Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5919/20.0T8BRG.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO EX-CASAL
RELAÇÃO DE BENS
COMUNICABILIDADE
PATRIMÓNIO COMUM
DÍVIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - No processo de inventário subsequente ao decretamento do divórcio não são relacionados os bens próprios de cada um dos cônjuges, mesmo que se encontrem na posse daquele que não é o seu proprietário, visto que ele tem normalmente por finalidade a partilha dos bens comuns do casal.
II - A Relação não pode, através de presunção judicial, deduzir dos factos provados um outro que a 1.ª instância julgou não provado.
III - A presunção de comunicabilidade estabelecida no artigo 1725.º do Código Civil pressupõe um cenário dúvida, isto é, uma concreta situação de facto em que não se consegue alcançar um patamar mínimo de certeza quanto à natureza própria ou comum do bem móvel. Nesse caso a dúvida é resolvida em favor do casal.
IV - Para que possa ter relevância no processo de inventário subsequente ao decretamento do divórcio, não basta que o cabeça-de-casal alegue que na pendência do casamento um dos cônjuges obteve determinado rendimento, que tem a natureza de bem comum do casal. É ainda necessário que alegue, e se necessário prove, que o respetivo valor ainda existia no momento definido no n.º 1 do artigo 1789.º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
AA instaurou o presente inventário, subsequente ao decretamento do divórcio, para a partilha dos bens comuns, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Braga, no qual o requerido BB é cabeça-de-casal.
Após a apresentação da relação de bens, a requerente reclamou alegando a existência de 125 verbas de bens comuns e a inexistência da sua dívida para com o património comum que foi relacionada.
O cabeça-de-casal apresentou então nova relação de bens, em que reconheceu haver alguns bens comuns. Relacionou esses bens e uma dívida da "requerente ao património comum" proveniente do recebimento das "rendas da ..., do Prédio em Propriedade Horizontal, sito na Rua ..., ..., ..., entre janeiro de 2005 e abril de 2016, no valor de € 41.627,47".
A requerente tomou posição quanto a esta nova relação de bens continuando a afirmar que há mais bens comuns e mantendo que não existe a sua alegada dívida.

Após a produção de prova, o Meritíssimo Juiz proferiu a seguinte decisão:
"Termos em que se decide julgar improcedente a reclamação de bens e determinar:
1. A remessa das partes para os meios comuns relativamente ao veículo ... matrícula ..-..-QV.
2. O valor de € 15.487,50 como o relativo à dívida da reclamante ao património comum a título de rendas.
3. Absolver o Cabeça-de-casal do demais peticionado."
Inconformada com esta decisão, dela a requerente interpôs recurso, findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
1- Na sentença recorrida, além das verbas 1 a 16 que foram relacionadas como ativo pelo cabeça de casal a sentença recorrida entendeu que todos os bens que a aqui recorreu reclamou e que deviam fazer parte da relação de bens, não deverão ser relacionados.
2- Sendo certo que, o cabeça de casal reconhece que as verbas 126 a 148 da reclamação da requerente existem mas que pretensamente desconhece o seu paradeiro.
3- Logo estes bens deverão ser relacionados, já que, não ficou provado que a recorrente os levou aquando da separação de facto.
4- Também deverão ser relacionadas as verbas constantes da reclamação à relação de bens sob os números 1 a 15, 19, 21, 28 a 31, 33, 34, 35, 40, 42 a 46, 48 a 52, 55 a 67, 69, 86, 87, 95, 96, 97, 104 e 105 pois o requerido não provou que os mesmos são bens próprios do mesmo, pelo que, deveria a sentença recorrida ter feito uso da presunção de comunhão quanto aos bens móveis que terão que ser considerados como adquiridos na constância do matrimónio - cfr. art.º 1724.º, al. b) do C.Civil.
5- E o mesmo se diga quanto à questão das verbas 16 a 18, 20, 36, 37, 39, 99, 100 e 123 que não ficou provado que pertencessem a terceiros, pelo que, também aqui deveria a sentença recorrida ter feito uso da presunção de comunhão quanto aos bens móveis que terão que ser considerados como adquiridos na constância do matrimónio - cfr. art.º 1724.º, al. b) do C.Civil.
