as normas atrás referidas e fez errada aplicação do disposto nos artigos 363º; 371º; 375º; 376º e 1549º do Cód. Civil, pelo que deve a mesma ser revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente improcedente e condene o autor nas custas da 1ª e 2ª instância.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, para o que se pede e espera o douto suprimento de Vossas Excelências.

O Autor/Recorrido contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).

No caso vertente, as questões a decidir são as seguintes:

- Saber se a impugnação da matéria de facto contida no ponto 19) relativa à servidão de passagem tem relevância para a decisão a proferir;
- Saber se ocorreu erro na decisão relativa à matéria de facto no que toca aos factos impugnados pelo Autor e se, para efeito da apreciação da questão da demarcação, há necessidade de ampliação da matéria de facto conhecida pela primeira instância, necessidade essa a suprir por este Tribunal;
- Saber se ocorreu erro na decisão relativa à matéria de facto no que toca aos factos impugnados pelos Réus;
- Saber se ocorre uma situação de abuso de direito por parte do Autor – na modalidade de venire contra factum proprium ou outra, nomeadamente, a da neutralização do direito ou Verwirkung – ao exigir a demarcação entre o seu prédio e o dos Réus pela linha que indica;
- Saber se, face aos factos definitivamente assentes nesta instância, se verificam os pressupostos da constituição de servidão de passagem por destinação de pai de família.
*
IV. FUNDAMENTOS:

Os factos.

Na primeira instância, foi dada como provada a seguinte factualidade:

1 – Está descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº .../20080619, o prédio rústico de mato e pinhal, denominado “Bouça Y”, situado em X ou Y, freguesia de ..., concelho de Barcelos, onde consta a confrontar do norte com J. P., terrenos da capela de Y, L. C. e D. P., do sul com A. M., do nascente com C. L. e J. B. e do poente com A. R. e A. M., inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., que corresponde ao anterior artigo ...º.
2 – Pela Ap. 62 de 2004-10-21 está registada, a favor do Autor C. A. e de R. A., a aquisição de ½ do prédio descrito em 1) por compra a A. M..
3 - Pela Ap. 17 de 2008-06-19 está registada, a favor do Autor C. A. e de R. A., a aquisição de ½ do prédio descrito em 1) por compra a M. B. e Maria.
4 - Pela Ap. 1558 de 2011-11-22 está registada, a favor do Autor C. A., a aquisição do prédio descrito em 1) por partilha subsequente a divórcio.
5 – C. A. é o titular inscrito, para efeitos fiscais, do prédio rústico situado em Y, união de freguesias de ... e Igreja Nova, concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...º, que corresponde ao antigo artigo ...º, aí constando as seguintes confrontações: do norte com J. P., terreno da capela de Y, L. C. e D. P., do sul com A. M., do nascente com C. L. e J. B. e do poente com A. R. e A. M..
6 – Presentemente, o prédio descrito em 1) confronta do sul com os Réus G. S. e esposa M. C. e com K Sociedade Imobiliária, Ldª.
7 - Está descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº .../20090126, o prédio rústico de mato, pinheiro e eucaliptos, denominado “Bouça X”, situado em …, freguesia de ..., concelho de Barcelos, onde consta a área de 20096 m2 e a confrontar do norte com C. A., do sul com caminho, do nascente com M. A. e do poente com A. M., inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ....
8 - Pela Ap. 2464 de 2009-02-19 está registada, a favor dos Réus G. S. e esposa M. C., a aquisição do prédio descrito em 7) por compra a A. M..
9 – G. S. é o titular inscrito, para efeitos fiscais, do prédio rústico situado em …, união de freguesias de ... e Igreja Nova, concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...º, que teve origem no antigo artigo …, aí constando as seguintes confrontações: do norte com C. A., do sul com caminho, do nascente com M. A. e do poente com A. M..
10 – O prédio descrito em 1) e o prédio descrito em 7) pertenceram a A. M. e faziam parte da denominada “Quinta ...”, sita em ..., Barcelos.
11 – O prédio escrito em 1) é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, serpenteando esse caminho no aludido prédio, mas tendo o seu começo no caminho público que pelo sul delimita o prédio referido em 7).
12 – O caminho mencionado em 11) inicia-se no caminho a sul do prédio indicado em 7), numa entrada a sul / poente desse prédio e corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro desse prédio, numa extensão de 210 metros de comprimento no sentido poente / nascente.
13 - Até infletir para norte durante cerca de 90 metros, ainda dentro do prédio referido em 7) e depois penetrar no prédio indicado em 1), por onde continua o seu percurso até chegar ao Cruzeiro da Capela de Y, sito na freguesia de ..., Barcelos.
14 – O caminho descrito nos pontos 11) a 13) apresenta-se, de um modo geral, demarcado, sem vegetação a ocupar o seu leito, com excepção de uma pequena extensão junto à linha de água, onde a vegetação não permite identificar os seus limites.
15 – Tal caminho tem uma largura média na ordem dos 3 metros.
16 – Esse caminho desde sempre foi usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais.
17 – Por escritura pública outorgada no dia 19 de Fevereiro de 2009, no Cartório Notarial do Notário J. C., exarada a fls. 6 a 7 do livro nº 264A, A. M. declarou vender a G. S., que declarou comprar, o prédio rústico denominado “Bouça X”, de mato, pinheiros e eucaliptos, com a área de 2096 m2, situado no lugar do …, freguesia de ..., concelho de Barcelos, a confrontar do norte com C. A., do sul com caminho, do nascente com M. A. e do poente com A. M., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 125/....
18 – Mais ficou a constar de tal escritura pública que “este prédio tem entrada pelo lado poente, conforme o uso e costume.”.
19 – Desde a data da aquisição do prédio descrito em 1) e até há cerca de 4 a 5 anos a esta parte, o Autor utilizou o caminho descrito nos pontos 11) a 13) para aceder a pé e de tractor ao prédio enunciado em 1) e para dele retirar mato e outros produtos florestais, de forma contínua, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
20 – Há cerca de 4 ou 5 anos, os Réus colocaram uma cancela, com cerca de 4 metros de largura delimitada por dois tranqueiros em pedra, na entrada do caminho enunciado em 11) a 13), localizada a sul/poente do prédio denominado “Bouça X”.
21 – Com tal conduta, os Réus têm impedido o Autor de usar do referido caminho.
22 – O prédio “Bouça X” era naturalmente delimitado pelo seu lado norte por um rego de água.
23 – Esse rego de águas pluviais e outras corre desde o sul (sul/nascente) em direcção a norte (norte/poente) para uma poça existente na Bouça Y.
24 – Tal rego tem o leito perfeitamente demarcado, tem uma extensão de cerca de 164 metros, desde a entrada a sul nas propriedades até desaguar na poça.
25 – Os Réus colocaram marcos, sem a presença do Autor, para norte e nascente do referido rego.
26 – Em 25 de Agosto de 2002, foi outorgado um escrito particular, denominado “Contrato promessa compra e venda”, entre A. M., na qualidade de promitente vendedor, e G. S., na qualidade de promitente comprador, com o seguinte teor:
“(…)
Declara o primeiro pactuante que é dono legítimo e possuidor do prédio rústico denominado Bouça X, situado no Lugar de … da freguesia de ..., inscrito na matriz predial sob o artigo …, a confrontar do norte com M. B., do sul com caminho, nascente M. A. e poente A. M., com a área aproximada de 20 000 metros quadrados.
Que, por si e seus herdeiros ou sucessores se comprometem a vendera ao segundo pactuante, e este promete comprar, livre de quaisquer encargos ou ónus o prédio anteriormente descrito pelo preço de € 22.000,00 (vinte e dois mil euros), quantia que já recebeu integral nesta data de 25 de Agosto de 2002, e a competente escritura pública se realizará logo que seja exigida pelo comprador.

Declarou o segundo pactuante:
Que aceita o presente contrato nas condições exaradas. (…)”.
27 – As assinaturas constantes do escrito supra referido foram notarialmente reconhecidas em 30 de Agosto de 2002.
28 – Imediatamente após a outorga do escrito particular referido em 26), os Réus começaram a usufruir da “Bouça X”, cortando mato e limpando-a.
29 – A Bouça X tinha e tem uma entrada situada junto ao entroncamento do caminho público do lugar de … ao caminho público vindo do lugar do …, que os Réus continuam a poder usar.
30 – Em data não concretamente apurada, os Réus procederam ao melhoramento do caminho referido em 11) a 13), na parte em que o mesmo se inicia.
31 - E realizaram um estradão pelo interior da Bouça X até à entrada mencionada em 29).
32 – Em Julho de 2008, os Réus mandaram efectuar o levantamento topográfico da “Bouças X” que se encontra junto a fls. 42 dos autos.
33 – Em Julho de 2008, o topógrafo B. J., a solicitação do Autor C. A., procedeu à realização de um levantamento topográfico do prédio descrito em 7), representando as delimitações de tal prédio com a área de 20.096 m2.
34 – Foi o Autor C. A. que indicou ao aludido topógrafo as delimitações do prédio descrito em 7), que este fez constar do levantamento topográfico junto a fls. 41 dos autos, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
35 – Os Réus, em circunstâncias não concretamente apuradas, tiveram acesso ao levantamento topográfico referido em 33) e colocaram marcos no limite norte/nascente da “Bouça X” de acordo com o alinhamento traçado no dito levantamento.
36 – Os Réus colocaram quatro marcos na linha divisória identificada no levantamento topográfico mencionado em 33), o primeiro junto do caminho de servidão, o segundo, que se acha tombado, a cerca de 55 metros do primeiro, o terceiro a cerca de 21 metros do segundo e o quarto a cerca de 28,50 metros do terceiro.
37 – Em data não concretamente apurada, o Autor procedeu à vedação de parte da “Bouça do Monte de Y”, existindo um troço de vedação a poente da poça e que termina junto a esta e um muro que se desenvolve ao longo do caminho de servidão a nascente e que termina a cerca de 2,80 metros do primeiro marco supra referido, com cerca de 2 metros de altura e 0,50 metros de espessura.

