Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7430/13.6TBBRG.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO FINAL
FUNDAMENTOS PARA A NÃO CONCESSÃO DO BENEFÍCIO
INCUMPRIMENTO PELO DEVEDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- O instituto da exoneração do passivo restante tem por fundamento final possibilitar que o devedor, pessoa singular, declarado insolvente, findo o período de cessão e cumpridas com todas as obrigações que lhe foram impostas, fique liberto de todo o passivo que o onera, de modo a permitir a sua integração plena na vida económica, liberto desse passivo.
2- Apenas decorrido o período de cessão, caso não tenha ocorrido a cessação antecipada do procedimento em causa, é que o juiz profere despacho final, concedendo ou não ao devedor o benefício da exoneração.
3- Os fundamentos para a não concessão desse benefício ao devedor são os mesmos da cessação antecipada do procedimento de exoneração.
4- É fundamento de recusa da concessão do benefício da exoneração o incumprimento pelo devedor, com dolo (em qualquer uma das suas modalidades) ou negligência grave (a imprevidência anormal, em que apenas uma pessoa especial e anormalmente desleixada e imprevidente incorreria, e, por isso, merecedora de especial censurabilidade), de qualquer uma das obrigações do art. 239º do CIRE, e que, em consequência dessa conduta omissiva, resulte prejuízo (que não tem de ser relevante) para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
5- O devedor que, ao longo de mais de cinco anos, de forma reiterada e persistente, não entregou à fiduciária o rendimento disponível e que não aproveitou as várias oportunidades que lhe foram concedidas pelo tribunal para que liquidasse as quantias em falta (não liquidando as quantias já em dívida e, quanto ao rendimento disponível que, entretanto, foi recebendo, não o entregando à fiduciária, ou fazendo-o apenas de forma esporádica e em montantes variáveis) e que se limitou a invocar como motivos justificativos dessa sua inadimplência a necessidade de se sustentar e de sustentar os filhos, razões de saúde e de aumento de renda (quando esse sustento lhe estava assegurado pelo rendimento indisponível que lhe foi sendo sucessivamente fixado e aumentado pelo tribunal, onde essas razões de saúde e de aumento de renda também foram consideradas), viola, de forma reiterada e injustificada, e em elevado grau de imprevidência, a principal obrigação que sobre si recaía ao longo do período de cessão e, em consequência da sua conduta omissiva, prejudicou a satisfação dos créditos da insolvência (ao não entregar à fiduciária a quantia global de 27.515,15 euros de rendimento disponível), impondo-se a recusa em conceder-lhe o benefício da exoneração.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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I- RELATÓRIO

AA e mulher, BB, residentes na Rua ..., ... ..., instauraram a presente ação especial de insolvência, requerendo que fossem declarados insolventes e que lhes fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida em 25 de novembro de 2013, transitada em julgado, foi decretada a insolvência dos requerentes.
Por despacho proferido em 21/02/2014, transitado em julgado, admitiu-se liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante formulado pelos devedores, constando aquele da seguinte parte dispositiva:
Assim, admite-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Face ao exposto:
- Determina-se que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – período de cessão -, o rendimento disponível de cada um dos devedores - ou seja, todo aquele que ultrapassar o valor correspondente a € 700,00 (setecentos euros), sendo que o agregado familiar nunca poderá ser privado de um rendimento inferior a € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros) - (cfr. art. 239º, nº 3, do CIRE) - que estes venham a auferir considera-se cedido ao fiduciário;
- Para esse efeito, nomeia-se fiduciário a Administradora da Insolvência nomeada nos presentes autos.
- Proceda-se ao registo e publicação da nomeação do fiduciário, nos termos do art. 38º, n.ºs 2 e 4 e 57º, ex vi do art. 240º, n.º 2, todos do CIRE.
- Advirta o fiduciário nomeado que deverá observar o disposto nos arts. 240º, n.º 2, do CIRE, no que diz respeito à informação anual que deverá prestar ao processo e a cada um dos credores do insolvente e 241º, n.ºs 1 e 2, do CIRE.
- No período da cessão, determina-se que os insolventes fiquem sujeitos às obrigações previstas no n.º 4, do citado art. 239º, do CIRE.

Em 01/06/2016 foi proferida decisão declarando encerrado o processo de insolvência.
Por decisão proferida em 13/11/2018, confirmada por acórdão proferido por esta Relação em 02/05/2019, transitado em julgado, alterou-se o rendimento indisponível fixado ao devedor AA para dois salários mínimos nacionais (um para o seu sustento e outro para o dos filhos).
Em 11/03/2019, a fiduciária informou que, quanto à devedora-mulher, BB, “não foi possível obter documento referente ao período em que decorreu o primeiro ano de cessão, não obstante ter sido notificada para o efeito pela signatária e pelo tribunal”, pelo que, “não se encontram reunidas as condições para que a insolvente mulher mantenha o benefício da exoneração do passivo restante”.
Quanto ao devedor-marido, AA, informou que este, no primeiro ano de cessão, auferiu os rendimentos que consignou no quadro de fls. 272 verso, impondo-se-lhe que tivesse cedido à fidúcia a quantia global de 6.654,57 euros, mas que não cedeu qualquer quantia.
Observado o contraditório, apenas o devedor-marido se pronunciou, por requerimento de 14 de março de 2019, em que  alegou, em suma, que: a sua entidade empregadora procede ao pagamento de um subsídio de estudo, que se destina aos estudos dos filhos, o qual é refletido no seu recibo de vencimento, mas que não se trata de um rendimento seu, mas sim de um subsídio pago para os seus filhos estudarem, o qual ascendeu, no primeiro ano de cessão, a um total de 649,60 euros, e que terá de ser abatido à quantia de 6.654,57 euros indicada pela fiduciária como não tendo sido entregue à fidúcia; que, tendo interposto recurso da decisão proferida pela 1ª Instância em 13/11/2018, pugnando no sentido de que o rendimento indisponível fosse fixado em três salários mínimos nacionais, caso esse recurso proceda, determinará a  redução da quantia a ceder à fiduciária ao montante de 3.442,98 euros.
Requereu que fosse autorizado a pagar a dita quantia de 3.442,98 euros em prestações mensais e sucessivas, no valor máximo de 100,00 euros, por “não dispor de condições económicas que lhe permitam proceder ao pagamento de valor superior. O ora insolvente tem todo o interesse em manter a exoneração do passivo e cumprir de todas as formas. Não agiu o insolvente com dolo ou negligência grave, nem com intenção de prejudicar nenhum credor. Pese embora não tenha cedido mensalmente as quantias devidas, tal apenas se deveu às inúmeras dificuldades económicas que tem vivido por se encontrar sozinho a cuidar dos seus 3 filhos menores e da mãe dos menores não proceder ao pagamento de qualquer valor” (cfr. fls. 279 a 283).
Em 25/03/2019, a fiduciária juntou aos autos o relatório anual sobre o segundo ano do período de cessão, informando que, quanto à devedora-mulher, BB, “não foi possível obter documentação referente ao período em que decorreu o segundo ano de cessão, não obstante ter sido notificada para o efeito pela signatária e pelo tribunal”.
Reafirmou ser seu entendimento não se encontrarem reunidas as condições para que a devedora-mulher mantenha o benefício da exoneração do passivo restante.
Quanto ao devedor marido, AA, informou que o mesmo auferiu os rendimentos que constam do quadro de fls. 287 verso, não tendo cedido qualquer quantia à fidúcia, mantendo por ceder, quanto ao primeiro ano do período de cessão, a quantia de 6.373,67 euros, e quanto ao segundo ano do período de cessão, a quantia de 11.363,59 euros, num total de 17.737,26 euros.
Observado o contraditório, apenas o devedor marido se pronunciou, a fls. 292 a 294, em que manteve o seu requerimento de 14 de março de 2019, no sentido de ser autorizado a pagar a quantia de 3.442,98 euros, relativa ao primeiro ano de cessão, em prestações mensais e sucessivas de 100,00 euros, “por não dispor de condições económicas que lhe permitam proceder ao pagamento de quantia superior”. Reafirmou a sua alegação anterior de que “não agiu com dolo ou negligência grave, nem com a intenção de prejudicar nenhum credor, encontrando-se neste momento a proceder à cessão mensalmente. No entanto, tal apenas e só se deveu ao facto do insolvente ter filhos menores, dependentes de si, não havendo por parte da mãe dos menores o pagamento de qualquer quantia para os seus filhos. Viu-se assim o insolvente impedido de proceder ao pagamento das despesas dos seus filhos e concomitantemente proceder às respetivas entregas”.
De seguida, elencou as despesas que suporta com o seu sustento e o dos filhos e concluiu pedindo que lhe fosse concedido um perdão parcial do montante a ceder, quanto à quantia de 7.500,00 euros, correspondente aos gastos que teve com o sustento com os filhos; e que fosse autorizado a pagar o valor remanescente em prestações mensais e sucessivas de 100,00 euros.
Observado o contraditório quanto à cessação antecipada do procedimento de exoneração quanto à devedora-mulher e em relação à pretensão formulada pelo devedor-marido (fls. 302), o credor Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. requereu que se determinasse a cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante quanto à devedora- mulher, BB; e se suspendesse a determinação da cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante quanto ao devedor-marido, AA, sob condição de proceder ao depósito da quantia em falta relativa ao segundo ano de cessão nos termos que viessem a ser definidos pela fiduciária (cfr. fls. 303 a 305).
Por despacho proferido em 04/06/2019, determinou-se a notificação do devedor-marido para propor um plano para liquidação dos montantes em falta.
