Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | PEDRO MAURÍCIO | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPOSA PRESUNÇÕES INILIDÍVEIS OCULTAR OU FAZER DESPARECER PATRIMÓNIO DO DEVEDOR PROVEITO PESSOAL | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/27/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - Constitui entendimento pacífico e unânime que, nas diversas alíneas do nº2 do art. 186º do C.I.R.E., o legislador consagrou presunções inilidíveis (ou factos-índices) de insolvência culposa, donde resulta que, verificado algum dos comportamentos elencados numa daquelas alíneas, o Juiz, ope legis, sem admissão de prova em contrário, tem sempre que ser classificar a insolvência como culposa. II - Constitui igualmente entendimento pacífico e unânime que as presunções inilidíveis (ou factos-índices) estatuídos nas diversas alíneas do nº2 do art. 186º do C.I.R.E. abrangem a culpa e também a existência do nexo de causalidade entre a actuação e a criação ou agravamento do estado de insolvência deste. III - As dúvidas que se têm suscitado na jurisprudência quanto à interpretação dos termos «ocultação» e «fazer desaparecer» utilizados da alínea a) do nº2 do art. 186º do C.I.R.E. devem ser supridas perante o quadro factual de cada caso concreto, envolvendo uma ponderação casuística das condutas dos administradores/gerentes com vista à integração na previsão normativa. IV - Integra a presunção (facto-índice) da alínea a) do nº2 do art. 186º do C.I.R.E. a actuação do gerente que, cerca de um ano e 5 meses antes do início do processo de insolvência, agindo em nome e em representação da sociedade que veio a ser declarada insolvente, se desfez de todos os activos desta através da celebração de um contrato de «transmissão da unidade industrial» que aquela detinha e explorava no local da sua sede, composta pelas máquinas e equipamentos e nela incluindo os trabalhadores, pelo preço € 49.200,00€ mas que não fez este valor ingressar na conta bancária da sociedade e não utilizou esse valor na sua totalidade para abater o passivo da sociedade, sendo que, em consequência disto, a sociedade ficou impossibilitada de prosseguir com a sua atividade e o administrador da insolvência não logrou apreender qualquer bem ou direito para a massa insolvente. V - O «proveito pessoal» exigido para a verificação da presunção (facto-índice) da alínea d) do nº2 do art. 186º do C.I.R.E. compreende não só as situações em que, por negócio jurídico, a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o administrador ou terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido que estes usem os bens, que deles retiram proveito e/ou utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para o insolvente e este fica, na prática, numa situação equivalente à de «não proprietário» desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos, sendo que tais bens têm que ter algum relevo económico. VI - Na presunção inilidível (facto-índice) previsto na alínea h) do nº2 do art. 186º do C.I.R.E., consagram-se três situações distintas e independentes entre si, sendo a primeira relativa ao «incumprimento em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada», na qual o legislador recorre a um conceito indeterminado consistente no segmento «incumprido em termos substanciais», o que impõe que se apele à materialidade em discussão e às circunstâncias específicas do caso concreto. VII - Existindo um incumprimento que seja efectivamente substancial/relevante da obrigação de manutenção da contabilidade organizada, fica vedada a possibilidade de, através da mesma, se compreender a situação patrimonial e financeira da empresa (sociedade), isto porque não existem os elementos contabilísticos que legalmente deviam existir. Deste modo, registando-se uma omissão (incumprimento) substancial da obrigação em causa, então já lhe-é inerente a existência de um prejuízo para a compreensão da situação da empresa. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães[1] 1. RELATÓRIO 1.1. Da Decisão Impugnada Por sentença proferida na data de 19/07/2021, nos autos principais, foi declarada a insolvência de EMP01..., Unipessoal, Lda. Nos autos principais, através de requerimento datado de 01/12/2021 (com a referência citius «12298923»), para além do mais, o Ministério Público requereu «que o Ex.mo AI seja notificado para tomar posição expressa sobre a abertura do incidente de qualificação de insolvência, para o que deverá apresentar requerimento/parecer sobre os factos que ele(e só ele) conhece (desde logo pela falta de colaboração do(s) legais representantes da insolvente e sobre os atos de disposição que aponta enquadráveis nas alíneas a), d) e i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE)», tendo o Administrador da Insolvência, através de requerimento datado de 22/12/2021 (com a referência citius «12385497»), vindo declarar «secundar a opinião do Digníssimo Procurador da República bem como da credora AA, por haver elementos que indiciam a classificação da insolvência como culposa e que se enquadram nas alíneas a), d) e i) do nº 2 e alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE, requerendo a V.ª Ex.ª a abertura do incidente de qualificação da insolvência, indicando desde já o gerente da devedora, Sr. BB como pessoa afetada por tal qualificação» Ainda nos autos principais, por despacho proferido em 13/01/2022, para além do mais, foi declarado «aberto o incidente de qualificação nos presentes autos de insolvência em que foi declarada a insolvência de EMP01..., Unipessoal, Lda., nos termos do disposto nos artigos 188.º, n.º 1, e 191.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas». Neste apenso B relativo ao incidente de qualificação da insolvência, na data de 02/02/2022 (referência citius «12565322»), o Administrador da insolvência juntou o parecer referido no art. 188º/2 do C.I.R.E., concluindo no sentido de «dever a presente insolvência ser qualificada como culposa, em consequência da atuação dolosa e com culpa grave do gerente da insolvente» e de «nos termos do n.º 2 do Artº 188º do CIRE, atento o facto de que a presente qualificação resulta do comportamento levado a cabo pelo gerente, que exerceu tais funções no período legalmente definido para a qualificação da insolvência, o sujeito afetado pela qualificação é o referido gerente da devedora, que a seguir se identifica, sendo sobre ele que deverão recair as cominações previstas no Artº 189º do CIRE: - BB com os demais sinais nos autos». Nos termos do art. 188º/6 do C.I.R.E., na data de 08/04/2022 (referência citius «178309463»), o Ministério Público pronunciou-se no sentido de «presentemente estão juntos aos autos documentos em qualidade e quantidade aptas a fundar um juízo quanto ao carácter culposo da insolvência» e «deverá ser afetado por tal qualificação BB, o gerente da sociedade insolvente». Notificada, a Requerida Insolvente não deduziu oposição. Citado, o Requerido BB deduziu oposição, pedindo que «a presente oposição seja julgada procedente e, em consequência, não ser o oponente afetado pela qualificação da insolvência como culposa», tendo alegando, essencialmente, que: «em meados de 2018, a empresa começou a passar algumas dificuldades de tesouraria, vendo-se esta obrigada a recorrer a um empréstimo bancário junto do Banco 1..., SA no montante de €25.000,00, por forma a fazer face aos compromisso; tal montante não foi suficiente, sendo o gerente da Devedora “obrigado” a injetar dinheiro na sociedade, de 13/11/2018 a 15/10/2019, a quantia de € 39.410,00, tudo com a perspetiva de retoma posterior, recorrendo a capitais próprios, bem como efetuando dois contratos de financiamento através de crédito pessoal com duas instituições financeiras, um no montante de € 10.458,97 e outro no montante de € 10.000,00; no final de 2019/inicio de 2020, e face às perspetivas nada animadoras relativamente à indústria têxtil, o gerente da Devedora teve a oportunidade negocial de transmitir a unidade económica, transmitindo também a posição de empregador, bem como a posição contratual no que concerne ao contrato de arrendamento das instalações onde laborava a sociedade aqui Insolvente; a Devedora encontrava-se numa situação de carência económica, onde a preocupação do gerente era a salvaguarda dos postos de trabalhos, o que aquela proposta desde logo salvaguardava; é falso que os €40.000,00 recebidos pelo gerente da devedora tenham sido para benefício próprio, pois, esse dinheiro foi utilizado para pagamento dos salários correspondentes ao último mês de trabalho antes da transmissão, bem como para pagamento dos créditos solicitados supra, dado que as prestações se venciam todos os meses; desse montante recebido, foi pago a quantia de €10.000,00 correspondente a um empréstimo obtido particularmente aquando da constituição da sociedade; quanto ao restante dinheiro recebido, o mesmo serviu para abater contas correntes junto de pequenos fornecedores; caso a transmissão da unidade económica não fosse efetuada, a empresa não iria ter liquidez para fazer face aos seus compromissos financeiros, advindo dai, muito provavelmente, uma insolvência com um número muito mais elevado de credores ao que consta atualmente na lista definitiva de créditos, e não se vislumbrando que resultasse da liquidação daquele ativo, montante suscetível de liquidar os salários e as indemnizações que iriam ser reclamadas pelos então trabalhadores; a indemnização que, porventura fosse devida pelo devedor a favor dos credores, não pode ser fixada em montante igual ao dos créditos reconhecidos no processo de insolvência e que não obterão pagamento; o Oponente não praticou os atos tipificados nas referidas alíneas do artigo 186º, n.º 2 do CIRE, não havendo qualquer atuação dolosa e com culpa grave do gerente da Insolvente». Foi proferido despacho saneador, no qual se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova. Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte decisório: “Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido: qualificar a insolvência da sociedade “como culposa, nos termos do artº 186º, do CIRE; determinar a afectação pela referida qualificação de BB [artº 189º, nº 2, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas]; fixar em 6 anos, o período de inibição do requerido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa [artº 189º, nº 2, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas]; condenar o afectado a indemnizar cada um dos credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património [artº 189º, nº 2, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas]. Determino, ainda, o registo da inibição para o exercício do comércio junto da Conservatória do Registo Civil, com base em comunicação electrónica ou telemática da secretaria, acompanhada de extracto desta sentença [arts. 189º, nº 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e 69º, nº 1, al. l), do Código de Registo Civil]. Custas pelo requerido afectado”. * 1.2. Do Recurso do Requerido/AfectadoInconformado com a referida decisão, o Requerido interpôs recurso de apelação, pedindo que “seja concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-a por outra que, reapreciando as provas indicadas, altere a decisão relativa à matéria de facto aqui especificada, e qualifique a insolvência como fortuita, com todas as legais consequências”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações: “A) O Apelante, salvo o devido respeito, que é muito, discorda da Sentença ora recorrida, no que concerne à qualificação da Insolvência da sociedade como culposa, nos termos do artigo 186º do CIRE, determinando a afetação pela referida qualificação de CC. B) Salvo o devido e merecido respeito pela posição sufragada na douta sentença ora em crise, entende-se que a mesma padece de vícios porquanto para além de proceder a um incorreto julgamento da matéria de facto, não extrai de forma correta as consequências jurídicas da matéria de facto apurada no decurso da audiência de julgamento. C) Pretende assim o Apelante recorrer da matéria de facto dada como não provada, por entenderem que outra deveria ter sido a conclusão, como infra se passará a demonstrar. D) Entende o Apelante, que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resultou que ficaram como provados os factos vertidos nas alíneas a), b) e c) dos Factos não Provados. E) Existem factos que foram alegados pela Insolvente na sua Oposição, que são relevantes para a decisão da causa, e que não foram tidos em conta pelo tribunal a quo, não tendo sido incluídos na matéria de facto provada. F) A Douta Sentença ora em crise deu como não provado a alínea a) dos não factos provados, designadamente “a) O restante dinheiro recebido tenha sido usado para abater contas corrente junto de pequenos fornecedores”. G) Ora, com o devido respeito, tal fundamentação não pode colher. H) Pois, foi confirmado, quer pelo Interveniente CC, quer pela trabalhadora (e companheira do interveniente, portanto com conhecimento bastante direto e concreto dos factos) à data da sociedade supramencionada, DD, que exercia o cargo de administrativa, que a empresa utilizou o dinheiro da transmissão para pagamento junto de pequenos fornecedores. I) Aliás, só assim se explica o número reduzido de credores que vieram reclamar os seus créditos junto do Exmo. Administrador de Insolvência, dado que caso isso não tivesse ocorrido, certamente estaríamos atualmente a falar de um número muito mais elevado de credores a reclamar créditos na presente Insolvência ao que consta atualmente na lista definitiva de créditos. J) Assim, com o devido respeito, que é muito, e face à prova produzida, não podia o Tribunal a quo enquadrar tal quesito nos factos não provados, pois, existe prova testemunhal e documental cabal nos autos que prova que o restante dinheiro recebido tenha sido usado para abater contas corrente junto de pequenos fornecedores. K) Pelo que, deverá ser integrado o ponto a) dos factos não provados nos Factos Provados. L) Quanto ao Ponto B) dos Factos não provados, “b) O gerente da Insolvente sempre tenha tido em consideração os interesses da sociedade e seus trabalhadores, nem que não nunca tivesse colocado o seu interesse à frente do da insolvente”, o Apelante considera que o mesmo foi incorretamente julgados e que existe demonstração dos concretos meios probatórios, constantes do processo e registo em gravação nele realizada, que impõe decisão diferente. M) Como pode o douto Tribunal a quo enquadrar tal quesito nos factos não provados, quando quer o Interveniente, quer as diversas testemunhas (trabalhadoras), alegaram que o Interveniente CC teve como preocupação a salvaguarda, quer dos postos de trabalho das trabalhadoras, quer o interesse da sociedade. N) Aliás, tal consideração de não provado entra em conflito e total contradição com os factos constantes das alíneas s) e t) dos Factos Provados, pois desde logo considera-se provado que a preocupação do Gerente (aqui Interveniente) era a salvaguarda dos postos de trabalho e que parte do produto recebido foi usado para pagamento de salários. O) Assim, com o devido respeito, que é muito, e face à prova produzida, não podia o Tribunal a quo enquadrar tal quesito nos factos não provados, pois, existe prova testemunhal cabal nos autos que prova que é falso que o Interveniente tenha colocado o seu interesse à frente do da Insolvente. P) Pelo que, deverá ser integrado o ponto b) dos factos não provados nos Factos Provados. Q) A douta sentença ora em crise, deu também como não provado o Ponto C) dos Factos não provados “c) O Requerido não tenha tirado nenhum proveito pessoal com a concretização do negócio de d)”. R) Ora, com o devido respeito, tal fundamentação não pode colher. S) Como pode o douto Tribunal a quo enquadrar tal quesito nos factos não provados, quando jamais ficou demonstrado nos autos que o Requerido tirou qualquer proveito pessoal com a concretização da transmissão da unidade industrial com a sociedade “EMP02..., Unipessoal, Lda.”? T) Assim, com o devido respeito, que é muito, e face à prova produzida, não podia o Tribunal a quo enquadrar tal quesito nos factos não provados, pois, existe prova testemunhal cabal nos autos que prova que é falso que o Interveniente tenha tido qualquer proveito pessoal com a concretização do negócio supra. U) Pelo que, deverá ser integrado o ponto c) dos factos não provados nos Factos Provados. V) Pelo que, e face ao supra exposto, deverão ser considerados os factos supra como factos provados, qualificando assim a insolvência como fortuita. W) A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artigo 186º nº 1 do CIRE). X) A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores. Y) Contudo, para que neste caso se conclua pelo carácter culposo da insolvência, não basta assentar na culpa grave, ainda que simplesmente presuntiva, dos seus administradores na omissão do cumprimento de qualquer daquelas obrigações; exige-se a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor. Assim, por exemplo, os Acs. da RP de 15.03.07, 13.09.97, 07.01.08, 23.06.09, 15.07.09 e 22.06-10, da RL de 22.01.08, e da RC de 24.03.09, 21.04.09 e 23.06.09, www.dgsi.pt e Raposo Subtil, Matos Esteves, Maria José Esteves e Luís Martins, CIRE Anotado, 2ª edição, págs. 265 e 266. Z) Ora, no caso sub judice, salvo melhor entendimento, não se provou que a atuação do insolvente tenha sido intencional ou com negligência grosseira, nem que a sua conduta tenha-se traduzido num agravamento da situação económica da Insolvente, pois, e conforme os factos apurados, caso a transmissão da unidade económica não fosse efetuada, a empresa não iria ter liquidez para fazer face aos seus compromissos financeiros, advindo dai, muito provavelmente, uma insolvência com um número muito mais elevado de credores ao que consta atualmente na lista definitiva de créditos. AA) Não se vislumbrando ainda que resultasse da liquidação daquele ativo, montante suscetível de liquidar os salários e indemnizações que iriam ser reclamados pelos então trabalhadores, sendo que a solução encontrada pelo Interveniente, salvaguardou o emprego dos trabalhadores. BB) Assim, e face ao supra exposto, os factos apurados não são subsumíveis a nenhuma das situações previstas do n.º 2 e n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, pelo que o tribunal a quo não poderia ter qualificado a insolvência como culposa. CC) Ao decidir como decidiu, o douto Tribunal a quo aplicou erradamente o artigo 186.º”. * O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela não concessão de provimento ao recurso e confirmação da sentença recorrida. * O recurso foi admitido pelo Tribunal de 1ª Instância como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo, não tendo sido objecto de alteração neste Tribunal da Relação. Em sede de despacho saneador foi fixado o valor da causa «no valor do ativo da massa insolvente». Porém, verifica-se que não foi apreendido qualquer bem/direito para a massa insolvente, mas que foram reclamados créditos num montante total de € 447.355,69 e que o Requerido/Recorrente foi condenado «a indemnizar cada um dos credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património». Então aquele valor representa o efectivo prejuízo decorrente para o Requerido/Recorrente dos presentes autos apenso, pelo que deveria o Tribunal de 1ª Instância corrigir o valor da causa em razão do disposto na parte final do art. 15º do C.I.R.E., mas por uma questão de celeridade processual e porque estamos no âmbito de processo urgente, não se devolvem os autos à 1ªinstância para o efeito. Foram colhidos os vistos legais. * * * 2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIRPor força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias que sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013). Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[2] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida[3]). Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pelo Requerido, são duas as questões a apreciar e a decidir: 1) Se a sentença recorrida deve ser alterada quanto à matéria de facto considerada como não provada e nos termos indicados pelo Requerido ou se deve ser alterada em razão de padecer de vício de deficiência; 2) E se a insolvência deve ou não ser qualificada como culposa. * * * 3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTONa sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos: a) “EMP01..., Unipessoal, Lda”, NIPC ...85, sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, com sede na Rua ..., ... e ..., ... ..., foi constituída em 17-10-2014, com o objeto social de: “fabrico, comércio e importação e exportação de artigos de vestuário e têxteis” e o capital social de 5.000,00€, titulado por uma única quota pertencente a BB. b) Tal sociedade foi sempre gerida, de facto e de direito, pelo seu único sócio BB. c) Porque a sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda” não cumpria generalizadamente as suas obrigações vencidas, designadamente a obrigação de pagar à sua ex-trabalhadora AA a indemnização por despedimento ilícito ocorrido em 12-06-2019 no valor de €4.000,00, foi por esta requerida em 29-04-2021, a insolvência daquela, a qual foi declarada por sentença publicada no portal “Citius” em 19-07-2021, transitada em julgado. d) Acontece porém que, no dia 10-01-2020, BB, agindo em nome e em representação da sociedade “EMP01..., L.da” desfez-se de todos os ativos desta, para o que celebrou com a sociedade “EMP02..., Unipessoal, L.da”, a transmissão da unidade industrial que aquela detinha e explorava no local da sua sede, composta pelas máquinas e equipamentos discriminados na relação junta a fls 18 - Anexo I - que aqui se dá como integralmente reproduzida, nela incluindo os 17 trabalhadores identificados no Anexo II, pelo preço 49.200,00€, valor este que não fez ingressar na conta bancária da sociedade sua representada que veio a ser declarada insolvente nem serviu na sua totalidade para abater o passivo da mesma. e) A sociedade “EMP01..., Lda” não pagou, entre outras dívidas, os impostos (IRS e IVA), coimas e encargos, juros de mora e custas dos processos de execução fiscal devidos à Autoridade Tributária e Aduaneira, que se venceram no período de 22-06-2015 a 01-06-2021, no valor global de 51.440,32€, bem como não pagou as contribuições devidas à Segurança Social no período compreendido entre agosto de 2015 e janeiro de 2020, no valor global de 370.154,39€. f) A sociedade insolvente manteve-se, assim, durante mais de 1 ano em situação de incumprimento com a credora requerente da insolvência e mais de 3 anos com a Autoridade Tributária e Aduaneira e com a Segurança Social, o que agravou não só a sua situação financeira, como dificultou ou impossibilitou o ressarcimento dos demais credores. g) Com a prática do facto supra descrito em d) a sociedade insolvente ficou ainda impossibilitada de prosseguir com a sua atividade e de angariar meios para solver os seus compromissos assumidos. h) Desde pelo menos os princípios de 2020 que BB não cuidou ou mandar organizar a contabilidade da sua representada. i) Porque a sociedade “EMP01..., Unipessoal, L.da” não fornecia ao seu contabilista certificado os elementos necessários para organizar a contabilidade e cumprir as obrigações fiscais e outras, este acabou por renunciar às suas funções em 12-08-2020 e desde então não foi nomeado outro. j) BB não cuidou de elaborar e de depositar (ou de mandar elaborar e depositar), na Conservatória do Registo Comercial competente, as contas da sociedade insolvente relativas aos anos de 2019 e 2020. k) Tais irregularidades impedem a compreensão da real situação económico-financeira da sociedade insolvente. l) O administrador da insolvência não logrou apreender qualquer bem ou direito para a massa insolvente, razão pela qual o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa. m) No processo de insolvência foram reclamados, conhecidos e reconhecidos créditos no valor global de 447 355,69€. n) A actuação por parte do gerente da sociedade insolvente decorreu no limite temporal de três anos antecedentes a 29-04-2021 (data em que teve início o processo de insolvência), foi causal e determinante da criação do estado de insolvência e agravou-o ao ponto de impedir qualquer viabilização da atividade da empresa. Da oposição: o) Em meados de 2018, atenta a existência de dificuldades de tesouraria, a insolvente recorreu a um empréstimo bancário junto do Banco 1..., S.A., denominado ..., no montante de €25.000,00 (Vinte e Cinco Mil Euros). p) De 13/11/2018 a 15/10/2019, o gerente da Devedora injetou a quantia de, pelo menos, €39.410,00 (Trinta e Nove Mil, Quatrocentos e Dez Euros). q) Recorrendo a capitais próprios, bem como efetuando dois contratos de financiamento de crédito pessoal com duas instituições financeiras, a saber: Banco 2..., S.A., no montante de €10.458,97 (Dez Mil, Quatrocentos e Cinquenta e Oito Euros e Noventa e Sete Cêntimos); Banco 3..., S.A., no montante de €10.000,00 (Dez Mil Euros). r) No final de 2019/inicio de 2020, o gerente da Devedora teve a oportunidade negocial de transmitir a unidade económica, transmitindo também a posição de empregador, bem como a posição contratual no que concerne ao contrato de arrendamento das instalações onde laborava a sociedade Insolvente. s) Uma das preocupações do gerente era a salvaguarda dos postos de trabalhos, o que aquela proposta desde logo salvaguardava. t) Parte dos €40000,00 recebidos pelo gerente foram usados para pagamento dos salários correspondentes a alguns dias do último mês de trabalho antes da transmissão e para devolução do valor que o gerente tinha injectado na sociedade. u) Desse montante recebido, foi paga a quantia de €10.000,00 (Dez Mil Euros) correspondente a um empréstimo obtido particularmente aquando da constituição da sociedade. Na mesma sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos: a) O restante dinheiro recebido tenha sido usado para abater contas corrente junto de pequenos fornecedores. b) O gerente da Insolvente sempre tenha tido em consideração os interesses da sociedade e seus trabalhadores, nem que não nunca tivesse colocado o seu interesse à frente do da insolvente. c) O Requerido não tenha tirado nenhum proveito pessoal com a concretização do negócio de d). * * * 4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO4.1. Da Alteração da Matéria de Facto .......... Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, conclui-se que inexiste qualquer do erro de julgamento quanto aos factos não provados a) e c) e que deve ser eliminado da decisão de facto a matéria do facto não provado b) por ser absolutamente conclusivo (cfr. art. 662º do C.P.Civil de 2013) e, por via disso, esta pretensão recursória do Requerido/Recorrente deverá improceder na íntegra. * 4.2. Da Qualificação da InsolvênciaO C.I.R.E., aprovado pelo Dec.-Lei nº53/04, de 18/03, introduziu na nossa legislação o incidente de qualificação da insolvência. Como se explica no respectivo preâmbulo (no seu nº40), “Um objectivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas. É essa a finalidade do novo ‘incidente de qualificação da insolvência’. As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. A coberto do expediente técnico da personalidade jurídica colectiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados actos prejudiciais para os credores… O tratamento dispensado ao tema pelo novo Código (inspirado, quanto a certos aspectos, na recente Ley Concursal espanhola), que se crê mais equânime - ainda que mais severo em certos casos -, consiste, no essencial, na criação do ‘incidente de qualificação da insolvência’, o qual é aberto oficiosamente em todos os processos de insolvência, qualquer que seja o sujeito passivo, e não deixa de realizar-se mesmo em caso de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente (assumindo nessa hipótese, todavia, a designação de ‘incidente limitado de qualificação da insolvência’, com uma tramitação e alcance mitigados)”. A tramitação/regulamentação deste incidente mostra-se contemplada no Título VIII (Incidentes de qualificação da insolvência) nos arts. 185º a 191º do C.I.R.E. Em conformidade com o consignado no respectivo preâmbulo [“O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa”], estatui o art. 185º do referido diploma legal (na redacção que lhe foi pelo Dec.Lei nº79/2017, de 30/06): “A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das ações a que se reporta o n.º3 do artigo 82.º”. O CIRE não consagra qualquer definição de «insolvência fortuita», limitando-se a concretizar a definição de «insolvência culposa» no nº1 do seu art. 186º, sendo que estabelece “presunções/situações” de insolvência culposa (nº2 do mesmo preceito) e também presunções de culpa (nº3 do mesmo preceito), de onde resulta que serão fortuitas todas as situações de insolvência que não se enquadrem nas várias hipóteses enunciadas naquele art. 186º. Mais uma vez, como se consignou no respectivo preâmbulo, entende-se que ocorre uma «insolvência culposa» “quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa”. A qualificação da insolvência como fortuita ou culposa tem graves consequências para o insolvente, caso seja uma pessoa singular, ou para os seus administradores de direito ou de facto, caso seja uma pessoa coletiva ou um património autónomo (cfr. preâmbulo), sendo que as pessoas elencadas nas alíneas a) ou b) do C.I.R.E., ficam sujeitas, por imposição legal, às graves consequências elencadas no nº2 do art. 189º do C.I.R.E. Na versão inicial do C.I.R.E. o incidente de qualificação da insolvência era oficiosamente aberto, com a declaração de insolvência, em todos os processos (com excepção do caso de apresentação de um plano de pagamentos aos credores). Mas, em consequência das alterações legislativas introduzidas no código pela Lei nº16/2012, de 20/04, o incidente deixou de ter caráter obrigatório, na medida em que o juiz apenas declara aberto o incidente, na sentença declaratória da insolvência, quando disponha de elementos que justifiquem essa abertura, isto é, quando apure indícios que apontem no sentido de que a insolvência é culposa [cfr. art. 36º/1i) do C.I.R.E.]