6- Entende assim a aqui Recorrente que a sentença recorrida violou o disposto art.º 1724.º, al. b) do C.Civil e no art.º 342.º do Código Civil.
7- Por outro lado, não se pode aceitar que as rendas recebidas pela aqui Recorrente nos anos de 2004 a 2015 devam ser considerados como frutos civis que deverão ser partilhados, referindo a sentença recorrida de forma completamente surpreendente e fazendo uso de uma jurisprudência nunca vista que a recorrente não provou que os mesmos terão sido gastos em proveito comum do casal.
8- Ora, o cabeça de casal, não provou que o valor das rendas existia à data do divórcio e fazendo eco do exposto na sentença quanto ás contas bancárias "para além do mais importa não olvidar o disposto no art. 1789.º, n.º 1, segunda parte segundo o qual os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, in casu, 6.5.2016."
9- Em 06/05/2016 não está provado que existia a quantia de € 30.975,00 de rendas do imóvel que era bem próprio da aqui Recorrente, bem pelo contrário consta de forma clara que as contas do casal não possuíam qualquer saldo ou estavam encerradas em 06/05/2016.
10- Pelo que a sentença recorrida violou o art. 1789.º do Código Civil.
O requerido contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.

As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) "as verbas 126 a 148 da reclamação da requerente (…) deverão ser relacionadas"[2];
b) "deverão ser relacionadas as verbas constantes da reclamação à relação de bens sob os números 1 a 15, 19, 21, 28 a 31, 33, 34, 35, 40, 42 a 46, 48 a 52, 55 a 67, 69, 86, 87, 95, 96, 97, 104 e 105", bem como as "verbas 16 a 18, 20, 36, 37, 39, 99, 100 e 123"[3];
c) existe uma dívida da "requerente ao património comum" proveniente do recebimento das "rendas da ..., do Prédio em Propriedade Horizontal, sito na Rua ..., ..., ..., entre janeiro de 2005 e abril de 2016".

II
1.º
Foram julgados provados os seguintes factos:
1. BB e AA casaram entre si no dia ../../2003 sem celebração de convenção antenupcial.
2. O casamento referido em 1. foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento decretado por sentença de 14 de julho de 2016, transitada em julgado a 30 de setembro de 2016 proferida pelo Tribunal da Comarca de Braga, ... Central-... Sec. ... J....
3. A petição inicial da ação de divórcio deu entrada em juízo a 6 de maio de 2016.
4. A conta bancária do Banco 1..., S.A. com o IBAN  ...08 encontra-se encerrada desde ../../2015.
5. A conta bancária na Banco 2... sob o n.º ...00 apresentou saldo zero a partir de 13.4.2016.
6. A 23.12.2000 o cabeça-de-casal comprou um sistema Wi-Fi da marca ....
7. A 15.12.1998 o cabeça-de-casal comprou uma cadeira de secretária ..., preta.
8. O veículo marca ..., matrícula ..-MT-.. tinha, em 18.11.2021 a inscrição da sua propriedade registada a favor do cabeça-de-casal, desde ../../2012.
9. O veículo marca ..., matrícula ..-..-QV teve a sua propriedade registada a favor da EMP01..., SA desde ../../2004, a favor do Cabeça-de-casal desde ../../2013 até ../../2015 data em que a propriedade passou a estar registada a favor de CC.
10. O veículo da marca ..., matrícula ..-DE-.. teve a sua propriedade inscrita a favor da reclamante desde ../../2009 até ../../2017 data em que passou a estar registada a favor de EMP02..., S.A.
11. A casa que foi de morada de família de cabeça-de-casal e da reclamante teve as suas obras concluídas a 14.7.2002.
12. O Cabeça-de casal celebrou, enquanto comprador, a escritura de compra e venda do imóvel que viria a ser a casa de morada de família a 13.12.2002.