Entretanto a fiduciária juntou aos autos, em 17/06/2019, a fls. 315 a 316, o relatório anual quanto ao terceiro ano de período de cessão, em que manteve as informações anteriores quanto à devedora-mulher. Já quanto ao devedor-marido, AA, informou que auferiu, no terceiro ano do período de cessão, os rendimentos que se encontram discriminados no quadro de fls. 316, tendo-lhe feito as entregas, nos meses de novembro e dezembro de 2019, fevereiro, março e abril de 2019, das quantias que discrimina nesse quadro, não tendo, em relação a esse terceiro ano do período de cessão, entregue a quantia de 5.798,43 euros, além de se manter em falta a quantia de 6.373,67 euros, relativa ao primeiro ano do período de cessão, e a quantia de 11.363,59 euros, relativa ao segundo ano, perfazendo a quantia em dívida à fidúcia o montante global de 17.737,26 euros.
Observado o contraditório, apenas o devedor-marido se pronunciou a fls. 319 a 321, reconhecendo encontrar-se em falta o montante global de 17.373,26 euros respeitante aos três anos do período de cessão; e mantendo a sua alegação anterior, de que “não depositou na conta da massa as quantias a que estava obrigado apenas por as suas condições financeiras não o terem permitido. (…). Sendo importante referir que o incumprimento verificado nestes três anos de cessão deveu-se ao facto do insolvente ter de suprir as necessidades básicas dos seus filhos, que, reitere-se, estão única e exclusivamente a seu cargo e que não beneficiam de qualquer ajuda da própria mãe, nem mesmo institucional”.
Concluiu requerendo que fosse autorizado a proceder ao pagamento da quantia em falta em prestações até ao final do período de cessão, mas que essas prestações não fossem determinadas “num montante fixo, uma vez que existem meses em que o ora insolvente tem maior disponibilidade financeira do que outros, nomeadamente meses, como o de setembro, em que tem de comprar todos os materiais escolares, ou por exemplo, meses em que tem de comprar lentes para ele ou para os seus filhos, procedendo assim o insolvente ao pagamento do máximo valor que consiga, de modo a evitar que haja um incumprimento do plano”.
Por despacho proferido em 26/09/2019, autorizou-se “o pagamento do montante em dívida pelo devedor-marido AA, em relação aos 1º, 2º e 3º anos da cessão, no montante de 17.737,26 euros em prestações mensais” (cfr. fls. 326).
Em 29/06/2020, a fiduciária juntou aos autos o relatório anual relativo ao quarto ano do período de cessão, em que manteve a informação anterior quanto à devedora-mulher, de que apesar de a ter notificado, solicitando-lhe os documentos necessários para que pudesse elaborar o relatório anual, mais uma vez não lhe remeteu quaisquer documentos.
Quanto ao devedor-marido, informou que auferiu os rendimentos mensais que constam do quadro de fls. 336, tendo apenas cedido à fidúcia, no mês de julho de 2019, a quantia de 75,16 euros; no mês de setembro de 2019, a quantia de 13,03 euros; no mês de outubro de 2019, a quantia de 156,26 euros; e no mês de janeiro de 2020, a quantia de 77,36 euros, num total de 321,81 euros. Informou ainda não ter aquele entregue à fidúcia relativamente ao enunciado quarto ano do período de cessão a quantia de 3.123,19 euros, além de se manter em dívida: a quantia de 6.373,67 euros relativamente ao 1º ano do período de cessão; a quantia de 11.363,59 euros relativamente ao 2º ano; e a quantia de 5.789,43 euros relativamente ao 3º ano, ascendendo o montante global não cedido à fidúcia à quantia de 26.649,78 euros.
Por requerimento de 11/07/2020, a credora CC requereu que se declarasse a cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante quanto a ambos os devedores (cfr. fls. 339 a 340).
Observado o contraditório, apenas o devedor-marido se pronunciou, mantendo a posição que já antes manifestara, de que ao montante em dívida indicado pela fiduciário em relação ao quarto ano do período de cessão se impõe abater o subsídio de estudo destinado aos seus filhos, no montante global de 321,81 euros; e abatida essa quantia ao montante que se mantém em dívida em relação a esse 4º ano, esta fica reduzida a 2.810,00 euros, quantia essa que transferiu para a conta da massa a 03 e 04 de julho de 2020, conforme documentos que juntou aos autos a fls. 343.
Quanto ao pagamento do valor em falta relativo aos 1º, 2º e 3º anos do período de cessão, alegou ter requerido “o pagamento desses valores em prestações. Contudo, não teve possibilidades económicas que lhe permitissem proceder ao pagamento de qualquer quantia a esse título no decorrer deste ano de cessão. Conforme já se referiu é o ora insolvente quem, sem qualquer ajuda, procede ao pagamento de todas as despesas com os seus filhos, desde despesas com a alimentação, vestuário, saúde, escolares, etc. Além das despesas com os seus filhos, tem também o ora insolvente constantemente despesas de saúde suas, bem como despesas com a casa, tendo tido, no decorrer do 4º ano de cessão despesas, que se juntam sob os documentos n.ºs ..., ... e ... (juntos a fls. 343 verso a 344 dos autos), que não lhe permitiram proceder à entrega da massa de qualquer quantia, além da já paga”.
Reafirmou estar “a fazer todos os esforços no sentido de proceder ao pagamento do valor em falta relativo ao 1º, 2º e 3º ano de cessão, é verdade que não tem sido fácil, face a todas as circunstâncias, no entanto o ora insolvente pretende cumprir”, não tendo existido de sua parte “qualquer incumprimento culposo ou com a intenção de prejudicar credores”.
Por despacho de 07/10/2020, ordenou-se à fiduciária que informasse as quantias que se mostravam em dívida no presente momento, e na afirmativa, quais as razões apresentadas pelo devedor para a não entrega, se é que algo justificou.
Na sequência, a fiduciária, a fls. 351 e 352, informou que, aquando da elaboração do relatório do quarto ano de cessão encontrava-se em incumprimento o montante de 26.649,79 euros, tendo, entretanto, o devedor transferido 410,00 euros, em 06/07/2020; na mesma data a quantia de 2.400,00 euros; e em 20/07/2020, a quantia de 125,00 euros, encontrando-se atualmente em dívida a quantia de 23.714,68 euros.
Por despacho proferido em 19/10/2020, ordenou-se a notificação do devedor para esclarecer o que tivesse por conveniente quanto à sua conduta – falta de entrega das quantias em dívida.
Por requerimento de fls. 355 a 357, o devedor-marido, AA, manteve que as quantias pagas pela sua entidade patronal a título de subsídio de estudos para os filhos devem ser descontadas às quantias a ceder à fidúcia; não ter tido possibilidade de proceder ao pagamento de outras quantias senão as já pagas; manteve a  alegação de que tem de suportar as despesas com o sustento dos filhos, e que no ano de 2019 teve despesas acrescidas com a aquisição de óculos e respetivas lentes para si e para a filha DD, além de ter tido necessidade de adquirir uma máquina de lavar roupa, estando a reunir “todos os esforços no sentido de proceder ao pagamento do valor em falta relativo aos 1º, 2º e 3º anos de cessão até ao final do prazo da exoneração do passivo restante, razão pela qual e por não existir qualquer incumprimento culposo ou com a intenção de prejudicar credores, deverá manter-se a exoneração do passivo restante”.
Requereu a revisão do rendimento disponível para três salários mínimos nacionais.
A fiduciária informou, a fls. 358 e 359, que, no relatório reportado ao terceiro ano do período de cessão, abateu ao rendimento declarado pelo devedor os subsídios de estudo pagos aos filhos deste, o mesmo tendo feito quanto aos restantes anos, encontrando-se em incumprimento o montante global de 23.714,68 euros.
Em 29/10/2020, a fiduciária juntou aos autos, a fls. 360 a 361, novo relatório anual relativo ao quarto ano do período de cessão, em que procedeu ao desconto do subsídio de estudo pago aos filhos do devedor-marido.
Informou que em relação ao primeiro ano de período de cessão está em falta a quantia de 6.3737,67 euros; em relação ao segundo ano, a quantia de 11.363,59 euros; em relação ao terceiro ano, a quantia de 5.789,43 euros; e em relação ao quarto ano, a quantia de 2.842,50 euros, no montante global de 26.369,19 euros.
Por despacho proferido em 15/12/2020, declarou-se a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante quanto à devedor-mulher, BB, e procedeu-se à revisão do rendimento indisponível do devedor-marido, AA, para dois salários mínimos nacionais e meio (cfr. fls. 364 a 365).
Por requerimento de 17/03/2021, o devedor-marido requereu que o rendimento indisponível fosse aumentado para três salários mínimos nacionais, alegando ter mudado de casa, na sequência do que paga atualmente uma renda mensal de 500,00 euros contra os anteriores 310,47 euros mensais, além de lhe ter sido detetada doença do foro oncológico, o que lhe demandou despesas acrescidas com consultas e uma cirurgia (fls. 367 a 372).
Observado o contraditório, não foi deduzida oposição.
Por despacho de 01/06/2021, aumentou-se o rendimento indisponível do devedor-marido para três salários mínimos nacionais, com efeitos a partir de 01/04/2021 (cfr. fls. 376).
Por requerimento de 08/06/2021, o devedor-marido requereu que fosse autorizado a pagar o valor em dívida em prestações mensais e sucessivas no valor mínimo de 150,00 euros, com início no presente mês, alegando ter sido submetido a nova cirurgia e encontrar-se a fazer tratamentos semanais de quimioterapia.