E, como não provada, a seguinte:
a) Presentemente, o prédio descrito em 1) confronta do poente com K Sociedade Imobiliária, Ldª.
b) Aquando da venda quer ao Autor, quer aos Réus, o anterior proprietário, A. M., fez questão de anotar e avisar a existência do caminho e o direito que o prédio vendido ao Autor tinha desta mesma servidão.
c) O que igualmente havia sido consignado pelo mesmo vendedor aquando da cedência (por contrato de compra e venda) de metade indivisa do prédio identificado em 1) a M. B., no ano de 1994, e onde ficou consignado que tinha direito o comprador a utilizar o caminho da Bouça X para aceder ao prédio Bouça ou Monte Y.
d) O anterior proprietário, A. M. sempre avisou os Réus que a delimitação a norte do prédio Bouça X era pelo rego.
e) Aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda da “Bouça X”, o vendedor A. M. e o G. S. estabeleceram todos os limites da propriedade, de modo que o terreno situado a nascente das poças era delimitado por uma linha recta com início numa ucheira junto do caminho de servidão do monte, a passar paralela pelo poço das águas do castelo, seguindo em linha recta até ao caminho de servidão do Monte Y.
f) O único acesso da “Bouça X” era a entrada dotada de um portão de ferro com a largura aproximada de 2,30 metros, referida em 28) dos factos provados.
g) Porque o caminho público de acesso à “Bouça X” estava em muito mau estado, os Réus decidiram construir uma entrada para a Bouça X, do seu lado poente, mais precisamente na ponta aguda que confronta com o início do caminho público do lugar do … ao Monte Y.
h) As obras mencionadas em 30) e 31) dos factos provados ocorreram em 2002/2003.
i) Pelo menos desde a data da outorga do contrato promessa de compra e venda que o Autor e antecessores não passam pela entrada construída pelos Réus para acederem com tractores agrícolas à “Bouça do Monte de Y”.
j) O A. M. entregou aos Réus o levantamento topográfico constante de fls. 41 dos autos.
*
O Direito

- Do não conhecimento da impugnação relativa ao ponto 19

Recorde-se o teor do concreto ponto em questão:
19 – Desde a data da aquisição do prédio descrito em 1) e até há cerca de 4 a 5 anos a esta parte, o Autor utilizou o caminho descrito nos pontos 11) a 13) para aceder a pé e de tractor ao prédio enunciado em 1) e para dele retirar mato e outros produtos florestais, de forma contínua, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
Como é bom de ver os factos inseridos neste ponto integram exclusivamente elementos da causa de pedir correspondente à usucapião.
É, pois, incontornável, face à já decidida improcedência, transitada em julgado, do pedido de reconhecimento de servidão de passagem com fundamento na usucapião, que uma eventual alteração deste ponto de facto seria absolutamente irrelevante, sendo, por isso, de todo inócua a reapreciação da decisão relativa à aludida matéria de facto.
Ora, sabendo-se que “a reapreciação da decisão da matéria de facto visa obter um sustentáculo fáctico para uma certa solução para uma dada questão de direito”, “se a matéria de facto cuja reapreciação se requer é inócua à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito, deve o tribunal ad quem indeferir essa pretensão, por força da proibição da prática no processo de actos inúteis.” (Acórdão da Relação do Porto de 19.05.2014 – Relator Carlos Gil).
No mesmo sentido, escreveu-se no acórdão desta Relação de 04.10.2017 (Relator – José Fernando Cardoso Amaral), “é pacífico o entendimento de que quando a eventual procedência de uma impugnação de certa matéria de facto é insusceptível de implicar qualquer efeito no julgamento da matéria de direito e, portanto, na decisão, deve o tribunal ad quem abster-se dessa tarefa inglória”.
E a orientação da jurisprudência do STJ tem sido, também ela, no sentido de que o direito à impugnação da decisão de facto previsto no art. 640º do CPC assume, claramente, um caráter instrumental face à decisão sobre o fundo da causa, disso sendo exemplo o Acórdão de 14.3.2018 (Relatora - Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado) e os acórdãos do STJ, ali citados, de 17.5.2017, proc. nº 4111/13.4TBBRG.S1, e de 11.2.2015, proc. nº 422/2001.L1.S1, no de 14.03.2018.
A este respeito, explicita-se no primeiro dos referidos acórdãos que “(…) se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação da decisão proferida pela 1ª instância, no plano dos factos.”
Face ao exposto, não se conhece da impugnação da matéria de facto contida no ponto 19.

- Da impugnação da matéria de facto relativa ao ponto d) dos “Factos não provados” e aos pontos 25 e 35 dos “Factos Provados”, bem como da necessidade de ampliação (localização temporal) da matéria de facto contida nos referidos pontos 25 e 35
Em primeiro lugar, está em causa saber se ocorreu erro de julgamento por parte da primeira instância ao considerar não provado o ponto fáctico constante da alínea d) dos “Factos não provados”, cujo teor, relembre-se, é o seguinte:

d) O anterior proprietário, A. M. sempre avisou os Réus que a delimitação a norte do prédio Bouça X era pelo rego.

Importa considerar que a redação que o Autor pretende seja dada ao referido ponto – cuja inclusão visa nos factos provados – é a seguinte:
O anterior proprietário da Bouças X, A. M., sempre avisou os Réus, mesmo antes da celebração da escritura pública de compra e venda, que a delimitação a norte do prédio dessa Bouça era pelo rego.”
Invoca, para o efeito, a missiva do anterior proprietários dos prédios, A. M., enviada aos Réus em data anterior à data da celebração da escritura publica de compra e venda da “Bouça X” celebrada entre ambos e que se encontra junta os autos a fls. 89 a 91, e da sua confrontação com o depoimento prestado pela Testemunha A. M., e totalmente confirmado pelos depoimentos de M. L. e J. S..
Porém, ouvidos os depoimentos das testemunhas indicadas pelo Recorrente e lidas as cartas que a testemunha M. L. referiu e exibiu no decurso do seu depoimento – não só a junta a fls. 89 a 91, mas também a de fls. 86 a 88, ulterior àquela – e que, então, foram juntas ao processo, não se vê motivo para alterar o decidido quanto ao ponto da alínea d) considerado não provado.
Com efeito, se é certo que na carta a que alude o ora Recorrente (fls. 89 a 91), datada de 27.06.2008, ou seja, de data anterior à dos levantamentos topográficos (ambos de julho de 2008), consta efetivamente que “as estremas estão marcadas por paredes, excepto a norte que é definida pelo regueiro”, bem como “O Sr. J. S. e a Sra. M. P. há vários anos aí na casa, são da minha inteira e total confiança sabem bem a marcação por si e por mim aceites”, não se pode olvidar, como manifestamente faz o Recorrente, o teor da carta junta a fls. 86 a 88, da mera leitura da qual se verifica que, não obstante o referido na primeira e por razões que se desconhecem, entre a testemunha A. M. e os Réus, em 23.09.2008 (data desta segunda carta), a questão da delimitação do terreno que iria ser vendido aos primeiros pelo segundo estava claramente em aberto, sendo as alternativas ali referidas as correspondentes a dois levantamentos topográficos, um feito pelos Réus e o outro, supostamente, feito, segundo o referido A. M., subscritor da referida carta, “de acordo com o documento por nós assinado” e segundo o qual o terreno em causa teria uma área de 20 080 m2 (o que traduz uma diferença de apenas 16 m2 relativamente ao que depois ficou a constar da escritura), inexistindo já, nessa ocasião, qualquer referência na carta à delimitação pelo “regueiro”, o que manifestamente denota que no momento que efetivamente releva – antes da celebração da escritura de compra e venda do prédio dos Réus em 19.02.2009 – já estava ultrapassada a delimitação pelo dito regueiro, circunstância que não é contrariada por qualquer outro meio de prova, nomeadamente os depoimentos das testemunhas M. L. e J. S..
Deve, aliás, sublinhar-se que, como consta da própria escritura pública, aquilo que foi vendido aos Réus foi um prédio “omisso à matriz”, com a precisa área de 20 096 m2 – o que bem denota a realização de um prévio levantamento topográfico para efeito da determinação da área (com a consequente delimitação de tal decorrente) na base da vontade das partes –, tudo apontando para que o levantamento topográfico subjacente a tal determinação fosse o que se mostra junto aos autos a fls. 41, mandado elaborar pelo Autor/Recorrente, que indica exatamente essa área, sendo nessa medida evidente que, independentemente de o aludido prédio ser até então naturalmente delimitado pelo seu lado norte por um rego de água, outra foi, quanto à delimitação do terreno, a vontade das partes subjacente à escritura.
E com isto já se avança para a resposta a dar à seguinte pretensão do Recorrente.
Senão vejamos.

Pretende o Recorrente que os factos constantes nos pontos 25º e 35º dos factos dados como provados, sejam alterados e passem a ter as seguintes redações:
“25 – Em data não concretamente apurada, mas certamente antes de finais de Junho de 2008, os Réus colocaram marcos, sem a presença do Autor, para norte e nascente do referido rego.“ e
“35 – Os Réus, em circunstâncias não concretamente apuradas, tiveram acesso ao levantamento topográfico referido em 33) e os marcos por eles colocados no limite norte/nascente da “Bouça X” estão no mesmo alinhamento do traçado no dito levantamento”.
Diz o Recorrente que não inferiu o Tribunal a quo, como devia no nosso entendimento pois a sua consideração poderá ser relevante para o desfecho da causa, sobre o período temporal em que essa demarcação foi feita.
Começar-se-á por assinalar que o Autor, na sua petição inicial, não circunstanciou temporalmente a referida atuação de colocação de marcos, pelo que, o que agora pretende é uma ampliação da matéria de facto através da inclusão na matéria de facto da localização temporal que, segundo ele, supostamente terá resultado da produção da prova nos autos.