13. As consolas Wii e playstation foram oferecidas ao filho do Cabeça-de-casal e à filha deste e da reclamante.
14. As 2 pranchas de bodyboard foram oferecidas ao filho do Cabeça-de-casal e à filha deste e da reclamante.
15. A reclamante, a ../../2014, deu de arrendamento a fração autónoma designada pela letra ... correspondente ao ..., tipo T2, sita na Rua ..., ..., desde ../../2014, pela renda mensal de € 375,00.
16. A reclamante auferiu, a título de rendas relativamente à fração autónoma supra:
a. Em 2003, € 4.200,00;
b. Em 2004, € 4.200,00;
c. Em 2005, € 4.200,00;
d. Em 2006, € 4.200,00;
e. Em 2011, € 1.500,00;
f. Em 2012, € 4.500,00;
g. Em 2013, € 4.500,00;
h. Em 2014, € 3.375,00;
i. Em 2015, € 4.500,00.
*
E foram julgados não provados os seguintes factos:

17. As rendas recebidas pela reclamante, na constância do casamento, foram gastas em despesas comuns do casal.
Que tenham sido adquiridos, ao tempo do casamento:
18. 1 sofá cama de 3 lugares c/ chaise-longue/bombazine riscas dourado/preto.
19. 1 conjunto de cortinas (4) de aprox. 6m*2,5 m/ organza bege e laterais chenil branco.
20. 1 tapete retangular, feito à mão, bordado a azul c/motivos florais (aprox. 3*2.5m).
21. 1 mesa de jantar em madeira Sucupira (aprox. 2,10*1,5m) + 6 cadeiras costas forradas/tecido bege.
22. 1 "side-board" em madeira de Sucupira c/ 8 portas e gavetões embutidos (aprox. 3m*0,80m).
23. 1 armário alto retangular de apoio, c/2 portas, madeira de sucupira e fecho em latão dourado (aprox. 2*2,5m).
24. 1 candeeiro teto c/3 lâmpadas em oval/tecido bege (arquiteto "Sesasional").
25. 4 conjuntos de tolhas de mesa e guardanapos em linho natural foram oferecidos à reclamante.
26. Papel de parede vinil, rugoso/dourado velho (2 paredes-aprox. 2,5*5/2,5*2m).
27. 2 mesas de apoio c/tampo branco e pernas em alumínio no valor de € 50,00.
28. 1 banqueta c/pernas esculpidas em talha de madeira cerejeira escura, c/ almofada bombazine riscas douradas e pretas.
29. 1 passadeira de correr, preta (ginástica).
30. 2 Peças decorativas ..., em vidro e vidro fosco, feitas á mão, formato redondo (.../...).
31. 1 candeeiro mesa-jarra ... ("...") c/ abajur tecido às riscas bege.
32. 1 peça decorativa ... (bandeja de mesa "...").
33. 1 quadro c/moldura clássica em talha dourada, c/serigrafia de "DD" (preto e branco - aprox. 1*0,60cm).
34. 1 televisor plasma.
35. Leitor de DVDs.
36. Aparelhagem de música C/Suround (4 colunas) ....
37. 1 recuperador de calor para fogão de sala.
38. Objetos de apoio ao serviço de mesa (serviço de copos de mesa Atlantis - 12 pessoas; jarras para vinho Atlantis-5; decanter; serviços de café, entre outros).
39. 2 quadros de "EE", "o batizado de S. João Baptista", em óleo/acrílico sobre sarapilheira (aprox. 0,60/0,40).
40. 1 quadro de "EE", "paisagem", gesso e pastel (aprox. 0,60/0,40).
41. 1 serviço (faqueiro) prata completo (12 pessoas), "..." da ....
42. 3 estantes parede/madeira Tola c/Sucupira (aprox. 2,5*0,40).
43. 2 mesas trabalho em formato L/madeira de Tola c/Sucupira (aprox. 2,5*1,5*0,60).
44. 2 blocos de gavetas p/secretárias/madeira de Tola c/Sucupira.
45. 1 armário em madeira de Tola c/Sucupira (aprox. 2,5*3m), c/4 portas em madeira Tola c/Sucupira e 4 portas em vidro fosco.
46. 1 cadeira escritório preta.
47. Cortinas organza bege (aprox. 3,5m*2,5m).
48. 1 carpete sisal (aprox. 2,5*2,5).