A fiduciária opôs-se ao requerido, alegando que o devedor já beneficiou do pagamento em prestações mensais do montante em dívida relativo aos 1º, 2º e 3º anos do período de cessão, no montante de 17.737,26 euros, de que não aproveitou, antes se tendo verificado o aumento contínuo do montante em incumprimento.
Em 17/06/2021, a fiduciária juntou aos autos, a fls. 384 a 385, o relatório anual relativo ao quinto ano do período de cessão, em que discriminou os rendimentos recebidos pelo devedor nesse ano, concluindo que o valor a ceder ascende a 5.228,07 euros, do que se mantém em dívida a quantia de 2.292,96 euros, a que acresce a quantia de 6.373,67 euros relativa ao primeiro ano do período de cessão; a quantia de 11.363,59 euros, relativa ao segundo ano; a quantia de 5.789,43 euros, relativa ao terceiro ano; e a quantia de 2.842,50 euros relativa ao 5º ano, num montante global de 28.662,15 euros. Deduzido o montante transferido pelo devedor a 09/06/2021, encontra-se atualmente em dívida a quantia de 28.512,51 euros.
Requereu que fosse declarada a cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante quanto ao devedor.
Observado o contraditório, o devedor AA opôs-se ao requerido, sustentando que, “pese embora tenha requerido o pagamento em prestações a realizar até ao final do período de cessão, a verdade é que não conseguiu proceder aos respetivos pagamentos, o que conforme consta dos autos se deve à sua situação familiar, designadamente, ao facto de ter de se sustentar a si e aos filhos sem ajuda de ninguém”, tendo desenvolvido “todos os esforços possíveis para cumprir com as suas obrigações, tendo inclusive entregue à massa insolvente o valor de 5.277,92 euros, conforme consta do relatório de insolvência, pelo que, jamais se poderá aceitar que não cumpriu com os pressupostos inerentes à exoneração do passivo restante”.
Em 08/09/2021, proferiu-se o despacho que se segue:
“Considerando as explicações do devedor, atenta a não oposição dos credores e seguindo critérios de razoabilidade (que não se coadunam com o prolongar da exoneração nos termos requeridos), concedemos até ao final de 2023 ao devedor para repor as quantias em falta, efetuando entregas mensais, semestrais ou anuais, conforme melhor lhe aprouver, esclarecendo-se, no entanto que a 31.12.2013 têm que estar pagas as quantias em falta, com vista a conceder-se o tão almejado recomeço, que a exoneração possibilita” (cfr. fls. 397).
E por despacho de 20/04/2022, ordenou-se a notificação do devedor, da fiduciária e dos credores para se pronunciarem, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 244º, n.º 1 do CIRE, face à entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11/01, e ao disposto no seu art. 10º, n.º 3.
Em 23/01/2022, a fiduciária informou encontrar-se em dívida a quantia de 27.512,15 euros, tendo o devedor entregue em 09/06/2021, a quantia de 150,00 euros; em 20/07/2021 a quantia de 250,00 euros; em 31/08/2021 a quantia de 250,00 euros; em 29/11/2021 a quantia de 250,00 euros; e em ../../2021 a quantia de 250,00 euros, num total de 1.150,00 euros (cfr. fls. 403 e 404).
Notificou-se então os credores e o devedor, nos termos e para efeitos do disposto no n.º 3 do art. 243º do CIRE, para alegar o que tivessem por conveniente atento o incumprimento reportado pela fiduciária (cfr. fls. 405).
O devedor AA respondeu, sustentando não se encontrar em incumprimento dado que lhe foi concedido até ../../2023 para proceder ao pagamento de todas as quantias em falta, afirmando manter o seu propósito de proceder ao pagamento da quantia de 27.512,15 euros em dívida até ao termo daquele prazo que lhe foi concedido (cfr. fls. 407).
Em 08/01/2024, a fiduciária informou manter-se em dívida a quantia de 27.512,15 euros (cfr. fls. 411).
Por requerimento de 10/01/2024, o devedor alegou ser verdade encontrar-se em incumprimento com a entrega da quantia de 27.512,15 euros, mas tal dever-se ao facto de lhe ter sido diagnosticado um tumor na bexiga, o que demanda tratamentos nos quais despende  a quantia mensal de 242,63 euros; os problemas de saúde causam-lhe grande desconforto, com necessidade de se deslocar à casa de banho com mais frequência do que a normal, não conseguindo trabalhar; acresce que a renda da casa sofreu um aumento, no montante de 125,00 euros mensais, e a sua filha encontra-se a estudar na universidade, o que implica também aumento de despesas, o que tudo o impediu de liquidar o valor em falta.
Requereu que se julgasse justificado o incumprimento e lhe fosse perdoada a entrega do valor devido; ou, caso assim não se entendesse, lhe fosse perdoada parcialmente a dívida e lhe fosse concedido novo prazo para entregar à massa insolvente o respetivo valor (cfr. fls. 413).
Por despacho de 05/02/2024, determinou-se que, tendo sido prorrogado o prazo da exoneração até final de 2023, findo esse prazo se desse cumprimento ao disposto no art. 244º, n.º 1 do CIRE, tendo-se presente o disposto no art. 10º, n.º 3 da Lei n.º 9/2022, de 11/01 (cfr. fls. 417).
Cumprido com o determinado, por requerimento de 06/02/2024 o devedor reiterou não ter cumprido devido aos seus problemas de saúde (já antes descritos), ter os filhos a cargo (conforme também antes descrito), concluindo que “não entregou a totalidade do rendimento objeto da cessão porque não pôde, sob pena de colocar em risco a satisfação das necessidades mais básicas dos seus filhos, bem como, a sua própria saúde. Assim, e pese embora não tenha cumprido a totalidade daquilo a que estava obrigado, cumpriu aquilo que à luz do critério estabelecido no art. 487º, n.º 2 do CC lhe era exigível em função das circunstâncias. Razão pela qual, deverá ser concedida a exoneração do passivo restante”.
A fiduciária e a credora Banco 1..., S.A. requereram que fosse recusado ao devedor o benefício da exoneração do passivo restante.
Por despacho proferido em 06/03/2024, a 1ª Instância recusou conceder a exoneração do passivo restante ao devedor AA, constando esse despacho da seguinte parte dispositiva:
“Pelos motivos expostos, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 243º e art. 244º, n.º 2 do CIRE, decide-se não conceder a exoneração do passivo restante ao insolvente AA, com as legais consequências.
Custas do incidente pela massa insolvente (art. 303º do CIRE)”.

Inconformado com o decidido, o devedor AA interpôs recurso, em que formulou as seguintes conclusões:  

A- Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo, que decidiu não conceder a exoneração do passivo restante ao insolvente AA,
B- Decisão com a qual o recorrente não se pode conformar,
C- Entende o recorrente, com a devida vénia por douto entendimento, que se verificam, no processo de formação da convicção do M.M. Juiz a quo, erros na aplicação do Direito.
D- O despacho recorrido é sustentado na convicção de que existiu um incumprimento por parte do devedor, a quem foi concedida uma prorrogação do prazo para repor as quantias que não havia entregue oportunamente e que não aproveitou essa possibilidade,
E- E ainda na premissa errónea de que este violou culposamente os deveres adstritos ao insolvente, uma vez que teve todas as oportunidades para repor as quantias em causa, mas que, acabou por não cumprir.
F- Por sentença de 21 de feveiro de 2014 foi proferido despacho admitindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante,
G- É um facto que o insolvente deveria ter cedido nos cinco anos do período de cessão 33.940,70€, tendo cedido apenas 5.277,92€, faltando entregar 28.512,15€.
H- Pagamento este que o insolvente, pese embora todos os esforços desenvolvidos nesse sentido, não conseguiu realizar.
I- Pois conforme consta dos autos o insolvente enfrentou sérias dificuldades financeiras, desde logo porque tem a seu cargo dois filhos, cujas despesas são única e exclusivamente suportadas pelo insolvente,
J- Além disso, o facto de ter sido diagnosticado ao insolvente uma doença do foro oncológico, que determinou a necessidade de realização de várias cirurgias e tratamentos, causaram também um agravamento da sua situação financeira.
K- A isto tudo acresce o facto de ter sofrido um aumento do valor da renda mensal no valor de 125,00€ e da sua filha DD ter ingressado no ensino superior.
L- Foram diversos os requerimentos juntos aos autos pelo insolvente nos quais dava conta ao tribunal ad quo das suas dificuldades em cumprir com o pagamento do valor a repor à massa insolvente.
M- Requerimentos estes que claramente permitiriam ao tribunal ad quo ajuizar sobre a exigibilidade de uma atuação diferente daquela que o insolvente teve no decurso do período de cessão, no que toca às entregas,
N- E que permitiriam concluir que o insolvente naquelas circunstâncias de vida não conseguiria dar cumprimento às entregas à massa insolvente sob pena de colocar em risco as necessidades mais básicas do seu agregado familiar.
O- O que, conjugado com o facto do comportamento do insolvente ao longo deste processo ter sido pautado por padrões de retidão, transparência e esforço no sentido de cumprir os seus deveres,
P- A única conclusão a que conduziria era de o insolvente não atuou com negligência grave, ou dolo.
Q- E consequentemente teria de determinar a concessão do passivo restante.
R- Face a tais factos, só se poderá concluir que o tribunal a quo ao determinar a não concessão do passivo restante ao recorrente, não fez uma correta interpretação e aplicação do direito.
S- Violou assim, o tribunal ad quo o disposto no artigo 244, nº2, 243 e 239 todos do CIRE.