. Porém, quando na sentença não se declare aberto o incidente, este poderá ser aberto posteriormente, a requerimento do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, ou no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos desse relatório (cfr. art. 155º do C.I.R.E.). Dispõe o nº1 do art. 186º do C.I.R.E.: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. Fixa-se, neste preceito, a noção geral de insolvência culposa, a qual se reporta a qualquer insolvente, seja pessoa singular ou coletiva, decorrendo dessa noção que “quando certa conduta (activa ou omissiva), mas em geral não tipificada, for imputável, a título de dolo ou negligência grave (segundo o conceito geral desses tipos subjectivos) ao devedor ou aos seus administradores e, em consequência dela (nexo causal), tiver sido criada ou agravada a situação de insolvência, esta considera-se culposa”[4]. Podemos, assim, assentar que os requisitos legais e cumulativos que têm que estar verificados para a qualificação de uma insolvência como culposa são os seguintes[5]: a) um requisito objectivo, consistente em qualquer actuação (activa ou omissiva) do devedor ou seus administradores, no período temporal de três anos anteriores à data da entrada do processo; b) um requisito subjectivo, consistente no dolo ou culpa grave (devendo considerar-se as noções de dolo e de culpa grave, na falta de outro critério específico, nos termos gerais de Direito[6]); c) um resultado, consistente na criação da situação de insolvência ou o agravamento dela; e d) um nexo de causalidade entre aquela actuação e este resultado. No âmbito deste incidente, o que efectivamente se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigúe se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave[7]. Por sua vez, o nº2 do mesmo art. 186º (já na redacção que lhe foi dada pela Lei nº9/2022, de 11/01) estabelece: “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º6 do artigo 188.º”. Nas diversas alíneas deste preceito o legislador discrimina um conjunto de comportamentos que afectam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, comportamentos esses que, em si mesmos e pelas suas naturezas/caraterísticas, apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, e no respectivo proémio o legislador utiliza a expressão «considera-se sempre culposa a insolvência», sendo que, perante este “quadro legal”, tem sido pacífico e unânime o entendimento na doutrina e na jurisprudência no sentido de que este nº2 art. 186º estabelece presunções inilidíveis (e, por conseguinte, iuris et de iure), ou factos-índices, de insolvência culposa. Daqui resulta que, verificado que os administradores (de direito ou de facto) do devedor praticaram algum dos factos descritos nas alíneas a) a i) do nº2 deste preceito, o Juiz, ope legis, sem admissão de prova em contrário, tem sempre que classificar a insolvência como culposa, sendo que tal presunção inilidível abrange a culpa mas também a existência do nexo de causalidade entre a atuação e a criação ou agravamento do estado de insolvência deste. Explica-se no Ac. do TC de 26/11/2008[8] que “(…) é duvidoso que na previsão do artigo 186º do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (…) de situações típicas de insolvência culposa». De todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento” (os sublinhados são nossos). No Ac. do STJ de 06/11/2010[9] explica-se que “O nº2 do art. 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa”, e no Ac. do STJ de 15/02/2018[10] concretiza-se que “O nº2 do art. 186º do CIRE estabelece presunções iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência” (os sublinhados são nossos). No Ac. da RG de 04/04/2019[11] decidiu-se que “I. Para efeito de qualificação da insolvência como culposa, o art. 186º, n.º 2 do CIRE procede ao elenco (taxativo) de situações que a lei considera como factos-índice ou presunções «juris et de jure», quer da existência de culpa grave por parte do administrador ou gerente da insolvente (pessoa colectiva), quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência. II. Sendo assim, demonstrado algum dos factos-índice impõe-se a qualificação como culposa da insolvência, para todos os efeitos legais e, em particular, para efeitos de afectação do respectivo administrador ou gerente”[12], explicando-se (em termos que acompanhamos na íntegra) que: “tal como sucede nas presunções juris et de jure não existe a possibilidade de prova em contrário, mas, ainda que fique dispensada a alegação - e consequentemente a prova - de qualquer outro facto, ficcionando a lei, desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa. Nestes termos, verificada qualquer uma das situações tipificadas (taxativamente) no nº2 do art. 186º do CIRE, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa. De facto, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado n.º2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento (…). Aqui chegados, pode-se assim concluir que, de qualquer modo, sejam presunções juris et de jure ou factos-índice, a verdade é que o legislador, estando preenchida alguma das situações previstas no nº 2 do citado preceito legal, prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de conduta culposa e da sua adequação para a insolvência ou para o seu agravamento. Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa (…) Esta previsão legislativa emerge da circunstância de a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, se revelar muitas vezes extraordinariamente difícil. Assim, e em ordem a possibilitar essa qualificação, o legislador consagrou um conjunto tipificado (e taxativo) de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência. Neste âmbito temporal, e perante a prova dos aludidos factos índice, previstos no nº2 do citado art. 186º, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, para os fins previstos no nº 1 do art. 186º do CIRE…”. O entendimento e fundamentação supra explanados, foi acolhido e prosseguido por este Relator nos Acórdãos proferidos nesta Relação em 03/01/2022 (proc. nº422/20.0T8VCT-C.G1), 03/07/2022 (proc.nº3570/20.03T8GMR-C.G1), 22/09/2022 (proc. nº125/19.9T8MDR-B.G1), e 17/11/2022 (proc. nº5015/20.0T8VNF-C.G1)[13] Já no nº3 do mesmo art. 186º (na redacção que lhe foi dada pela Lei nº9/2022), estatui-se que “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”. Neste normativo, o legislador consagrou situações de presunção ilidível (iuris tantum) de culpa grave respeitantes aos comportamentos nele enunciados, mas aqui já não se presume a existência do nexo causal, donde resulta que, para qualificar a insolvência como culposa, nas situações que se subsumam a uma das duas alíneas elencadas neste nº3, é necessário que se prove a verificação dos restantes requisitos legais supra enunciados, isto é, que se demonstre o resultado consistente na criação da situação de insolvência ou o agravamento dela e que se demonstre a existência de nexo causal entre a atuação com culpa grave (presumida) e aquela situação de criação ou agravamento. Saliente-se que a alteração deste normativo que foi introduzida pela Lei nº9/2022 e consistiu na introdução da palava «unicamente», demonstra e esclarece (se dúvidas houvesse) que a presunção reporta-se ao requisito legal da culpa grave, e não aos requisitos da criação/agravamento da insolvência e/ou do nexo causal. Como se decidiu no já referido Ac. do STJ de 06/11/2010[14], “O nº3 do mesmo art. 186.º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas. Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento”. E trazendo-se, novamente, à colação o já referido Ac. do TC de 26/11/2008[15], explica-se que “O n.º3 do mesmo artigo apresenta, por seu turno, um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Trata-se, contudo, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária. A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se actuou com culpa grave. Com efeito, como nas hipóteses do nº3 já se não presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram”. Revertendo ao caso em apreço, constata-se que, na sentença recorrida, considerou-se ser de qualificar a insolvência como culposa, uma vez que se entendeu que os factos provados preenchiam as situações elencadas nas alíneas a), b), d), e h) do nº2 do art. 186º, e que também preenchiam as presunções de culpa grave estabelecidas nas alíneas a) e b) do nº3 do mesmo preceito [saliente-se que na sentença recorrida não se considerou preenchida a situação elencada na alínea i) do nº2 do art. 186º]. O Requerido Insolvente, ora Recorrente, refuta a qualificação da insolvência como culposa, defendendo, essencialmente, que: «não se provou que a atuação do insolvente tenha sido intencional ou com negligência grosseira, nem que a sua conduta tenha-se traduzido num agravamento da situação económica da Insolvente, pois, e conforme os factos apurados, caso a transmissão da unidade económica não fosse efetuada, a empresa não iria ter liquidez para fazer face aos seus compromissos financeiros, advindo dai, muito provavelmente, uma insolvência com um número muito mais elevado de credores ao que consta atualmente na lista definitiva de créditos»; «não se vislumbrando ainda que resultasse da liquidação daquele ativo, montante suscetível de liquidar os salários e indemnizações que iriam ser reclamados pelos então trabalhadores, sendo que a solução encontrada pelo Interveniente, salvaguardou o emprego dos trabalhadores»; e «os factos apurados não são subsumíveis a nenhuma das situações previstas do n.