49. Diversos Livros/CDs/DVDs (sala/escritório).
50. 1 computador ....
51. 1 impressora/scanner.
52. 1 computador portátil ... e 1 monitor ....
53. 1 ....
54. 1 Armário de apoio/sapateira, madeira tola, c/4 portas (aprox. 2,5*3m).
55. 1 vaso decorativo ... - "Vaso ...".
56. 1 quadro, moldura madeira bege c/serigrafia de FF (aprox. 0,60*0,40).
57. 1 mesa apoio em madeira, talha dourada c/tampo mármore bege.
58. 1 móvel lavatório em madeira escura/pia lavatório retangular e torneira.
59. 1 espelho (aprox. 1,5*1m) e toalheiros.
60. 1 cabeceira de cama de casal revestida a pele preta, c/estrado e sommier revestido a pele preta.
61. 1 colchão ortopédico casal.
62. 2 mesas de cabeceira madeira escura/2 gavetas.
63. 2 candeeiros de mesa, pés inox/abajur quadrado em seda lilás.
64. 1 candeeiro de teto quadrado, seda/lilás.
65. Cortinas chenil beije/riscas(3,5m/2,5m).
66. 1 espelho madeira, talha dourada (aprox. 1,5/0,50cm).
67. Conjunto de cama (édredon veludo bege/almofadas bege/vermelho/capa cama cinza).
68. Móvel parede em sucupira, c/portas em espelho (aprox. 1,5*1).
69. Móvel de madeira sucupira c/lavatório em mármore, c/porta veneziana.
70. Mesa extensível inox, c/tampo vidro fosco verde.
71. 4 cadeiras costas/plástico fosco verde (arquiteto "Sesacional").
72. 3 candeeiros teto vidro fosco a branco.
73. 1 exaustor extensível ....
74. 1 placa gás ....
75. 1 forno micro-ondas ....
76. 1 forno micro-ondas ....
77. 1 máquina lavar loiça encastrada ....
78. 1 frigorifico combinado ....
79. 1 máquina lavar roupa ....
80. Armário hidrófobo branco com tanque embutido.
81. Relógio parede.
82. 2 faqueiros ..., serviço copos, 2 serviços de mesa de jantar.
83. 1 Colchão (2.00 x 0.90m) sultan favang (colchão parte de baixo).
84. 1 cabeceira de cama de casal revestida a pele bege, c/estrado e sommier revestido a pele beije.
85. 1 Candeeiro de teto no valor de € 100,00.
86. Móvel de lavatório madeira sucupira c/mármore, de 2 pias e portas venezianas (aprox. 2m*0,5).
87. 1 espelho (aprox. 2m*1,5).
88. 2 jarras gémeas altas, em vidro, feitas á mão "...".
89. 1 bicicleta laranja rua "..." no valor de € 1500,00.
90. Cavalete e material de pintura.
91. Estantes em metal branco (4).
92. 2 Suportes para bicicleta para tejadilho carro marca ....
93. Roupas de casa (conjuntos lençóis .../toalhas .../edredons casal e solteiro/cobertores/almofadas decorativas, etc.).
94. Quadro de acrílico e óleo sobre cartão em moldura régua, madeira preta (aprox. 1m x 70cm).
95. Quadro de acrílico sobre tela em moldura madeira preta (aprox. 60cm X 40cm).
96. Quadro de acrílico e tinta da china sobre papel em moldura madeira branca (aprox. 50cm x 40cm).
97. Quadro de acrílico e óleo sobre cartão em moldura madeira preta (1m x 70cm).
98. Quadro de acrílico sobre tela c/moldura régua a madeira (aprox 1m x 70 cm).
99. Quadro série "..." -aguarela verde e caneta em moldura clássica dourada.
100. Quadro de acrílico sobre tela em moldura madeira bege (aprox. 80cm x 60cm).
101. Quadro de acrílico e óleo sobre cartão em moldura madeira preta e vermelha (aprox. 1m x 70cm).
102. Quadro de acrílico e óleo sobre tela c/moldura madeira clara (aprox. 80cm x 60cm).
103. Serigrafia "DD" a preto e branco com moldura em talha dourada (1m x 70cm).
104. Óleo sobre tela (aprox. 60cm x 40cm).