T- Pelo que, deve a decisão recorrida ser revogada e ser substituída por outra em que seja concedida a exoneração do passivo restante ao insolvente.

TERMOS EM QUE DEVERÁ SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO ORA INTERPOSTO, BEM COMO REVOGADO O DOUTO DESPACHO PROFERIDO PELO MERITÍSSIMO TRIBUNAL A QUO, NOS MOLDES SUPRA ENUNCIADOS, SENDO CONCEDIDA  A EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE AO INSOLVENTE, ASSIM SE FAZENDO, TÃO SOMENTE A HABITUAL E SÃ JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso interposto como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser, nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar uma única questão que consiste em saber se o despacho recorrido (que recusou conceder o benefício da exoneração do passivo restante ao recorrente, com fundamento no art. 244º, n.º 2, ex vi, art. 243º, n.º 1, al. a) do CIRE) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe a sua revogação e conceder-lhe esse benefício.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou como provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão a proferir quanto à decisão final da exoneração (a que, nos termos dos arts. 11º do CIRE e 662º, n.º 1 do CPC, acrescem os factos constantes do “Relatório” acima exarado, por a respetiva prova resultar dos próprios termos do processo):

A- Nos presentes autos foi proferida decisão que decretou a insolvência de AA e de BB (fls. 31 e ss.).
B- Foi deferida liminarmente a exoneração do passivo restante, a fls. 141 e ss..
C- Em 01/06/2016 foi encerrado o processo de insolvência após realização do rateio.
D- Em 15/12/2020 foi declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração relativamente à insolvente BB.
E- Relativamente ao insolvente AA, o processo prosseguiu.
F- Do último relatório, relativo ao 5º ano de cessão, apresentado em 17/06/2021, e de acordo com os rendimentos declarados pelo devedor, o rendimento objeto de cessão no período correspondente ao quinto e último ano da exoneração ascendeu a € 5.228,07.
G- Desse relatório consta também que o devedor deveria ter cedido nos cinco anos do período de cessão € 33.940,07, tendo cedido apenas € 5.277,92, faltando entregar € 28.512,15.
H- Em 21/06/2021, o insolvente requereu a liquidação do valor em dívida em prestações mensais e sucessivas no valor de 250,00€ mensais.
I- Em 08/09/2021 foi proferido despacho no qual se concedeu até final de 2023 para o devedor repor as quantias em falta, efetuando entregas mensais, semestrais ou anuais, conforme melhor lhe aprouvesse, esclarecendo-se, no entanto, que a 31.12.2023 teriam que estar pagas as quantias em falta, com vista a conceder-se o tão almejado recomeço, que a exoneração possibilita.
J- O valor em dívida nessa data era de € 28.512,15 (relatório anual apresentado em 17/06/2021).
K- Em 23/01/2023 foi reportado que o insolvente apenas havia entregue a quantia de €1.150,00, encontrando-se em falta o valor de € 27.512,15. Os pagamentos foram efetuados entre ../../2021 e ../../2021.
L- Em 30/01/2023, o insolvente veio alegar que pretendia pagar a quantia em causa até ao final do ano de 2023.
M- O credor Banco 1... requereu que fosse declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
N- Por despacho de 16/02/2023, o Tribunal decidiu aguardar pelo termo do prazo concedido ao insolvente para efetuar os pagamentos.
O- Em 08/01/2024, a fiduciária apresentou requerimento informando que o insolvente nada mais pagou desde ../../2021.
P- O insolvente apresentou requerimento, em 10/01/2024, alegando novamente incapacidade económica e razões de saúde para proceder ao não pagamento do valor remanescente, de € 27.512,15.
Q- Até final do ano de 2023, o insolvente não entregou mais nenhuma quantia à fiduciária (cfr. relatório de 08/01/2024).
R- O credor Banco 1..., em 14/02/2024, veio requerer a recusa da exoneração.
S- A fiduciária, em 07/02/2024, pronunciou-se pela não concessão da exoneração.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Tendo a 1ª Instância proferido decisão final recusando a concessão ao recorrente do benefício da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no art. 244º, n.º 2, ex vi, art. 243º, n.º 1, al. a) do CIRE, imputa este ao assim decidido erro de direito, alegando não se encontrarem preenchidos os pressupostos legais que permitiam essa decisão. E isto porque a decisão recorrida “é sustentada na convicção de que existiu um incumprimento por parte do devedor, a quem foi concedida uma prorrogação do prazo para repor as quantias que não havia entregue oportunamente e que não aproveitou essa possibilidade”, bem como “na premissa errónea de que este violou culposamente os deveres adstritos  ao insolvente, uma vez que teve todas as oportunidades para repor as quantias em causa, mas acabou por não cumprir”, quando o mesmo não entregou à fiduciária a quantia de 27.512,15 euros (quantia essa que efetivamente não entregou, e não a quantia de 28.512,15 euros, conforme por erro de escrita se escreve nas alegações de recurso). Explicou que “pese embora todos os esforços desenvolvidos nesse sentido, não o conseguiu, pois que, conforme consta dos autos, enfrentou sérias dificuldades financeiras, desde logo porque tem a cargo dois filhos, cujas despesas são, única e exclusivamente, suportadas por si, além de que lhe foi diagnosticado uma doença do foro oncológico, que determinou a necessidade de realizar várias cirurgias e tratamentos, o que causou também um agravamento da sua situação financeira, a que tudo acresce o facto de ter sofrido um aumento mensal no valor da renda de 125,00 euros e da sua filha DD ter ingressado no ensino superior”, pelo que não lhe era exigível “uma atuação diferente daquele que teve no decurso do período de cessão, sob pena de colocar em risco as necessidades mais básicas do seu agregado familiar”.
Conclui, em suma, que, apesar de durante os cinco anos do período de cessão não ter entregue confessadamente à fiduciária a quantia global de 27.512,15 euros, esse seu comportamento omissivo não lhe pode ser imputado a título culpa e, muito menos, a título de dolo ou com grave negligência, conforme é exigido pelo art. 244º, n.º 2, ex vi, art. 243º, n.º 1, al. a) do CIRE, para que lhe possa ser recusada a concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
A bem decidirmos a questão decidenda colocada pelo recorrente no âmbito do presente recurso, importa traçar, ainda que em traços gerais, o regime jurídico do instituto da exoneração do passivo restante e enunciar quais as finalidades prosseguidas pelo legislador com a instituição do mesmo.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º do CIRE, a que se reportam todos os dispositivos legais que se venham a referir sem menção em contrário), pelo que, o principal objetivo do processo de insolvência é a satisfação dos interesses dos credores do devedor.
Esse objetivo é reafirmado no ponto 3º do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, em que se obtempera que “o objetivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Acontece que, inspirado no modelo do fresh start, com origem no ordenamento jurídico norte-americano (Bankruptcy Act de 1898), depois incorporado na legislação alemã (§§ 286 a 303 da InsO), o CIRE, no Título XII, introduziu na ordem jurídica nacional, em relação às insolvências de pessoas singulares, o instituto da exoneração do passivo restante, regulando-o nos arts. 235º a 248º, o qual permite aos devedores, pessoas singulares, declarados insolventes, quando a insolvência ocorra em determinadas condições e mediante o cumprimento de determinados requisitos e obrigações, libertarem-se das dívidas que os onerem e que não sejam satisfeitas pelo produto da liquidação da massa insolvente e pelos rendimentos que cedam ao fiduciário durante o denominado período de cessão, a fim de recomeçarem de novo, sem elas, a sua vida económica, e em que, consequentemente, se prossegue primacialmente o interesse do devedor declarado insolvente.
O princípio do fresh start consubstancia o princípio fundamental e básico do instituto de exoneração do passivo restante, ao permitir ao devedor, pessoa singular, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente liquidados no processo de insolvência ou no denominado período de cessão, salvo os indicados no n.º 2 do art. 245º.
O instituto da exoneração configura, assim, “uma medida de proteção” do devedor, pessoa singular, cujo objetivo primordial é reabilitá-lo e dar-lhe “uma segunda oportunidade, para que possa recomeçar a sua vida” económica, liberto das dívidas que não foram satisfeitas no âmbito do processo de insolvência, nem no denominado período de cessão, evitando-se a sua “indigência que nada beneficia a sociedade”[2].
Trata-se, em rigor, de uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária relativamente às causas extintivas que se encontram tipificadas nos arts. 837º a 874º do CC, em que o principal interesse nele tutelado é o do devedor.
Daí que no instituto de exoneração se assista a uma “colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro (…) da proteção geral do património; do outro, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, de proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)”[3].
Precisamente porque o instituto em causa tem subjacente uma colisão de direitos constitucionalmente protegidos e exige a consequente concordância prática dos diversos direitos conflituantes, procurando-se, em primeira linha, salvaguardar os interesses do devedor/insolvente e, a título secundário, os dos credores, é indiscutível que se está perante um instituto de exceção, que não consubstancia, nem pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor”[4], sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ao se postergar injustificadamente os direitos de crédito que assistem aos credores e de se banalizar o próprio instituto da exoneração, ao qual todos recorreriam, sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que a exoneração tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, nem que o processo judicial possa ser uma porta aberta para se atingir semelhante desiderato.