º 2 e n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, pelo que o tribunal a quo não poderia ter qualificado a insolvência como culposa» [cfr. conclusões Z) a BB)]. Perante o teor das conclusões efectivamente formuladas, entendemos que o Requerido/Recorrente não coloca minimamente em causa o entendimento do Tribunal a quo de que a factualidade provada permite considerar preenchidas as presunções (factos-índice) previstas nas alíneas a), b), d) e h) do nº2 do art. 186º. Por um lado, a alegação de que «não se provou que a atuação do insolvente tenha sido intencional ou com negligência grosseira, nem que a sua conduta tenha-se traduzido num agravamento da situação económica da Insolvente» mostra-se absolutamente irrelevante e inconsequente já que: - atentas as considerações jurídicas que supra se realizaram, constitui entendimento pacífico e unânime na doutrina e na jurisprudência que o nº2 art. 186º estabelece presunções inilidíveis (e, por conseguinte, iuris et de iure), ou factos-índices, de insolvência culposa; - deste modo, verificado que o administrador do devedor (no caso, o Requerido era o gerente da Insolvente) praticou algum dos factos descritos nas alíneas a) a i) daquele nº2 [no caso, o Tribunal a quo entendeu que praticou actos e omissões que preenchem as situações descritas nas alíneas a), b), d) e h)], o Juiz, ope legis, sem admissão de prova em contrário, tem sempre que qualificar a insolvência como culposa, porque as presunções inilidíveis (factos-índices) aí consagradas abrangem a culpa grave e a existência do nexo de causalidade entre a actuação e a criação ou agravamento do estado de insolvência deste (a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, para os fins previstos no nº1 do mesmo preceito); - e, por conseguinte e independentemente da factualidade provada nos autos demonstrar ou não uma actuação com culpa grave e causadora ou agravante da insolvência, no caso em apreço, perante o preenchimento das situações descritas nas alíneas a), b), d) e h) do nº2 do art. 186º, não era (não é) necessária a alegação autónoma e/ou prova autónoma de factos que demonstrem a concreta existência de uma actuação/omissão com culpa grave (negligência grosseira) e de um nexo causal entre tal actuação e a criação ou agravamento do estado de insolvência Por outro lado, as alegações de que «caso a transmissão da unidade económica não fosse efetuada, a empresa não iria ter liquidez para fazer face aos seus compromissos financeiros, advindo dai, muito provavelmente, uma insolvência com um número muito mais elevado de credores ao que consta atualmente na lista definitiva de créditos» e/ou de que «não se vislumbrando ainda que resultasse da liquidação daquele ativo, montante suscetível de liquidar os salários e indemnizações que iriam ser reclamados pelos então trabalhadores, sendo que a solução encontrada pelo Interveniente, salvaguardou o emprego dos trabalhadores», independentemente da sua demonstração probatória, também se mostram totalmente irrelevantes e inconsequentes já que, atenta verificação dos comportamentos descritos nas alíneas a), b), d) e h) do nº2 do art. 186º, estamos perante presunções inilidíveis, que não admitem prova em contrário e que conduzem inexoravelmente à qualificação da insolvência como culposa, mesmo que a falta de realização da «transmissão da unidade económica» pudesse conduzir a uma insolvência com dívidas de valor superior e/ou ao desemprego dos trabalhadores. Por fim, a alegação de que «os factos apurados não são subsumíveis a nenhuma das situações previstas do n.º 2 e n.º 3 do artigo 186.º do CIRE» tem um caracter completamente genérico e abstracto, não se se concretizando um único fundamento e/ou explicação sobre a razão (ou razões) pela qual os factos provados considerados pelo Tribunal a quo para o efeito não integraram (ou não podem integrar) os comportamentos descritos nas alíneas a), b), d) e h) do nº2 do art. 186º. Ou seja, o Requerido/Recorrente limita-se a alegar a sua discordância com o entendimento do Tribunal a quo, mas não concretiza nem explica as razões (as bases) de tal discordância, o que, por si só, é insusceptível de constituir um fundamento juridicamente válido para se concluir que o Tribunal a quo cometeu um erro de direito no enquadramento legal dos factos (e dos inerentes comportamentos). Neste “quadro”, entendemos que o presente recurso não contém concreta argumentação e/ou fundamentação que coloque em causa o entendimento do Tribunal a quo (expresso na sentença recorrida) no sentido de que se encontram preenchidas as presunções (factos-índice) que integram as alíneas a), b), d) e h) do nº2 do art. 186º, o que constitui razão bastante e suficiente para que se conclua pela falta de fundamento e improcedência da presente pretensão recursória. Porém, ainda que assim não fosse, sempre continuaria a não assistir razão ao Requerido/Recorrente uma vez que, analisando a factualidade provada, impõe concluir-se que estão efectivamente preenchidas três das quatro presunções (factos-índice) consideradas pelo Tribunal a quo na sentença recorrida Explicando. Quanto à presunção (facto-índice) da alínea a) - «Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor». O seu funcionamento assenta nos seguintes pressupostos: a) a destruição, danificação, inutilização, ocultação ou o fazer desaparecer de património do devedor; b) que esse património constitua a totalidade do património do insolvente ou uma parte considerável do mesmo; c) e que esses actos sejam praticados nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência[16]. No que respeita àquele primeiro pressuposto, entendemos que: «destruição» corresponde à eliminação física de um bem da ordem natural das coisas; «danificação» significa causar estragos materiais num bem, estragos esses que implicam uma efectiva depreciação do seu valor económico; e «inutilização» consiste em provocar estragos materiais num bem num tal grau que o mesmo deixa de poder ser utilizado para o uso habitual ou fim normal. Já quanto aos termos «ocultação» e «fazer desaparecer» suscitam-se algumas dúvidas sobre o seu sentido interpretativo. Em regra, entendemos que «ocultação» corresponderá a esconder um bem por forma a seja desconhecido o seu paradeiro, e «fazer desaparecer» consistirá em subtrair o bem da disponibilidade física ou jurídica do devedor, colocando na disponibilidade de terceiros, por forma a que os credores desconheçam o seu paradeiro ou a que, mesmo que conheçam o paradeiro, não lhe podem aceder do ponto de vista jurídico ou vêm esse acesso muito dificultado[17]. Saliente-se que o termo «ocultado» utilizado neste normativo deve ser interpretado em sentido amplo, sob pena de nunca poder ocorrer uma situação de «ocultação de imóveis», já que estando estes, por natureza, integrados no solo, ou estando estes sujeitos, obrigatoriamente, a registo, não são susceptíveis de serem ocultados em termos físicos e/ou em termos públicos: “(…) não pode ser dada a interpretação restrita (…) Se assim fosse, efectivamente não haveria ocultação de imóveis, pelo que vazia ficava a previsão legal no a eles atinente e sendo certo que tal termo também se lhes refere, que não apenas aos bens móveis, porque tal segmento normativo não opera tal restrição”[18]. E a mesma interpretação se deve fazer em relação ao segmento normativo «fazer desaparecer». As dúvidas suscitam-se principalmente sobre se tais segmentos normativos abrangem ou não os casos em que o devedor vende bens a terceiros, e situações similares [e até quanto à sua distinção relativamente à situação prevista na alínea d)], questão sobre a qual tem existido alguma divergência na Jurisprudência. No já citado Ac. da RC de 19/12/2012[19], entendeu-se que deve abranger casos em que “o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu accionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respectiva acção legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho”. Prosseguindo este mesmo entendimento, o Ac. da RC de 28/05/2003[20] sustenta que estão incluídas as situações de venda de bens a sociedade controlada direta ou indiretamente pelo alienante/insolvente, como a hipótese de alienação de património a familiares chegados (filhos, pais, irmãos ou sobrinhos), em que o alienante/insolvente continua a deter o poder de facto sobre o património imobiliário, como aqueles outros exemplos clássicos, em que o alienante vende o imóvel e faz desaparecer o preço em dinheiro recebido ou transforma o preço em títulos ao portador. Em sentido contrário, no Ac. da RC de 28/05/2003[21] sustentou-se que a previsão típica da alínea a) do nº2 do art.186º “é dirigida a acções materiais, isto é, acções que incidam directa e imediatamente sobre as coisas que integram o património do devedor, em consequência das quais este sofre pelo menos considerável afectação, e não uma actuação dirigida à alteração da situação jurídica do bem (…) A entender-se de outro modo, qualquer negócio de disposição de bens da devedora, ainda que legítimo, desde que preenchido o requisito da segunda parte da previsão legal implicaria a qualificação da insolvência como culposa, porque dele sempre resultaria dificultado o accionamento desse mesmo bem pelos credores (…). No que se reporta à al. d), (…) Para o efeito da previsão normativa, são actos de disposição tanto aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda ou a doação dos bens) como os que, não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem, formulando no entanto o legislador a exigência adicional de que o acto de disposição seja feito em proveito pessoal dos administradores ou de terceiros”. Já no Ac. da RP de 24/09/2020[22], entendeu-se que preenchia simultaneamente as presunções inilidíveis de insolvência culposa previstas nas alíneas a) e d) do nº2 do art. 186º, o comportamento dos insolventes que “fizeram desaparecer o quinhão hereditário que o insolvente tinha na herança de sua mãe, dispondo dele, de forma gratuita, em benefício dos seus filhos, sendo que pelas avultadas dívidas já vencidas não tinham outro património que por elas pudesse responder”. Porém, como se dá nota no já citado Ac. desta RG de 02/05/2024[23], “é largamente maioritário o entendimento que tais expressões significam o retirar do bem da esfera jurídica do devedor em que se devia encontrar e a sua colocação na esfera jurídica de terceiro, ou seja, trata-se de um descaminho do bem provocada por ato material ou através de negócio juridicamente válido ou apenas aparentemente válido (negócio simulado), que impeça ou dificulte o acesso por parte dos credores ao bem, não se exigindo, portanto, uma ocultação no sentido físico deste, mas apenas no aspeto jurídico (v.g. venda efetiva ou meramente aparente – venda simulada (…) - de bens da sociedade controlado pelo alienante a familiares chegados ou em que o alienante faz desaparecer a quantia recebida pela venda) (…) Neste sentido, expende Pedro Caeiro (…) que as condutas (…) «provocam uma diminuição real do património (destruição, danificação, inutilização ou causação do desaparecimento de parte do património), o devedor deprecia realmente o valor do seu património, causando por essa forma uma situação de insolvência. No que diz respeito à expressão “fazer desaparecer parte do seu património”, parece que ela servirá para atalhar aos casos em que não se descobre o paradeiro de bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor. Não importa se eles foram objeto de uma alienação real ou tão-só fictícia; importa tão-só que os credores não conseguem atingi-los para garantir a satisfação das suas dívidas, pelo que o valor ostensivo do património