Argumenta para o efeito que:
15. Nessa linha de raciocínio, se a missiva remetida por A. M. (testemunha e anterior proprietário dos prédios do Autor e dos Réus) ao Réu G. S. - cujo teor foi, conforme já supra se disse, confirmado em Audiência Final pelo respectivo autor -, é datada de 27.06.2008 e nela expressamente se refere que “Portanto, além do derrube de árvores, descarga de entulhos, tenta ocupar terrenos que não são seus, poças de água e nascentes que fazem parte da minha propriedade, e que parte está arrendada, assim como tem outros proprietários e o acesso aos mesmos. As estremas estão marcadas por paredes excepto a norte que é definida pelo regueiro (o sublinhado e negrito é nosso)”, é sinal de que os Réus já haviam procedido, em data anterior aquela, à referida demarcação com a colação de marcos.
16. Razão pela qual, naquele facto deve ser atribuído pelo menos o seu limite temporal.
17. Porque, atento a essa premissa, e tendo por assente que o levantamento topográfico feito a pedido do Autor C. A. foi realizado em Julho de 2008, é sinal que foi feito em data posterior à missiva junta a fls. 89 a 91 e,
18. Assim, é sinal mais que evidente que quando se procedeu ao levantamento topográfico, já se encontravam naquele local os marcos colocados pelos Réus a definirem as estremas de ambos os prédios.
19. Quanto ao ponto 35., o Tribunal a quo deu como provado que “Os Réus, em circunstâncias não concretamente apuradas, tiveram acesso ao levantamento topográfico referido em 33) e colocaram marcos no limite norte/nascente da “Bouça X” de acordo com o alinhamento traçado no dito levantamento”.
20. Ora, atenta a sua redacção e da sua leitura, infere-se ou dá a entender-se que a colocação dos marcos por parte dos Réus foi feita posteriormente ao levantamento topográfico feito a pedido do Autor C. A. e respeitando o alinhamento traçado nesse documento.
21. Contudo, disso nada resulta da prova que foi produzida.
22. Aliás, das conclusões que se retira das premissas consideradas quanto ao ponto 25. dos factos provados, tudo leva a crer o contrario, isto é, atento a data da missiva junta aos autos a fls. 89 a 91, tudo leva a crer que tenha sido o referido levantamento topográfico a respeitar a linha demarcada pelos Réus com a colocação dos marcos, e não o seu contrário.
Desde já se dirá que não assiste a mínima razão ao Recorrente.
Em primeiro lugar, o que consta da missiva de 27.06.2008 não é sinal de que os Réus já haviam procedido, em data anterior àquela, à referida demarcação com a colocação de marcos. Para além de não haver qualquer referência nesse sentido na dita carta, como seria normal se tal tivesse ocorrido e se vê ter sucedido relativamente a outras concretas atuações levadas a cabo pelos Réus (como derrube de árvores, descarga de entulhos), uma “tentativa de ocupação de terrenos” não pertencentes aos Réus não teria de passar necessariamente pela colocação de marcos, sendo que, a terem sido colocados marcos pelos Réus em momento anterior ao da referida carta – o que não se concede –, o normal seria que o tivessem sido de acordo com o levantamento topográfico mandado elaborar pelos próprios Réus (segundo o qual a área do terreno em causa seria bem superior à resultante do levantamento mandado elaborar pelo Autor). Acresce que na carta de setembro de 2008, de novo, nenhuma menção existe a qualquer prévia colocação de marcos pelos Réus.
Ao contrário do defendido pelo Recorrente, o que efetivamente resulta da conjugação de toda a prova produzida sobre esta matéria, nomeadamente dos levantamentos topográficos juntos, é que, em julho de 2008 (data em que, de acordo com o constante de cada um dos ditos levantamentos, estes foram elaborados), os Réus defendiam uma demarcação que fazia corresponder ao seu prédio uma área (25 150 m2) bem superior àquela que consta do levantamento mandado elaborar pelo ora Autor (20 096 m2), sendo exatamente esta última área – muito próxima da referida pelo vendedor na carta de 09.2008 – que acabou por ficar a constar da escritura pública celebrada em fevereiro de 2009, estando os marcos colocados em total sintonia com a linha de demarcação que conduz a essa mesma área, de onde resulta haver uma total distorção da realidade por parte do aqui Recorrente quando diz que “tudo leva a crer” que os marcos terão sido colocados antes do levantamento topográfico por ele mandado realizar e que este último foi elaborado tendo por referência os marcos colocados pelos Réus e não o contrário, sendo, para nós, evidente que a colocação dos marcos tal como veio a ser efetuada constituiu uma cedência dos ora Réus relativamente à sua pretensão inicial e que a área constante da escritura pública é o claro resultado final do processo de definição do exato objeto da venda em causa.
Deve, aliás, relembrar-se que, à data da celebração da escritura de compra e venda (19.02.2009), o prédio contíguo ao dos Réus a que aludem os autos era já pertença do Autor (e da sua, então, esposa), por aquisições efetuadas em 21.10.2004 e 19.06.2008 (cfr. pontos 2 e 3 dos Factos provados), sendo, pois, verdadeiramente já dele – e não do vendedor – o interesse em estabelecer a linha de demarcação entre um prédio e outro.
Veja-se ainda que o contrato-promessa celebrado com os Réus data de 2002, mas, não só naquela data não ficou definida a exata área do terreno a vender (“com a área aproximada a 20.000 metros quadrados”) – cfr. fls. 26 –, como, para além disso, como já se se sublinhou, a linha de demarcação entre os dois prédios em causa esteve em discussão até poucos meses antes da celebração da escritura em 19.02.2009, tendo, inclusive, o vendedor – a testemunha A. M. – referido de forma espontânea, quando questionado sobre “a estrema” dos prédios em causa: “Isso ficou definido entre eles”, explicitando que “eles” eram o Sr. C. A. e o Sr. G. S., o que reafirmou mais à frente quando confrontado pelo mandatário dos Réus com o levantamento topográfico referido no ponto 33 que “Isso foi negócios entre eles”.
É, pois, de concluir que efetivamente a colocação dos marcos por parte dos Réus foi feita posteriormente ao levantamento topográfico feito a pedido do Autor C. A. e respeitando o alinhamento traçado nesse documento.
Em conclusão, impõe-se julgar improcedente a impugnação da matéria de facto apresentada pelo Autor/Recorrente.

Aqui chegados e na decorrência da análise da pretensão de alteração propugnada pelo Autor/Recorrente, facilmente somos levados à constatação da incompletude do conteúdo do referido ponto 25 (e, consequentemente, do conteúdo do ponto 35) no que toca ao momento temporal em que ocorreu a colocação dos aludidos marcos.
Como assinala Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 293, para além das situações de obscuridade e de contradição das decisões sob recurso, estas podem revelar-se total ou parcialmente deficientes em resultado “da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”.
Nestas situações, não havendo elementos probatórios acessíveis à Relação (que constem do processo ou da gravação) que permitam sustentar a tomada de decisão sobre a matéria de facto que importa à completude da sentença, a solução legalmente consagrada é a anulação da decisão proferida pela primeira instância, anulação essa que não está dependente da iniciativa do recorrente – art. 662º, nº 2, c, do CPC; existindo nos autos tais elementos, deve a Relação suprir a incompletude em causa.
No caso, se é certo que, como já se referiu, o Autor tampouco havia situado no tempo a colocação dos marcos, só em fase de recurso tendo vindo a defender que essa colocação teria sido anterior a finais de junho de 2008, não é menos certo que da alegação dos Réus na contestação a respeito desta matéria (artigos 23º a 26º) resulta que, na versão destes últimos, a colocação dos marcos teria sido contemporânea da celebração da escritura, constatando-se que sobre essa matéria a sentença recorrida não emitiu qualquer decisão (sublinhe-se que a expressão em circunstâncias não concretamente apuradas só se refere à forma como os Réus tiveram acesso ao levantamento topográfico – constando, em sintonia, no ponto j), como não provado, que O A. M. entregou aos Réus o levantamento topográfico constante de fls. 41 dos autos), não contendo a dita sentença qualquer pronúncia sobre o momento temporal em que tal ocorreu (como o próprio Autor constatou).

Ora, face a tudo o que já se disse antes e ao depoimento a tal respeito prestado pelos filhos dos Réus, as testemunhas C. P. e D. M., que foram claros e precisos a confirmar que a colocação dos marcos ocorreu aquando da celebração da escritura – em 2009 –, explicando que na altura foi lá um topógrafo (a testemunha B. J.) que colocou umas “estaquinhas” em madeira que eles substituíram pelos atuais marcos, e tendo, ainda, em conta que, ao contrário do que sucedeu relativamente a outras matérias, tais afirmações não geraram, em audiência de julgamento, qualquer controvérsia, nenhuma incongruência, relativamente à demais prova produzida, havendo, aliás, a apontar aos mencionados depoimentos no que a este aspeto se refere, sendo, pois, tais elementos probatórios suficientes para tomar uma decisão sobre tal questão, bem como considerando que – como infra melhor se verá – circunstanciar temporalmente a colocação dos marcos é essencial para a reapreciação, por parte deste tribunal, da questão do abuso de direito, aproveita-se a oportunidade para, em conformidade com o disposto no art. 662º, nº 2, c), “a contrario”, e a regra de substituição prevista no art. 665º, ambos do CPC, proceder à ampliação dos pontos 25 e 35 que, face ao explanado, passarão a ter a seguinte redação:
25 – Em 2009, aquando da celebração da escritura de compra e venda referida em 17) dos Factos provados os Réus colocaram marcos, sem a presença do Autor, para norte e nascente do referido rego.
35 – Os Réus, em circunstâncias não concretamente apuradas, tiveram acesso ao levantamento topográfico referido em 33) e, no momento referido em 25) dos Factos provados, colocaram marcos no limite norte/nascente da “Bouça X” de acordo com o alinhamento traçado no dito levantamento.

- Da impugnação da matéria de facto relativa aos pontos nºs 11, 12, 20 e 30 e ainda 16 dos Factos Provados

Defendem os Réus/Recorrentes que devem ser alteradas as respostas à matéria de facto dada como provada na sentença recorrida sob os nºs 11, 12, 20 e 30, devendo os mesmos factos ser dados como provados com a redacção resultante da prova, que se sugere ter o seguinte teor:

11 – O prédio escrito em 1) é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, serpenteando esse caminho no aludido prédio.
12 – O prédio indicado em 7), tem caminho com entrada a sul / poente desse prédio e corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro desse prédio, numa extensão de 210 metros de comprimento no sentido poente / nascente.
20 –Os Réus colocaram uma cancela, com cerca de 4 metros de largura delimitada por dois tranqueiros em pedra, na entrada do caminho enunciado em 12), localizada a sul/poente do prédio denominado “Bouça X”.
30 – No ano de 2002/2003 os Réus procederam à construção do caminho referido em 12) e à colocação da cancela referida em 20).
Invocam, para o efeito, o contrato promessa de compra e venda, a escritura pública de compra e venda – e a menção que nesta consta “este prédio tem entrada pelo lado poente, conforme o uso e costume.” –, conjugada aquela com os esclarecimentos da testemunha e outorgante vendedor A. M., o Relatório pericial e os Depoimentos das testemunhas:
- M. B., comproprietário conjuntamente com o A. M. do prédio “Bouças Y” à data do negócio efectuado com os réus;
- M. P.; vizinha do prédio “Bouça X”;
- M. F., vizinha do prédio “Bouça X”;
- C. P., filho dos réus que trabalhou na construção da entrada e na colocação dos marcos; e
- D. M., filho dos réus que trabalhou na construção da entrada e colocação dos marcos;
Mais pretendem, com fundamento em tais elementos probatórios, que o ponto 16 passe a constar do elenco dos Factos não provados.

Recorde-se o teor dos pontos 11, 12, 20 e 30, bem como do ponto16:

11 – O prédio escrito em 1) é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, serpenteando esse caminho no aludido prédio, mas tendo o seu começo no caminho público que pelo sul delimita o prédio referido em 7).
12 – O caminho mencionado em 11) inicia-se no caminho a sul do prédio indicado em 7), numa entrada a sul / poente desse prédio e corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro desse prédio, numa extensão de 210 metros de comprimento no sentido poente / nascente.
20 – Há cerca de 4 ou 5 anos, os Réus colocaram uma cancela, com cerca de 4 metros de largura delimitada por dois tranqueiros em pedra, na entrada do caminho enunciado em 11) a 13), localizada a sul/poente do prédio denominado “Bouça X”.
30 – Em data não concretamente apurada, os Réus procederam ao melhoramento do caminho referido em 11) a 13), na parte em que o mesmo se inicia.
16 – Esse caminho desde sempre foi usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais.
Sendo estes os pontos impugnados, analisados os documentos juntos aos autos – com particular relevo para o contrato promessa, a escritura, os levantamentos topográficos e as cartas juntas aos autos –, ouvidos todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento – e não só os indicados pelos Recorrentes –, bem como estudado o relatório pericial e os elementos observados pelos peritos ali reproduzidos que dizer?
Em primeiro lugar, enfatizar que são manifestas as contradições entre os depoimentos das testemunhas a quem a primeira instância deu credibilidade e os das testemunhas em que os Réus/Recorrentes arrimam a sua pretensão de alteração da decisão relativa à matéria de facto, não havendo, ao contrário do defendido pelos Recorrentes, outros elementos probatórios que objetivamente sustentem a versão apresentada pelas últimas no que tange à inexistência da entrada a sul/poente a que aludiram as testemunhas M. L. e J. S., bem como à construção do caminho referido em 12 e à colocação da cancela referida em 20 apenas em 2002/2003, ao que acresce ser, como infra melhor veremos, o depoimento do referido J. S. o depoimento que mais isento se apresenta.
Por outro lado, aparentemente, a factualidade feita constar nos pontos 11 e 12 decorre direta e linearmente do teor das respostas dadas pelos peritos no relatório junto a fls. 58 a 70, não havendo nos restantes elementos probatórios a que aludem os Recorrentes quaisquer elementos suscetíveis de, por algum modo, abalar o que se mostra reproduzido nos extratos de levantamento topográfico e fotografias ali inseridos pelos peritos.
Mas será que a situação que é atualmente observável no local e que os peritos reproduziram de forma muito elucidativa nos aludidos levantamentos e fotografias que acompanham as respostas dadas está inteira e devidamente traduzida nas respostas dos peritos que a sentença transpôs para os pontos 11 e 12 dos Factos provados?
Vejamos.
Observando qualquer um dos extratos de levantamentos topográficos reproduzidos no relatório pericial, verificamos que, diferentemente do que dão os peritos a entender nas respostas em causa, não há apenas um mas antes dois caminhos que percorrem o prédio dos Réus, o que bem se evidencia pelo facto de, cada um deles, ter uma entrada própria de acesso relativamente aos caminhos públicos que delimitam o referido prédio (como, aliás, também se mostra documentado pelas fotografias efetuadas pelos próprios peritos), sendo que aquele que se inicia pela entrada a sul/poente, onde se mostra colocada uma cancela (foto de fls. 62), depois de percorrer a indicada extensão de 210 metros no sentido poente/nascente entronca no outro caminho que se inicia na entrada situada junto ao entroncamento do caminho público do lugar ... e caminho público vindo do lugar ... reproduzida na foto de fls. 65, do lado superior esquerdo – entrada cuja existência se mostra definitivamente assente no ponto 29 dos Factos provados que não foi por ninguém impugnado –, realidade esta, de dois caminhos diferenciados, que forçoso é refletir na decisão relativa à matéria de facto.
Assim, embora não assista razão aos Recorrentes quando pretendem que seja eliminada qualquer ligação entre o caminho que atravessa o prédio descrito em 1 e o prédio referido em 7, manifestamente lhes assiste razão ao defenderem que a entrada a sul/poente desse prédio não corresponde ao início do caminho mencionado em 11. Isto porque, como se viu, a entrada para tal caminho é uma outra.