Por isso, compreende-se que no ordenamento jurídico nacional o instituto da exoneração não assente num modelo de puro fresh start, mas antes no modelo derivado do earned start ou da reabilitação, nos termos do qual o devedor, pessoa singular, declarado insolvente não pode ser exonerado das suas dívidas em quaisquer circunstâncias, dado que, em princípio, os contratos são para cumprir (art. 406º, n.º 1 do CC): o benefício em causa pode apenas ser-lhe concedido quando não se prove que adotou uma das condutas ou que se verificam quanto a ele uma das situações anteriores à declaração da sua insolvência, que se encontram taxativamente tipificadas no n.º 1 do art. 186º, n.º 1, geradoras de indeferimento liminar do pedido da exoneração.
Depois, deferido liminarmente o pedido da exoneração, o devedor terá de passar por uma espécie de período de prova (o período de cessão), durante o qual parte dos seus rendimentos (rendimento disponível) será afetada ao pagamento das dívidas da insolvência remanescentes, isto é, que não obtiveram pagamento no âmbito do processo de insolvência mediante a liquidação da massa insolvente, e em que fica sujeito a um conjunto de obrigações, que terá de cumprir, demonstrando que é merecedor (“earn”) do perdão de dívida em causa.
Por isso é que, apenas findo o período de cessação e verificado que seja que o devedor cumpriu com todas as suas obrigações, a exoneração lhe poderá ser concedida, caso naturalmente se verifique que é merecedor (“earn”) desse perdão de dívida por ter cumprido com todas as obrigações que lhe foram impostas[5].
Deste modo, atenta a colisão de direitos de credores e devedor e a ratio que está subjacente ao instituto da exoneração, para que esse benefício seja concedido ao devedor, pessoa singular, declarado insolvente, é necessário que antes do processo de insolvência, durante o mesmo e, bem assim, até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que confira a exoneração (art. 246º, n.ºs 1 e 2 do CIRE), o devedor justifique ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”[6] a sua vida económica liberto das anteriores dívidas que o oneravam.
Para que o benefício da exoneração seja concedido ao devedor este terá, assim, de percorrer um processo próprio, onde se destacam, como principais fases: o pedido de exoneração, o despacho liminar ou inicial e o despacho final.
O pedido de concessão do benefício de exoneração do passivo restante tem de ser formulado pelo devedor na petição inicial com que se apresenta à insolvência ou, na hipótese de a insolvência ter sido requerida por um dos legitimados indicados no art. 20º, n.º do CIRE, tem de ser formulado pelo devedor demandado (para o caso de vir a ser declarado insolvente) no prazo de dez dias, a contar da sua citação para o processo de insolvência (art. 236º, n.º 1 do CIRE).
Não sendo o pedido deduzido pelo devedor que se apresente à insolvência na petição inicial, ou no prazo de dez dias a contar da sua citação para o processo em que é requerida a declaração da sua insolvência, aquele ainda poderá requerer a concessão desse benefício: até ao encerramento da assembleia de credores destinada a apreciar o relatório emitido pelo administrador da insolvência a que alude o art. 155º; ou, no caso de dispensa de realização dessa assembleia, após os 60 dias subsequentes à sentença que o declarou insolvente. Mas nesses casos, em que o pedido é formulado durante o denominado período intermédio, o juiz decide livremente sobre a admissão ou não do pedido (art. 236º, n.º 1, parte final).
Depois da realização da assembleia de credores para apreciar o relatório a que alude o art. 155º, o pedido de concessão do benefício de exoneração é sempre rejeitado, por ser intempestivo.
Acresce precisar que o pedido de exoneração, ainda que tempestivamente deduzido e ainda que tenha sido liminarmente admitido pelo tribunal e ainda que, inclusivamente, já se encontre em curso o período de cessão, porque totalmente incompatível com a aprovação e homologação de um plano de pagamento (art. 237º, al. c)) - porquanto, os efeitos da exoneração já resultam da homologação do plano de pagamento (art. 198º, al. c)) -, terá de ser rejeitado sempre que for apresentado um plano de pagamento, salvo se o devedor, aquando da sua apresentação, declare que pretende que lhe seja concedido o benefício da exoneração na hipótese de o plano que apresentou não ser aprovado (art. 254º).
Quanto ao conteúdo do requerimento em que solicita a concessão do benefício de exoneração do passivo restante, o devedor tem de declarar expressamente que preenche os requisitos para que esse benefício lhe seja concedido e em como se dispõe a observar todas as condições e obrigações decorrentes da sua concessão (n.º 3 do art. 236º).
Perante esse pedido, exceto quando seja apresentado fora do prazo legal ou de no processo já constarem documento ou documentos autênticos comprovativos da verificação de algum dos fundamentos de indeferimento liminar taxativamente previstos nas diversas alíneas do n.º 1, do art. 238º do CIRE -, em que o juiz deverá logo indeferir liminarmente o pedido de exoneração, ouvidos os credores e o administrador da insolvência (n.º 4 do art. 236º) -, o julgador profere despacho liminar, pronunciando-se sobre a admissibilidade liminar (ou não) do pedido, consoante se encontre, ou não, preenchido um dos fundamentos de indeferimento liminar taxativamente enunciados nas diversas alíneas do n.º 1, do art. 238º.
No caso de deferimento liminar do pedido de exoneração, o julgador fixa as condições que o devedor terá de cumprir durante o período de cessão (arts. 237º, al. b) e 239º do CIRE).
O despacho inicial tem, assim, como único objetivo a aferição da existência de condições mínimas, a ser emitido segundo um juízo de prognose e prova sumária, que justificam que ao devedor deva ser dada uma oportunidade de se submeter a uma espécie de período de prova - o período de cessão - que, uma vez terminado, pode resultar (ou não) na concessão do benefício de exoneração do passivo restante e, no caso positivo, fixar as obrigações a que fica adstrito durante esse período (arts. 239º, 244º e 245º do CIRE).
Frise-se que, apesar de não existir unanimidade jurisprudencial a esse respeito, é atualmente largamente maioritária a corrente segundo a qual não impende sobre o devedor, pessoa singular, requerente do benefício da exoneração, o ónus da alegação e da prova de facticidade de onde decorra não se encontrarem preenchidos nenhum dos fundamentos previstos no n.º 1 do art. 238º de indeferimento liminar do pedido de exoneração, mas, sem prejuízo do princípio do inquisitório que assiste ao julgador (art. 11º), é antes sobre os interessados, ou seja, sobre os credores e o administrador da insolvência, que impende o ónus alegatório e probatório de facticidade integrativa de um dos fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração taxativamente previstos numa das alíneas do n.º 1 do art. 238º, dado tratar-se de matéria de exceção ao direito que assiste ao devedor em ser-lhe concedido o benefício de exoneração[7].
Por conseguinte, o deferimento liminar do pedido de exoneração não significa que esse benefício venha efetivamente a ser concedido ao devedor, mas apenas tem o alcance de que existem condições para proferir o despacho inicial, em que se determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – período de cessão (n.º 2 do art. 239º) -, o mesmo fica sujeito a uma espécie de período de prova, se fixa o rendimento disponível que aquele terá de ceder durante o período em causa a uma entidade, denominado fiduciário, e em que se estabelecem os comportamentos a que fica adstrito durante esse período.
Apenas findo o período de cessão, caso, entretanto, não tenha sido decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243º), é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão (ou não) da exoneração do passivo restante ao devedor (arts. 239º, n.ºs 2, 3 e 4 e 244º, n.º 1 do CIRE)[8].
Dito por outras palavras, o despacho inicial que defere liminarmente o pedido de exoneração “só promete conceder a exoneração efetiva se o devedor, ao longo” do período de cessão, observar certos comportamentos que lhe são impostos. A concessão efetiva da exoneração depende, pois, da verificação dessas condições (…) e é decidida no despacho regulado no art. 244º se, entretanto, não tiver havido cessão antecipada do procedimento da exoneração, nos termos do art. 243º[9].
Conforme já referido, na sequência da entrada em vigor, em 11/04/2022, da Lei n.º 9/2022, de 11/01, que alterou a redação do n.º 2 do art. 239º do CIRE, e face à aplicabilidade imediata do regime jurídico instituído pela nova Lei aos processos de insolvência pendentes (arts. 10º e 11º da Lei n.º 9/2022, de 11/01), o período de cessão passou a ter uma duração imperativa de três anos a contar do encerramento do processo de insolvência.
Durante o período de cessão o devedor fica obrigado a cumprir uma série de obrigações entre as quais avulta a de entregar o rendimento disponível ao fiduciário, que constitui a sua obrigação principal (n.ºs 2 a 4 do art. 239º do CIRE).
Por “rendimento disponível”, tal como decorre do n.º 3, do art. 239º, não se entende o rendimento em sentido técnico, posto que no mencionado conceito está englobado todo e qualquer acréscimo patrimonial que advenha ao devedor durante o período de cessão, com exceção dos créditos e despesas previstos nas als. a) e b), desse n.º 3, que integram o denominado “rendimento indisponível”.
Destarte, uma vez descontado o “rendimento indisponível”, durante o período de cessão, o devedor terá de ceder “imediatamente” (al. c), do n.º 4, do art. 239º) ao fiduciário todos os rendimentos que receba após a prolação do despacho liminar de deferimento do benefício da exoneração e logo que o processo de insolvência seja encerrado (é com o encerramento do processo de insolvência, relembra-se, que se inicia o período de cessão no caso do pedido da exoneração ter sido liminarmente deferido), qualquer que seja a sua fonte, quer se trate de rendimentos recebidos a título oneroso ou gratuito, nomeadamente, rendimentos do trabalho, subsídio de férias, de natal, rendas, subsídio de desemprego, pensões de reforma, etc., mas também bens que adquira, designadamente, por herança, doação, etc.