resulta, em qualquer caso, diminuído»”. Ainda assim, parece-nos que será perante o quadro factual de cada caso concreto que o Tribunal poderá subsumir tal tipo de comportamentos do devedor/insolvente na previsão da alínea a) ou d) do art. 186º/2, ou em nenhuma delas. Referindo-se à previsão da alínea a), explicam Carvalho Fernandes e Luís Labareda[24] que “existem na norma em apreço, conceitos indeterminados, que envolvem uma ponderação casuística com vista à integração na previsão normativa, das condutas dos administradores”. No que toca ao segundo pressuposto - «totalidade do património ou a parte considerável do mesmo» -, mostra-se indispensável que os actos em causa, quando não abranjam a «totalidade do património», se reportem, pelo menos, a uma parte com relevo patrimonial significativo, o que impõe a análise da importância dos bens em questão no contexto do património do devedor[25]. No caso em apreço, ficou probatoriamente demonstrado que, no dia 10/01/2020, BB (gerente e aqui Requerido/Recorrente), agindo em nome e em representação da sociedade agora insolvente desfez-se de todos os ativos desta, para o que celebrou com a sociedade “EMP02..., Unipessoal, L.da”, a transmissão da unidade industrial que aquela detinha e explorava no local da sua sede, composta pelas máquinas e equipamentos discriminados na relação junta a fls 18 - Anexo I, nela incluindo os 17 trabalhadores identificados no Anexo II, pelo preço 49.200,00€, valor este que não fez ingressar na conta bancária da sociedade sua representada que veio a ser declarada insolvente (e iniciada em 29/04/2021) nem serviu na sua totalidade para abater o passivo da mesma, sendo que, em consequência disto, a sociedade insolvente ficou ainda impossibilitada de prosseguir com a sua atividade, e sendo que o administrador da insolvência não logrou apreender qualquer bem ou direito para a massa insolvente [cfr. factos provados b), c), d), g) e l)]. Em face deste manancial factual provado, temos necessariamente que concluir que está preenchida a presunção (facto-índice) da alínea a) do nº2 do art. 186º: por um lado, estamos perante actos que, conjugados entre si, fizeram desaparecer património da devedora insolvente (o acto de «transmissão da unidade industrial» abrangeu todos os activos da sociedade e o valor recebido do respectivo preço nem sequer entrou nas contas da sociedade e nem serviu na sua totalidade para satisfazer o passivo desta, pelo que os bens ficaram fora da disponibilidade jurídica da sociedade e os credores ficaram impedidos de lhe aceder); por outro lado, o «desaparecimento» respeitou à totalidade do património (em razão da «transmissão» dos seus activos e em razão da não entrada nas suas contas do valor do respectivo preço, esta não poder continuar a sua actividade e deixou de ter qualquer bem e/ou direito que pudesse ser apreendido para a massa insolvente); e, por fim, tais actos foram praticados cerca de um ano e cinco meses antes do início do processo de insolvência (portanto, no período dos três anos anteriores exigido pela lei). E, como anteriormente já se explicou, ainda que uma das preocupações do gerente fosse a salvaguarda dos postos de trabalhos, o que a proposta de «transmissão da unidade industrial» desde logo salvaguardava [cfr. facto provado s)], tal circunstância é legalmente insusceptível de conduzir ao afastamento da verificação desta presunção. Por conseguinte, subscreve-se a sentença recorrida na parte em que considerou preenchida a presunção (o facto-índice) prevista na alínea a) do nº2 do art. 186º. Quanto à presunção (facto-índice) da alínea b) - «criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas». Embora na sentença recorrida se tenha considerado verificada esta presunção, analisando a sua fundamentação (e salientando-se que na mesma não foi seguida uma ordem de precedência lógica – apreciação, em primeiro lugar, do preenchimento ou não das presunções previstas no nº2 do art. 186º e, em segundo lugar, e caso não esteja verificada nenhuma delas, apreciação do preenchimento das presunções de culpa, e demais requisitos legais, estabelecidas no nº3 do mesmo preceito), não se vislumbra qualquer subsunção (enquadramento) dos factos provados na previsão legal desta alínea b). A situação abrangida nesta presunção é a criação ou agravamento artificial de passivos ou redução de lucros do devedor, sendo que, como resulta da utilização da expressão «nomeadamente», na parte final desta alínea consagraram-se exemplos de actos de empobrecimento do devedor susceptíveis de preencher aquele conceito indeterminado («criação ou agravamento artificial»). Deste modo, o pressuposto essencial ao seu funcionamento consiste em que, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, os seus administradores (de direito ou de facto) criem ou agravem artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzam lucros, espelhando essa sua conduta na contabilidade do devedor (ou seja, que nela inscrevam passivos ou prejuízos que, na realidade, são inexistentes, e/ou que nela inscrevam passivos e/ou prejuízos superiores àqueles que realmente existem, e/ou que nela inscrevam lucros inferiores àqueles que foram efectivamente obtidos pelo devedor). A este pressuposto acresce a necessidade de verificação de uma consequência («causando»), designadamente ao nível patrimonial, decorrente dessa contabilidade fictícia e enganosa, consagrando o legislador, como um exemplo dessa consequência, a celebração de negócio ruinoso para o devedor em proveito próprio do administrador ou em proveito de pessoa com ele especialmente relacionada. Ou seja, não se nos afigura que a mera verificação da situação de «criação ou agravamento artificial do passivo ou prejuízo, ou redução dos lucros», sem qualquer tipo de consequência, seja suficiente para o preenchimento de presunção aqui em causa, até porque este tipo de interpretação tornaria totalmente inútil o segmento normativo «causando» inserto no texto da lei (e relembre-se que não pode ser considerado um sentido interpretativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal - cfr. art. 9º/2 do C.Civil), bem como a situação exemplificativa expressa na letra da lei (pelo que não se corrobora o entendimento sufragado pelo Ac. da RE de 16/05/2019[26]). Percorrendo o manancial factual provado, este Tribunal ad quem não detecta um único facto que consubstancie uma situação de «criação ou agravamento artificial de passivos ou redução de lucros do devedor», isto é, que o gerente (Requerido) tenha alterado fictícia e enganosamente a contabilidade da sociedade insolvente, o que, aliás, se revela como dificilmente concretizável uma vez que ficou comprovado que, desde o início de 2020, a insolvente não tem sequer contabilidade organizada [cfr. factos provados h) e i)]. Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, não se pode subscrever a sentença recorrida na parte em que considerou preenchida a presunção (o facto-índice) prevista na alínea b) do nº2 do art. 186º e, por via disso, não pode a insolvência ser qualificada como culposa com base na mesma. Quanto à presunção (facto-índice) da alínea d) - «Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros». O funcionamento desta presunção pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: a) que sejam praticados actos de disposição dos administradores, de facto ou de direito, do devedor realizados nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) que tais actos incidam sobre bens do devedor/insolvente; e c) que esses actos tenham sido realizados em proveito pessoal dos administradores ou de terceiros (isto é, em benefício pessoal destes últimos e em detrimento do devedor)[27]. O referido «proveito pessoal» compreende não só as situações em que, por negócio jurídico, a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o administrador ou terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido que estes usem os bens, que deles retiram proveito e/ou utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para o insolvente e este fica, na prática, numa situação equivalente à de «não proprietário» desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos[28]. E mais se nos afigura que tal «proveito pessoal» tem traduzir um benefício que tenha um relevo patrimonial significativo: como se explica no já citado Ac. da RP de 07/12/2006[29], “embora a previsão da al. d) não faça qualquer referência à importância económica dos bens objeto dessa atuação e à necessidade de o seu relevo patrimonial ser significativo - ao contrário da al. a) -, isso é assim porque, cremos, a preocupação subjacente à previsão legal já não é diretamente a preservação do património da devedora (indiretamente sim), mas antes evitar que esse património que deverá ser afeto à satisfação dos credores redunde afinal em benefício ilegítimo dos próprios proprietários ou de terceiros. Todavia, julgamos que em qualquer circunstância esses bens têm de ter algum relevo económico, não nos parecendo conforme à ordem jurídica qualificar uma insolvência como culposa e imputar aos gerentes as consequências dessa qualificação apenas porque um dos administradores ou um terceiro se apropriou de um bem da insolvente de escasso valor económico, cujo interesse para o funcionamento da devedora nas condições à data não fosse significativo” (os sublinhados são nossos). Revertendo, de novo, ao manancial factual provado, constata-se que: no dia 10/01/2020, o gerente (Requerido/Recorrente), agindo em nome e em representação da sociedade agora insolvente desfez-se de todos os ativos desta, para o que celebrou com a sociedade “EMP02..., Unipessoal, L.da”, a transmissão da unidade industrial que aquela detinha e explorava no local da sua sede, composta pelas máquinas e equipamentos discriminados na relação junta a fls 18 - Anexo I, nela incluindo os 17 trabalhadores identificados no Anexo II, pelo preço 49.200,00€, valor este que não fez ingressar na conta bancária da sociedade sua representada que veio a ser declarada insolvente (e em processo iniciado em 29/04/2021) nem serviu na sua totalidade para abater o passivo da mesma; parte dos € 40.000,00 recebidos pelo gerente (valor líquido sem o IVA, montante de € 9.200,00) foram usados para pagamento dos salários correspondentes a alguns