105. Óleo sobre tela (aprox. 1m x 70cm).
106. Óleo sobre tela C/moldura madeira branca (aprox. 80cm x 60cm).
107. 1 bicicleta rua preta de senhora, marca ...", alumínio preta, Low Entry.
108. 1 bicicleta rua, marca ...", alumínio cinzenta.

2.º
No inventário subsequente ao divórcio "devem ser considerados os bens que sejam comuns no momento da propositura da ação matrimonial (arts. 1688.º e 1789.º, n.º 1, CC) ou, se estiver provada a separação de facto, no momento do início desta separação (art. 1789.º, n.º 2, CC)."[4]
Por isso, e como aliás faz todo o sentido, nesse inventário não são relacionados os bens próprios de cada cônjuge, mesmo que se encontram na posse daquele que não é o respetivo proprietário, visto que este inventário tem "normalmente por finalidade a partilha dos bens comuns do casal"[5].
A requerente defende que "as verbas 126 a 148 da [sua] reclamação (…) deverão ser relacionadas".
Os bens descritos nestas verbas, como diz a requerente nos requerimentos de 19-9-2019 e de 16-3-2021, são bens próprios seus.
Sucede que os bens próprios de cada um dos cônjuges não têm lugar neste inventário, pois, como se disse, este visa a partilha dos bens comuns do casal. "Os bens próprios de cada um pertencem ao respetivo cônjuge e neles não vai o outro quinhoar. Isto só por si basta para afastar a relacionação deles."[6]
Se porventura o requerido tem consigo bens próprios da requerente e não os entrega voluntariamente, então esta terá de se socorrer de outro meio processual para fazer valer o seu direito de propriedade, dado que o processo de inventário não é adequado para tal fim.
Por conseguinte, as verbas 126 a 148 a que se refere a requerente não têm de ser aqui relacionadas.
3.º
A requerente também advoga que "deverão ser relacionadas as verbas constantes da reclamação à relação de bens sob os números 1 a 15, 19, 21, 28 a 31, 33, 34, 35, 40, 42 a 46, 48 a 52, 55 a 67, 69, 86, 87, 95, 96, 97, 104 e 105", bem como as "verbas 16 a 18, 20, 36, 37, 39, 99, 100 e 123".
Importa começar por sublinhar que no presente recurso a requerente não impugnou a decisão da matéria de facto; isto é, conformou-se com o juízo de provado e de não provado que o tribunal a quo formulou quanto aos diversos factos que julgou.
Na perspetiva da requerente, as verbas 1 a 15, 19, 21, 28 a 31, 33, 34, 35, 40, 42 a 46, 48 a 52, 55 a 67, 69, 86, 87, 95, 96, 97, 104 e 105 constantes da sua reclamação devem ser relacionadas por que "o requerido não provou que os mesmos são bens próprios do mesmo, pelo que, deveria a sentença recorrida ter feito uso da presunção de comunhão quanto aos bens móveis que terão que ser considerados como adquiridos na constância do matrimónio - cfr. art.º 1724.º, al. b) do C.Civil." E as verbas 16 a 18, 20, 36, 37, 39, 99, 100 e 123 deviam igualmente ser relacionas por que "não ficou provado que pertencessem a terceiros, pelo que, também aqui deveria a sentença recorrida ter feito uso da presunção de comunhão quanto aos bens móveis que terão que ser considerados como adquiridos na constância do matrimónio - cfr. art.º 1724.º, al. b) do C.Civil."
Em primeiro lugar, o ónus da prova não é do requerido; ou seja, alegando a requerente que determinados bens são comuns do casal, cabe-lhe a si o ónus da prova de factos dos quais se possa depois extrair essa conclusão; conforme dispõe o n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, "àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado". Por isso, o requerido não tem de provar que os bens são só seus ou que pertencem a outra pessoa[7]. E a não prova de que tais bens são bens próprios do requerido ou de terceiro não implica, sem mais, que então eles têm a natureza de bens comuns do casal. Para o requerido basta que a requerente não prove factos de que resulte que o bem é comum.