Acresce dizer que, durante o período de cessão o devedor fica  sujeito a um conjunto de deveres acessórios de conduta fixados no n.º 4 do art. 239º, que se destinam a assegurar a efetiva concretização da cedência (e controlo) pelo devedor do rendimento disponível ao fiduciário[10].
Integra o rendimento indisponível do devedor e que, portanto, tem de ser descontado aos acréscimos patrimoniais que lhe advenham durante o período de cessão, por não integrar o rendimento disponível a ser cedido ao fiduciário: os “créditos a que se refere o art. 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz” (al. a), do n.º 3, do art. 239º) e “Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor” (al. b), do n.º 3, do art. 239º).
As exclusões previstas nos pontos i) e ii), do  n.º 3 do art. 239º, conforme obtemperam Carvalho Fernandes e João Labareda[11], decorrem da chamada função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular, visando o legislador obstar a que o devedor/insolvente seja privado dos rendimentos razoavelmente necessários para o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar; e dos necessários para que possa continuar a exercer a sua atividade profissional, com o que seria colocado em crise, não só a sua subsistência e a do seu agregado familiar, como os interesses dos próprios credores, uma vez que o devedor ficaria sem meios físicos e anímicos que lhe permitissem trabalhar (e, assim, granjear rendimentos para prover ao seu próprio sustento e do seu agregado familiar e que, adicionalmente, lhe permitissem satisfazer os créditos da insolvência que permanecessem insatisfeitos na sequência da liquidação da massa insolvente, sabendo-se que, na generalidade das situações, a principal fonte de rendimentos das pessoas é o trabalho).
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, conforme já referido, o despacho liminar de deferimento do pedido da exoneração constitui uma mera promessa de que será concedido ao devedor, pessoa singular, declarado insolvente, o benefício em causa caso, durante o período de cessão, cumpra com as imposições que lhe foram impostas nesse despacho.
Apenas findo o período de cessão é que, após ter ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz profere despacho final concedendo (ou não) o benefício de exoneração (art. 244º, n.º 1), caso naturalmente não tenha ocorrido a cessação antecipada desse incidente, nos termos do art. 243º.
Para que o juiz possa decidir pela recusa da exoneração é necessário que estejam preenchidos os mesmos fundamentos e requisitos previstos para a recusa antecipada da exoneração (art. 244º, n.º 2), taxativamente enunciados no art. 243º, n.º 1, onde consta a violação pelo devedor, com dolo ou negligência grave, de alguma das obrigações a que está sujeito por força do art. 239º, desde que essa satisfação prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência (art. 243º, n.º 1, al. a)).
Na decisão recorrida, a 1ª Instância considerou estarem preenchidos os requisitos legais previstos no enunciado art. 243º, n.º 1, al. a) e, em consequência, recusou a concessão ao recorrente do benefício da exoneração.
O recorrente não se conforma com o decidido, imputando-lhe erro de direito, advogando que, apesar de não ter entregue, ao longo dos cinco anos do período de cessão, à fiduciária a quantia global de 27.512,15 euros, essa sua conduta omissiva não lhe pode ser assacada a título de culpa e, muito menos, a título de dolo ou com negligência grave.
Com efeito deveu-se à circunstância de, apesar dos esforços que desenvolveu para cumprir, enfrentou sérias dificuldades financeiras, decorrentes de: ter dois filhos a cargo, que tem de sustentar, sem o apoio de quem quer que seja; ter sido confrontado com uma doença do foro oncológico, que demandou a realização de várias cirurgias e tratamentos, com os inerentes custos acrescidos e agravamento da sua situação financeira; ter sofrido um aumento mensal no valor da renda de 125,00 euros; e, finalmente, o ingresso da sua filha no ensino superior. Isto tudo o terá impedido de poder cumprir, sob pena de colocar em risco as suas necessidades mais básicas e as dos filhos, mas antecipe-se desde já, sem fundamento fáctico nem jurídico, conforme se passa a demonstrar.
Conforme já enunciado, durante o período de cessão a principal obrigação do devedor é a de ceder “imediatamente” ao fiduciário todo rendimento disponível que venha a receber, qualquer que seja a sua natureza e origem, com exceção dos créditos e despesas previstas nas als. a) e b) do n.º 3 do art. 239º (arts. 239º, n.ºs 2, 3 e 4, al. c)), de modo que as demais obrigações enunciadas nas restantes alíneas do n.º 4 do art. 239º que sobre ele recaem constituem deveres acessórios tendentes a salvaguardar e a controlar o cumprimento daquela obrigação principal.
No caso dos autos, tendo requerido a concessão do benefício da exoneração do passivo restantes esse pedido veio a ser liminarmente admitido por despacho de 21/02/2014, em que se fixou ao recorrente, a título de rendimento indisponível, a quantia mensal de 700,00 euros, com a salvaguarda de que o seu agregado familiar, composto então pelo próprio, pela mulher e pelos filhos, nunca podia ser privado de um rendimento inferior a 1.400,00 euros mensais.
Tendo o processo de insolvência sido encerrado em 01/06/2016 e iniciando-se, portanto, o período de cessão, que na altura era de cinco anos, por decisão proferida em 13/11/2018, confirmada por acórdão desta Relação de 02/05/2019, aumentou-se o rendimento indisponível do recorrente, a pedido deste, para dois salários mínimos nacionais (um para o seu próprio sustento e outro para o dos filhos).
Acontece que, apresentado, em 11/03/2019, o relatório anual respeitante ao primeiro ano do período de cessão, verificou-se que o recorrente nenhuma quantia cedeu à fiduciária, apesar de se encontrar obrigado a entregar-lhe a quantia de 6.645,57 euros a título de rendimento disponível. E, uma vez observado o contraditório, veio alegar que tinha interposto recurso e que, no caso de procedência deste, a quantia a ceder ficaria reduzida a 3.442,98 euros; e passou a justificar o seu incumprimento com as inúmeras dificuldades económicas com que se viu confrontado, decorrentes de se ter de sustentar e aos três filhos menores, sem o apoio económico de ninguém, incluindo o da sua progenitora. Pediu, por isso, que fosse autorizado a pagar a quantia em falta em prestações mensais e sucessivas de cem euros.
Ora, salvo o devido respeito por entendimento contrário, ao apresentar as pretensas justificações acabadas de referir para o seu comportamento omissivo e, bem assim, ao apresentar  o enunciado pedido de pagamento das quantias não entregues à fiduciária em prestações mensais de escassos cem euros, o recorrente olvidou ou desconsiderou que o sustento minimamente condigno do mesmo e dos filhos lhes estava necessariamente salvaguardado com a fixação pelo tribunal do denominado rendimento indisponível. Com efeito, este não era, naturalmente, aquele a que o próprio e o seu agregado familiar estavam eventualmente habituados antes da declaração da insolvência, porque tal violaria, não só o princípio da igualdade, como também porque eventualmente esse padrão de vida poderá ter contribuído para que se atingisse a sua atual situação de insolvência[12]; e sempre postergaria frontalmente o comando do art. 238º, n.º 3, al. i), que é expresso no sentido de que o rendimento indisponível a ser fixado ao devedor se destina a salvaguardar “o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, ou seja, o que é estritamente indispensável para que lhes seja assegurada um existência minimamente condigna. Assim, salvo o devido respeito por opinião contrária, não só os motivos justificativos apresentados pelo recorrente se mostram insubsistentes, como ao apresentá-los, e ao pedido de pagamento do valor em falta em prestações mensais de escassos cem euros, o recorrente denota não ter apreendido os propósitos que subjazem ao instituto da exoneração.
Aliás, apesar de afirmar o contrário, esse seu comportamento omissivo, que perdurou ao longo de todo o primeiro ano do período de cessão, denota que injustificada e com negligência grave (porque em elevado grau imprudente e, por isso, censurável em grau elevado), incumpriu com o dever principal que sobre si recaía durante o período de cessão, que era o de entregar imediatamente à fiduciária o rendimento disponível logo que o recebesse (isto é, no final de cada mês do ano em causa, posto que em todos eles existia rendimento disponível a ceder à fiduciária).
Acresce que, junto aos autos, em 25/03/2029, o relatório anual relativo ao segundo ano do período de cessão, verifica-se não só que o recorrente não liquidou qualquer quantia por conta do montante em falta relativo ao primeiro ano do período de cessão, como também nenhuma quantia cedeu à fiduciária relativa a esse segundo ano do período de cessão, apesar de em todos os meses do ano em causa existirem quantias por eles a serem cedidas à fiduciária, ascendendo o montante global do rendimento disponível a ser por ele cedido, nesse segundo ano, à quantia de 11.363,59 euros. E, uma vez observado o contraditório, veio justificar-se com as mesmas alegações insubsistente relativas à necessidade de se sustentar e de ter de sustentar os filhos, reiterando, pois, os mesmos argumentos (a propósito dos quais já nos pronunciamos).
Ademais, tendo o credor Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. requerido que se suspendesse a determinação da cessação antecipada do procedimento de exoneração quanto ao mesmo, sob a condição de proceder ao depósito da quantia em falta relativa ao segundo ano de cessão, nos termos que viessem ser definidos pelo tribunal, e a 1ª Instância  notificado para que propusesse um plano de liquidação das quantias que não tinha entregue, isto é, um plano razoável que pudesse ser justificadamente aceite pelos seus credores (o que, atento os padrões de normalidade e de razoabilidade, naturalmente não se compadecia com a proposta apresentada de liquidar os valores em falta em prestações mensais de escassos cem euros), o recorrente: não apresentou qualquer plano de pagamento que à luz do regime do instituto da exoneração pudesse ser aceite; e, quanto ao terceiro ano do período de cessão, apesar de ter recebido as quantias mensais que se encontram discriminadas no quadro de fls. 316 (que lhe impunha a cedência à fiduciária, em todos os meses desse ano, as quantias identificadas nesse quadro, as quais perfaziam a quantia global de 7.810,43 euros), apenas cedeu à fiduciária 2.021,00 euros, fazendo a primeira cedência em dezembro de 2016, ou seja, mantendo a sua situação de incumprimento injustificado e gravemente negligente da principal obrigação que sobre si recaía ao longo de dois anos e meio.