Face ao exposto, impõe-se alterar a decisão relativa aos pontos 11 e 12, que, de modo a traduzir corretamente a existência dos dois aludidos caminhos, passarão a conter a seguinte redação:
11 – O prédio descrito em 1) é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, serpenteando esse caminho no aludido prédio, mas tendo o seu começo em caminho público que delimita o prédio referido em 7).
12 – O prédio indicado em 7) tem um caminho com entrada a sul/poente desse prédio e que corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro desse mesmo prédio, numa extensão de 210 metros de comprimento no sentido poente/nascente, caminho esse que vai entroncar no referido em 11) que, por seu turno, se inicia na entrada referida em 29), prosseguindo em direção ao referido entroncamento.

Face ao decidido e para total clarificação da matéria, no elenco dos Factos não provados passará a constar uma nova alínea com o seguinte teor:
l) O caminho mencionado em 11) se inicie na entrada a sul/poente referida em 12).

Isto clarificado, facilmente se percebe que a carta de 27.06.2008, da autoria da testemunha A. M. (à data promitente-vendedor) e dirigida ao Réu, em que aquela testemunha faz referência à necessidade de “desobstrução do portão de acesso à minha Bouça X, pois o Sr. M. B. e agora o Sr. C. A. tinham direito ao acesso por lá, como os partidores de água o têm à muitas gerações (sic)”, referindo mais à frente que “o acesso que bloqueou também é serventia para Bombeiros e ao Monte Y”, é bem reveladora de que a serventia existente no prédio que poucos meses depois foi objeto da escritura pública de compra e venda a favor dos Réus, não era apenas, ao contrário do que aquela testemunha veio transmitir ao tribunal, uma passagem pedonal, iniciada numa “porta de homem”, mas uma passagem que se iniciava num “portão” e que, para além do mais, também era serventia do prédio agora pertencente ao Autor.
E o único portão a que se referem os autos é o já acima referido que se situa junto ao entroncamento dos caminhos públicos e que se mostra devidamente documentado na foto de fls. 65, do lado superior esquerdo, referindo-se todas as testemunhas, nomeadamente a M. L., tal como o próprio Autor na respetiva petição (artigo 23º), à colocação de uma cancela – e não de um portão –, quando pretendem identificar a “obstrução” feita na entrada a sul/poente.
Impõe-se ainda dizer que a menção na escritura de compra e venda do prédio dos Réus correspondente à frase “Que este prédio tem entrada pelo lado poente, conforme o uso e costume” não ficou minimamente clarificada pelo depoimento da testemunha A. M., na medida em que, como mais à frente a referida testemunha explicou, a por ele denominada “porta de homem” que dava acesso à passagem por ele também referida (que segundo o mesmo se encontra vedada com pedra e cimento) se localizaria do lado do portão de ferro que se situa em frente ao entroncamento de dois caminhos públicos.
Ora, como da mera observação dos extratos de levantamento topográficos constantes do relatório pericial junto aos autos resulta, esse lado não corresponde ao lado poente do prédio dos Réus, pelo que o sentido dado pela testemunha à referida menção da escritura não tem um mínimo de correspondência com a letra desta, não excluindo, pois, a verosimilhança do relato efetuado pela já referida testemunha J. S., feitor da Quinta do … e residente numa casa que ali se situa há já 38 anos, que, ao contrário do depoimento de M. L. que, esse sim, nos suscitou, em muitos pontos, sérias dúvidas – nomeadamente por conter afirmações tendentes a favorecer a posição dos Réus que vieram a ser desmentidas pelo seu próprio marido –, se nos afigurou espontâneo, sincero e isento, sendo, por isso, suscetível de fundamentar uma convicção positiva sobre o ponto 30, nos termos que infra se fixarão.
Com efeito, esta testemunha afastou a sugestão de que ia à Bouça de Y cortar mato (“nunca lá fui buscar mato”), bem como a hipótese de ser por este caminho que a madeira cortada era retirada da dita Bouça de Y e, quando colocado perante questão/afirmação suscetível de o induzir a responder que ia de trator buscar mato pelo caminho em causa, aquele corrigiu o seu interlocutor e disse que ia (à Bouça X) de carreta de mão, merecendo-nos pois total credibilidade quando afirmou que cortou muitas vezes mato na Bouça X, sendo “por esse caminho que nós entrávamos e saíamos” para a dita Bouça, explicando cabalmente que o dito caminho – que ao longo do seu depoimento descreveu, referindo com rigor e sem qualquer confusão com qualquer outra localização da respetiva entrada –, nunca deixou de ser usado, para aqueles efeitos, quer no tempo do “sr. Aquitecto” - usufrutuário -, quer no tempo do Sr. A. M., tudo sem deixar de mencionar por sua própria iniciativa que o caminho depois foi melhorado pelo Réu quando este comprou a Bouça X, ali tendo sido posteriormente, em data que não conseguiu precisar, colocada a cancela que lá se encontra, depoimento este que não se mostra abalado pelos elementos probatórios indicados pelos Recorrentes.
A convicção deste Tribunal é, pois, a de que, tal como relatado pela testemunha J. B., o prédio da Bouça das X tinha efetivamente entrada de acesso aberta a sul/poente, entrada essa onde se iniciava um caminho que corria dentro da dita bouça, sendo que tal caminho, como, aliás, se vê do levantamento topográfico mandado elaborar pelo próprio Autor, entroncava num outro que se iniciava no portão referido no ponto 29 dos Factos provados e que prosseguia para norte, continuando no prédio que atualmente pertence ao Autor, mas que, tal como resulta claramente da carta de 27.06.2008, só este último era usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade – entendida esta como a totalidade da Quinta ... -, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais, sendo o depoimento do referido feitor – que no que toca ao Monte Y apenas disse que ali ia “vistoriar, porque na altura dos incêndios, a gente dava sempre por lá uma volta” – manifestamente insuficiente para alicerçar uma convicção no sentido de que, para além daquele a que alude a carta de 27.06.2008, o caminho que se iniciava na entrada onde hoje está colocada a cancela também tivesse sido criado e fosse usado para serventia da totalidade da Quinta ..., nela incluído o prédio do Autor.

Face ao exposto, mantém-se a decisão relativa ao ponto 30, com a clarificação que se impõe relativamente a qual o caminho melhorado, e altera-se a decisão relativa ao ponto 16, passando os referidos pontos a ter a seguinte redação:

30 – Em data não concretamente apurada, os Réus procederam ao melhoramento do caminho que se inicia na entrada a sul/poente.
16 – O caminho que se inicia na entrada referida em 29) desde sempre foi usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade – Quinta ... –, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais.

Face ao decidido e para total clarificação da matéria, no elenco dos Factos não provados passará a constar uma nova alínea com o seguinte teor:
m) O caminho que se inicia na entrada a sul/poente desde sempre tenha sido usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade – Quinta ... -, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais.

Por último, no que toca ao ponto 20, partindo do pressuposto que, pelas razões acima expostas, temos por assente, de que, ao contrário do defendido pelos Réus, a entrada a sul/poente já existia antes da celebração do contrato promessa e considerando que a única testemunha que localizou temporalmente a colocação da cancela numa entrada já existente foi a testemunha M. L., não há razões para alterar a decisão no sentido de a dita cancela só ter sido colocada no início do caminho que tem entrada a poente há cerca de 4/5 anos.
O que, aliás, só reforça a ideia de que o portão obstruído a que alude a carta de 06.2008 era o portão referido no ponto 29 dos Factos provados, sendo ao caminho que nesse portão se inicia que o vendedor do prédio das Bouças e antigo proprietário de ambos os prédios que faziam parte da Quinta do … se referia na aludida carta.
Impõe-se, sim, harmonizar o referido ponto 20 com as alterações introduzidas nos pontos 11 e 12, o que ora se determina, passando aquele ponto a ter a seguinte redação:
20 – Há cerca de 4 ou 5 anos, os Réus colocaram uma cancela, com cerca de 4 metros de largura delimitada por dois tranqueiros em pedra, na entrada localizada a sul/poente do prédio denominado “Bouça X”.

Para uma melhor sistematização, elencar-se-ão de seguida os Factos provados e os Factos não provados em conformidade com o acima decidido.