Em segundo lugar, o tribunal a quo julgou não provado que esses bens "tenham sido adquiridos, ao tempo do casamento". E a requerente conformou-se com esse juízo de não provado.
Ora, a Relação não pode, através de presunção judicial, deduzir dos factos provados um outro que a 1.ª instância julgou não provado. Com efeito, "quesitado um facto (…) a que a 1.ª instância deu resposta negativa, não pode esse facto vir a ser considerado assente mediante presunção judicial. Permitir que a Relação considere provado por inferência um facto que a 1.ª instância deu como não provado após o funcionamento do princípio da imediação e do contraditório da prova direta constitui clara e ostensiva violação do disposto no art. 712.º do [anterior] Código de Processo Civil [a que corresponde o atual artigo 662.º]."[8]
Assim, tendo o tribunal a quo julgado não provado que estes bens "tenham sido adquiridos, ao tempo do casamento", não se pode agora querer extrair dos factos provados que foi nesse período que se deu a aquisição dos mesmos. A não ser assim estar-se-ia a contornar esta resposta de não provado, modificando-se, de uma forma não prevista no artigo 662.º, a decisão da 1.ª instância relativa a tal matéria de facto.
Em terceiro lugar, a requerente, estranhamente, nos requerimentos de 19-9-2019 e de 16-3-2021 limitou-se a dizer, de forma manifestamente conclusiva, que determinados bens que aí identifica são bens comuns. Não alegou um único facto que, uma vez provado, à luz das regras consagradas no Código Civil, como é o caso do artigo 1724.º, nos pudesse conduzir à conclusão de que se trata de bens comuns do casal. A requerente não alegou nomeadamente a data da aquisição desses bens.
Em quarto lugar, a presunção legal do artigo 1725.º do Código Civil só funciona perante uma situação de dúvida[9]; ou seja, é necessário que nos defrontemos com um concreto cenário em que não se consegue alcançar uma certeza. Numa situação de incerteza a dúvida é, então, resolvida em favor do casal e não de um dos cônjuges. No nosso caso, olhando para os factos provados nada se provou que nos coloque perante a dúvida que a presunção do artigo 1725.º do Código Civil resolve. Veja-se, por exemplo, que não se provou, e isso nem sequer foi alegado pela requerente, que os bens em apreço constituíam o recheio da casa onde vivia o casal e que esse recheio foi sendo comprado na pendência do casamento.
Aqui chegados, conclui-se que não há fundamento para relacionar os bens mencionados nas conclusões 4.ª e 5.ª.
4.º
A requerente sustenta que não existe a sua dívida "ao património comum", relacionada pelo (requerido) cabeça-de-casal, que este diz ser proveniente do recebimento das "rendas da ..., do Prédio em Propriedade Horizontal, sito na Rua ..., ..., ..., entre janeiro de 2005 e abril de 2016".
O n.º 1 do artigo 1789.º do Código Civil faz retroagir os efeitos do divórcio "à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges", o que no nosso caso é o dia 6-5-2016. Com esta "retroação - que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da proposição da ação e não no dia do trânsito em julgado da decisão e que a partilha dever ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da ação ou na data em que cessou a coabitação - quer-se evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos atos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a propositura da ação sobre valores do património comum."[10]
Deste modo, para efeitos de partilha serão considerados os bens comuns existentes naquela ocasião.
O requerido, nas suas vestes de cabeça-de-casal, ao relacionar a "dívida da Requerente ao património comum" afirma unicamente que ela é "proveniente da perceção de rendas - que se situavam entre € 350,00 e os € 450,00 - durante 16 anos, relativas a um imóvel bem próprio da mesma sito na Rua ..., ... ..., as quais consubstanciam um bem comum (ex vi art. 1728.º n.º 1 C. Civil)".
Significa isso que o requerido apenas diz que durante esses anos a requerente recebeu rendas resultantes do arrendamento deste seu imóvel, facto que esta não nega. A requerente contrapõe afirmando, em primeira linha, que as "rendas recebidas na constância do casamento foram gastas em despesas comuns do casal", o que não se provou. E acrescenta que "se o cabeça-de-casal entende que existe esse crédito (…) teria que indicar aonde está esse crédito", ou seja, que lhe cabia alegar que o capital com essa origem ainda existia à data da propositura da ação de divórcio.
Efetivamente assim é. Não basta ao cabeça-de-casal alegar que na pendência do casamento um dos cônjuges obteve certo rendimento que tem a natureza de bem comum do casal, pois é preciso que o respetivo valor ainda exista no momento definido no n.º 1 do citado artigo 1789.º. A não ser assim, como sublinha a requerente, também tinha de se relacionar a totalidade dos salários de ambos os cônjuges obtidos ao longo do casamento, pois este rendimento é igualmente um bem comum do casal[11].
Quer isso dizer, que não é suficiente a alegação de que a requerente foi recebendo ao logo do tempo aquelas rendas. O cabeça-de-casal tinha ainda de alegar e sendo essa matéria impugnada, como foi, provar que o capital assim reunido ainda existia quando foi desencadeado o processo de divórcio. E aqui o ónus da alegação e da prova é do cabeça-de-casal; não cabia à requerente o ónus de provar que tais proventos já não existiam nesse momento, ou que, como ela alegou, tinham sido gastos "em despesas comuns do casal".
Ora, isso não foi alegado nem provado. O facto 16 é insuficiente para dele se poder concluir, como concluiu o tribunal a quo, que a requerente tem uma dívida "ao património comum" de 15.487,50 €.
Se o requerido entende que, por alguma outra razão, lhe assiste um direito relacionado com os proventos assim obtidos pela requerente, nomeadamente fundado no artigo 1681.º do Código Civil, então terá de se socorrer de outro meio processual.

III
Com fundamento no atrás exposto julga-se parcialmente procedente o recurso e:

a) revoga-se a decisão recorrida no segmento em que determinou que fosse relacionado "o valor de € 15.487,50 como o relativo à dívida da reclamante ao património comum a título de rendas";
b) mantém-se no mais a decisão recorrida.

Custas pela requerente e pelo requerido, na proporção de ½ para cada um.
Notifique.

António Beça Pereira
Carla Oliveira
Alcides Rodrigues


[1] São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência.
[2] Cfr. conclusões 2.ª e 3.ª.
[3] Cfr. conclusões 4.ª e 5.ª.
[4] Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, eBook 2020, Pág. 158.
[5] Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, eBook 2020, Pág. 156.
[6] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. III, 4.ª Edição, pág. 369.
[7] Ao dizer que certo bem é seu ou que é de um terceiro, o requerido está a deduzir uma impugnação indireta ou motivada.
[8] Calvão da Silva, RLJ, Ano 135.º, pág. 127, em anotação ao acórdão do STJ de 25-3-2004 no Proc. 03B4354. Neste sentido veja-se Ac. do STJ de 24-5-2007 no Proc. 07A979, Ac. STJ de 11-11-2008 no Proc. 08A3322, Ac. STJ de 1-4-2009 no Proc. 0853254, Ac. STJ de 7-1-2010 no Proc. 5175/03.4TBAVR, Ac. STJ de 14-1-2010 no Proc. 2537/03.0TBOVR, Ac. STJ de 29-4-2010 no Proc. 792/02.2YRPRT, Ac. STJ de 14-01-2010 no Proc. 2537/03.0TBOVR, Ac. STJ de 6-5-2010 no Proc. 2148/05.6TBLLE.E1.S1, Ac. STJ de 7-7-2010 no Proc. 2273/03.8TBFL.G e Ac. Rel. Porto de 24-1-2018 no Proc. 1070/16.5T8AVR.P1, www.gde.mj.pt.
[9] Neste sentido veja-se Ac. Rel. Guimarães de 16-11-2023 no Proc. 613/20.4T8BCL.G1 e Ac. Rel. Coimbra de 15-10-2019 no Proc. 680/17.8T8GRD.C1, www.dgsi.pt.
[10] Ac. Rel. Porto de 16-3-2010 no Proc. 3275/06.8TBPVZ.P1, www.dgsi.pt.
[11] Cfr. artigo 1724.º a) do Código Civil.