dias do último mês de trabalho antes da transmissão e para devolução do valor que o gerente tinha injectado na sociedade (de 13/11/2018 a 15/10/2019, o gerente da Devedora injetou a quantia de, pelo menos, €39.410,00, recorrendo a capitais próprios, bem como efetuando dois contratos de financiamento de crédito pessoal com duas instituições financeiras, no montante de €10.458,97 e no montante de €10.000,00) e, desse montante recebido, foi paga a quantia de €10.000,00 correspondente a um empréstimo obtido particularmente aquando da constituição da sociedade [cfr. factos provados b), c), d), p), q), t) e u)]. Neste «quadro» factual, torna-se obrigatório concluir no sentido do preenchimento da presunção (facto-índice) da alínea d) do nº2 do art. 186º: por um lado, cerca de um ano e cinco meses antes do início do processo de insolvência, o gerente (Requerido/Recorrente) praticou actos de disposição de bens da sociedade que viria a ser declarada insolvente (o acto de «transmissão da unidade industrial» abrangeu todos os activos da sociedade e o valor recebido do respectivo preço nem sequer entrou nas contas da sociedade); e, por outro lado, tais actos conduziram a um concreto e efectivo benefício pessoal do gerente em detrimento do devedor (o valor recebido a título de preço daquela «transmissão» não entrou nas contas da sociedade, apesar de ser ela e não o gerente a proprietária do dinheiro, tendo o gerente utilizado na sua quase totalidade para retirar para si o dinheiro que havia injectado na sociedade e dar pagamento a empréstimos ontraídos em nome pessoal). Também neste âmbito, e pelas razões já anteriormente explicadas, é juridicamente irrelevante para afastamento desta presunção que tenha ficado demonstrado que uma das preocupações do gerente fosse a salvaguarda dos postos de trabalhos, o que a proposta de «transmissão da unidade industrial» desde logo salvaguardava [cfr. facto provado s)]. Por conseguinte, também se subscreve a sentença recorrida na parte em que considerou preenchida a presunção (o facto-índice) prevista na alínea d) do nº2 do art. 186º. E quanto à presunção (facto-índice) da alínea h) - «Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor». A contabilidade corresponde à compilação, registo, análise e apresentação de informações, em termos monetários, sobre as operações patrimoniais do comerciante/empresa, devendo a sua elaboração ser orientada pelos princípios de clareza e de verdade, implicando o arquivo em pastas próprias, por ordem cronológica, de todos os documentos relativos a actos com expressão patrimonial (compras e vendas, entradas e saídas de caixa, operações bancárias, etc), tudo de forma a permitir que as autoridades públicas verifiquem da regularidade tributária e que os sócios tenham conhecimento da situação patrimonial da empresa, e servindo também para verificar a regularidade da actuação do comerciante, nomeadamente em caso da insolvência, tendo em vista o interesse público[30]. Já a contabilidade organizada é um regime fiscal obrigatório para as empresas constituídas em sociedades comerciais, designadamente as sociedades por quotas, que «deve reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes» [cfr. art. 17º, nº3, alínea b), do C.I.R.P.Colectivas], e cuja execução, segundo o nº2 do artigo 123º do C.I.R.P.Colectivas, exige que «todos os lançamentos devam estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário», e que «as operações sejam registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras»[31]. O normativo supra referido compreende três situações distintas e independentes entre si: 1) incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada; 2) manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade; e 3) prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Das três situações tipificadas, para o caso em apreço (como adiante melhor se explicará) apenas releva a primeira, estando manifestamente excluídas as segunda e terceira. No que concerne à primeira daquelas situações, regista-se que o legislador recorreu (uma vez mais) a um conceito indeterminado consistente no segmento «incumprido em termos substanciais», o que impõe que se apele à materialidade em discussão e às circunstâncias específicas do caso concreto[32]. Como se refere no Ac. do STJ de 19/10/2021[33], “A utilização desse conceito indeterminado - o incumprimento em termos substanciais - obriga a que se atenda às «circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor» e tendo por referência o pressuposto revisto no nº1 do art.º 186º”[34], mais se explicando que “A contabilidade de uma empresa assume relevo importante nesta questão da qualificação, uma vez que o conjunto dos elementos escriturados deve demonstrar fielmente e permitir avaliar a situação patrimonial e financeira dessa empresa. O aludido incumprimento - que, por substancial, pressupõe a omissão de elementos relevantes e essenciais em termos contabilísticos - há-de, pois, influir nessa percepção, impedindo-a, impossibilitando ou prejudicando o conhecimento das causas da insolvência ou do agravamento destas” (o sublinhado é nosso). Debruçando-se sobre a interpretação desta situação em análise, sustenta-se no Ac. do STJ de 05/07/2022[35] que “é exato o que afirma o acórdão recorrido, quando afirma que: «No caso de a empresa não ter contabilidade organizada, o prejuízo para a compreensão da situação do devedor é total: a situação do devedor não pode, por forma nenhuma, ser alcançada pela contabilidade. É irrelevante que a empresa não tenha atividade ou bens porque ninguém de fora consegue perceber se é essa ou não a situação (…) A lei prevê, o incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada como circunstância qualificadora. Tal permite excluir pequenas falhas - um hiato de transição entre contabilistas, uma falha do sistema informático, períodos de férias dos funcionários encarregues do lançamento de documentos, só para dar alguns exemplos - e considerar como integrando esta alínea a omissão quando frustre os objetivos legais, ou seja, quando impossibilite o acesso a informação útil que permita a tomada conscienciosa de decisões. Quando esses trabalhos param e não são retomados num curto espaço de tempo, podemos considerar que há incumprimento substancial. (…) [T]endo sido apurado que a contabilidade deixou de ser organizada, não havia que apurar, diferentemente do que defende o recorrente se havia prejuízo para a compreensão da situação do devedor, porque esse prejuízo é inerente à factualidade apurada (…) impõe-se concluir que ficou necessariamente criado um prejuízo para a compreensão da situação da sociedade, na medida em que não se tratou de uma falha temporária ou circunstancial no cumprimento da apontada obrigação de manutenção de contabilidade organizada, mas sim de uma omissão absoluta de manutenção de toda e qualquer contabilidade (…) não procedeu à organização e tratamento contabilístico desses elementos, não efetuando, também, a entrega das competentes declarações fiscais, donde se retira que incumpriu a obrigação de manter contabilidade organizada, incumprimento que foi substancial porquanto se tratou de um incumprimento geral, ou seja, a total omissão de elaboração das demonstrações financeiras e cumprimento das obrigações fiscais, designadamente todas as IES e todas as declarações de IRC e a grande maioria das declarações de IVA (…). Neste enquadramento, mais se considerou que “Mostrando-se que a sociedade insolvente jamais providenciou no sentido de ser mantida contabilidade, tendo existido à margem do cumprimento de tal obrigação legal, ocorre fundamento para a qualificação da insolvência como culposa, nos termos da alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE” (o sublinhado é nosso). Assume relevância sobre a interpretação do aludido conceito indeterminado («incumprido em termos substanciais») a fundamentação desenvolvida no Ac. desta RG de 12/01/2017[36] (com referência a Doutrina e Jurisprudência): “(…) o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada preenche por si a primeira parte da previsão da citada al. h). Segundo Pires Cardoso (…) «a contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira em determinado momento, os resultados - lucros e perdas de cada exercício. E assim como lhe releva os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la. (...) Mas além disto, a escrituração mercantil é também uma garantia para quem contrata com os comerciantes, pois nela muitas vezes se fundam reclamações das pessoas que se sentem lesadas, e é nos seus lançamentos que vai buscar-se a prova para fazer valer em juízo ou fora dele, essas mesmas reclamações. (...) Mais ainda: A escrituração é também obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa» (…) No mesmo registo Menezes Cordeiro (…) escreve: «a escrituração terá começado por servir os interesses do próprio comerciante (…) Mas além disso, desde cedo se verificou que servia, também, os interesses dos credores e isso a um duplo título: - incentivando o comércio cuidadoso e ordenado, a escrituração conduz a práticas que põem os credores (mais) ao abrigo de falências e bancarrotas; - permitindo conhecer a precisa situação patrimonial e de negócios, a escrituração faculta informações e determina responsabilidades. A partir daí, reconheceu-se que a escrituração servia toda a comunidade, facultando ainda ao Estado actuar, com fins de polícia, de fiscalização ou de supervisão». A contabilidade assume, assim, particular relevância para aferir se a actividade da sociedade respeitou as normas que protegem os terceiros que com ela contratam, permite controlar e evitar a concorrência desleal e assim proteger as outras empresas do mesmo sector, os próprios sócios da sociedade, não gerentes para que estes possam controlar a actividade da sociedade e os interesses gerais da comunidade, designadamente para possibilitar ao Estado arrecadar os impostos legalmente fixados. Apesar da relevância em abstracto da contabilidade para se verificar a previsão da 1ª parte da al. h) do nº 2 art. 186º não é suficiente qualquer deficiência, tem que ser uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas e com influência na percepção que tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado. Assim, como se escreve no Ac. da Rel. de Coimbra de 08-02-2011 (…) o incumprimento de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental” (os sublinhados são nossos» Relevante igualmente se nos afigura o Ac. do STJ de 06/09/2022[37], o qual, considerando que “IV - Mostrando-se que a sociedade insolvente não apresentou escrita contabilística com reporte a todo um ano, cai-se na hipótese de insolvência culposa, nos termos da alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE”, realça: “diferentemente do que parece defender o Recorrente, não há necessidade de fazer intervir aqui qualquer juízo acerca do prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor (embora se antolhe evidente que a referida omissão de contabilidade organizada implica necessariamente um tal prejuízo), requisito este que apenas relevaria na hipótese (e não é disso que aqui se trata) de estar em causa uma irregularidade contabilística, não uma ausência absoluta de contabilidade organizada reportada ao lapso de tempo de um ano. E, repetindo o que acima se disse, a alínea h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE fixa uma presunção absoluta (inilidível) de culpa e de causalidade relativamente à situação de insolvência (criação ou agravamento), sendo irrelevante que existam eventualmente outras causas que tenham concorrido para a insolvência” (o sublinhado é nosso). Acresce que, existindo um incumprimento que seja efectivamente substancial/relevante da obrigação de manutenção da contabilidade organizada, fica vedada a possibilidade de, através da mesma, se compreender a situação patrimonial e financeira da empresa (sociedade), isto porque não existem os elementos contabilísticos que legalmente deviam existir. Deste modo, registando-se uma omissão (incumprimento) substancial da obrigação em causa, então já lhe é inerente a existência de um prejuízo para a compreensão da situação da empresa. Deste modo, acolhe-se o entendimento sufragado no supra citado Ac. do STJ de 06/09/2022[38] e, por via disso, considera-se que estando demonstrados factos que comprovam uma omissão (incumprimento) em grau substancial da obrigação de manutenção da contabilidade organizada, está preenchida a primeira situação prevista na alínea h) do nº2 do art. 186º. Revertendo ao caso em apreço e atento o manancial factual provado, verifica-se que está demonstrado que, desde pelo menos os princípios de 2020 que BB não cuidou ou mandou organizar a contabilidade da sua representada, porque a sociedade que veio a ser declarada insolvente não fornecia ao seu contabilista certificado os elementos necessários para organizar a contabilidade e cumprir as obrigações fiscais e outras, tendo este acabado por renunciar às suas funções em 12-08-2020 e desde então não foi nomeado outro [cfr. factos provados h) e i)]. Desta factualidade decorre, forçosamente, a conclusão de que também se encontra preenchida a presunção (facto-índice) da alínea h) do nº2 do art. 186º uma vez que, durante cerca de um ano e cinco meses anteriores ao início do processo de insolvência não cumpriu o dever básico de manter uma contabilidade minimamente organizada, resultando mesmo numa omissão absoluta de manutenção de contabilidade organizada durante tal significativo período de tempo e que, atentas as circunstâncias específicas do caso concreto, consubstancia um incumprimento que tem que ser qualificado como substancial/relevante. Por conseguinte, igualmente se subscreve a sentença recorrida na parte em que considerou preenchida a presunção (o facto-índice) prevista na alínea h) do nº2 do art. 186º. Encontrando-se preenchidas três das presunções (factos-índice) previstas no nº2 do art. 186º (e bastava apenas uma) e como se tratam presunções inilidíveis quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente para a criação ou agravamento da situação de insolvência, então a insolvência tem que ser qualificada (automaticamente) como culposa, E, por força da verificação destas presunções inilidíveis que qualificam a insolvência como culposa, está prejudicada (por ser completamente desnecessária) a apreciação sobre se verificam ou não as presunções de culpa grave estabelecidas nas alíneas a) e b) do nº3 do art. 186º, e os restantes requisitos legais da criação/agravamento da insolvência e do nexo causal, uma vez que qualquer que fosse a conclusão que viesse a ser obtida, a insolvência sempre continuaria a ser qualificada como culposa. Atentas as conclusões supra alcançadas, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que a insolvência tem que ser qualificada como culposa e, por via disso, improcede na íntegra o fundamento de recurso quanto a esta questão [não se verifica aqui o erro de direito que se imputava à sentença recorrida). * 4.3. Do Mérito do RecursoPerante as respostas alcançadas na resolução das questões supra apreciadas, deverá julgar-se improcedente o recurso de apelação interposto pelo Requerido/Recorrente (gerente afectado) e, por via disso, deverá manter-se a sentença recorrida [sem prejuízo de passar a integrar a alteração da matéria de facto supra determinada quanto à eliminação do facto não provado b)]. * 4.4. Da Responsabilidade quanto a CustasImprocedendo o recurso, uma vez que ficou vencido, deverá o Requerido/Recorrente suportar integralmente as custas do recurso - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013. * * 5. DECISÃOFace ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Requerido/Recorrente e, em consequência, mantêm a sentença recorrida [sem prejuízo de passar a integrar a alteração da matéria de facto determinada quanto à eliminação do facto não provado b)]. Custas do recurso pelo Requerido/Recorrente. * * * Guimarães, 27 de Junho de 2024. (O presente acórdão é assinado electronicamente) Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício; 1ªAdjunta - Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade; 2ºAdjunto - Fernando Manuel Barroso Cabanelas. [1]A presente decisão é redigida segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, mas respeita-se, no caso das transcrições, a grafia utilizada nos textos originais. [2]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139. [3]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [4]Ac. da RG de 10/07/2018, Juiz Desembargador José Amaral, proc. nº2122/15.4T8VCT-E.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [5]Cfr. o citado Ac. da RG de 10/07/2018, Juiz Desembargador José Amaral. [6]Cfr. Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [7]Cfr. Ac. da RP de 11/10/2010, Juíza Desembargadora Cecília Agante, proc. nº243/09.1TJPRT-G.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp. [8]In DR, 2ªSérie, nº9, de 14/01/2009. [9]Juiz Conselheiro Serra Baptista, proc. nº46/07.8TBSVC-0.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [10]Juiz Conselheiro José Rainho, proc. nº7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [11]Juiz Desembargador Pedro Damião e Cunha, proc. nº109/14.3TBCHV-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [12]No mesmo sentido, entre outros, Ac. da RG de 28/03/2019, Juíza Desembargadora Raquel Baptista Tavares, proc. nº1266/17.2T8GMR-B.G1, e Ac. da RG de 10/07/2018, Juíza Desembargadora Helena Melo, proc. nº603/15.9T8VNF-B.G1, ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jtrg. [13]Este último está disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [14]Juiz Conselheiro Serra Baptista, proc. nº46/07.8TBSVC-0.L1.S1. [15]In DR, 2ªSérie, nº9, de 14/01/2009. [16]Cfr. Ac. da RG de 09/07/2020, Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, proc. nº2622/19.7T8VNF-B.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [17]Cfr. Ac. RG 02/05/2024, Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, proc. nº2125/23.5T8VCT-D.G1 (no qual o aqui relator e a aqui 1ªadjunta foram adjuntos), disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [18]Ac. da RC de 19/12/2012, Juiz Desembargador Carlos Moreira, proc. nº2458/10.0TBPBL-E.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc. [19]Juiz Desembargador Carlos Moreira, proc. nº2458/10.0TBPBL-E.C1. [20]Juiz Desembargador Moreira do Carmo, proc. nº102/12.0TBFAG-B.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc. [21]Juiz Desembargador Moreira do Carmo, proc. nº 102/12.0TBFAG-B.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc. [22]Juiz Desembargador Rodrigues Pires, proc. nº2297/19.3T8OAZ-C.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp. [23]Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, proc. nº2125/23.5T8VCT-D.G1. [24]In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2009, p. 612. [25]Cfr. Ac. RG 09/04/2019, Juíza Desembargadora Margarida Almeida Fernandes, proc. nº10117/15.1T8VNF-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [26]Juiz Desembargador Francisco Matos, proc. nº525/13.8TBSLV-C.S1.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre. [27]Cfr. o citado Ac. da RG de 09/07/2020, Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, proc. nº2622/19.7T8VNF-B.G1. [28]Cfr. Ac. da RP de 07/12/2016, Juiz Desembargador Aristides Rodrigues de Almeida, proc. nº262/15.9T8AMT-D.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc. [29]Juiz Desembargador Aristides Rodrigues de Almeida, proc. nº262/15.9T8AMT-D.P1. [30]Cfr. Luís Brito Correia, in Direito Comercial, Vol. I, p. 253 e 257. [31]Cfr. Ac. RG 10/09/2020, Juiz Desembargador Heitor Gonçalves, proc. nº1373/17.T8CHV.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [32]Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código de Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, p. 719. [33]Juiz Conselheiro Pinto de Almeida, proc. nº421/19.5T8GMR-A.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [34]No mesmo sentido, Ac. STJ 02/03/2021, Juíza Conselheira Ana Paula Boularot, proc. nº3071/16.4T8STS-F.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [35]Juiz Conselheiro José Rainho, proc. nº15973/18.9T8SNT-A.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [36]Juiz Desembargador José Cravo, proc. nº2253/15.0T8GMR-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [37]Juiz Conselheiro José Rainho, proc. nº291/18.0T8PRG-C.G2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [38]Juiz Conselheiro José Rainho, proc. nº291/18.0T8PRG-C.G2.S1. |