Factos provados:
1 – Está descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº .../20080619, o prédio rústico de mato e pinhal, denominado “Bouça Y”, situado em X ou Y, freguesia de ..., concelho de Barcelos, onde consta a confrontar do norte com J. P., terrenos da capela de Y, L. C. e D. P., do sul com A. M., do nascente com C. L. e J. B. e do poente com A. R. e A. M., inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., que corresponde ao anterior artigo ...º.
2 – Pela Ap. 62 de 2004-10-21 está registada, a favor do Autor C. A. e de R. A., a aquisição de ½ do prédio descrito em 1) por compra a A. M..
3 - Pela Ap. 17 de 2008-06-19 está registada, a favor do Autor C. A. e de R. A., a aquisição de ½ do prédio descrito em 1) por compra a M. B. e Maria.
4 - Pela Ap. 1558 de 2011-11-22 está registada, a favor do Autor C. A., a aquisição do prédio descrito em 1) por partilha subsequente a divórcio.
5 – C. A. é o titular inscrito, para efeitos fiscais, do prédio rústico situado em Y, união de freguesias de ... e Igreja Nova, concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...º, que corresponde ao antigo artigo ...º, aí constando as seguintes confrontações: do norte com J. P., terreno da capela de Y, L. C. e D. P., do sul com A. M., do nascente com C. L. e J. B. e do poente com A. R. e A. M..
6 – Presentemente, o prédio descrito em 1) confronta do sul com os Réus G. S. e esposa M. C. e com K Sociedade Imobiliária, Ldª.
7 - Está descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº .../20090126, o prédio rústico de mato, pinheiro e eucaliptos, denominado “Bouça X”, situado em Pinheiro, freguesia de ..., concelho de Barcelos, onde consta a área de 20096 m2 e a confrontar do norte com C. A., do sul com caminho, do nascente com M. A. e do poente com A. M., inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ....
8 - Pela Ap. 2464 de 2009-02-19 está registada, a favor dos Réus G. S. e esposa M. C., a aquisição do prédio descrito em 7) por compra a A. M..
9 – G. S. é o titular inscrito, para efeitos fiscais, do prédio rústico situado em …, união de freguesias de ... e Igreja Nova, concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...º, que teve origem no antigo artigo …º, aí constando as seguintes confrontações: do norte com C. A., do sul com caminho, do nascente com M. A. e do poente com A. M..
10 – O prédio descrito em 1) e o prédio descrito em 7) pertenceram a A. M. e faziam parte da denominada “Quinta ...”, sita em ..., Barcelos.
11 – O prédio descrito em 1) é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, serpenteando esse caminho no aludido prédio, mas tendo o seu começo em caminho público que delimita o prédio referido em 7).
12 – O prédio indicado em 7) tem um caminho com entrada a sul poente desse prédio e que corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro desse mesmo prédio, numa extensão de 210 metros de comprimento no sentido poente/nascente, caminho esse que vai entroncar no referido em 11) que, por seu turno, se inicia na entrada referida em 29), prosseguindo em direção ao referido entroncamento.
13 - Até infletir para norte durante cerca de 90 metros, ainda dentro do prédio referido em 7) e depois penetrar no prédio indicado em 1), por onde continua o seu percurso até chegar ao Cruzeiro da Capela de Y, sito na freguesia de ..., Barcelos.
14 – O caminho descrito nos pontos 11) a 13) apresenta-se, de um modo geral, demarcado, sem vegetação a ocupar o seu leito, com excepção de uma pequena extensão junto à linha de água, onde a vegetação não permite identificar os seus limites.
15 – Tal caminho tem uma largura média na ordem dos 3 metros.
16 – O caminho que se inicia na entrada referida em 29) desde sempre foi usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais.
17 – Por escritura pública outorgada no dia 19 de Fevereiro de 2009, no Cartório Notarial do Notário J. C., exarada a fls. 6 a 7 do livro nº 264A, A. M. declarou vender a G. S., que declarou comprar, o prédio rústico denominado “Bouça X”, de mato, pinheiros e eucaliptos, com a área de 2096 m2, situado no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, a confrontar do norte com C. A., do sul com caminho, do nascente com M. A. e do poente com A. M., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº …/....
18 – Mais ficou a constar de tal escritura pública que “este prédio tem entrada pelo lado poente, conforme o uso e costume.”.
19 – Desde a data da aquisição do prédio descrito em 1) e até há cerca de 4 a 5 anos a esta parte, o Autor utilizou o caminho descrito nos pontos 11) a 13) para aceder a pé e de tractor ao prédio enunciado em 1) e para dele retirar mato e outros produtos florestais, de forma contínua, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
20 – Há cerca de 4 ou 5 anos, os Réus colocaram uma cancela, com cerca de 4 metros de largura delimitada por dois tranqueiros em pedra, na entrada localizada a sul/poente do prédio denominado “Bouça X”.
21 – Com tal conduta, os Réus têm impedido o Autor de usar do referido caminho.
22 – O prédio “Bouça X” era naturalmente delimitado pelo seu lado norte por um rego de água.
23 – Esse rego de águas pluviais e outras corre desde o sul (sul/nascente) em direcção a norte (norte/poente) para uma poça existente na Bouça Y.
24 – Tal rego tem o leito perfeitamente demarcado, tem uma extensão de cerca de 164 metros, desde a entrada a sul nas propriedades até desaguar na poça.
25 – Em 2009, aquando da celebração da escritura de compra e venda referida em 17) dos Factos provados, os Réus colocaram marcos, sem a presença do Autor, para norte e nascente do referido rego.
26 – Em 25 de Agosto de 2002, foi outorgado um escrito particular, denominado “Contrato promessa compra e venda”, entre A. M., na qualidade de promitente vendedor, e G. S., na qualidade de promitente comprador, com o seguinte teor:
“(…)
Declara o primeiro pactuante que é dono legítimo e possuidor do prédio rústico denominado Bouça X, situado no Lugar ... da freguesia de ..., inscrito na matriz predial sob o artigo …, a confrontar do norte com M. B., do sul com caminho, nascente M. A. e poente A. M., com a área aproximada de 20 000 metros quadrados.
Que, por si e seus herdeiros ou sucessores se comprometem a vendera ao segundo pactuante, e este promete comprar, livre de quaisquer encargos ou ónus o prédio anteriormente descrito pelo preço de € 22.000,00 (vinte e dois mil euros), quantia que já recebeu integral nesta data de 25 de Agosto de 2002, e a competente escritura pública se realizará logo que seja exigida pelo comprador.

Declarou o segundo pactuante:
Que aceita o presente contrato nas condições exaradas. (…)”.
27 – As assinaturas constantes do escrito supra referido foram notarialmente reconhecidas em 30 de Agosto de 2002.
28 – Imediatamente após a outorga do escrito particular referido em 26), os Réus começaram a usufruir da “Bouça X”, cortando mato e limpando-a.
29 – A Bouça X tinha e tem uma entrada situada junto ao entroncamento do caminho público do lugar ... ao caminho público vindo do lugar ..., que os Réus continuam a poder usar.
30 – Em data não concretamente apurada, os Réus procederam ao melhoramento do caminho que se inicia na entrada a sul/poente.
31 - E realizaram um estradão pelo interior da Bouça X até à entrada mencionada em 29).
32 – Em Julho de 2008, os Réus mandaram efectuar o levantamento topográfico da “Bouças X” que se encontra junto a fls. 42 dos autos.
33 – Em Julho de 2008, o topógrafo B. J., a solicitação do Autor C. A., procedeu à realização de um levantamento topográfico do prédio descrito em 7), representando as delimitações de tal prédio com a área de 20.096 m2.
34 – Foi o Autor C. A. que indicou ao aludido topógrafo as delimitações do prédio descrito em 7), que este fez constar do levantamento topográfico junto a fls. 41 dos autos, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
35 – Os Réus, em circunstâncias não concretamente apuradas, tiveram acesso ao levantamento topográfico referido em 33) e, no momento referido em 25) dos Factos provados, colocaram marcos no limite norte/nascente da “Bouça X” de acordo com o alinhamento traçado no dito levantamento.
36 – Os Réus colocaram quatro marcos na linha divisória identificada no levantamento topográfico mencionado em 33), o primeiro junto do caminho de servidão, o segundo, que se acha tombado, a cerca de 55 metros do primeiro, o terceiro a cerca de 21 metros do segundo e o quarto a cerca de 28,50 metros do terceiro.
37 – Em data não concretamente apurada, o Autor procedeu à vedação de parte da “Bouça do Monte de Y”, existindo um troço de vedação a poente da poça e que termina junto a esta e um muro que se desenvolve ao longo do caminho de servidão a nascente e que termina a cerca de 2,80 metros do primeiro marco supra referido, com cerca de 2 metros de altura e 0,50 metros de espessura.

E, como não provada, a seguinte:
a) Presentemente, o prédio descrito em 1) confronta do poente com K Sociedade Imobiliária, Ldª.
b) Aquando da venda quer ao Autor, quer aos Réus, o anterior proprietário, A. M., fez questão de anotar e avisar a existência do caminho e o direito que o prédio vendido ao Autor tinha desta mesma servidão.
c) O que igualmente havia sido consignado pelo mesmo vendedor aquando da cedência (por contrato de compra e venda) de metade indivisa do prédio identificado em 1) a M. B., no ano de 1994, e onde ficou consignado que tinha direito o comprador a utilizar o caminho da Bouça X para aceder ao prédio Bouça ou Monte Y.
d) O anterior proprietário, A. M. sempre avisou os Réus que a delimitação a norte do prédio Bouça X era pelo rego.
e) Aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda da “Bouça X”, o vendedor A. M. e o G. S. estabeleceram todos os limites da propriedade, de modo que o terreno situado a nascente das poças era delimitado por uma linha recta com início numa ucheira junto do caminho de servidão do monte, a passar paralela pelo poço das águas do castelo, seguindo em linha recta até ao caminho de servidão do Monte Y.
f) O único acesso da “Bouça X” era a entrada dotada de um portão de ferro com a largura aproximada de 2,30 metros, referida em 29) dos factos provados (a referência a 29) corresponde a manifesto lapso).
g) Porque o caminho público de acesso à “Bouça X” estava em muito mau estado, os Réus decidiram construir uma entrada para a Bouça X, do seu lado poente, mais precisamente na ponta aguda que confronta com o início do caminho público do lugar ... ao Monte Y.
h) As obras mencionadas em 30) e 31) dos factos provados ocorreram em 2002/2003.
i) Pelo menos desde a data da outorga do contrato promessa de compra e venda que o Autor e antecessores não passam pela entrada construída pelos Réus para acederem com tractores agrícolas à “Bouça do Monte de Y”.
j) O A. M. entregou aos Réus o levantamento topográfico constante de fls. 41 dos autos.
l) O caminho mencionado em 11) se inicie na entrada a sul/poente referida em 12).
m) O caminho que se inicia na entrada a sul/poente desde sempre tenha sido usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade – Quinta ... -, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais.

- Subsunção jurídica dos factos

São duas as apelações em apreço.
Começando pela do Autor, vejamos, então se os factos definitivamente assentes configuram ou não uma situação de abuso de direito no que toca ao exercício do direito de “demarcação” que através da ação intentada aquele pretendia fazer valer.
Para tal, importa, antes do mais, verificar se em causa está ou não uma típica “ação de demarcação”.
Isto porque, efetivamente, como se diz no Acórdão desta Relação de 18 de dezembro de 2017 (Relatora – Sandra Melo), “a ação de demarcação, apurada a necessidade do estabelecimento das linhas divisória dos prédios, tem particularidades muito interessantes, face às regras gerais aplicáveis às demais”, nomeadamente no que concerne ao recurso, a título principal, a outros meios de prova (nomeadamente testemunhal) diferentes dos próprios títulos dos prédios a demarcar.

Assim, “o modo de realizar a demarcação está regulamentado no art. 1354º CC, em termos de subsidiariedade sucessiva (sublinhado nosso):

1 - em primeira linha, pelos títulos de cada um (se determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário);
2 - na falta ou insuficiência de títulos, pela posse ou pelo que resultar de outros meios de prova;
3 – se a demarcação não puder realizar-se pelos modos indicados em 1 e 2, far-se-à então, distribuindo o terreno em litígio, por partes iguais (art. 1354º nº1 e 2 …)”. (Acórdão do STJ, de 10.05.2012, Relator – Fernando Bento).