Acresce que, a partir do mês de dezembro de 2016, o recorrente passou a ceder à fiduciária as quantias que entendeu (por norma, inferiores ao rendimento disponível, ou seja, às devidas) e quando entendeu, como foi o caso do mês de fevereiro de 2019, em que nenhuma entrega fez à fiduciária, apesar de lhe dever ter entregue 22,40 euros. E nada liquidou à fiduciária por conta das quantias não entregues relativos ao primeiro e ao segundo anos do período de cessão.
Observado o contraditório, o recorrente, mais uma vez, pretendeu justificar o seu comportamento omissivo com a necessidade de garantir o seu sustento e o dos filhos, a propósito do que já nos pronunciámos.
Reiterou, como já vinha fazendo, pretender “cumprir com a obrigação que lhe foi imposta”, apesar da sua conduta reiterada e injustificadamente omissiva e gravemente negligente, que perdurava já ao longo de três anos desmentir o propósito que assim manifestou.
Requereu que fosse autorizado a pagar as quantias não satisfeitas até ao termo do período de cessão, em moldes como lhe aprouvesse, isto é, em prestações, sem montante e prazo de vencimento fixos, mas em função das suas disponibilidades, o que naturalmente, em princípio, não se mostra conforme aos objetivos prosseguidos pelo legislador com o instituto da exoneração.
Não obstante, por despacho proferido em 26/09/2019, o recorrente foi efetivamente autorizado a pagar as quantias em falta quanto aos primeiro, segundo e terceiro anos do período de cessão, no montante global de 17.737,26 euros, em prestações mensais, sem que o tribunal lhe tivesse fixado o respetivo montante mensal, que ficou assim ao seu critério e disponibilidade, o que constituiu um considerável benefício para o mesmo (com o inerente prejuízo dos seus credores), o que tudo não ignorava, nem podia ignorar, mas de que não aproveitou.
Com efeito, decorrido quase um ano sobre o assim decidido, não só o recorrente nada liquidou à fiduciária por conta do rendimento disponível em falta quanto aos primeiro, segundo e terceiro anos do período de cessão, como, quanto ao quarto ano desse período, apesar de ter recebido as quantias que se encontram discriminadas no quadro de fls. 336 (que o obrigavam a ceder à fiduciária a quantia global de 3.444,91 euros), apenas cedeu escassos 321,81 euros.
Mais uma vez, observado o contraditório, o recorrente continuou a justificar-se com os mesmos argumentos infundados de ter de prover ao seu sustento e ao dos filhos. Aliás, juntou dois talões de transferência para a conta da fiduciária: uma realizada em 03/07/2020, em que transferiu 410,00 euros; e outra, realizada em 04/07/2020, em que transferiu 2.400,00 euros (cfr. fls. 343); e reiterou pretender “cumprir com todos os pressupostos inerentes à exoneração do passivo restante”, como “o pagamento do valor de 2.810,00 euros é prova disso”, acrescentando estar “a fazer todos os esforços no sentido de proceder ao pagamento do valor em falta relativo ao 1º, 2º e 3º ano de cessão”, não existindo da sua parte  “qualquer incumprimento culposo, ou intenção de prejudicar credores”.
Ora, conforme antedito, a sua conduta, persistente e injustificadamente omissiva e gravemente negligente, que perdurava já ao longo de quatro anos, demonstrava precisamente o contrário dos intentos por si manifestados.
De resto, alegando despesas acrescidas com a aquisição de óculos e lentes para si e para os filhos, bem como aumento de despesas com o seu sustento e o dos últimos, em 26/10/2020, o recorrente requereu que o rendimento indisponível que lhe fora fixado fosse aumentado para três salários mínimos nacionais; e essa pretensão acabou por ser parcialmente deferida, por despacho proferido em 15/12/2020, em que o rendimento em causa lhe foi aumentado para 2,5 salários mínimos nacionais.
E tendo, em 17/03/2021, requerido nova atualização do rendimento indisponível para três salários mínimos nacionais, em virtude de ter mudado de casa, passando a pagar 500,00 euros mensais de renda, contra os anteriores 310,47 euros, e de lhe ter sido diagnosticada doença do forço oncológico, que demandou várias consultas e uma cirurgia, por despacho de 01/06/2021 o recorrente viu o rendimento indisponível ser aumentado para três salários mínimos nacionais, tudo sem sucesso ao nível do cumprimento da obrigação principal que sobre si recaía durante o período de cessão.
Com efeito, junto aos autos o relatório anual relativo ao quinto ano do período de cessão, verificou-se que o recorrente nada liquidou à fiduciária por conta da quantia em falta relativa: ao primeiro ano do período de cessão, no montante de 6.373,67 euros; ao segundo ano do período de cessão, no montante de 11.363,59 euros; ao terceiro ano do período de cessão, no montante de 5.789,43 euros; e ao quarto ano do mesmo período, no montante de 2.842,50 euros (cfr. relatório de fls. 360 a 361 com o de fls. 384 a 385).
Acresce que, tendo no quinto ano do período de cessão recebido os rendimentos que se encontram discriminados no quadro de fls. 384 verso a 385 (que o obrigava a ceder à fiduciária as quantias que também aí se encontram identificadas, no montante global de 5.228,07 euros), o recorrente não entregou a quantia de 2.292,96 euros, na sequência do que a fiduciária requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração, alegando que o incumprimento daquele se mostrava “reiterado desde o início do período de cessão”.
Sucede que, observado o contraditório, o recorrente veio novamente alegar os mesmos motivos pretensamente justificativos para a sua conduta omissiva, atinente às necessidades de se sustentar e de sustentar os filhos (a propósito do que já nos pronunciámos, no sentido da sua improcedência), acrescentando os decorrentes da doença do foro oncológico que, entretanto, o afetou, fundamento este igualmente insubsistente uma vez que foi considerado aquando do aumento do rendimento indisponível para três salários mínimos nacionais.
Mais uma vez, o recorrente requereu que fosse autorizado a pagar os valores não entregues à fiduciária em prestações mensais e sucessivas, agora no montante de 250,00 euros mensais (cfr. fls. 389), na sequência do que, por despacho de 08/09/2021, foi autorizado a liquidar os valores em falta até ao final de 2023, “efetuando entregas mensais, semestrais ou anuais, conforme melhor lhe aprouver, esclarecendo no entanto, que a 31/12/2023 têm que estar pagas as quantias em falta, com vista a conceder-se o tão almejado recomeço, que a exoneração possibilita” (cfr. fls. 389 e 397).
Esta decisão, sem dúvida alguma, constituiu um benefício verdadeiramente excecional para o recorrente (com o inerente prejuízo para os seus credores), que se insere nos limites admissíveis dos fundamentos que presidem ao instituto da exoneração;  e que apenas se mostra  compreensível pelo propósito manifesto prosseguido pelo tribunal de lhe facultar todas as oportunidades e condições para que cumprisse, de modo a ser-lhe concedido o benefício da exoneração, mas que o mesmo novamente não aproveitou.
Com efeito, em 23/01/2023, encontrava-se em falta, a título de rendimento disponível não entregue pelo recorrente à fiduciária nos primeiro a quinto anos do período da cessão, a quantia global de 27.512,15 euros (cfr. fls. 404) e notificado aquele para informasse o que tivesse por conveniente, atento o incumprimento reportado pela fiduciária (cfr. fls. 405), veio alegar, em 30/01/2023, não ser certo estar em incumprimento, posto que lhe foi concedido até ../../2023 para liquidar todas as quantias em falta (cfr. fls. 407).
Acontece que, em 10/01/2024, mantinha-se por liquidar à fiduciária os mesmos 27.512, 15 euros (cfr. fls. 411 a 413).
Observado o contraditório, o recorrente procurou justificar a sua inadimplência de mais de cinco anos com as necessidade de se sustentar e de sustentar os filhos e com os acréscimo de despesas com a sua doença, a propósito do que já nos pronunciamos, no sentido de que essas pretensas justificações se mostram improcedentes: ao longo de, pelo menos, três anos o recorrente não alegou qualquer situação de doença, mas apenas a necessidade de se sustentar e de sustentar os filhos; e esse sustento, reafirma-se, sempre lhes esteve assegurado pelo rendimento indisponível que lhe foi sendo fixado pelo tribunal; e quanto às despesas acrescidas decorrentes da sua situação de doença, estas foram consideradas aquando do aumento do rendimento indisponível para três salários mínimos nacionais.
Aliás, se a sua situação de doença do recorrente se agravou e se a sua filha ingressou no ensino universitário durante o período de cessão, com eventuais despesas acrescidas daí decorrentes, impunha-se que tivesse requerido ao tribunal que lhe fosse aumentado o rendimento indisponível, alegando e provando a pertinente facticidade.
Decorre do que se vem dizendo que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente: por um lado, não lhe foi dada uma só prorrogação do prazo para repor as quantias em dívidas relativas ao rendimento disponível que não entregou à fiduciária nos primeiro a quinto anos do período de cessão, mas múltiplas (a maioria das quais, por inércia do tribunal a quo), incluindo, duas oportunidades expressas, a última das quais, a de fls. 397, nas condições verdadeiramente vantajosas e excecionais que já se deixaram enunciadas, em que lhe foi facultada a possibilidade de repor essas quantias não liquidadas nas condições que lhe aprouvesse (nos limites do admissível atentos os objetivos prosseguidos pelo legislador com o instituto da exoneração), contanto que o fizesse até ao final de 2023, oportunidade que o mesmo desperdiçou, como já tinha desperdiçado as anteriores concedidas; e, por outro, aquele, sem qualquer fundamento justificativo válido, ao longo de mais de cinco anos, com negligência grosseira, evidenciadora de elevado grau de imprudência (em que apenas incorrem as pessoas anormalmente imprevidentes e, por isso, merecedora de forte censurabilidade)[13], em manifesto prejuízo dos seus credores, que se viram privados do rendimento indisponível que tinha de entregar à fiduciária mensalmente e imediatamente (para que lhes desse pagamento em relação aos créditos insatisfeitos com a liquidação da massa insolvente, uma vez satisfeitas os pagamentos previstos no art. 241º, n.º 1, als. a), b) e c)), incumpriu a obrigação principal que sobre si recaía, de precisamente, durante o período de cessão, entregar à fiduciária o rendimento disponível que recebesse, imediatamente, logo que o recebesse (isto é, no termo de cada um dos meses em que recebeu esse rendimento), o que não fez.
Daí que o recorrente, com culpa grave, evidenciada pelo seu persistente, reiterado e injustificado comportamento inadimplente, que se prolongou ao longo de mais de cinco anos, incumpriu a obrigação principal do art. 239º n.ºs 2, 3 e 4, al. c) que sobre si recaía e que lhe impunha, durante o período de cessão, o ónus de entregar imediatamente à fiduciária, quando por si recebida, a parte do rendimento objeto da cessão (rendimento disponível), o que não fez. E isso apesar das múltiplas oportunidades e, inclusivamente, facilidades (em detrimento dos seus credores) que a 1ª Instância lhe concedeu, não regularizando sucessivamente os incumprimentos registados, incorrendo em sucessivos novos incumprimentos (quando  aos anos de cessão que então se encontravam em curso), quando as propostas por ele sugeridas foram aceites pelo tribunal, o qual, no despacho proferido em 8/09/2021, lhe concedeu inclusivamente facilidades de pagamento das quantias em falta superiores às que por ele foram pedidas,  e de que o mesmo não soube aproveitar, prejudicando, em consequência desse seu comportamento omissivo indevido - em montante, aliás, relevante (27.512,15 euros) - a satisfação dos créditos sobre a insolvência[14].
Decorre do excurso antecedente, improcederem todos os fundamentos de recurso invocados pelo recorrente, impondo-se julgar improcedente o presente recurso e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
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Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- O instituto da exoneração do passivo restante tem por fundamento final possibilitar que o devedor, pessoa singular, declarado insolvente, findo o período de cessão e cumpridas com todas as obrigações que lhe foram impostas, fique liberto de todo o passivo que o onera, de modo a permitir a sua integração plena na vida económica, liberto desse passivo.
2- Apenas decorrido o período de cessão, caso não tenha ocorrido a cessação antecipada do procedimento em causa, é que o juiz profere despacho final, concedendo ou não ao devedor o benefício da exoneração.
3- Os fundamentos para a não concessão desse benefício ao devedor são os mesmos da cessação antecipada do procedimento de exoneração.
4- É fundamento de recusa da concessão do benefício da exoneração o incumprimento pelo devedor, com dolo (em qualquer uma das suas modalidades) ou negligência grave (a imprevidência anormal, em que apenas uma pessoa especial e anormalmente desleixada e imprevidente incorreria, e, por isso, merecedora de especial censurabilidade), de qualquer uma das obrigações do art. 239º do CIRE, e que, em consequência dessa conduta omissiva, resulte prejuízo (que não tem de ser relevante) para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
5- O devedor que, ao longo de mais de cinco anos, de forma reiterada e persistente, não entregou à fiduciária o rendimento disponível e que não aproveitou as várias oportunidades que lhe foram concedidas pelo tribunal para que liquidasse as quantias em falta (não liquidando as quantias já em dívida e, quanto ao rendimento disponível que, entretanto, foi recebendo, não o entregando à fiduciária, ou fazendo-o apenas de forma esporádica e em montantes variáveis) e que se limitou a invocar como motivos justificativos dessa sua inadimplência a necessidade de se sustentar e de sustentar os filhos, razões de saúde e de aumento de renda (quando esse sustento lhe estava assegurado pelo rendimento indisponível que lhe foi sendo sucessivamente fixado e aumentado pelo tribunal, onde essas razões de saúde e de aumento de renda também foram consideradas), viola, de forma reiterada e injustificada, e em elevado grau de imprevidência, a principal obrigação que sobre si recaía ao longo do período de cessão e, em consequência da sua  conduta omissiva, prejudicou a satisfação dos créditos da insolvência (ao não entregar à fiduciária a quantia global de 27.515,15 euros de rendimento disponível), impondo-se a recusa em conceder-lhe o benefício da exoneração.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.
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Custas da apelação pelo recorrente AA, que nele decaiu, tendo ficado vencido (arts. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 29 de maio de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Alexandra Maria Viana Parente Lopes – 1ª Adjunta
Maria João Marques Pinto de Matos – 2ª Adjunta


 
[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2016, 4ª ed., Almedina, pág. 535; no mesmo sentido, Luís Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 4ª ed., págs. 236 e ss.; Catarina Serra, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2008, 3ª ed. Almedina, págs. 102 e 103.
[3] Paulo Mota Pinto, “Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade”, no “III Congresso de Direito da Insolvência”, Almedina, 2015, págs. 187 e 194.
[4] Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito de Insolvência”, 2016, 2ª ed., pág. 584.
[5] Catarina Serra, ob. cit., pág. 559.
[6] Luís M. Martins, ob. cit. pág. 535; Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1.
[7] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 855; Acs. STJ., de 19/04/2012, Proc. 434/11.5TJCBR-D.C1-S1; RG., de 22/06/2023, Proc. 1824/20.8T8GMR.G1; R.P., de 27/09/2011, Proc. 3713/10.5TBVLG-E.P1; R.C., de 07/03/2017, Proc. 2891/16.4T8VIS.C1.
[8] Ac. RC. de 03/06/2014, Proc. 747/11.6TBTNV-J.C1.
[9] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 853.
[10] Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., pág. 859 a 860, onde ponderam: “O n.º 4 impõe ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efetiva prossecução dos fins a que é dirigida. Neste plano, e para esses fins, importa, desde logo, que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efetivamente auferidos pelo devedor. Assim, não devendo este ocultá-los ou dissimulá-los, está ainda obrigado a prestar todas as informações que aquelas entidades lhe solicitem, não só quanto aos rendimentos, mas também quanto ao seu património (als. a) e d)). Na generalidade das pessoas, o trabalho é a fonte normal e mais significativa dos seus rendimentos. Daí, a preocupação que o n.º 4 revela quanto a este ponto. Para além de impor ao devedor a obrigação de exercer uma atividade remunerada, proibindo-lhe o seu abandono injustificado, determina que, ocorrendo uma mudança de empresa onde exerce a sua atividade, deve informar o tribunal e o fiduciário, no prazo de dez dias. Mas para além disso, se ocorrer uma situação de desemprego, o devedor está obrigado a (als. b) e d)): a) procurar diligentemente novo emprego, informando, no prazo de dez dias, o fiduciário e o tribunal do que para tanto tenha diligenciado, se lhe for solicitado; b) não recusar, salvo se ocorrer fundamento razoável, qualquer emprego para que tenha aptidão. No sentido de permitir ao fiduciário o desempenho da função que primordialmente lhe compete – pagamento à custa dos rendimentos cedidos -, a al. c) do n.º 4 impõe ao devedor a obrigação de «entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão»”.
[11] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 859.
[12] Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., pág. 628 e 629: “Quanto ao limite mínimo do que seja razoavelmente necessário para o sustento, o art. 239º, 3, b, i) pouca ajuda dá ao intérprete. Várias alternativas têm sido propostas, mas não parece aceitável que se estabeleçam distinções em relação ao que é minimamente digno atendendo aos padrões de vida seguidos pelo devedor e seu agregado familiar antes da declaração da insolvência. Não só porque isso violaria o princípio da igualdade, como também porque tais padrões poderão ter ajudado a atingir a situação de insolvência”
[13] Ac. R.P, de 06/04/217, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1
[14] Ac. R.C., de 22/11/2016, Proc. 152/13.0TBMIR.C1, em que se lê que: “Nos termos do art. 243º, n.º 1, al. a), do CIRE, aquela cessão ocorre quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma daquelas obrigações e, com isso, prejudicar a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Diferentemente da revogação da exoneração já concedida (art. 246º daquela lei), em que se exige o dolo do devedor e um prejuízo relevante, no caso de cessação antecipada do procedimento admite-se, além do dolo, a negligência grave e o prejuízo não tem de ser relevante.
Em igual sentido Acs. RG., de 14/06/2018, Proc. 4706/15.1T8V.G1; RC., de 07/04/2016, Proc. 07/04/2016, Proc. 3112/13.TJCBR.C1; R.E., de 02/10/2018, Proc. 114/12.4TBFTR-E.E1; Marco Carvalho Gonçalves, “Processos de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais”, Almedina, 2023, pág. 652.