Importa, aliás, realçar que, no que toca à típica ação de demarcação, como se refere no citado acórdão do STJ, “controvertida a localização da linha de demarcação, não pode deixar de ser delimitada uma área de terreno que pertence a um prédio ou ao outro, consoante a localização que vier a prevalecer, de acordo com os títulos, na falta ou insuficiência destes, de acordo com a posse que tiver sido exercida sobre essa área ou de acordo com o que resultar de outros meios de prova; se o problema não puder ser resolvido por qualquer destes critérios, resta a solução dita “salomónica” – que, diga-se, de salomónica não tem nada, já que a essência da justiça de Salomão não se baseou na “divisão”… - da divisão em partes iguais”, o que, nomeadamente, implica a necessidade de, em tais ações, inserir na matéria de facto o conteúdo essencial dos títulos no que toca aos limites dos prédios e às áreas aos mesmos respeitantes para através da prova pericial se determinar as estremas que eventualmente se possam extrair de tais títulos.
Só na impossibilidade de assim proceder, poderá o julgador, como já frisamos, recorrer à posse e aos outros meios de prova, meios de prova que, frise-se, incluem as simples presunções a retirar dos factos apurados mediante prova direta.
“O direito a demarcar prédios depende, não tanto da invocação de uma linha de demarcação, mas antes da própria inexistência de demarcação em si - tudo o mais deve ser conhecido pelo próprio tribunal, aplicando, para efeitos da fixação de uma linha de demarcação, os critérios principal e supletivo previstos no citado artº 1354º.” (supra citado Acórdão da Relação do Porto).

Enfim, como se salienta no também já citado Acórdão desta Relação:
“Os títulos existentes é que concorrerão para definição das estremas, e esta definição não faz nascer um novo domínio, respeitando antes o domínio pré-existente.”
Em conclusão, apesar de não haver atualmente um preceito como o contido no anterior art. 1058º do CPC que no seu nº 1 determinava que “na acção de tombamento ou demarcação, os interessados devem apresentar no acto da nomeação de peritos os títulos que tiverem, quando o não hajam feito antes, e os peritos procederão à diligência tendo em atenção o que dos documentos constar”, certo é que, face ao direito substantivo aplicável, a apresentação dos títulos continua a ser essencial numa ação de demarcação, afigurando-se-nos também uma evidência a necessidade de realização de uma perícia – oficiosamente determinada, se as partes o não requererem – para efeito do apuramento de todos os elementos necessários à aplicação do referido art. 1354º do CC.
Face a tudo o que veio de se dizer, só na impossibilidade de proceder à demarcação com base nos títulos se pode realizar a demarcação pela linha que resultar de outros meios de prova, sendo certo que, in casu, não só nenhuma tentativa de demarcação com base nos títulos se empreendeu, como tampouco o Autor procedeu à junção aos autos do seu próprio título de aquisição ou sequer alegou o seu concreto teor, no que toca aos limites e área do seu prédio, o que, desde logo, a considerar-se a presente, em termos substantivos, uma autêntica “ação de demarcação”, imporia a anulação da sentença recorrida com vista à tentativa de determinação da linha de demarcação em função dos títulos – com prévia determinação da junção aos autos do título do Autor –, já que só na hipótese de essa solução se mostrar inviável poderia o tribunal recorrer a “outros meios de prova”, para efeito de determinar a própria existência do direito à demarcação pela linha proposta e, consequentemente, da hipótese de estar em causa uma situação de abuso de tal direito, porquanto nunca poderá falar-se em abuso sem antes se ter afirmado a existência do próprio direito.
Afigura-se-nos, porém, que, no caso, a pretensão do Autor não corresponde àquela típica ação de demarcação, podendo, nessa medida, aceitar-se que a factualidade assente no ponto 22 – O prédio “Bouça X” era naturalmente delimitado pelo seu lado norte por um rego de água – com fundamento em outros meios de prova, que não os títulos, seja suficiente à afirmação da existência do direito do Autor.

Explanando:
Para caracterizar a ação que ora nos ocupa no que àquele concreto pedido de “demarcação” respeita, começar-se-á por traçar a habitual distinção entre ação de demarcação e ação de reivindicação.
Como defendem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 199, de todas as soluções para o problema da distinção entre ambas, “parece-nos a mais correcta a que apresenta como critério para distinguir entre as duas acções a diferença entre um conflito acerca do título e um conflito de prédios. Se as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno ou sobre uma parte dele, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a acção é de reivindicação. Está em causa o próprio título de aquisição. Se, pelo contrário, se não discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, como, por exemplo, se o autor afirma que o título se refere a varas e não a metros ou discute os termos em que deve ser feita a medição, ou, mesmo em relação à usucapião, se não discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio do prédio possuído, a acção já é de demarcação. (…) Esta é, pois, como dizem alguns autores, uma acção de acertamento ou de declaração de extensão de propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição. É por isso que, segundo a tradição justinianeia, esse acertamento pode ter lugar por uma repartição equitativa do terreno em causa (cfr. art. 1354º, nº 2 e 3).”
Todavia, importa também reter que o atual Código Civil se refere apenas à actio finium regundorum, que tem por finalidade “a fixação das estremas de cada prédio, que se destina à regulamentação dos confins, ou seja, à determinação das estremas dos prédios confinantes, quando haja dúvidas acerca dos limites dos prédios” (Autores e obra citada no parágrafo que antecede, pág. 197).
No caso, nem o Autor nem os Réus colocam em causa os títulos aquisitivos invocados, nem invocam a seu favor a usucapião, estando ambas as partes de acordo quanto a serem proprietários de prédios confinantes e sobre os respetivos títulos de aquisição, pelo que em causa não está claramente uma ação de reivindicação. Defende o Autor que o prédio Bouça X sempre foi delimitado pelo seu lado Norte pelo rego de água ou ribeiro que é o único elemento de separação entre o prédio Bouça X e o vizinho Bouça Y, o que apenas contende com a extensão dos prédios de Autor e Réus. Porém, nos termos em que a questão foi colocada, não se vislumbra a alegação, por parte do Autor, de quaisquer dúvidas sobre os limites dos prédios, mas, pelo contrário, a invocação de uma precisa e localizada linha delimitadora.
Ora, sendo esta a posição do Autor e tal como se preconizou no Acórdão desta Relação de Guimarães de 01.03.2018 (Relator – José Amaral), “não se negando que, neste tipo de litígios, mais comum tem sido equacionar-se o problema como de demarcação (no quadro do artº 1353º, do CC) ou de reivindicação (à luz do artº 1311º), afigura-se-nos que, em função da peculiaridade de cada caso concreto mas sobretudo quando, como aqui, não é especialmente em torno da definição e marcação in loco da estrema entre os prédios nem da aquisição do direito real sobre cada um deles que o litígio nasce e se desenvolve, mas apenas da alegação e prova de certa configuração e da precisa e localizada linha delimitadora do terreno, afigura-se-nos, dizíamos, que de nenhuma especificidade típica a acção se reveste, tudo se devendo passar no quadro de normal acção declarativa comum, sem especiais exigências quanto à causa de pedir (35) e ao modo e meios de provar a estrema, inclusive por actos de posse ainda que invocada não seja a usucapião em concreto sobre a faixa disputada ou eles se revelem insuficientes para demonstrar que, relativamente à mesma, aquela foi exercida do modo, pelo tempo e com as características indispensáveis à verificação da prescrição aquisitiva sobre ela”.
Com efeito, como ali se diz, “afinal de contas, a acção de reivindicação e a acção de demarcação apenas no direito substantivo assim são apelidadas (artºs 1311º e 1353º, CC), tendo esta desaparecido do direito processual onde se encontrava prevista entre as acções de arbitramento.”
Ultrapassado este obstáculo e verificada a demonstração pelo Autor da precisa linha de delimitação por si alegada, nada obstaria, então, ao reconhecimento do invocado direito àquela específica demarcação – pressuposto pela sentença recorrida ao afirmar a ocorrência de uma situação de abuso de direito –, cabendo, apenas, aferir da verificação dos requisitos do afirmado abuso determinante da improcedência do pedido em causa, o que em seguida se fará.

Como se sabe, o art. 334º do Cód. Civil reputa de ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.
Analisado o disposto na referida norma legal, conclui-se que o abuso de direito pressupõe logicamente a existência do direito, um direito que, porém, não é exercido de um modo equilibrado, lógico, racional e adequado aos limites impostos pelas conceções ético jurídicas comunitárias e que o legislador consagrou ao definir as finalidades e o âmbito dos vários direitos.
Assim, a figura do abuso de direito configura uma cláusula geral, uma espécie de válvula de segurança por onde se pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social.
A nota típica do abuso de direito reside, pois, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita o fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.
Na verdade, os direitos subjetivos são meios de prossecução e satisfação de necessidades de pessoas (Moitinho de Almeida, in "Do Abuso de Direito", págs. 42 a 45). Daí que, quando se invoque um direito para legitimar um comportamento não ajustado a tal finalidade, essa invocação seja ineficaz, já que esse comportamento não pode traduzir as faculdades em que o direito se analisa.
Como uma modalidade do abuso de direito surge o “venire contra factum proprium”, que pressupõe duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.
A este respeito, citando Baptista Machado, dir-se-á que o “venire” decorre de “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.
No que respeita aos pressupostos deste instituto, salienta Baptista Machado que "a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura. Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação de confiança é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro" (“Tutela da Confiança e Venire contra Factum Proprium", in Obra Dispersa, vol. I, Braga, 1991, pág. 416).
Expostos os traços fundamentais do venire contra factum proprium, vejamos o caso em apreço.
Desde já se dirá que, efetivamente, face aos factos provados, não se pode afirmar a verificação de um venire contra factum proprium.

A este respeito lê-se na sentença recorrida:
(…) a conclusão que se pode retirar do facto de o Autor ter indicado, aquando da realização do levantamento topográfico que mandou efectuar ao prédio dos Réus, que a linha divisória deste face ao seu prédio era a que ficou a constar no dito documento – e que foi respeitada pelos Réus quando colocaram os marcos – é que aquele tinha tal linha como o ponto divisório entre os prédios, o que, aliás, nos parece crível, já que, com a mesma, a área da Bouça X está conforme o título aquisitivo da mesma e a respectiva descrição predial.
Assim, ao vir agora, depois de ter induzido os Réus a proceder à demarcação entre os prédios de acordo com o constante do levantamento topográfico que mandou realizar e que foi efectuado seguindo as suas indicações, alegar e sustentar facto contrário, está o Autor a agir em abuso de direito.
Sucede, porém, que o facto de o Autor ter dado as aludidas indicações ao topógrafo não configura um comportamento que “directa ou indirectamente revele a intenção do agente (o ora Autor/Recorrente) de se considerar vinculado” a no futuro não questionar a demarcação efetuada pelos Réus através da colocação dos marcos no local correspondente à linha delimitadora registada no levantamento topográfico de fls. 41, muito menos se podendo dizer que, por ter dado tal indicação a um topógrafo, o Autor tenha induzido os Réus a proceder à demarcação entre os prédios de acordo com o constante do levantamento topográfico que (aquele, o Autor) mandou realizar, não se vislumbrando nos “Factos provados” qualquer ação do Autor no sentido de levar os Réus a confiar na demarcação constante do levantamento topográfico em causa (que, segundo a sentença recorrida, nem sequer se sabe como lhes chegou às mãos).

É certo que alegaram os Réus, nos artigos 27º a 29º da contestação:
Após essa demarcação, o autor procedeu à vedação de toda a “Bouça do Monte de Y” através da construção de um muro com a altura aproximada a 2 metros e a largura aproximada de 0,50 metros, tendo terminado essa parede do lado nascente/sul, precisamente junto ao primeiro marco colocado pelos réus e referido no antecedente artigo 26º, o que significa que o autor respeitou e aceitou como boa a demarcação feita pelos réus do lado norte/nascente da “Bouça X”, caso contrário, continuaria com o muro até ao início do rego de águas bravas ou ribeiro referido na p.i..
Todavia, o poder revelador da intenção do Autor contido no alegado comportamento, foi totalmente neutralizado pelos termos em que a sentença recorrida considerou provada a matéria de facto a este ponto atinente, na medida em que na dita sentença se decidiu que aquele comportamento ocorreu em data não concretamente apurada, o que inclui a hipótese de ter sido antes da colocação dos marcos pelos Réus, não configurando, pois, um comportamento concludente no sentido da aceitação, por parte do Autor, da linha de demarcação resultante da colocação dos marcos. Acresce que a sentença recorrida restringiu o alegado quanto ao ponto em que terminou a construção do muro (que os Réus alegavam ter sido precisamente junto ao primeiro marco colocado pelos réus), considerando tão só provado que o muro termina a cerca de 2,80 metros do primeiro marco (matéria de facto que tem de se considerar definitivamente assente por não impugnada).
Neste ponto, pensamos ser pedagógico abrir parênteses para enfatizar que a inexistência de uma prova direta dos factos não exime o julgador de, com recurso às presunções assentes na aplicação das regras da normalidade do funcionamento das coisas, tentar extrair dos factos instrumentais que resultam da dita prova direta (por exemplo, vestígios, observados pelos peritos, da demolição de um muro no preciso espaço de 2,80 metros) aquilo que verdadeiramente dá sentido à materialidade alegada, e que, quando assim não sucede, o julgador fica, depois, inelutavelmente condicionado em fase de subsunção jurídica da factualidade apurada.
Não obstante tudo o que se acabou de dizer, cremos que, embora o enquadramento jurídico a efetuar para se alcançar tal solução tenha de ser algo diverso, a intuição da primeira instância quanto à existência de um abuso de direito aponta no sentido correto.
Senão vejamos.
Uma das outras figuras do abuso de direito habitualmente reconhecidas pela doutrina e pela jurisprudência é a neutralização do direito ou Verwirkung.
Para que se verifique a "neutralização do direito", é necessária a combinação de diversas circunstâncias, como de longo tempo sem exercício, de criação de convicção de confiança da contraparte de que já não será exercido, e de exercício tardio a acarretar uma desvantagem maior do que o exercício atempado.
Segundo Menezes Cordeiro, que prefere a designação supressio, esta modalidade do abuso de direito tem na sua base uma realidade social correspondente à “ruptura das expectativas de continuidade da auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, de súbito, o estado gerado” (Da boa fé no direito civil, 2001, pág. 813).
Neste caso, tal como no do venire, é sempre necessário que o não exercício do direito ou a conduta anterior tenham criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que a contraparte tenha investido nessa confiança, ou seja, que a confiança tenha influenciado as decisões da contraparte, assinalando, porém, a este propósito, Baptista Machado (“Tutela da Confiança e Venire contra Factum Proprium", in Obra Dispersa, vol. I, Braga, 1991, pág. 417, nota 84) que “não devem fazer-se exigências excessivas quanto a este pressuposto”, sob pena de o âmbito da responsabilidade pela confiança ficar reduzida em demasia.
A diferenciação da supressio em face do venire contra factum proprium reside na ausência do factum, certo que na primeira há uma mera abstenção, pelo que, em tais casos, a doutrina entende ser de “exigir um decurso significativo de tempo, acompanhado de outras circunstâncias – por exemplo: um conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer – para que se possa falar em confiança justificada de que ele não mais seria exercido”. (Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, pág. 260), sendo de ponderar, segundo Baptista Machado, “além do decurso do tempo, o resultado a que o exercício tardio do direito conduziria e a questão de saber se ainda será exigível da contraparte conformar-se à pretensão do titular do direito e suportar esse resultado” (in obra citada, pág. 422), o que redunda num maior grau de exigência para que esta modalidade do abuso se possa ter por verificada.
Ora, in casu, apesar de não termos o factum para enquadrar a situação num venire contra factum proprium, considerando que, de acordo com a matéria fixada nesta instância, o Autor se manteve inativo desde 2009 – data da colocação dos marcos – até à propositura da presente ação – em janeiro de 2018 – e, por outro lado, que, sendo a demarcação física em causa naturalmente percetível a partir do seu próprio prédio, o natural é que, apesar de não ter ocorrido na sua presença, esse facto fosse do seu conhecimento – tanto mais que na apresentação ao registo da aquisição pelos Réus do prédio ora em causa consta, de forma totalmente transparente, como área adquirida exatamente aquela que resulta do levantamento topográfico por ele mandado elaborar e em conformidade com o qual os Réus procederam à colocação dos aludidos marcos –, forçoso é concluir que desde tal evento o Autor estava na posse dos dados que lhe permitiriam reagir e deduzir contra os Réus a pretensão que, decorridos quase 9 anos da referida colocação de marcos, veio a deduzir nestes autos, podendo, pois, falar-se, face a tal inação, numa confiança justificada da parte dos Réus no sentido de que o Autor estaria conformado com a colocação de marcos por eles feita de acordo com, sublinhe-se mais uma vez, o levantamento topográfico pelo mesmo mandado elaborar e, consequentemente, que o direito deste à demarcação pelo rego de água não mais seria exercido.
Impõe-se, aliás, ponderar que o exercício tardio do aludido direito do Autor conduziria a que os Réus vissem a extensão da sua propriedade reduzida na área que o seu título expressamente lhes outorga, não sendo de considerar exigível àqueles resignarem-se à pretensão do Autor e suportarem esse resultado quase 9 anos decorridos sobre a dita colocação de marcos, com todas as consequências a tal inerentes.
Cremos, pois, configurada uma situação de supressio, conducente à improcedência do pedido em questão.
Face ao exposto, improcede o recurso interposto pelo Autor.
*
Analisemos, agora, o recurso dos Réus e a questão que o mesmo nos coloca sobre a verificação dos pressupostos da constituição da servidão de passagem em crise.

Invoca o Autor a constituição de servidão por “destinação de pai de família”, prevista no art. 1549º do Cód. Civil.

Este, dispõe nos seguintes termos:
“Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão, quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento.”

Os requisitos exigidos pela lei para a constituição da servidão pela aludida forma são pois os seguintes:
- É necessário que os dois prédios em causa tenham pertencido ao mesmo dono;
- Existência de sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos os prédios que revelem serventia de um para com outro, isto é, postos ou deixados com a intenção de assegurar certa utilidade a um, à custa ou por intermédio do outro;
- Inexistência ao tempo da separação de domínio de qualquer convenção em que se tenha declarado coisa diferente. (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, III, pág.`s 632 a 635)
Trata-se de uma servidão voluntária, que se constitui no preciso momento em que os prédios ou as frações de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes; melhor dizendo a servidão assenta num facto voluntário cujos efeitos são determinados por lei.

No caso, é inegável que os prédios em causa pertenceram ao mesmo dono, mas, embora não tenha sido junto qualquer escritura pública relativa a tal facto, de acordo com a alegação do próprio Autor, uma quota parte do direito de propriedade sobre o prédio que agora lhe pertence na totalidade já havia sido vendida a um terceiro, M. B., no ano de 1994 (cfr. art. 15º da petição inicial), verificando-se, através das apresentações constantes do registo predial, que, efetivamente, o ora Autor – que já havia comprado, em 21.10.2004, ½ do direito de propriedade sobre o prédio a que alude nos autos a A. M. –, em 19.06.2008 comprou a outra ½ da ao referido M. B..
Assim sendo, face ao alegado pelo próprio Autor, o seu prédio já havia deixado de pertencer em exclusividade ao então proprietário do prédio dos Réus a partir da venda ocorrida em 1994.
Perante esta realidade, argumentam os Réus/Recorrentes nas respetivas alegações de recurso que, sendo o vendedor, o autor da destinação, proprietário exclusivo de um dos prédios e condómino do outro, não pode ser constituída servidão por destinação do pai de família, por não cumprir os requisitos do disposto no artigo 1549.º do Código Civil, designadamente, porque não estamos perante dois prédios do mesmo dono (…).
Que dizer?
A questão que se coloca é a de saber se a destinação de pai de família poderá operar quando, como sucede in casu, o vendedor (alegado autor da destinação) é proprietário do prédio vendido alegadamente beneficiário da destinação e apenas comproprietário do prédio que, segundo a alegada destinação, ficará a suportar o encargo.
Sobre esta matéria lê-se no acórdão desta Relação, de 15 de outubro de 2013 (Relator – Filipe Caroço), citado pelos Réus/Recorrentes:
“A questão da compropriedade na constituição da servidão por DPF tem vindo a ser discutida há décadas, tanto no direito interno, como noutros países da europa e disso dá conta Tavarela Lobo [16], não sendo unívoca a solução encontrada. As divergências são colocadas, sobretudo, nos casos em que o autor da destinação seja proprietário exclusivo de um dos prédios e condómino do outro. Isto é, saber se o proprietário exclusivo de um dos prédios, só por si e sem o consentimento do seu condómino no outro prédio, pode introduzir uma inovação no estado de facto existente e operar uma destinação relevante, constituindo sobre um dos prédios e em benefício do outro, por exemplo, uma servidão, por exemplo, de passagem.
Para a solução desta questão delinearam-se, essencialmente, duas correntes.
Uma defende que, se a oneração recair sobre o prédio de que o autor é comproprietário, a servidão não se constitui por não ser admissível o prejuízo dos restantes proprietários, mas se a oneração (serventia) recair sobre o prédio de que o autor é proprietário exclusivo em benefício do prédio de que é comproprietário (futuro prédio dominante), fica aberta a porta à constituição a servidão.
Já a orientação contrária, sustentada em doutrina italiana mais recente [17], defende que não é possível a constituição da servidão em qualquer daquelas hipóteses. Esta é a posição também defendida por Tavarela Lobo [18].”
Pires de Lima e Antunes Varela (in CC Anotado, III, pág. 633), também se referem a esta questão dizendo que “é discutível a constituição do encargo quando o autor da destinação ou afectação é proprietário de um dos prédios e comproprietário do outro”.
“Porém”, sublinham os referidos autores, “desde que é perfeitamente concebível a existência de uma verdadeira servidão entre prédios, ou fracções de prédio, nessas condições (…), ao contrário do que sucede com os prédios ou fracções pertencentes ao mesmo dono, essa hipótese escapa ao domínio de aplicação do art. 1549º” (obra e local citados).
Com efeito, para que uma verdadeira servidão exista, é essencial que os dois prédios – o que suporta o encargo e o que aproveita da sua imposição – pertençam a donos diferentes.
Isto porque “a propriedade tem um conteúdo de tal modo rico e elástico que nele cabem todas as faculdades que o seu titular goze em relação à coisa”, pelo que “se o proprietário de um prédio (…) fizer através dele a passagem das pessoas, coisas ou animais utilizados na exploração de um outro prédio, que também seja pertença sua, só impropriamente se diria que ele exerce um direito de servidão sobre o primeiro prédio, visto que para legitimar tal passagem, basta a invocação da sua plena potestas. Ele utiliza os prédios, nesse caso, não iure servitutis, mas iure dominii.
O fundamento da proibição da chamada servidão de proprietário permite traçar ao mesmo tempo os limites a que ela está sujeita.”
Pelo contrário, “(…) nada obsta a que o proprietário de um prédio constitua uma servidão sobre um outro, de que ele seja mero comproprietário, ou a que, inversamente, os comproprietários de certo prédio adquiram uma servidão sobre um outro prédio, pertença exclusiva de um deles” (Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, pág. 617).
E, dizem os referidos autores, nada obstando a que assim seja, quando o autor da destinação ou afetação é proprietário de um dos prédios e comproprietário do outro, “a servidão, nesse caso, só poderá ser constituída por um dos títulos normais, que são os três primeiros referidos no art. 1547º, 1)”, solução a que se adere porquanto a constituição de servidão por destinação de pai de família se destina claramente a colmatar a situação de impossibilidade de constituição de servidão por usucapião de um prédio a favor de outro pelo proprietário de ambos (a referida proibição da “servidão de proprietário”).
Quer isto dizer que, in casu, a destinação de pai de família não podia efetivamente operar em 21.10.2004, aquando da venda ao Autor, pelo referido A. M., de ½ da propriedade sobre o prédio referido em 1).
Isto porque, como se viu, é com a separação de domínio que pode nascer a servidão e, no caso, a separação do domínio terá ocorrido com a alegada venda, pelo referido A. M., a M. B., de metade indivisa do prédio denominado Monte Y. Daí que a pretensão de reconhecimento da constituição da servidão de passagem em causa nunca pudesse deixar de passar pelo apuramento do momento em que se celebrou a referida venda e, sobretudo, pela aferição da existência dos sinais reveladores da serventia do prédio dos Réus em benefício do prédio do Autor em função desse específico momento, sendo ainda relativamente a tal venda que deveria ser demonstrada a inexistência de declaração em sentido contrário na escritura então celebrada.
Ora, assim sendo, temos por certo que, independentemente da existência ou não dos sinais de serventia do prédio dos Réus em relação ao prédio do Autor no momento da referida venda, nunca poderia o ora Recorrente vir a obter o reconhecimento da invocada servidão porquanto o mesmo não tratou de provar, como lhe competia, a verificação do último dos aludidos pressupostos, não tendo demonstrado a única coisa que a esse respeito havia alegado – que no contrato de compra e venda de metade indivisa do prédio identificado em 1) a M. B., no ano de 1994 (…) ficou consignado que tinha direito o comprador a utilizar o caminho da Bouça X para aceder ao prédio Bouça ou Monte Y –, nem tendo sequer procedido à junção do documento em que a dita venda terá sido formalizada.
Mas, ainda que assim não se entendesse, nunca a factualidade apurada nos autos se poderia revelar suficiente para o reconhecimento da constituição, por destinação de pai de família, de uma servidão de passagem, a favor do prédio do Autor e a onerar o prédio dos Réus, que se desenvolve no sentido Poente/Nascente começando a poente no caminho público na entrada existente no prédio dos réus Bouça X.
Como vimos, um dos pressupostos da constituição de servidão por destinação de pai de família é o da existência, à data da separação dominial, de sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos os prédios que revelem serventia de um para com outro, isto é, postos ou deixados com a intenção de assegurar certa utilidade a um, à custa ou por intermédio do outro, sendo que, no caso da pretensão ser, como é a do caso em apreço, a de reconhecimento de uma servidão de passagem com vista a aceder ao prédio beneficiário a partir de um caminho público, os sinais apurados terão de ser reveladores de terem sido postos com uma intenção de assegurar que o acesso ao caminho público se faça, não só por intermédio do prédio que confina com tal caminho, como através da concreta entrada e do preciso percurso indicado como sendo aqueles através dos quais a referida utilidade se alcança.
Por sinais, “entende-se tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar e a tornar possível a servidão”, mas “esses sinais hão-de ser visíveis, permanentes e inequívocos, pois só deste modo poderão indicar a existência de servidão aparente” (Acórdão da Relação de Coimbra de 22.09.2015, Relator – Henrique Antunes), tendo que tornar a servidão patente (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, pág. 582).
Isso mesmo se frisa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Novembro de 2008 (Relator - Nuno Cameira): “é também doutrina corrente que os sinais que atestam a servidão têm de ser inequí­vocos: a visibilidade e a permanência expressamente indicadas no artº 1549º não são mais do que concretizações dessa exigência legal. A este respeito o Dr. Tavarela Lobo, noutra obra da sua autoria (Destinação do Pai de Família – Servidões e Águas, pág. 68) refere que a localização das obras e sinais é importante em matéria de inequi­vocidade, acentuando que umas e outros devem ser inerentes (não estranhos) ao uso da servidão, o meio indispensável para o seu exercício, sem o que a servidão não será aparente.”

Ora, no caso, não só não sabemos, como já referimos, qual o momento em que se terá verificado a separação dominial – por força da alegada venda a M. B. –, como, ainda que demonstrado estivesse que a referida venda ocorreu na alegada data (1994), os próprios sinais invocados pelo Autor e atualmente existentes nunca permitiriam inferir quais os sinais que existiriam àquela data no que respeita ao caminho que se inicia pela entrada a sul/poente e, por maioria de razão, afirmar o significado dos mesmos.

Na realidade, o que se sabe é que:
10 – O prédio descrito em 1) – o do Autor – e o prédio descrito em 7) – o do Réu – pertenceram a A. M. e faziam parte da denominada “Quinta ...”, sita em ..., Barcelos.
11 – O prédio descrito em 1) – o do Autor – é atravessado em toda a sua extensão por um caminho de serventia de bouças, serpenteando esse caminho no aludido prédio, mas tendo o seu começo em caminho público que delimita o prédio referido em 7) – o do Réu.
12 – O prédio indicado em 7) – o do Autor – tem um caminho com entrada a sul/poente desse prédio e que corre em paralelo ao caminho público a sul, por dentro desse mesmo prédio, numa extensão de 210 metros de comprimento no sentido poente/nascente, caminho esse que vai entroncar no referido em 11) que, por seu turno, se inicia na entrada referida em 29), prosseguindo em direção ao referido entroncamento.
13 - Até infletir para norte durante cerca de 90 metros, ainda dentro do prédio referido em 7) e depois penetrar no prédio indicado em 1), por onde continua o seu percurso até chegar ao Cruzeiro da Capela de Y, sito na freguesia de ..., Barcelos.
14 – O caminho descrito nos pontos 11) a 13) apresenta-se, de um modo geral, demarcado, sem vegetação a ocupar o seu leito, com excepção de uma pequena extensão junto à linha de água, onde a vegetação não permite identificar os seus limites.
15 – Tal caminho tem uma largura média na ordem dos 3 metros.
16 – O caminho que se inicia na entrada referida em 29) desde sempre foi usado pelos antecedentes do Autor e dos Réus, antigos donos da Quinta ..., que o criaram, quer para se dirigirem às poças de água existentes na propriedade, quer para transporte de lenhas, madeiras, matos e outros produtos florestais.
30 – Em data não concretamente apurada, os Réus procederam ao melhoramento do caminho que se inicia na entrada a sul/poente.
31 - E realizaram um estradão pelo interior da Bouça X até à entrada mencionada em 29).
20 – Há cerca de 4 ou 5 anos, os Réus colocaram uma cancela, com cerca de 4 metros de largura delimitada por dois tranqueiros em pedra, na entrada localizada a sul/poente do prédio denominado “Bouça X”.

Deste quadro resulta que, não obstante uma primeira aparência de um único caminho – o descrito nos pontos 11 a 13 com as características referidas nos pontos 14 e 15, da pormenorização daquilo que efetivamente é observável o que sobreleva é a existência de dois distintos caminhos, com entradas autónomas, verificando-se que relativamente àquele que se inicia na entrada a sul/poente e que entronca naqueloutro que se inicia na entrada referida no ponto 29, os sinais atualmente existentes nunca permitiriam inferir o que existiria em 1994 (se se viesse a comprovar ser essa a data da separação) em termos de sinais postos com intenção de assegurar a serventia de um prédio para o outro, na medida em que, designadamente, obras de vulto foram, entretanto, ali realizadas, sabendo-se, por outro lado, que ao tempo em que a propriedade de ambos os prédios era do mesmo proprietário, a utilidade de acesso ao caminho público era, comprovadamente, assegurada pelo outro caminho onde aquele que é invocado pelo Autor atualmente entronca, sem necessidade de recurso à entrada a sul/poente e à passagem pelo percurso que a partir daí se desenvolve.
Face a tudo o que se acabou de expor forçoso é julgar improcedente o pedido de reconhecimento da constituição da servidão de passagem por destinação de pai de família.

Procede, pois, a apelação dos Réus.

Sumário:

I – Quando, numa ação em que se pede a demarcação entre prédios por uma determinada linha, não é especialmente em torno da definição e marcação in loco da estrema entre os prédios que o litígio nasce e se desenvolve, mas apenas da alegação e prova de certa configuração e da precisa e localizada linha delimitadora do terreno, de nenhuma especificidade típica a ação em causa se reveste, tudo se devendo passar no quadro de normal ação declarativa comum, sem aplicação ao caso do disposto no art. 1354º CC que determina o modo de realizar a demarcação em termos de subsidiariedade sucessiva;
II – Enquanto o venire contra factum proprium pressupõe duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé, o abuso de direito, na modalidade de neutralização do direito ou supressio, tem na sua base uma realidade social correspondente à “ruptura das expectativas de continuidade da auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, de súbito, o estado gerado”;
III – A diferenciação da supressio em face do venire contra factum proprium reside, pois, na ausência do factum, certo que na primeira há uma mera abstenção, pelo que, em tais casos, se entende ser de “exigir um decurso significativo de tempo, acompanhado de outras circunstâncias – por exemplo: um conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer – para que se possa falar em confiança justificada de que ele não mais seria exercido”;
IV – Nada obsta a que o proprietário de um prédio constitua uma servidão sobre um outro, de que ele seja mero comproprietário, ou a que, inversamente, os comproprietários de certo prédio adquiram uma servidão sobre um outro prédio, pertença exclusiva de um deles e, nada obstando a que assim seja, quando o autor da destinação ou afetação é proprietário de um dos prédios e comproprietário do outro, a servidão, nesse caso, só poderá ser constituída por um dos títulos normais, que são os três primeiros referidos no art. 1547º, 1), do CC, estando excluída a possibilidade de constituição por destinação de pai de família;
V – A servidão por destinação de pai de família constitui-se no preciso momento em que os prédios ou as frações de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes, pelo que que a pretensão de reconhecimento da constituição de uma servidão de passagem com esse fundamento nunca pode deixar de passar pelo apuramento do momento em que se celebrou a separação e pela aferição da existência dos sinais reveladores da serventia em função desse específico momento, sendo ainda relativamente a tal momento que deverá ser demonstrada a inexistência de qualquer convenção em que se tenha declarado coisa diferente.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação do Autor e totalmente procedente a apelação dos Réus, alterando a sentença recorrida no sentido visado por estes últimos e, consequentemente, decidem julgar totalmente improcedente a ação, absolvendo os Réus da totalidade dos pedidos.
Custas da ação e dos recursos pelo Autor.
Guimarães, 28.01.2021

Margarida Sousa Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues