Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | MARIA AMÁLIA SANTOS | ||
| Descritores: | CONTRATO DE FORNECIMENTO DE GÁS PAGAMENTO NÃO EFECTUADO DE FACTURA PRAZO DE PRESCRIÇÃO SUSPENSÃO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/20/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | - O contrato de fornecimento de gás é um contrato que a doutrina vem qualificando como de contrato de compra e venda, de fornecimento, ou atípico, sendo, no entanto, um contrato unitário duradouro, e não um contrato criador de uma relação obrigacional reiterada, periódica ou repetida que vá surgindo de novo para os períodos ulteriores mediante novos contratos. - A Lei n.º 23/96, de 26.07 (Lei de proteção dos serviços públicos essenciais) consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais, em ordem à proteção do utente, no qual se inclui o serviço de fornecimento de gás natural (art.º 1º, alínea c) da citada Lei). - O art.º 10º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho (com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 12/2008, de 26 de fevereiro, e pela Lei n.º 24/2008, de 2 de junho), estipula um prazo de prescrição de 6 meses, quer para o recebimento do preço dos serviços prestados, quer para a propositura da ação para a cobrança dos mesmos, e conta-se da data do vencimento dos serviços efetivamente prestados (e não da data da emissão da respetiva fatura). - Uma norma legal com a força de Lei (aprovada pela Assembleia da Republica), como é o caso da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, nunca poderia ser alterada por um Regulamento – no caso o Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, emitido pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), e que estabeleceu Medidas Extraordinárias no Setor Energético por Emergência Epidemiológica Covid-19, –, e que alargou prazos regulamentares nele previstos mas o dobro, por se tratar de norma (Lei) com força hierárquica superior ao Regulamento administrativo. - O art.º 321º do CC, relativo à suspensão dos prazos da prescrição por ocorrência de força maior, como regra geral de direito, deve ser aplicado aos casos de prescrição, em conjugação com as Leis da Pandemia - Lei n.º 1-A/2020, de 12.3. e Lei 4-B/2021, de 1.2., que impuseram a suspensão de prazos processuais durante os períodos de tempo nelas considerados -, impondo a suspensão dos prazos de prescrição nos últimos 3 meses do terminus do prazo de prescrição em curso. - Outra causa de suspensão dos prazos de prescrição é a prevista no art.º 17.º- E nº 7 do CIRE, (em vigor à data da instauração da Injunção - excluindo portanto as mais recentes alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, de 11/01), desde a data do despacho de nomeação do Administrador Judicial Provisório, e a data do trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação, e é aplicável a todos os credores, mesmo que não tenham reclamado o seu crédito no PER, não lhe tenha sido o mesmo ali reconhecido, nem, consequentemente, tenha sido admitido às negociações em curso. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO Foi proferida nos autos (no Despacho Saneador) a seguinte decisão: “Da prescrição: Em sede de oposição, a ré defendeu-se por excepção, alegando que o direito da Autora a exigir o pagamento se mostra extinto por prescrição, com excepção do que respeita ao valor da factura n.º .......8, relativa a serviços prestados de 1 a 30.09.2020, e da factura n.º .......9, relativa a serviços prestados de 1 a 31.10.2020, nos valores de 2.860,00 Eur. e de 5.045,12 Eur., respectivamente, por terem decorrido mais de seis meses desde a prestação dos serviços até à sua citação. No articulado de resposta à oposição de 14.04.2021 veio a autora responder à excepção invocada pela ré, alegando, em suma: - tendo em conta o disposto no art. 17.º- E, n.º 7, do CIRE, e porque a ré iniciou PER, onde foi nomeado AJ a 30.07.2020 e homologado o plano a 6/01/2021, o prazo de prescrição esteve suspenso entre 30.07.2020 e 6.01.2021; - durante o ano de 2020, a ré reconheceu perante a Distribuidor de Energia ... a existência do direito/do crédito desta, o que se provará em sede de audiência de discussão e julgamento, pelo deve considerar-se interrompido o prazo de prescrição; - considerando o Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, que estabeleceu medidas extraordinárias no sector energético por força da emergência epidemiológica Covid-19, o prazo de prescrição da Lei n.º 23/96, passou, de seis para nove meses; - por aplicação dos n.ºs 3 e 4 do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03.2020, entre 12/3/2020 e 3/6/2020, com a entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29.05, os prazos de prescrição e caducidade foram alargados em 82 dias; - por fim, por aplicação do art. 6º-B, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 4-B/2021, de 1.02, ficaram suspensos os prazos de prescrição e caducidade entre 22/1/2021 e 6/4/2021, com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5.04, pelo que os prazos de prescrição e caducidade foram alargados em mais 74 dias; - o prazo de prescrição a considerar é de 9 meses, e o mesmo esteve suspenso, pelo menos: a) de 12/3/2020 a 3/6/2020, num total de 82 dias (Lei n.º 1-A/2020); b) de 30/7/2020 a 6/1/2021, num total de 160 dias (PER); c) de 22/1/2021 a 6/4/2021, num total de 74 dias (Lei n.º 4-B/2021); - como a acção deu entrada a juízo a 19/2/2021, ainda que se tenha em consideração que a ré foi citada a 3/3/2021, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 323.º do Código Civil, tem-se a prescrição por interrompida decorridos 5 dias da entrada da acção, ou seja, a 24/2/2021; - pelo que, não se verifica a prescrição do direito ao recebimento do preço, pelo menos, da factura ……….9, referente ao período de consumo de 1/8/2019 a 31/8/2019, nem das facturas subsequentes, e, nunca estariam prescritas as três últimas faturas (........61, .......8 e .......9). Cumpre decidir. Em face da posição assumida pela ré, a questão suscitada não releva quanto às facturas n.º .......8 e n.º .......9, por serviços alegadamente prestados de 1 a 30.09.2020 e de 1.10.2020 a 31.10.2020, porque aquela reconhece que quanto a estes não se mostra decorrido o prazo para reclamar o valor por aquelas facturas titulado. Para apreciar a questão suscitada, importa ter presente a seguinte factualidade: - a autora é uma empresa que se dedica à compra e venda de energia, sob a forma de eletricidade, gás e outras, bem como ao exercício de actividades e prestações de serviços afins e complementares daquelas; - a autora emitiu as vinte e três facturas identificadas no requerimento de injunção do n.º ........59 ao n.º ........61, por serviços de fornecimento de gás alegadamente feitos à ré no período de 26.10.2018 a 31.08.2020; - a 19.02.2021, a autora iniciou injunção via tribunais.net, tendo o procedimento sido iniciado junto do Balcão Nacional de Injunções a 22.02.2021 e a pesquisa moradas feita a 23.02.2021, expedindo-se carta para citação a 2.03.2021; - a 3.03.2021, o réu foi citado para se opor ao requerimento de injunção. Importa assim saber se se verifica a excepção peremptória da prescrição relativamente a parte dos créditos reclamados pela autora na acção (…). A Lei n.º 23/96, de 26.07 (Lei de protecção dos serviços públicos essenciais) inserida na “ordem pública de protecção”, concretizou a tutela geral do consumidor, criando mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, designadamente, o serviço de fornecimento de energia. Com a sua entrada em vigor pretendeu-se, inequivocamente, não só salvaguardar o utente das entidades com as quais se vê obrigado a contratar, mas também defendê-lo de si próprio relativamente à possibilidade de sobre-endividamento por consumo de bens que tendem a satisfação de necessidades básicas e essenciais dos cidadãos. O art. 10.º da Lei n.º 23/96 na actual redacção (dada pelo art. 1.º da Lei n.º 12/2008, de 26/2), estipula que: «1 - O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. 2 - Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento. 3 - A exigência de pagamento por serviços prestados é comunicada ao utente, por escrito, com uma antecedência mínima de 10 dias úteis relativamente à data limite fixada para efectuar o pagamento. 4 - O prazo para a propositura da acção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos. 5 - O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.». Resulta claro que o legislador quis consagrar uma das orientações que era já defendida em face da redacção originária do referido art. 10.º, mais concretamente a posição que sustentava ser o prazo de seis meses previsto, um prazo de prescrição do direito ao pagamento dos serviços, o qual se contava a partir da prestação dos mesmos. Deve, pois, considerar-se que a nova lei se assume como claramente interpretativa, integrando-se, por isso, na lei interpretada, sendo que a própria intenção que presidiu à criação da lei de proteger o consumidor final, contra a acumulação de dívidas de fácil contracção, evitando que se vissem confrontados com a exigência de débitos acumulados que dificilmente poderiam satisfazer, confirma aquela orientação legislativa, determinando, assim, que os prestadores de serviços mantenham uma organização que permita a cobrança em momento próximo do correspondente consumo. Consagra-se uma prescrição extintiva dos créditos provenientes de serviços públicos essenciais, como o fornecimento de energia eléctrica ou de gás. A prescrição como facto extintivo de obrigação que o utente do serviço público essencial haja assumido, já não carece do decurso do prazo de cinco anos do art. 310.º do Cód. Civil, bastando-se, assim, com os seis meses estabelecidos no n.º 1 do art. 10.º da Lei n.º 23/96, alargado para nove meses pelo art. 10.º, n.º 1 do Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, como bem defende a autora («Com exceção das situações de comprovada urgência e junto de clientes prioritários, os prazos regulamentares a que estão sujeitos operadores das redes de distribuição, comercializadores de último recurso e comercializadores no âmbito do relacionamento com os clientes, são prorrogados por metade do respetivo prazo regulamentar.») Reclamando a especial natureza dos serviços em causa foi entendido impor ao prestador do serviço público essencial previsto no art. 1.º da Lei nº 23/96, a obrigação de exercer o seu direito de crédito no prazo de seis meses, contado a partir do momento em que o possa fazer, ou seja, do termo de cada período da relação mensal obrigacional duradoura e de execução continuada. Além disso, para se ter por exercido o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado, a que se reporta o n.° 1 do art. 10.º da Lei n.º 23/96, não basta ao prestador do serviço proceder à emissão e entrega da factura/recibo no prazo de seis meses ali fixado, já que tal interpelação apenas releva para efeitos de determinação do momento da constituição do utente em mora, nos termos do art. 805.º do Cód. Civil. Conforme foi sustentado por Calvão da Silva, em anotação ao Ac. da Relação do Porto de 28/6/1999, in RLJ, ano 132.º, págs. 135 e segs.: "não pode pensar-se que o n°. 1, do artigo 10.º da Lei n.° 23/96, valha (só) para a liquidação da dívida, enquanto para o crédito assim apurado ou liquidado se continuaria a aplicar a al. g) do artigo 310.º do Código Civil" (…) "semelhante interpretação não tem fundamento válido, consistente, constituiria um non sense e seria mesmo contra-legem.". Concluindo, forçoso é reconhecer que, com a Lei n.° 23/96, o legislador quis estabelecer um prazo prescricional novo e mais curto do que o previsto no Cód. Civil, dentro do qual cumpre à entidade gestora, não só proceder à apresentação da factura como, não sendo voluntariamente paga a obrigação pecuniária, praticar qualquer acto com eficácia suspensiva ou interruptiva do decurso do prazo de prescrição (…). No caso, provou-se que a 19.02.2021 a autora submeteu via tribunais net a injunção, que a 22.02.2021 o procedimento se iniciou no Balcão Nacional de Injunções, que a 23.02.2022 pesquisou moradas e a 2.03.2021 expediu carta para citação e que a ré foi citada a 3.03.2021, logo o prazo de prescrição interrompeu-se a 27.02.2021. Por outro lado, como vimos supra, a prestação de serviços de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados está sujeito à disciplina da Lei n.º 23/96, de 26/7, sendo que o art. 10.º, n.º 1, estatui que o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses, alargado para nove meses pelo Regulamento n.º 255-A/2020, após a sua prestação. Ora, as várias facturas descriminadas no requerimento de injunção correspondem a um período alargado da alegada prestação de serviços pela autora à ré que foi 26.10.2018 a 31.10.2020, sendo que a ré só foi citada a 3.03.2021, pelo que, à partida todos créditos titulados por facturas respeitantes a serviços prestados há mais de 9 meses em relação ao dia 27.02.2021, estariam já prescritos (o que abrangeria todas as facturas referentes a prestação de serviços até ao dia 31.05.2021). No entanto, considerando-se aplicáveis ao caso os regimes excepcionais de interrupção e suspensão de prescrição previstos pelos citados diplomas, temos de reconhecer que o aludido prazo de prescrição esteve suspenso, pelo menos: a) de 12/03/2020 a 3/06/2020, num total de 82 dias (Lei n.º 1-A/2020); b) de 30/07/2020 a 10.11.2021 (2.ª sentença homologatória, que transitou em julgado), num total de 467 dias (PER); e não de 30/07/2020 a 6/01/2021 (uma vez que a 1.ª sentença homologatória foi anulada pelo acórdão do TRG de 18.3.2021); c) de 22/01/2021 a 6/04/2021, num total de 74 dias (Lei n.º 4-B/2021). Pelo que, o prazo prescricional se suspendeu por 623 dias, isto por um ano, oito meses e quinze dias. Assim, mesmo em relação à primeira factura reclamada n.º ........59, por serviços alegadamente prestados de 26 a 31.10.2018, cujo prazo de 9 meses de reclamação se completaria a 31.07.2019, acrescendo aquele os aludidos prazos de suspensão e interrupção, sempre só prescreveria o direito da autora em 15.04.2021. Pelo que, não se verifica a prescrição do direito da autora, em relação a qualquer uma das facturas reclamadas. E ainda que assim não fosse tendo a autora igualmente invocado a existência de reconhecimento da ré, no decurso do ano de 2020, perante a Distribuidor de Energia ... da existência do direito/do crédito desta, sempre teria de relegar-se a apreciação concreta dessa questão para final, por ser necessário proferir prova previamente…”. * Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a ré, “T. C. Decorativa Lda”. interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:“1. A aqui Recorrente não se conforma com o despacho proferido nos Autos, datado de 24/03/2022, que indeferiu a excepção da prescrição, arguida pela aqui Recorrente, em sede de oposição à Injunção, apresentada em 10/03/2022; 2. Para efeitos de indeferimento, o Tribunal deu razão à Autora, que notificada para o efeito, através do despacho proferido em 06/04/2021, no Requerimento de 14/04/2021 arguiu três causas suspensivas, a saber: PER da Ré, os dois períodos de suspensão geral de prazos motivados pela Pandemia e ainda a extensão do prazo de prescrição decretado pelo Regulamento 255-A/2020, de 18/03; 3. Ora, a Ré, aqui Recorrente não se conforma nem com a aplicação do prazo de 9 meses que decorre do referido Regulamento, nem tão pouco com as causas suspensivas; 4. Salvo do devido e merecido respeito, o despacho sub judicie mesmo é nulo, por violação flagrante de preceitos legais, mormente do disposto nos artigos 10º da Lei 23/96; 17º-C e 17º-E do CIRE; o artigo 10.º do Regulamento 255-A/2020; 7.º da lei 1-A/2020; 6.º da lei 4- B/2021; 12.º, 298.º, 303.º, 304.º, 306.º e 232.º e ss do CC; 5. Ferindo os mais básicos princípios legais, nomeadamente legalidade, contraditório, defesa, acesso à justiça, justa composição do litígio, igualdade, etc.. Vejamos, 6. Antes de mais há que ter em mente que (…) a autora emitiu as vinte e três facturas identificadas no requerimento de injunção, do n.º ........59 ao n.º ........61, por serviços de fornecimento de gás alegadamente feitos à ré no período de 26.10.2018 a 31.08.2020. 7. E que a 3.03.2021, o réu foi citado para se opor ao requerimento de injunção. 8. Tendo sido a injunção entregue a 19/02/2021, mas tendo o procedimento sido iniciado junto do Balcão Nacional de Injunções a 22.02.2021 Isto posto, Quanto à suspensão motivada pelo PER 9. A Recorrente não se conforma com a aplicação do disposto no artigo 17.º-C do CIRE, na redacção em vigor à data da instauração da injunção (22/02/2021), para efeito de suspensão do prazo prescricional; 10. Tendo o Tribunal de 1.ª Instância decidido pela suspensão no período de 30/07/2020 (data de nomeação Administrador Provisório) a 10.11.2021 (2.ª sentença homologatória, que transitou em julgado), num total de 467 dias (PER); 11. Ora, como se pode aplicar uma suspensão a um processo judicial que ainda não existia à data da instauração do PER? 12. Além disso, como admitiu a própria Autora, a mesma não reclamou créditos no PER Cfr. Requerimento da Autora de 22/10/2021, tendo aí inclusivamente defendido que a suspensão resultante do artigo 17.-E do CIRE não era aplicável ao caso concreto, créditos reconhecidos no PER e que serão pagos no âmbito do Plano que eventualmente for aprovado e homologado 13. Além disso, no Requerimento Inicial refere-se que as 23 facturas reclamadas foram emitidas a 03 e 06/11/2020, tendo sido vencidas 30 dias após; 14. Ora, partindo desta alegação da Autora, o seu crédito apenas ficou vencido em 03 e 06/12/2020, e portanto é um crédito posterior à data do PER e do período de Reclamação de Créditos, motivo pelo qual se entende que a Autora não o tivesse de facto reclamado naquele Processo especial; 15. Ora, a Recorrente até aceita que o PER seja causa para a suspensão processual dos Autos, ao abrigo precisamente do disposto no artigo 17.º-E do CIRE, pois que se trata de uma acção com a finalidade de cobrança coerciva de créditos, mas nunca para efeitos de suspensão do prazo de prescrição; 16. Isto porque, os créditos venceram-se após o PER, após o período de Reclamação de Créditos; e portanto a Autora não foi nem é interveniente naquele processo; 17. Trata-se pois de um crédito posterior ao PER, um crédito futuro, reclamado através de processo judicial autónomo, e portanto o PER não tem nele qualquer efeito - nesse sentido vide Ac. Desta Relação, no âmbito do Processo n.º 1446/20.3T8BRG.G1, de 21/01/2021; 18. Pelo que, impõe-se, desde já, a revogação do despacho sub judicie em relação à suspensão motivada pelo PER, decidindo-se pois pela inaplicabilidade da suspensão ao caso concreto; Prosseguindo, Quanto à suspensão motivada pela Pandemia 19. Considerou ainda o Tribunal a quo as duas suspensões introduzidas pela Lei 1-A/2020 e 4-B/2021, num total de 82 e 74 dias respetivamente, nos períodos de 09/03/2020 a 03/06/2020 e de 22/01/2021 a 06/04/2021; 20. Ora, salvo devidos respeito, estas leis excepcionais também não podem ser aplicadas ao caso concreto; 21. É que as referidas Lei previam a suspensão de prazos de todos os tipos de (…) cfr. artigos 3.º Lei 1-A/2020 e 6.º-B da Lei 4-B/2021; 22. Ora, na suspensão de 2020, como é pacífico, ainda nem havia processo (iniciado apenas a 22/02/2021 e com citação a 03/03/2021), pelo que obviamente a suspensão não se poderia aplicar!!! 23. A suspensão era para processos em juízo, e não para prazos a decorrer sobre direitos!!! 24. Com a referida suspensão ninguém ficou impossibilitado de intentar acções, sendo que a inércia assumida pelo Credor da obrigação não pode desfavorecer o devedor; 25. É que, até a Autora intentar a acção já tinha passado mais de 16 (dezasseis) meses sobre o início dos períodos reclamados nos Autos; 26. Além disso, interpelada a Ré em finais de 2020 cfr. Doc. 29 junto com a Resposta à Oposição, datada de 14/04/2021, facilmente se apurar que a Autora já estava na posse de todos os elementos pertinentes para intentar um Procedimento de Injunção; 27. Acresce ainda que, fazer aplicar a Lei 1-A/2020 é fazer uma aplicação retroactiva da lei, o que não é lícito Cfr. artigo 12.º do CC; 28. Violando-se assim os princípios legais da confiança, certeza e segurança jurídicas, entre outros; 29. Além disso, fazer aplicar a suspensão da Lei 4-B/2021 quando já (…) 30/07/2020 a 10.11.2021 é fazer uma duplicação das causas suspensivas quando as mesmas ocorreram no mesmo período e portanto a do PER sempre absorveria a suspensão da Lei 4-B/2021, em razão de ter sido decretada por prazo inferior; 30. Pelo que, as suspensões em causa não podem ser, de modo algum, aplicáveis ao caso concreto; Adiante, Quanto à aplicação do Regulamento 255-A/2020 31. O Regulamento n.º 255-A/2020 estabeleceu medidas extraordinárias para o sector energético, em face da Pandemia Covid-19, com o intuído de proteger os consumidores, prevendo moratórias e prorrogações de prazos para interrupção dos serviços, entre outros; 32. O referido Regulamento, como determina o seu n.º 1, tem por (…) A aplicação do disposto nos artigos 75.º e 61.º dos Regulamento das Relações Comerciais do setor elétrico e do setor do gás natural, respetivamente, e do Manual de Procedimentos da Qualidade de Serviço do setor elétrico e outras medidas de contingência apropriadas para a continuidade das condições de prestação dos serviços de fornecimento de (…) 33. Portanto, o Regulamento não tem por objecto regular acerca das relações jurídicas e a repercussão do tempo nas mesmas; 34. Os referidos 75.º e 61.º dos Regulamentos das Relações Comerciais do setor elétrico e do setor do gás natural, e do Manual de Procedimentos da Qualidade de Serviço do setor elétrico, referem-se a interrupções por facto imputável aos consumidores 35. Sendo que o artigo aplicado, é o 10.º, que consagra: - Com exceção das situações de comprovada urgência e junto de clientes prioritários, os prazos regulamentares a que estão sujeitos operadores das redes de distribuição, comercializadores de último recurso e comercializadores no âmbito do relacionamento com os clientes, são prorrogados por metade do respetivo prazo regulamentar. 2 - O disposto no número anterior não se aplica a outros prazos legais ou regulamentares, designadamente aos de informação e reporte à ERSE, com exceção dos casos expressamente … 36. Ora, o artigo refere expressamente que a prorrogação é para prazos regulamentares (…) a outros prazos legais ou regulamentares 37. Pelo que, desde já se exclui a possibilidade de aplicação do Regulamento ao caso dos Autos; 38. Pois que o artigo 10.º da Lei de Serviços Públicos, não é um prazo regulamentar; 39. Nem a emitente do Regulamento, a ERSE, poderia dispor sequer acerca de prazos de prescrição e de caducidade, uma vez que não tem competência para tal Cfr. artigo 9.º n.º 1 e 2 dos Estatutos da ERSE; 40. E portanto, a ERSE não tem sequer competência em matéria de caducidade e prescrição; 41. Sendo que a Lei 23/96 é uma Lei emanada da Assembleia da República e portanto, também teria sempre preferência e prevalência acerca do disposto em qualquer Regulamento; 42. Sendo que qualquer Regulamento que contrarie a Lei, é ilegal Cfr. 268.º da CRP e ainda o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no processo n.º 688/14.5BELLE, datado de 04/07/2019; 43. Acresce ainda que, de acordo com os esclarecimentos prestados pela ERSE, no sentido de solucionar as dúvidas que se levantaram nos diversos Regulamentos emitidos, aquela veio concretizar que os Sujeitos abrangidos fornecimento de energia eléctrica e de gás natural em Baixa Tensão Normal e Baixa Pressão com consumo anual igual ou inferior a 10 000 m3 (n), incluindo domésticos e não (…) 44. Ora, como decorre das facturas juntas aos Autos pela Autora, através do Requerimento apresentado em 14/04/2021, fazendo a conversão de kwh para m3, como nas alegações se patenteou, a Autora excede largamente o consumo anual de 10 000 m3 de gás; 45. Tanto que, o grosso da actividade da Ré exige o recurso a fornos, para cozer as peças em porcelana, os quais funcionam a gás; 46. E portanto, o Regulamento não se aplica à Ré; 47. Acresce que, ao Regulamento 255-A/2020 sucederam-lhe ainda os seguintes: Regulamento n.º 356-A/2020, Regulamento n.º 2/2021, e Regulamento 836/2021; 48. Sendo que em nenhum deles mais se consagrou uma norma como a do artigo 10.º do Regulamento 255-A/2020; 49. Aliás, a ERSE emitiu uma Nota Interpretativa do Regulamento 365- O Regulamento n.º 356-A/2020 é aplicado em conjugação com o restante edifício legal e regulamentar, designadamente quanto ao seu cumprimento e à aplicação do regime de prescrição e caducidade. Neste contexto, ainda que tal decorra de quadro legal, entende a ERSE dever reiterar que: b) A celebração de plano de pagamentos relativo ao fornecimento de energia elétrica ou de gás natural implica que não são aplicáveis, na vigência do plano, as regras de invocação pelo cliente da prescrição e caducidade das obrigações de regularização dos valores de consumo de energia. 50. Ora, se assim é, se apenas no plano de pagamentos não são invocáveis as regras da prescrição e caducidade, então é porque, fora dele, continuam a ser; 51. Além disso, verifica-se que o Regulamento 255-A/2020 não está de acordo com as formalidades previstas para a sua emanação, porquanto não lhe precedeu qualquer consulta pública cfr. artigo 10.º dos Estatutos da ERSE; 52. E, portanto, o Regulamento padece de óbvia ilegalidade; 53. Sendo igualmente verdade que esse Regulamento não poderia ter efeitos retroactivos, de extensão do prazo de prescrição de 6 para 9 meses; Sem prescindir 54. Ainda que se entendesse aplicável a suspensão de prazos e a extensão do prazo de prescrição, facto é que ainda assim, parte dos serviços prestados continua ferido de prescrição; 55. Vejamos, o Regulamento 255-A/2020 apenas entrou em vigor a 19/03, pelo que, até essa data vigorava os prazos de prescrição de 6 meses, e, portanto, todos os períodos de serviços prestados até Agosto de 2019 já estavam prescritos a 29/02/2020; 56. E, como a prescrição apenas se interrompeu com a citação da Ré, a 03/03/2021, continuaram a prescrever, até essa data, todos os serviços prestados até Maio de 2020; 57. Mesmo que se aditem os 82 dias da 1.ª suspensão geral de prazos, aos 9 meses, ao prazo que, ao seu início (12/03/2020) ainda estava a decorrer, ainda assim estão prescritos todos os meses até Fevereiro de 2020; 58. E mesmo somando ainda os 467 dias do PER, com a suspensão a iniciar a 30/07/2020, até essa data já tinham prescrito os serviços até Setembro de 2019; 59. De modo que, se impunha que a Prescrição fosse admitida para os devidos efeitos; 60. E, como tal, impõe-se, pois, a revogação do despacho recorrido, reconhecendo-se a prescrição da obrigação nos termos alegados na Oposição à Injunção e nos termos supra, para todos e devidos efeitos legais; TERMOS em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, no sentido das conclusões acima tomadas e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado, por nulo, e, em sua substituição, ser proferida uma decisão que julgue parcialmente prescrita a obrigação reclamada nos Autos…”. * A A, “Distribuidor de Energia ... Energia, S.A. – Sucursal Portugal”, veio apresentar Resposta ao recurso interposto pela ré, na qual pugna pela manutenção da decisão recorrida.* Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:- A de saber qual o prazo de prescrição dos créditos reclamados pela A; - Se esses prazos de prescrição foram suspensos ao abrigo dos regimes excecionais de interrupção e suspensão de prescrição previstos na Lei n.º 1-A/2020, de 19.3 (e na Lei nº 4-B/2021) as chamadas Leis da Pandemia; e - Se os mesmos prazos foram suspensos pela Apresentação da ré ao PER. * Os factos a considerar para a decisão das questões colocadas (tidos como assentes nos autos) são os seguintes:- A autora - “DISTRIBUIDOR DE ENERGIA ... ENERGIA S.A. – Sucursal Portugal” -, é uma empresa que se dedica à compra e venda de energia, sob a forma de eletricidade, gás e outras, bem como ao exercício de atividades e prestações de serviços afins e complementares daquelas; - A autora emitiu as vinte e cinco faturas identificadas no requerimento de Injunção, por serviços de fornecimento de gás alegadamente feito à ré, no período de 26.10.2018 a 31.10.2020; - A 19.02.2021, a autora iniciou injunção via tribunais.net, tendo o procedimento sido iniciado junto do Balcão Nacional de Injunções a 22.02.2021, e a pesquisa moradas feita a 23.02.2021, expedindo-se carta para citação da ré a 2.03.2021; e - A 3.03.2021, a ré foi citada para se opor ao requerimento de injunção. * Do prazo de prescrição dos créditos da A constantes das faturas dadas à Injunção:Está assente nos autos que em 19.02.2021 a autora instaurou contra a ré Injunção, cujo procedimento se iniciou em 22.02.2021 junto do Balcão Nacional de Injunções, pedindo o pagamento de serviços (fornecimento de gás) por si prestados à ré, no período de 26.10.2018 a 31.10.2020, no valor global de € 89.585,48, alegadamente não pagos. Citada a ré em 3.03.2021, veio a mesma invocar, na Oposição que deduziu à Injunção, além do mais, a exceção da prescrição dos créditos reclamados pela A. pelos serviços prestados e faturados, com exceção dos serviços prestados de 1.9.2020 a 30.9.2020 e de 1.10.2020 a 31.10.2020 (constantes das duas últimas faturas), por ter decorrido sobre a prestação dos mesmos o prazo legal de prescrição de 6 meses previsto no art.º 10º nº 1 e 4 da Lei n.º 23/96, de 26/7. Contrapõe a A, na resposta à Oposição, que esse prazo não é de 6 mas de 9 meses, decorrente do Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, emitido pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), que estabeleceu Medidas Extraordinárias no Setor Energético por Emergência Epidemiológica Covid-19. A decisão recorrida aderiu à tese da A. e considerou que efetivamente o prazo prescricional a atender na presente situação – e à data da prestação dos serviços faturados –, era de 9 meses, decorrente da aplicação ao caso do citado Regulamento. É dessa decisão que a recorrente discorda, e é essa a primeira questão a dilucidar por este tribunal em sede de recurso, sendo certo que poderão estar abrangidas pela prescrição, pelo decurso do prazo de 6 meses, os créditos reclamados pela A, no período de 26.10.2018 a 31.7.2020 - considerando que a Injunção apenas foi iniciada em 22.2.2021, e que a prescrição se considera interrompida em 27.2.2021, cinco dias após a data do início da Injunção. Adere-se aqui sem reserva à tese defendida na sentença recorrida de que “…o acto que consubstancia a instauração da acção não tem, em si mesmo, efeito interruptivo da prescrição, pois, na verdade, não consta das normas do direito substantivo civil atinentes à interrupção da prescrição (cfr. arts. 323.º a 327.º do Cód. Civil). Com efeito, na lei civil, os actos a que é atribuído efeito interruptivo da prescrição, são: a) A citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito (art. 323º, nº 1, do Cód. Civil), ou qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido (art. 323º, nº 4, do Cód. Civil) (…). O acto e o momento a que a lei concede relevância para produzir o efeito interruptivo da prescrição não é o da sua prática pelo titular do direito (credor), mas sim, o acto e o momento em que chega ao conhecimento do obrigado que o direito foi ou vai ser exercício pelo credor. Pelo que, o acto de propositura da acção judicial para o exercício de um direito de crédito só chega ao conhecimento do demandado através da citação (cfr. art. 219.º, n.º 1, do C.P.Civil), salvo se antes tiver havido notificação judicial para esse fim, o que equivale por dizer que o efeito interruptivo da prescrição só se produz através do acto de citação. Acresce que o n.º 2 do art. 323.º do Cód. Civil consubstancia um mecanismo criado pelo legislador para desonerar o credor das consequências imputáveis ao Tribunal, nos casos de demora na citação. Pelo que, "Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias". Vem sendo entendimento da jurisprudência que a expressão "causa imputável ao requerente" tem de ser interpretada no sentido de causalidade objectiva, isto é, só deverá ser imputada ao autor, a verificada demora na requerida citação, nos casos em que o autor/requerente postergue, de modo objectivo, qualquer regra/preceito que seja determinante e esteja ligada com a tramitação processual até à citação, entendimento este também aprovado pela doutrina ao sustentar não ser razoável repercutir na esfera jurídica do autor as consequências da demora na concretização da citação por razões de pura orgânica judiciária ou logística. Em anotação ao referido preceito afirmam Pires de Lima e Antunes Varela que: “Se a citação ou notificação é feita dentro dos cinco dias seguintes ao requerimento, não há retroactividade quanto à interrupção da prescrição. Atende-se, neste caso, ao momento da citação ou notificação. Se é feita, posteriormente, por causa não imputável ao requerente, considera-se interrompida passados os cinco dias. Se a culpa da demora é do requerente, atende-se ao momento da citação ou notificação” (Código Civil Anotado, I Volume). No caso, provou-se que a 19.02.2021 a autora submeteu via tribunais net a injunção, que a 22.02.2021 o procedimento se iniciou no Balcão Nacional de Injunções, que a 23.02.2022 pesquisou moradas e a 2.03.2021 expediu carta para citação e que a ré foi citada a 3.03.2021, logo o prazo de prescrição interrompeu-se a 27.02.2021”. (negrito nosso) * Quanto à aplicação aos autos do Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, já não aderimos à tese da A. nem à da decisão recorrida. Começamos por concordar com ambas as partes (e com o tribunal recorrido) de que a Lei aplicável ao caso é sem dúvida a Lei n.º 23/96, de 26.07 (Lei de proteção dos serviços públicos essenciais, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 12/2008, de 26 de fevereiro, e pela Lei n.º 24/2008, de 02 de junho). Trata-se de uma Lei que consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais, em ordem à proteção do utente, no qual se inclui o serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados (art.º 1º, alínea c) da citada Lei) – serviço esse prestado pela A à ré durante todo o período considerado, assumindo a A no contrato celebrado a qualidade de “prestadora de serviços” e a ré a qualidade de “utente”. Considera-se utente, para os efeitos previstos na referida lei, a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo (nº3) e considera-se prestador dos serviços abrangidos pela mesma lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça, ou da existência ou não de contrato de concessão (nº 4). Cremos que não oferece também dúvida nos autos de que entre as partes foi celebrado um contrato de fornecimento de gás, contrato que a doutrina vem qualificando como de contrato de compra e venda, de fornecimento, ou atípico. Pires de Lima e Antunes Varela (no Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição, pág. 168) reconduzem desde logo o contrato de fornecimento de água, gás ou eletricidade ao esquema da compra e venda. Na realidade, consideram que sendo o gás uma coisa corpórea, porque tangível pelos sentidos e suscetível de apropriação, o fornecedor obriga-se a entregar essa coisa ao consumidor contra o pagamento de uma contrapartida monetária. Estão assim reunidos, segundo aquele autor, todos os elementos característicos da compra e venda, tal como ela vem tipificada no art.º 874.º do Código Civil - o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço. Pedro Romano Martinez (Direito das Obrigações, (Parte Especial), Contratos, 2.ª edição, págs. 25 e 26), refere também que normalmente a compra e venda corresponde a um contrato de execução instantânea, mas pode assumir características de um contrato de execução continuada, conformando a sua natureza com a de um contrato de fornecimento. Sobre o fornecimento de gás, considera, no entanto, que o mesmo não corresponde a uma situação paradigmática de compra e venda, porque, as mais das vezes, pressupõe prestações típicas de outros contratos, nomeadamente a prestação de serviços. Também Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume III, 11.ª Edição, pág. 15), refere, a respeito do fornecimento de gás ou de eletricidade que “A sua natureza específica justifica (…) que não os configuremos como verdadeiras compras e vendas, parecendo antes tratar-se de contratos atípicos, ainda que afins da compra e venda”. Debruçando-se também sobre o fornecimento de energia elétrica, mas em temos que são inteiramente transponíveis para o fornecimento de gás natural, Pedro Falcão (in O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony, 2019, págs. 48 a 54), qualifica o contrato de fornecimento como um contrato misto de compra e venda e de prestação de serviços, “um contrato celebrado apenas entre o comercializador e o utente, compreendendo a compra e venda da energia e a prestação do serviço de instalação e manutenção do contador, entrega da eletricidade e medição do consumo, serviço este que a lei impõe, todavia, que seja efetuado por um terceiro (…) juridicamente separado do devedor”. Em suma, dentro do tipo contratual mais abrangente da compra e venda, o contrato de fornecimento caracteriza-se, no essencial, como a situação em que uma das partes – o vendedor – se obriga a entregar/fornecer à contraparte – o comprador –, durante um determinado período temporal, certas quantidades de uma coisa móvel, contra retribuição, sendo as obrigações que deles decorrem de carácter duradouro e as prestações reiteradas e periódicas, ou com trato sucessivo, umas vezes em quantidades e preços fixos e pré-determinados, outras a determinar posteriormente em função das necessidades e requisições do comprador. Trata-se, segundo Vaz Serra (em anotação ao Ac. do STJ, de 14 de março de 1972, in RLJ, nº 106, págs. 86 e 87), e com utilidade para o contrato celebrado nos autos, de um contrato de compra e venda de coisa móvel, com preço fixado à razão de tanto por unidade, sendo devido o preço proporcional ao número ou medida real da coisa vendida. Segundo explica aquele autor, “o contrato de fornecimento de água, gás ou energia é um contrato unitário duradouro, e não um contrato criador de uma relação obrigacional reiterada, periódica ou repetida que vá surgindo de novo para os períodos ulteriores mediante novos contratos. O contrato é um só; é um contrato criador de uma relação obrigacional duradoura, embora o montante das prestações das duas partes esteja dependente do consumo efetivo”. O contrato de fornecimento é, de resto, uma categoria que não é ignorada pelo direito positivo, como resulta desde logo do art.º 230.º, § 2.º, do Código Comercial, onde a sua prática surge como critério de comercialidade das empresas, referindo Pedro Pais de Vasconcelos (Direito Comercial, Volume I, pág. 86) que o termo “géneros” empregue naquele normativo deve ser entendido como abrangendo tudo o que pode ser fornecido, não havendo que o limitar a géneros alimentícios, fazendo assim parte do comércio, tal como é exercido no mercado de fornecimento, todos os bens úteis que um comerciante possa comprometer-se a prestar a outrem, de modo duradouro e por preço previamente convencionado, mormente, a energia. Também a Lei n.º 23/96, de 26 de julho, acima referida, que consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente, se refere, no seu artigo 1.º, n.º 2, al. c), ao “Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeito”, o mesmo sucedendo com os diplomas legais que regulam a organização e funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural, que se referem ao contrato de fornecimento de gás natural como sendo aquele que é celebrado entre um comercializador de gás natural e um consumidor (art.º 39.º-A, n.º 1, e 47.º, n.º 1, do DL n.º 30/2006, de 15 de fevereiro, e os artigos 85.º, n.º 1, e 88.º, n.º 1 do Regulamento das Relações Comerciais, Regulamento n.º 416/2016). * Como se disse, trata-se, no contrato de fornecimento, de um contrato criador de uma relação obrigacional duradoura, cujo montante das prestações de ambas as partes está dependente do consumo efetivo, o qual deverá, por força da lei, vir discriminado na faturação mensal a enviar pela empresa fornecedora ao consumidor.Efetivamente, no que tange à faturação, estabelece o art.º 9.º, nºs 1 e 2 do DL n.º 30/2006, de 15 de fevereiro – diploma que estabelece os princípios gerais relativos à organização e ao funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN) -, que “O utente tem direito a uma fatura que especifique devidamente os valores que apresenta. A fatura a que se refere o número anterior deve ter uma periodicidade mensal, devendo discriminar os serviços prestados e as correspondentes tarifas”, acrescentando-se no art.º 38.º-A, n.º 2, al. f) do mesmo DL que “Constituem deveres do comercializador, nomeadamente, os seguintes (…) Emitir faturação discriminada de acordo com as normas aplicáveis”. Analisando os documentos juntos à Injunção, verificamos que se encontram neles discriminados todos os serviços prestados, mensalmente, de 26.10.2018 a 31.10.2020, sendo a primeira fatura reportada ao período de 26.10.2018 a 31.10.2018, e as seguintes reportadas aos serviços prestados de 1.11.2018 a 31.11.2018 e assim sucessivamente, com as datas do início e do fim do respetivo mês. * Aqui chegamos, verifiquemos então qual o prazo de prescrição dos créditos reclamados nos autos pela A.Regula a matéria desde logo o art.º 10º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho (com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 12/2008, de 26 de fevereiro, e pela Lei n.º 24/2008, de 2 de junho), no qual se estipula que “1.O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. (…) 4. O prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos”. Como é por todos sabido, a atual redação do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, visou resolver as dúvidas suscitadas ao abrigo da sua redação originária, quanto à natureza extintiva ou presuntiva da prescrição, no sentido de explicitar que está em causa uma prescrição extintiva (Cfr., neste sentido: J. Calvão da Silva, “Serviços públicos essenciais: alterações à Lei n.º 23/96 pelas Leis nºs. 12/2008 e 24/2008”, RLJ, Ano 137, n.º 3948, janeiro-fevereiro 2008, págs. 175 a 177; Elionora Cardoso, Os Serviços Públicos Essenciais: a sua problemática no ordenamento jurídico português, Coimbra Editora, 2010, págs. 110 a 112; Marcelino Abreu, Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Anotada e Comentada), Nova Causa, 2017, págs. 155 a 160; e Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 375). De facto, esta norma, inserida na “ordem pública de protecção”, concretizou a tutela geral do consumidor, criando mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, designadamente, o serviço de fornecimento de energia e gás. Com a sua entrada em vigor pretendeu-se, inequivocamente, não só salvaguardar o utente das entidades com as quais se vê obrigado a contratar, mas também defendê-lo de si próprio relativamente à possibilidade de sobre-endividamento por consumo de bens que tendem a satisfação de necessidades básicas e essenciais dos cidadãos. Como explica Morais Carvalho (Manual de Direito do Consumo, 6.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 375), tendo em conta o espírito da norma – a proteção do utente com vista a evitar o risco de acumulação de dívidas e o sobre-endividamento –, não está em causa a presunção do cumprimento da obrigação, pensada essencialmente para os casos em que a prática mais comum consiste no pagamento imediato do bem ou serviço, sem exigência de documento de quitação. Acresce que, se se considerasse tratar-se de prescrição fundada na presunção de cumprimento, esta poderia ser ilidida pelo prestador do serviço por confissão, expressa ou tácita, do utente, nos termos dos artigos 313.º e 314.º do Código Civil: bastaria, para esse efeito, que o utente afirmasse em juízo que a dívida, embora existente, tinha prescrito ou, até, que a dívida era inexistente ou de menor valor, resultado que não é o pretendido pela lei. Refere também Calvão da Silva a este respeito (op. cit., pág. 177) que “Deste modo, fica prejudicada a tese da prescrição presuntiva, de resto excepcional, susceptível de constituir uma armadilha para o utente, tentado a alegar factos sem a consciência de que tacitamente está a confessar a dívida, por exemplo pondo em causa a sua existência ou montante. Só um utente muito sabedor tem consciência de que o cumprimento está provado pela presunção legal (…), cabendo, por isso, à outra parte ilidir essa presunção de cumprimento mediante prova do contrário (art.º 350.º, n.º 2, do Código Civil), mas apenas nos termos limitados dos arts. 313.º e 314.º do Código Civil: e a armadilha a evitar está na prática em juízo de atos incompatíveis com a presunção de cumprimento, designadamente a alegação que ponha em causa a existência ou montante da dívida e a alegação da gratuitidade do serviço”. Por outro lado, com a nova redação do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, visou-se deixar claro que o prazo de prescrição se refere ao exercício do direito em juízo ou por via de requerimento de injunção, e não para o simples envio de fatura. Refere-se agora o n.º 1 do citado art.º 10º ao “direito ao recebimento do preço” e não ao “direito a exigir o pagamento do preço” (J. Calvão da Silva, op. e loc. cit.; Marcelino Abreu, op. cit., págs. 160 e 161; Jorge Morais Carvalho, op. cit., págs. 374 e 375). Como explica Calvão da Silva (op. cit., pág. 176) “…vistas as coisas claramente vistas, o envio da fatura pormenorizada constitui obrigação – mais que ónus, portanto – (e não direito) do prestador do serviço público essencial em ordem a dar satisfação ao direito do destinatário, reconhecido pelo art.º 9.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de controlar atempadamente o “quantum debeatur” e de saber com antecedência razoável a data limite do pagamento, para o qual através dela fica interpelado (art.º 805.º do Código Civil), sem interrupção ou sequer suspensão do prazo prescricional, dada a natureza extrajudicial dessa interpelação ao cumprimento (art.º 323.º do Código Civil). Sendo assim, o direito que prescreve no prazo de seis meses após a prestação do serviço só pode ser o direito ao correspetivo preço, de que o direito a exigir o seu pagamento constitui a medula, o poder ou faculdade mais importante que daquele crédito deriva para o credor”. Por outro lado, ainda, resulta claro da nova redação da lei que o legislador quis consagrar uma das orientações que era já defendida em face da redação originária daquele art.º 10.º, mais concretamente a posição que sustentava que o prazo de seis meses ali previsto, um prazo de prescrição do direito ao pagamento dos serviços, se contava a partir da prestação dos mesmos (e não da data em que os mesmos eram faturados). Por isso se tem considerado que a nova lei se assume como claramente interpretativa, integrando-se, por isso, na lei interpretada. Decorre assim do exposto que para o exercício do direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado (a que se reporta o n. 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96), não basta ao prestador do serviço proceder à emissão e entrega da fatura/recibo no prazo de seis meses ali fixado, já que tal interpelação apenas releva para efeitos de determinação do momento da constituição do utente em mora, nos termos do art.º 805.º do Cód. Civil. Conforme foi sustentado por Calvão da Silva (em anotação ao Ac. da RP de 28/6/1999, in RLJ, ano 132.º, págs. 135 e ss): “não pode pensar-se que o n. 1 do artigo 10.º da Lei n. 23/96, valha (só) para a liquidação da dívida, enquanto para o crédito assim apurado ou liquidado se continuaria a aplicar a al. g) do artigo 310.º do Código Civil (…) semelhante interpretação não tem fundamento válido, consistente, constituiria um non sense e seria mesmo contra-legem”. Concluindo, forçoso é reconhecer que com a Lei n. 23/96, o legislador quis estabelecer um prazo prescricional novo e mais curto do que o previsto no Cód. Civil, dentro do qual cumpre à entidade gestora, não só proceder à apresentação da fatura ao cliente, como, não sendo voluntariamente paga a obrigação pecuniária, reclamar judicialmente o seu crédito dentro do prazo legal de seis meses previsto no nº 4 do art.º 10º da citada lei, ou praticar qualquer ato com eficácia suspensiva ou interruptiva do decurso do prazo de prescrição. Consagra-se assim no preceito legal transcrito uma clara prescrição extintiva dos créditos provenientes de serviços públicos essenciais, nomeadamente do fornecimento de energia elétrica ou gás, créditos esses que já não beneficiam do prazo de cinco anos previsto no art.º 310.º do Cód. Civil para a sua cobrança, sendo-lhe aplicável o prazo mais curto, de seis meses, estabelecido nos n.ºs 1 e 4 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96. Isto posto, cumpre ter em consideração que o prazo de prescrição se inicia com a prestação do serviço, o que, estando em causa faturação periódica, o início do prazo corresponde ao último dia do período de referência para efeitos de faturação, por ser esse o dia a partir do qual o direito pode ser exercido, face ao disposto no art.º 306.º, n.º 1, do Código Civil (Jorge Morais Carvalho, op. cit., pág. 376). * Segundo a A. (no que foi secundado pelo tribunal recorrido), o prazo de 6 meses previsto n.ºs 1 e 4 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26.7, foi alargado para nove meses pelo art.º 10.º, n. 1 do Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, no qual se prescreve o seguinte: “Com exceção das situações de comprovada urgência e junto de clientes prioritários, os prazos regulamentares a que estão sujeitos operadores das redes de distribuição, comercializadores de último recurso e comercializadores no âmbito do relacionamento com os clientes, são prorrogados por metade do respetivo prazo regulamentar”.Como já fomos adiantando acima, e salvo sempre melhor entendimento, não aderimos à tese da A. Desde logo, pela simples e óbvia razão de que uma norma legal com a força de Lei (aprovada pelo órgão legislativo competente, a Assembleia da Republica, nos termos e ao abrigo do disposto nos art.ºs 164.º e 169º nº3 da Constituição da República Portuguesa – doravante apenas designada pela sigla CRP), como é o caso da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, nunca poderia ser alterada por um Regulamento. O art.º 112º da CRP intitulado “Atos normativos” diz que são atos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais (nº1) e que os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes (nº 6), e que os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjetiva e objetiva para a sua emissão (nº 7). Ou seja, estatui o art.º 112, nº 1 da CRP quais são os atos legislativos, designadamente a lei em sentido formal proveniente da Assembleia da República, o decreto-lei emanado pelo governo, e os decretos legislativos regionais pertencentes às Assembleias Legislativas Regionais que poderão, em conformidade com os arts 227º, 228º e 232º da CRP, exercer poder legislativo relativamente à sua Região Autónoma sobre matérias enunciadas no seu Estatuto político-administrativo que não se encontrem reservadas aos dois Órgãos de Soberania enunciados (Assembleia da República e Governo). As leis em sentido formal e os decretos-leis têm igual valor (art.º 112º nº 2 da CRP) mas acima destes diplomas encontram-se as denominadas leis de valor reforçado, discriminadas nos nºs 2 e 3 da CRP. É o caso de uma lei de base, que atua como “uma lei fundamental de certo setor”, preceituando tudo aquilo considerado como relevante para o mesmo (por exemplo, as Leis de Bases da Saúde, do Sistema Educativo ou da Atividade Física e Desporto) e à qual a restante legislação deverá desenvolver e não contrariar. Ainda como outro exemplo de lei de valor reforçado, O Orçamento de Estado, devendo também qualquer decreto-lei alvo de autorização legislativa, nos termos do art.º 165º nºs 1 e 2, subordinar-se à lei que lhe deu tal consentimento. Surgem posteriormente na ordenação os decretos legislativos regionais que, devido ao já referido, se encontram abaixo das leis e decretos-leis provenientes dos órgãos de soberania nacionais. Após esta sequência de atos legislativos (lei de valor reforçado, lei e decreto-lei, decreto legislativo regional, por esta ordem) e de modo a ser possível executa-los aparecem os regulamentos, cujo principal órgão no âmbito do seu poder executivo é o governo, responsável pela condução da política geral do país (deliberada na Assembleia da República segundo o seu poder legislativo, em conformidade com o Princípio da Separação e Interdependência de Poderes entre ambos) que realizará através da Administração Pública do qual é o seu órgão superior (art. 182º da CRP). Como regulamento mais importante surge o decreto regulamentar (governo) e abaixo deste o decreto regulamentar regional emanado dos governos regionais da Madeira e Açores (art. 138º, nº 1 do Código do Procedimento Administrativo – CPA) sendo que todos os atos legislativos e regulamentos mencionados até ao momento necessitam, para poderem existir juridicamente, da promulgação (aceitação) do Presidente da República de acordo com o poder moderador de que goza (arts.134, alínea b) e 137º da CRP). Importa ainda e por esta disposição, prevista no art.º 138º, nº 3 do CPA, aludir à Resolução do Conselho de Ministros (elaborada igualmente pelo Governo mas sem a apresentação a Promulgação) seguindo-se as portarias e despachos normativos (ambos da competência individual dos ministros e não coletivamente através das reuniões dos Conselhos de Ministros) para boa execução da política definida para os seus Ministérios (art.º 201º, nº a) da CRP). Por fim, faltam os regulamentos oriundos das Autarquias Locais intitulados de posturas, que ocupam o último lugar da hierarquia das leis estaduais visto alcançarem uma menor dimensão de território e população, independentemente da sua indispensável mais valia institucional enquanto pessoas coletivas. Contudo, nos próprios regulamentos autárquicos verifica-se também uma hierarquia e desde logo, de acordo com o art.º 138º, nº 2 do CPA, dos municipais sobre os pertencentes às freguesias, que não os podem revogar, salvo se estes configurarem normas especiais. Há ainda que realçar as normas corporativas, provenientes dos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais, que as podem emanar no domínio das suas atribuições onde é exemplo uma qualquer Ordem Profissional, como a dos Advogados (art.º 1º, nº 2 do Código Civil). São igualmente consideradas fontes de direito (art.º 1º, nº 1 do CC), encontrando-se no fim da linha vertical por não provirem do Estado mas de entidades privadas com estatuto de utilidade pública, desenvolvendo funções que originariamente são da esfera jurídica do Estado mas cujo entendimento é o de uma maior eficácia se desenvolvido por estas. Estão, todavia, obrigadas a respeitar todas as leis estaduais acima delas, como é o caso dos correspondentes estatutos elaborados e aprovados pela Assembleia da República, não podendo contrariar as disposições legais de caráter imperativo (art.º 1, nº 3 do CC). Tal estrutura hierárquica tem como finalidades principais garantir a nossa participação democrática através da atribuição de maior importância aos órgãos e entidades que absorvem mais população e maior dimensão territorial mas ao mesmo tempo corresponsabilizar os mesmos entre si e promover o controle recíproco, para que possamos usufruir de maiores garantias, quer de proteção contra o próprio Estado (função primária de defesa segundo José de Melo Alexandrino) quer da imposição das tarefas que este deve desenvolver ao abrigo das suas atribuições e competências constitucionais visto o poder político pertencer ao Povo (art.º 108º da CRP) no âmbito da sua soberania (arts. 1º e 3º da CRP). * Feita esta resenha da ordem legislativa portuguesa, a fim de enquadrar os regulamentos, enquanto normas jurídicas, na sua ordem hierárquica, passemos à sua definição: os regulamentos são normas jurídicas aprovadas ao abrigo da atividade administrativa. Os regulamentos administrativos são designados pelo conjunto das normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo por um órgão da Administração, ou por outra entidade, pública ou privada, para tal habilitada por lei, constituindo o nível inferior do ordenamento jurídico administrativo. O artigo 135.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) define regulamentos como “as normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos”. Desta definição decorre que os regulamentos, apesar de terem caráter geral e abstrato - normas criadas para serem aplicadas a um conjunto indeterminado de pessoas e não se esgotarem numa situação concreta, e com aplicação permanente -, reconduzem-se à função administrativa, a qual consiste numa atividade executiva do Estado subordinada à função legislativa. O regulamento é assim, na classificação do Prof. Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, Tomo I, 10ª ed., Coimbra Editora, pág., 95), “a norma jurídica de carácter geral e execução permanente dimanada de uma autoridade administrativa sobre matéria própria da sua competência”. Na sua relação com a lei (em sentido geral, de Lei e DL), haverá a considerar: os regulamentos de execução, que se limitam a completar ou a concretizar normas legais, as quais devem ser por eles invocadas (n.º 7 do art.º 112º da CRP); os regulamentos independentes, que, tal como as leis, podem conter normas com alguma novidade, devendo invocar a lei que defina a competência para a sua aprovação (n.º 6 do art.º 112.º da CRP e n.º 3 do art.º 136.º do CPA); e os regulamentos autónomos, que tanto podem ser independentes como de execução, sendo aprovados pelos órgãos integrados da Administração autónoma ou independente. Em se tratando de Regulamentos independentes - como é o caso do Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, emitido pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), que estabeleceu Medidas Extraordinárias no Setor Energético por Emergência Epidemiológica Covid-19 -, há muitos pontos em que a lei e o regulamento se assemelham no nosso ordenamento jurídico. Em primeiro lugar, tanto a lei como o regulamento dispõem de uma base de generalidade e abstração, conforme o direito privado entende uma lei, pelo que os destinatários das normas em questão seriam generalizados (ao contrario do ato administrativo) e o seu teor é marcado por abstração. Em matéria de interpretação e integração de lacunas eles têm a mesma base legal, sendo o regulamento interpretado e as suas lacunas são integradas em harmonia com as regras da integração e interpretação das normas jurídicas, contrariamente ao ato administrativo, para o qual existem, ao invés, regras próprias de interpretação e integração. Efetivamente, e tomando por base um critério que assenta na identidade material entre lei e regulamento, substancialmente, os regulamentos são leis, pelo que, a sua distinção apenas se pode concretizar no plano formal e orgânico. Lei e regulamento são materialmente normas jurídicas. Ainda assim, a diferença tem lugar, quanto à posição hierárquica dos órgãos de onde emanam, e consequentemente do seu respetivo valor formal, o que acaba por se traduzir no facto de que a lei pode revogar o regulamento, e este não pode fazer o mesmo com a lei. Se, por acaso, o regulamento contrariar a lei, será ilegal. Segundo Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 4ª ed., pp. 673 e ss) constitucionalmente, o princípio da legalidade da administração, no que aos regulamentos respeita, analisa-se tipicamente em três subprincípios: 1°- o regulamento não pode invadir os domínios constitucionalmente reservados à lei, isto é, aquelas matérias que, segundo a Constituição, só a lei pode regular (reserva de lei); 2°- o regulamento supõe sempre uma lei antecedente, que ele visa regulamentar ou ao abrigo da qual é emitido (precedência da lei); 3°- o regulamento não pode contrariar a lei, designadamente a lei que aquele visa regulamentar ou ao abrigo da qual foi emitido (prevalência da lei). O princípio da preferência ou preeminência da lei significa também, segundo o mesmo autor que “o regulamento não pode contrariar um ato legislativo ou equiparado. A lei tem absoluta prioridade sobre os regulamentos, proibindo-se expressamente os regulamentos modificativos, suspensivos ou revogatórios das leis" (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, pp. 672). Daqui resulta que, embora do ponto de vista material, os regulamentos sejam normas jurídicas que encerram as características da generalidade e abstração típicas dos atos normativos, tal como as leis, não se confundem com estas, nem se encontram ao mesmo nível hierárquico, porque os regulamentos são editados no exercício do poder administrativo, e as leis a que se refere o artigo 112º, nº1 da CRP, são aprovadas no exercício da função legislativa. Mesmo os regulamentos autónomos ou independentes, em que o seu conteúdo não está predeterminado na lei, são inovadores e elaborados no exercício de competência própria e para o desempenho das atribuições normais e permanentes da autoridade administrativa, como decorre do artigo 241º da CRP, estes regulamentos autónomos não podem violar as normas de valor superior já existentes, não podem, em suma, ser "contra-legem", e neles deve indicar-se a lei que lhes confere esse poder regulamentar, a competência objetiva e subjetiva para a sua emissão (vide Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol I, Lisboa, 1980, pág. 118). Por outras palavras, institui-se assim uma modalidade de “reserva de lei”, a qual, segundo a melhor doutrina, “quando uma lei regula uma determinada matéria, ela estabelece, ipso facto uma reserva de lei, pois só uma lei ulterior pode vir derrogar ou alterar aquela lei (ou deslegalizar a matéria)” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., revista, 67). Assim sendo, e no que agora importa, uma norma regulamentar que operasse tal modificação a um ato legislativo infringiria diretamente a proibição constitucional, configurando em sentido próprio um caso de inconstitucionalidade (Ac. Tribunal Central Administrativo Sul, de 04-07-2019) * O acabado de dizer bastaria para afastar, sem mais, a aplicação ao caso do Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, no sentido de que o mesmo teria alterado/prorrogado os prazos legais previstos na Lei n.º 23/96, de 26 de julho nomeadamente o prazo de prescrição previsto no seu art.º 10º nºs 1 e 4.Mas uma boa leitura do citado Regulamento também nunca levaria à conclusão a que chagou a A (e a decisão recorrida). O Regulamento n.º 255-A/2020, de 18.03.2020, emitido pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), estabeleceu Medidas Extraordinárias no Setor Energético por Emergência Epidemiológica Covid-19, claramente vocacionadas para a proteção dos consumidores mais vulneráveis, sobretudo a nível de cumprimento das suas obrigações de pagamento dos serviços prestados pelas entidades reguladas (os comercializadores de energia elétrica e de gás). Consta efetivamente do mesmo Regulamento o seguinte: “Atendendo à emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde, no dia 30 de janeiro de 2020, bem como à classificação do vírus como uma pandemia, e às medidas governamentais tomadas a 13 de março, designadamente através do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, importa avaliar as condições de prestação dos serviços de fornecimento de energia enquanto serviços públicos essenciais aos consumidores. De acordo com a Lei n.º 23/96, de 26 de julho, na sua redação atual, são considerados serviços públicos essenciais, designadamente os serviços de fornecimento de eletricidade, de gás natural e de gases de petróleo liquefeito (GPL) canalizados, os quais só podem ser interrompidos após pré-aviso adequado, salvo caso fortuito ou de força maior. Este normativo é reiterado pela legislação setorial aplicável aos setores da eletricidade e do gás natural e ao subsetor do GPL canalizado e objeto de regulamentação pela ERSE. Neste âmbito, os Regulamentos das Relações Comerciais da eletricidade e do gás natural preveem que a interrupção do fornecimento por facto imputável ao cliente, designadamente por falta de pagamento dos valores faturados, só pode ter lugar após pré-aviso, por escrito, com uma antecedência mínima relativamente à data em que irá ocorrer, salvo nos casos em que a interrupção deva ser imediata, de 20 dias. No caso dos clientes economicamente vulneráveis o prazo é de 15 dias úteis. O Regulamento da Qualidade de Serviço do setor elétrico (Regulamento n.º 406/2021, de 12 de maio que Aprova o Regulamento da Qualidade de Serviço dos Setores Elétrico e do Gás e revoga o Regulamento n.º 629/2017, de 20 de dezembro) prevê a possibilidade de classificação como Evento Excecional, de determinados eventos que cumpram um conjunto de requisitos previstos no artigo 9.º do referido regulamento. De igual modo, encontra-se previsto um mecanismo de informação referente a Incidentes de Grande Impacto no artigo 16.º do mesmo regulamento. Para estas duas situações estão estabelecidos um conjunto de prazos no Manual de Procedimentos da Qualidade de Serviço. Assim, tendo presente os planos de contingência adotados pelos próprios prestadores destes serviços públicos essenciais, com redução de colaboradores em efetividade de funções, junto dos próprios consumidores e face às possíveis dificuldades de pagamento motivadas por isolamento ou perda abruptas e totais de rendimento, vem a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) ao abrigo do artigo 9.º, n.º 2, al. a), ii) e b), ii) e dos artigos 10.º e 31.º, n.º 2, alínea c) dos Estatutos da ERSE, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 97/2002, de 12 de abril, na redação vigente, tendo ouvido perfunctoriamente alguns operadores e agentes nos setores regulados e dispensado as demais formalidades inerentes ao procedimento em virtude de estado de necessidade (…) determinar…” (negrito nosso) E analisado todo o Regulamento, nele se prevêm de facto várias situações de prorrogação de prazos concedidos essencialmente aos consumidores de energia elétrica e de gás, estabelecendo o art.º 10.º, que agora nos importa, intitulado “Outros prazos”, no seu nº 1 que “Com exceção das situações de comprovada urgência e junto de clientes prioritários, os prazos regulamentares a que estão sujeitos operadores das redes de distribuição, comercializadores de último recurso e comercializadores no âmbito do relacionamento com os clientes, são prorrogados por metade do respetivo prazo regulamentar”. Acrescenta-se, no entanto no seu nº2 que “O disposto no número anterior não se aplica a outros prazos legais ou regulamentares, designadamente aos de informação e reporte à ERSE, com exceção dos casos expressamente previstos neste regulamento”. Parece resultar claro da redação deste preceito regulamentar que o mesmo não pretendeu estender a aplicação do nº1 - prorrogar os prazos por metade do prazo regulamentar –, ao prazo de prescrição previsto no art.º 10º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, ou seja, conceder aos comercializadores de energia elétrica e gás o prazo de prescrição de mais 3 meses, como pretende a A. Cremos que a letra da norma é clara, quer no seu número um, quer no seu número dois, no sentido de que a prorrogação dos prazos em metade aplica-se apenas aos prazos regulamentares expressamente previstos naquele Regulamento, onde não se incluem os prazos legais, neles se incluindo, como é óbvio, o prazo previsto na Lei n.º 23/96, de 26 de julho. Também parece resultar claro da redação do preceito em análise que a prorrogação dos prazos regulamentares ali previstos são aqueles a que estão sujeitos os operadores das redes de distribuição, comercializadores de último recurso e comercializadores, no âmbito do relacionamento com os clientes, nunca se podendo ali incluir prazos de prescrição de créditos, que são gizados precisamente contra aquelas entidades, nomeadamente os comercializadores, e a favor dos consumidores. Como acima se deixou dito, a intenção que presidiu à criação do prazo mais curto de prescrição (relativamente ao prazo previsto no CC) no art.º 10º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, foi a de proteger o consumidor final contra a acumulação de dívidas de fácil contração, evitando que se vissem confrontados com a exigência de débitos acumulados, que dificilmente poderiam satisfazer, impondo aos prestadores de serviços o dever de manterem uma organização que lhes permita a cobrança dos créditos em momento próximo do correspondente consumo. Têm aqui plena aplicação as regras interpretativas da lei (art.º 9º do CC), à qual estão também sujeitos os regulamentos, nos termos do qual a interpretação não deve cingir-se à letra lei mas reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas em que é aplicada. Ora, como decorre do preâmbulo do Regulamento em apreço, todo ele foi gizado para atender à circunstância de a pandemia poder levar ao corte do fornecimento de bens essenciais aos consumidores, sobretudo aos mais carenciados, como é o fornecimento de energia e gás, criando normas (protetoras) destinadas a evitar tal situação, nomeadamente com a prorrogação dos prazos previstos para os cortes de fornecimento (artºs 2º e 3º), e criando condições para pagamentos fracionados dos serviços faturados (art.º 4º), entre outros – nunca para os desfavorecer, aumentando nomeadamente os prazos de prescrição dos créditos em dívida (que a Lei nº 23/96, de 26 de julho veio encurtar). * A própria ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos), responsável pela emissão do Regulamento em causa, no âmbito dos seus poderes regulamentares (que lhe foram concedidos pelo DL nº 97/2002, de 12 de Abril (alterado sucessivamente pelo DL n.º 76/2019, de 03/06; pelo DL n.º 57-A/2018, de 13/07; pelo DL n.º 84/2013, de 25/06; pelo DL n.º 212/2012, de 25/09; e pelo DL n.º 200/2002, de 25/09), veio clarificar as normas emanadas daquele Regulamento (complementado por outros Regulamentos que lhe sucederam, desde logo pelo Regulamento n.º 356-A/2020, de 8 de abril; pelo Regulamento n.º 2/2021, de 1 de janeiro de 2021; pelo Regulamento 836/2021, de 8.9.2021; e pelo Regulamento 951/2021, de 2 de novembro), emitindo um Memorando - Nota Interpretativa -, onde esclarece o seguinte: “O Regulamento n.º 356-A/2020 é aplicado em conjugação com o restante edifício legal e regulamentar, designadamente quanto ao seu cumprimento e à aplicação do regime de prescrição e caducidade. Neste contexto, ainda que tal decorra de quadro legal, entende a ERSE dever reiterar que: a) O incumprimento de uma prestação do plano de pagamentos estabelecido implica a exigibilidade, na data do incumprimento, de todas as restantes prestações do plano ainda não vencidas, o que, a ocorrer, após a data de cessação da inibição de interrupção de fornecimento, habilita o respetivo comercializador a requerer a interrupção do fornecimento nos termos regulamentarmente estabelecidos; b) A celebração de plano de pagamentos relativo ao fornecimento de energia elétrica ou de gás natural implica que não são aplicáveis, na vigência do plano, as regras de invocação pelo cliente da prescrição e caducidade das obrigações de regularização dos valores de consumo de energia”.Resulta assim da nota interpretativa dada pela ERSE, que nela se estabelece uma clara distinção entre o que foi estipulado nos Regulamentos por ela emitidos, e as disposições legais que versam sobre a matéria de caducidade e prescrição, para as quais a própria ERSE remete. São chamadas à colação pela ERSE, embora de forma implícita, as normas relativas ao incumprimento do plano prestacional, cujo regime vem previsto no art.º 781º do CC (ao estabelecer que o não pagamento de uma prestação acordada implica o vencimento das restantes), assim como o regime da aplicação do prazo de prescrição ou de caducidade às obrigações que se encontram a ser pagas em prestações, e cujo titular entra em incumprimento, e que encontra também na lei a solução legal a que a ERSE se quer referir (e na qual não se pretendeu envolver). Concluímos acima do exposto que os prazos de prescrição aplicáveis aos créditos reclamados nos autos pela A são os previstos no art.º 10º da Lei n.º 23/96 (6 meses), que não sofreram alteração/prorrogação por força do Regulamento nº 255-A/2020, de 18.03.2020, contrariamente ao defendido pela A e pela decisão recorrida. * Cumpre-nos então agora apreciar a segunda questão suscitada, que é a de saber se estando o prazo de prescrição a decorrer, ele ficou suspenso por aplicação dos regimes excecionais de interrupção e suspensão de prescrição, previstos na Lei n.º 1-A/2020, de 19.3, e na Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, as chamadas Leis da Pandemia.Considerou-se na decisão recorrida, na sequência do alegado pela A, que se consideram aplicáveis ao caso (ou seja, como situações enquadráveis no art.º 306º do CC) os regimes excecionais de interrupção e suspensão de prescrição previstos na Lei n.º 1-A/2020, de 19.3 (e na Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro) as chamadas Leis da Pandemia, e, aplicando aos prazos da prescrição o regime de suspensão daquelas Leis considerou que não se verifica a prescrição do direito da A, em relação a qualquer uma das faturas reclamadas. * Relativamente ao instituto da prescrição, como muito bem se refere na decisão recorrida “…O reconhecimento da prescrição decorre da conceptualização do próprio instituto, por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante o período de tempo para tanto fixado na lei – cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1974, pág. 445. Nos termos do art. 298.º, n.º 1, do Cód. Civil, estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis, ou que a lei não declare isentos de prescrição. A figura da prescrição assenta num facto jurídico não negocial (o decurso do tempo), tendo na sua génese o não exercício dum poder, uma inércia de alguém que, podendo ou devendo actuar para realizar um direito, se abstém de o fazer. Com efeito, a prescrição do direito tem como principal fundamento a negligência do titular do direito em exercitá-lo, negligência que faz presumir a sua vontade de renunciar a tal direito, ou, pelo menos, o torna não merecedor de protecção jurídica, embora reconheçamos a existência de outras razões justificativas à extinção do direito, que se prendem com a certeza e a segurança do tráfico jurídico, a protecção dos obrigados, especialmente os devedores, contra as dificuldades de prova a longa distância temporal, e a necessidade de exercer pressão sobre os titulares dos direitos, no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação, quando não queiram abdicar deles. Para ser eficaz, a prescrição necessita de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita – art. 303.º do Cód. Civil – sendo que completado o prazo de prescrição sem que o titular do direito tenha praticado os actos necessários e com virtualidade de obstar àquela, interrompendo-a, pode o devedor, nos termos do art. 304.º, n.º 1, do Cód. Civil, recusar a prestação ou opor-se ao exercício do direito, como sucedeu no caso em apreço. Segundo a primeira parte do n.º 1 do art. 306.º do Cód. Civil: “O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido…”. É evidente que o conhecimento de um direito e a possibilidade do seu exercício não coincidem necessariamente, o que significa que estamos perante duas realidades distintas e, como é comummente reconhecido, é na disposição do Código Civil que está consagrada a regra geral nesta matéria. Seguindo o ensinamento de Ana Filipa Morais Antunes (Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 83 em comentário ao art. 306.º) “A expressão «quando o direito puder ser exercido» tem de ser interpretada no sentido de a prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular o poder actuar, portanto, desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação. O critério consagrado é, pois, o da exigibilidade da obrigação. Consagra-se uma concepção objectivista quanto ao início do prazo prescricional, ao contrário do que sucede, designadamente, em matéria… do direito à indemnização fundada em responsabilidade extraobrigacional (cf. artigo 498º)”. * Nos termos do art.º 306.º n.º 1 do C.Civil “O prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido”, só se suspendendo ou interrompendo em determinadas situações previstas na lei.Vejamos então se são aplicáveis aos prazos prescricionais em curso, quanto aos créditos reclamados pela A, a suspensão dos prazos decorrentes das mencionadas Leis da Pandemia. Relativamente aos prazos processuais, a Lei n.º 1-A/2020, de 19.03 - a primeira Lei da Pandemia -, determinou que aos atos processuais e procedimentos que deviam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corressem termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, se aplicava o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinado pela autoridade nacional de saúde pública (artº artigo 7.º, nº 1, redação originária). Tal regime cessaria em data a definir por decreto-lei, no qual se declarasse o termo da situação excecional (artº 7º, nº 2 da Lei 1-A/2020). Tal lei foi publicada em 19 de março e entrou em vigor no dia seguinte (artigo 11.º), produzindo efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (artigo 10.º), ou seja, a 9.03.2020. A Lei n.º 1-A/2020, estabeleceu ainda no seu artigo 2.º que o conteúdo do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, constituía sua parte integrante. Para além de integrar o conteúdo do referido Decreto-Lei, nomeadamente o disposto nos artº 14º e 15º que compõem o capítulo consagrado aos atos e diligências processuais e procedimentais, a Lei n.º 1-A/2020 procedeu à ratificação dos respetivos efeitos (artigo 1.º, alínea a)) e determinou a coincidência da produção de efeitos de ambos os diplomas (artigos 2.º, parte final, e 10.º). Em 6 de abril de 2020 foi publicada a Lei n.º 4-A/2020, que alterou o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 em diversos pontos, contendo um novo conjunto de normas aplicáveis aos prazos e atos processuais (artº 2º da Lei 4º-A/2020). O artigo 6º, nº 2 da Lei 4-A/2020 veio estabelecer que o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei 4-A/2020, produzia os seus efeitos a 9 de março de 2020, com exceção das normas aplicáveis aos processos urgentes e do disposto no seu n.º 12, que só produziam efeitos na data da entrada em vigor da Lei 4-A/2020 – 7.04.2020 (artº 7º). A nova redação do artº 7º, nº 1 da Lei 1-A/2020 deixou de aplicar aos prazos para a prática de atos processuais e procedimentais o regime das férias judiciais e passou a determinar, relativamente aos processos não urgentes, a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, estabelecendo para os processos urgentes a continuação da sua tramitação, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o disposto nas alíneas a) a c) (cfr. artº 7, nº 7). A Lei n.º 16/2020, de 29.5, revogou o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 (artigo 8.º) e no seu nº 2 aditou um artigo – o 6.º-A – a essa mesma lei, contendo um «Regime processual transitório e excecional» (artigo 2.º), e deixou de prever a suspensão de quaisquer prazos. Esta lei entrou em vigor no quinto dia seguinte ao da sua publicação, pelo que tendo sido publicada em 29 de maio, o início da vigência aconteceu a 3 de junho (artº 10º). Ou seja, a suspensão dos prazos processuais decorrentes da Lei n.º 1-A/2020, de 12.3. (com as sucessivas alterações à mesma) decorreram de 9.3.2020 a 3.6.2020. Em 2021, devido a novo agravamento da crise pandémica, a lei 4-B/2021, de 1 de fevereiro, aditou novos artigos à Lei 1-A/2020, designadamente o artº 6º B que no seu nº 1 determinou a suspensão de todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devessem ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corressem termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes (que contemplavam os processos, atos e diligências considerados urgentes). Foram também suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no nº 1 do artº 6º-B (nº 3 do artº 6º-B), prevalecendo o disposto no número anterior sobre quaisquer regimes que estabelecessem prazos máximos imperativos de prescrição, aos quais acrescia o período de tempo em que a suspensão vigorasse (nº 4 do artº 6º-B). A Lei 4-B/2021 introduziu um preceito que não existia na legislação de 2020, específico para os tribunais superiores (alínea a) do nº 5 do artº 6º-B). A lei 4-B/2021 entrou em vigor no dia a seguir ao da sua publicação (artº 5º), em 2 de fevereiro e veio retroagir a produção de efeitos a data anterior, determinando a produção de efeitos a 22 de janeiro de 2021, sem prejuízo das diligências e atos processuais entretanto realizados e praticados (artº 4.º). O artº 6º B da Lei 1-A/2020 foi depois revogado pela Lei 13-B/2021, de 05/04 (artº 6º) que entrou em vigor em 06.04.2021 (artº 7º). E o mesmo se passaria com a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro. Nos termos do art. 4º desta Lei, a mesma produziu efeitos a 22/1/2021. E só a 6/4/2021, com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, é que estes prazos de prescrição e caducidade deixaram de estar suspensos. Conforme estipulou o art. 5º desta Lei n.º 13-B/2021, tais prazos de prescrição e caducidade “são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão”. Esta suspensão vigorou de 22/1/2021 a 6/4/2021, ou seja, durante 74 dias. Assim, os prazos processuais estiveram novamente suspensos entre 22/01/2021 a 06/04/2021. Este é o quadro normativo em questão. * E a pergunta que se impõe, e à qual importa dar resposta, é a de saber se estando em curso o prazo de prescrição das prestações relativas aos serviços prestados pela A à ré, esse prazo se suspendeu, pela entrada em vigor da Lei nº 1-A/2020, de 13 de março, ainda que não se encontrasse pendente em tribunal nenhuma ação para cobrança de dívida das prestações já vencidas.Ou seja, importará dar resposta à questão de saber se os prazos a suspender decorrentes da aplicação das Leis da Pandemia são apenas os prazos processuais em curso – a observar nos processos ou procedimentos já instaurados -, ou também os prazos decorrentes da prescrição de outros direitos, ainda que carecidos de tutela jurisdicional para se tornarem efetivos. Seríamos tentados a dizer desde já que aquela suspensão não tem aplicação ao caso dos autos. A redação do artigo 7.º, nº 1 (redação originária) da Lei nº 1-A/2020, parece não deixar margem para dúvidas de que assim é, ao referir-se à suspensão dos prazos dos atos processuais e procedimentos que deviam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corressem termos nos tribunais judiciais (entre outros). E o mesmo se passou com o artigo 6.º-B n.º 3 da lei 4-B/2021, que decretou que são igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos (querendo referir-se aqui também aos próprios prazos de prescrição dos processos e procedimentos e não apenas aos prazos dos atos processuais). Ou seja, o n.º 1 referia-se a todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devessem ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais. A letra da lei é clara, cremos, no sentido apontado. Mas decorre também do seu espírito que foi apenas a pensar nos prazos processuais em curso que a legislação foi aprovada. Com efeito, na interpretação da lei, conforme resulta do art.º 9º do C.C., o intérprete deve não só atender à sua letra, mas “reconstituir a partir dos textos, o pensamento legislativo (…), as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas em que é aplicada.” Para reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo é necessário examinar o projecto que deu origem a esta Lei e a respetiva exposição de motivos. Foi o referido diploma legal precedido da Proposta de Lei nº 70/XIV, de cuja exposição de motivos consta ipsis verbis o seguinte: “A situação excecional que se vive no momento atual e a proliferação de casos registados de contágio da pandemia da doença COVID-19 exigem a aplicação de medidas excecionais e de caráter urgente no âmbito do desenvolvimento da atividade judicial e administrativa. Assim, apesar das atuais restrições ao funcionamento de um conjunto de órgãos e serviços, com vista à promoção da diminuição da mobilidade e redução de contactos sociais, importa garantir o funcionamento da Administração Pública e dos tribunais, salvaguardando, contudo, aquele desiderato. De igual modo, importa acautelar aquelas circunstâncias através do estabelecimento de um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas de segurança adotadas no âmbito do combate à pandemia da doença COVID-19. Nessa medida, a presente proposta de lei apresenta, por um lado, um conjunto de medidas relativas à suspensão de prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal. Para tal, suspende-se o cômputo do prazo dos processos e procedimentos não urgentes, garantindo-se, todavia, a tramitação daqueles que se apresentam como indispensáveis e estabelecendo-se uma série de exceções que permitem mitigar os efeitos genéricos da suspensão. Por outro lado, considerando que os tribunais e a Administração Pública contam já com uma importante experiência na tramitação de processos e procedimentos em formato eletrónico, bem como na realização de diligências através de meios de comunicação à distância, importa também consagrar a possibilidade de tramitação de um conjunto de processos e procedimentos naquelas condições”. (negrito nosso) Desta exposição de motivos decorre as circunstâncias em que a Lei foi elaborada, proliferação de casos de contágio generalizado da doença Covid 19, a intenção do legislador de acautelar, com esta medida, a continuação destes casos de contágio pelos contactos decorrentes de deslocações e presença em actos judiciais e, o cuidado de salvaguardar a tramitação dos actos e procedimentos ainda que em processos não urgentes, quando se não verifique este perigo de contágio, por a tramitação dos autos por via electrónica e a realização de diligências à distância, o impedir. A necessidade de evitar a propagação da doença constitui, assim, o objetivo primário para a suspensão de prazos e procedimentos judiciais, mas porque o direito a um processo justo e equitativo, decidido em prazo razoável é também um imperativo constitucional (cfr. Art.º 20º, nº 1 e 4 da nossa Constituição), as medidas adotadas pelo legislador nortearam-se pela necessidade de suspender apenas aqueles atos e diligências que implicavam deslocações e eventuais contactos e salvaguardar a continuação daqueles em que tal não ocorresse e, portanto, nenhuma justificação fundada em razões de saúde pública existisse, que permitisse esta restrição de direitos (constitucionais) das partes, objetivo que norteia as exceções indicadas no nº 5 do artº 6º-B da Lei 4-B/2021. A intervenção do Secretário de Estado Adjunto e da Justiça (Mário Belo Morgado), em relação a esta Proposta de Lei, não deixou de apontar esta realidade e a intenção do legislador: com esta Lei procurou-se assegurar um equilíbrio entre a necessidade de se combater e controlar a crise pandémica adotando “medidas que realmente contribuam para evitar a proliferação dos contágios”, mas por outro lado, “considerando que a funcionalidade do sistema de justiça assenta no equilíbrio entre o número de processos entrados e findos, visa-se assegurar a realização de todos os atos que possam ter lugar, em função de critérios de razoabilidade.” Ora, desde logo se torna evidente que, por não existir qualquer processo ou procedimento, à data, no qual se estivesse a discutir o direito de crédito da A., o regime da suspensão decorrente daquelas Leis não pareceria ter aplicação ao caso dos autos. A suspensão servia apenas para o exercício de direitos em juízo, o que não era claramente o caso dos Autos, uma vez que Injunção apenas deu entrada em juízo em 22.2.2021, e a citação da Ré apenas ocorreu em 03/03/2021. Não havendo qualquer ato processual a praticar, não teria, em princípio, aqui aplicação o prazo da suspensão decorrente daquelas leis. * Não podemos, no entanto, ignorar o que se dispõe no Código Civil relativamente às regras da Suspensão e Interrupção dos prazos da prescrição, como regras gerais a serem ponderadas no caso, em consonância com as referidas Leis da Pandemia.Convocamos assim para o caso o disposto no art.º 321º do CC no qual se preceitua que “A prescrição suspende-se durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer valer o seu direito, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo”, sendo à luz do Instituto da Suspensão da Prescrição previsto na lei geral que será equacionado o problema a resolver. O CC não define expressamente em que consiste a suspensão da prescrição, por isso teremos que apreender dos preceitos legais nele previstos, entre o art.º 318 e o art.º 322º do CC, o conteúdo e definição da mesma. Juridicamente a suspensão da prescrição faz com que o período de tempo em que a suspensão se verificou não seja contabilizado para o prazo legal de prescrição. Ao vencimento do prazo prescricional é, deste modo, prorrogado ou somado a este o tempo do prazo suspensivo. D. Marques (Prescrição extintiva, p. 95, Coimbra Edª 1953) refere que “a suspensão da prescrição traduz-se (…) no aparecimento dum facto ou duma qualidade que retira do prazo a sua relevância prescricional durante todo o seu tempo da sua duração. Uma vez desaparecida esta qualidade impeditiva o prazo volta a correr e na sua contagem conta-se aquele que decorreu antes do aparecimento da causa suspensiva com o que vai decorrer após a sua cessação. A estas qualidades impeditivas da prescrição dá-se o nome de causas de suspensão ou causas suspensivas da prescrição”. R.C. Silva (In CC anotado, Almedina, p388, nt. 3 ao art.º 318) justifica a suspensão como um paliativo face aos efeitos extintivos da prescrição do direito do credor, com fundamento em valores legais, sociais ou morais superiores ao mero interesse particular inter-partes, ou então, em cedência a outros institutos legais positivados no C.C, p.e, o casamento, a boa-fé, a família, a confiança em determinadas relações, determinadas situações que dificultem objetiva ou subjetivamente o acionamento oportuno do seu direito. Concluindo pelo contra balanceamento entre a sanção da inércia do credor – algo que o legislador muito deseja evitando ações judiciais e entupindo os tribunais – e a necessária proteção, por interesse público, de circunstâncias, ainda que temporárias, que impossibilitem ou tornem inexigível o exercício atempado dos direitos. No fundo, a suspensão traduz-se em não se contar para o efeito da prescrição o tempo decorrido enquanto durarem certos factos ou situações, que são precisamente as causas suspensivas. A prescrição, portanto, só não corre enquanto opera a causa suspensiva. O tempo decorrido antes soma-se ao tempo decorrido depois da suspensão da prescrição. Por isso se diz que na suspensão a prescrição está quiescente ou adormecida (quiescit, dormit). Vaz Serra (Prescrição e caducidade, in BMJ, n.º 105 (1961), pp. 5-248; BMJ, n.º 106 (1961), pp. 45-278; e BMJ, n.º 107 (1961), pp. 159-302) define também a suspensão como uma suposição que obsta à contagem desta. Define que enquanto subsistir a causa suspensiva, “a prescrição não corre (praescriptio dormens), quer estivesse já a correr, quer não”. Indicando ainda que “o tempo decorrido enquanto essa causa se mantiver não se conta, portanto, para a prescrição; mas o tempo decorrido antes que essa causa surgisse é contado, juntando-se ao que decorrer depois de cessada ela”. Uma das causas da suspensão da prescrição previstas na lei é precisamente uma causa de força maior ou o dolo do obrigado, precisamente a solução consagrada no art.º 321º, aqui chamado à colação, em tempo de Pandemia. Ou seja, a suspensão da prescrição pode ainda ocorrer por causas de força maior ou dolo do obrigado, aplicando-se aqui a máxima “contra non valentem agere non currit praescriptio”, ou seja, se o credor não pode agir judicialmente, a prescrição não deve correr, embora aqui a suspensão a seu favor apenas pode operar nos últimos três meses do termo do prazo, quando por acaso esteja a ponderar a ação judicial e p.e, ficar enfermo ou ilegalmente detido num país estrangeiro sem qualquer possibilidade de constituir mandatário. Assim, por exemplo, se um credor, nos últimos três meses do prazo prescricional é acometido de uma doença que o coloca numa situação de incapacidade, durante um ano, suspende-se o prazo de prescrição. Recuperada a saúde, o prazo continua a correr até que se complete, tendo-se, para o efeito, em consideração o tempo anteriormente decorrido (cfr. J. Dias Marques in Noções Elementares de Direito Civil, 3.ª Ed. pág. 109). Pires de Lima e Antunes Varela (CC anotado, vol I, Coimbra editora, 3ª edição, pag.287), em anotação ao artº 321º nº1 do CC dizem muito sugestivamente que “A impossibilidade de o credor agir no sentido da interrupção da prescrição só é atendida quando tenha lugar nos últimos três meses do prazo (…). Está na base desta disposição a proteção daqueles que reservaram o fim do prazo para agir e se viram impossibilitados de o fazer”. * É sobre a suspensão dos prazos da prescrição – por força da situação da Pandemia - que nos debruçaremos de seguida, partindo desde logo de um princípio basilar, que é o de que o facto suspensivo, o que leva à suspensão dos prazos da prescrição, tem de ocorrer durante a sua vigência, ou seja, a prescrição só se pode considerar suspensa se estiver em curso, se o prazo que a ela diz respeito estiver a decorrer. Dito de outro modo, é necessário que o prazo da prescrição se tenha iniciado e esteja a decorrer aquando do evento suspensivo, que vem, no fundo, suspender a continuidade ou a completude do prazo extintivo. Isso já não acontecerá, como é evidente, a créditos já extintos pela prescrição aquando do evento que leva à suspensão, a qual já se completou, como sucedeu, no caso dos autos, com as prestações dos serviços prestados pela A, de 26 de outubro 2018 a 31 de agosto de 2019 (que em 9.3.2020 já se encontravam prescritas). Efetivamente, o artigo 298.º do CC, intitulado “Prescrição, caducidade e não uso do direito” estabelece que “Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição…” O fundamento específico da prescrição assenta na negligência do seu titular em exercer o seu direito no período de tempo fixado na lei, presumindo-se que “…. renunciou a ele ou, pelo menos, deixou de ser merecedor de protecção jurídica” (Ac. STJ de 29.04.98 in CJSTJ 1998/II/269). Como ensina o Prof. Dias Marques (Prescrição Extintiva, pág. 17), “…interessa à sociedade que as relações jurídicas que se travam entre os particulares sejam curtas e bem determinadas, nos seus termos e no seu conteúdo, pois a incerteza existente acerca de alguns dos seus elementos dificulta o comércio jurídico e dá lugar ao aparecimento de litígios – o que tudo vem a traduzir-se num obstáculo ao feliz desenvolvimento das actividades com consequentes prejuizos para o organismo social”. São, pois, também, razões de interesse e ordem pública “destinadas a tutelar o interesse social da certeza do direito e da segurança jurídica a proteger o sujeito passivo contra as dificuldades de prova do cumprimento da obrigação e a pressionar o titular do direito a não descurar o seu exercício quando não queira dele abdicar” (Ac. STJ de 29.04.98 acima referido) que estão na base do instituto da prescrição. Contende, assim, a prescrição com a extinção do direito invocado. Diz-se que a extinção de um direito tem lugar quando ele deixa de existir na esfera jurídica de uma pessoa; quebra-se a relação de pertinência entre um direito e a pessoa do seu titular. Ora, a extinção de direitos pode ser subjectiva, também chamada “perda de direitos”, se o direito sobrevive em si, apenas mudando a pessoa do seu titular, e pode ser objectiva, se o direito desaparece, deixando de existir para o seu titular ou para qualquer pessoa, sendo uma forma particular de extinção de direitos a correspondente aos institutos da prescrição e da caducidade. Se o titular de um direito o não exercer durante certo tempo fixado na lei, extingue-se esse direito. Diz-se, nestes casos, que o direito prescreveu (ou caducou). Excluídos assim, por extintos pela prescrição os créditos acima referidos, referentes às prestações dos serviços de 26 de outubro 2018 a 31 de agosto de 2019, estarão apenas na situação em análise os créditos decorrentes dos serviços prestados pela A à ré nos meses subsequentes, de setembro de 2019 até outubro de 2020. E começamos por dizer que ninguém duvida que a situação que se viveu em Portugal e no mundo inteiro – a situação de Pandemia -, foi um caso de força maior (facto público e notório que não carece nem de alegação nem de prova (artº 5º nº1, alínea c) do CPC). Conforme defende José Oliveira Martins, no estudo intitulado “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – uma primeira leitura e notas práticas” (in Julgar Online, Março de 2020, pág. 6), o art.º 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março aplica-se a “prazos que digam respeito a concretos, mesmo que futuros, «processos e procedimentos» que se iniciem antes, no decurso ou após a vigência desta lei, só assim se podendo entender a menção final expressa aos mesmos, não resultando deste normativo, salvo melhor opinião, que se queiram suspender todos os prazos substantivos em curso e que não digam respeito a qualquer, mesmo que só futuro, «processo e procedimento»”. Esclarecendo o sentido deste preceito, M. Teixeira de Sousa e J. M. Delgado de Carvalho, no estudo intitulado “As medidas excepcionais e temporárias estabelecidas pela Lei nº 1-A/2020, de 19/3 (repercussões na jurisdição civil), disponível em https://drive.google.com/file/d/18uig2uGf7BCZEMC2zcHBM8EhJCZYow0V/view- - escrevem também o seguinte: “Do estabelecido nos nºs 3 e 4 do art.º 7º da Lei nº 1-A/2020 resulta um regime excepcional e temporário de suspensão de prazos de prescrição e de caducidade. O regime é aplicável, sem qualquer dúvida, às acções ou aos procedimentos que, de modo a evitar a prescrição ou a caducidade, tivessem de ser propostos durante a vigência da situação excepcional. Assim, por exemplo, os prazos convencionados ou legais que regulam a produção de efeitos da resolução de contratos não ficam suspensos, dado que a resolução opera ex voluntate (cf. art. 436.º, n.º 1, CC); mas já fica suspenso o prazo (substantivo) para propor uma acção de anulação (cf., por exemplo, arts. 287.º, n.º 1, 917.º e 1644.º a 1646.º CC) ou uma ação de preferência (cf., por exemplo, arts. 416.º, n.º 2, e 1410.º, n.º 1, CC). A mesma solução vale para os prazos estabelecidos no CPC para a propositura de ações (cf., por exemplo, arts. 373.º, n.º 1, al. a), e 395.º CPC). Se dúvidas houvesse quanto a esta interpretação, pelo menos no que se refere ao regime da prescrição, o disposto no n.º 1 do art.º 321.º CC sempre permitiria, por si mesmo, considerar suspensos os prazos de prescrição que, em 9/3/2020, se encontrassem nos últimos três meses. Convém recordar o que se estabelece nesse preceito: «A prescrição suspende-se durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer valer o seu direito, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo». Sobre este regime escreveu-se também, de forma esclarecedora, o seguinte: «Não oferece dúvidas a aproximação entre o 321.º/1 e o 790.º: há suspensão, nos últimos três meses do prazo, quando o titular estiver impossibilitado, por causa que lhe não seja imputável, de fazer valer o seu direito. Releva, naturalmente, a impossibilidade efetiva, temporária e absoluta, nos termos gerais» (Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado I (no prelo) Menezes Cordeiro). Defende-se ainda, a propósito do regime instituído nos n.ºs 3 e 4 do art.º 7.º da Lei 1-A/2020 um argumento de ordem lógica, a não menosprezar: que ele visa evitar situações anómalas no domínio da prescrição e da caducidade. Seria o que sucederia se um interessado ficasse impedido de instaurar o meio processual destinado à satisfação do seu direito devido à situação epidemiológica, e um outro interessado, que futuramente fosse por ele demandado, pudesse vir a excecionar a prescrição ou a caducidade ou o tribunal pudesse vir a conhecer oficiosamente desta caducidade. Seria um resultado que violaria o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais (cf. art.º 20.º, n.º 1, da CRP), dado que a verificação da prescrição ou da caducidade do direito do interessado conduziria ao insucesso da sua pretensão ou do seu pedido. Daí que se tenha vindo a defender que a aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 321.º CC ao regime excecional e temporário de suspensão de prazos imposto pelos nºs 3 e 4 do art.º 7.º da Lei 1-A/2020 permite concluir que o regime aproveita a todos os que sejam titulares de direitos cujos prazos de prescrição se encontrem nos últimos três meses, acrescentando-se ainda que o regime que consta do n.º 1 do art.º 321.º CC para a prescrição também pode ser aplicado à caducidade, atendendo, nomeadamente, ao tratamento conjunto da prescrição e da caducidade nos n.ºs 3 e 4 do art. 7.º L 1-A/2020 e à circunstância de, durante a situação de excepção decretada pelo art.º 7.º, n.º 2, L 1-A/2020, não haver nenhuma justificação para tratá-las de forma diversa. Os demais titulares – isto é, aqueles cujos prazos de prescrição ou de caducidade não se encontrem nos últimos três meses –, não beneficiam da suspensão excecional e temporária desses prazos, por não se justificar a proteção concedida pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 7.º L 1-A/2020. O legislador certamente não podia pretender que, para todo e qualquer prazo de prescrição ou de caducidade, se viesse a acrescentar (quiçá daqui a 10 ou 15 anos) a duração da situação excepcional. Quem precisa de proteção é quem, neste momento, tem um prazo de prescrição ou de caducidade a terminar, não aquele contra quem corre um prazo de prescrição ou de caducidade que vai terminar daqui a 2, 7, ou 12 anos. Assim, não se deve retirar do art.º 7.º, n.ºs 3 e 4 da Lei 1-A/2020 que a qualquer prazo de prescrição ou de caducidade que se encontre estabelecido no CC ou em qualquer outro diploma e que se encontre a correr se passa a somar automaticamente a duração da situação excecional. Quer isto dizer que é fundamental distinguir entre os prazos de prescrição e de caducidade que ficam abrangidos pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 7.º L 1-A/2020, e aqueles que não são cobertos por este regime. É precisamente neste contexto que se mostra toda a relevância o disposto no n.º 1 do art.º 321.º CC. A relevância é a seguinte: a aplicação desse preceito permite concluir que, além dos prazos que se encontravam em 9/3/2020 nos últimos três meses, também se suspendem os prazos de prescrição e de caducidade que atinjam os últimos três meses durante a situação de exceção. O disposto no n.º 1 do art.º 321.º CC fornece um critério seguro e razoável para determinar os prazos de prescrição e caducidade que devem ficar abrangidos pela suspensão imposta pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 7.º L 1-A/2020. Em suma e numa formulação geral: os prazos de prescrição e de caducidade que se suspendem, a partir de 9/3/2020, por força do disposto no art.º 7.º, nºs 3 e 4 da Lei 1-A/2020 são todos aqueles (mas apenas esses) que estejam nessa data ou que entrem durante a situação de exceção nos últimos três meses. Disto decorre que, como é próprio do regime da suspensão (que é distinto do da interrupção), os prazos de prescrição e caducidade que estejam ou venham a estar durante a vigência da situação excecional nos últimos três meses, voltam a correr após a declaração do termo dessa situação, completando-se então o prazo com aquele que não correu até 9/3/2020. No fundo, é de admitir, em tese, que se não fosse a pandemia, seria possível que os prazos em curso e que prescreveriam, tal não viesse a acontecer porque haveria ainda a possibilidade de o titular do direito poder propor a ação dentro desse período, só não o tendo feito por causa das restrições impostas pelas Leis da Pandemia. Considerando então a solução apontada, e fazendo a sua aplicação ao caso dos autos, verificamos que se suspendem-se todos os prazos de prescrição e de caducidade que em 9/3/2020 se encontravam nos últimos três meses, encontrando-se nessa situação os serviços faturados de setembro de 2019 a maio de 2020, os quais, dentro do período de 9.3.2020 a 3.6.2020 se encontravam a 3 meses de prescrever. Terminado o prazo de suspensão, que ocorreu em 3.6.2020, os prazos entretanto suspensos voltaram a correr, somando-se o período retomado, ao período anterior entretanto suspenso. Significa isto que apesar de suspensos aqueles prazos, voltando os mesmos novamente a correr, em 3.6.2020, todas as prestações em causa encontram ainda assim prescritas, por terem decorrido mais de 6 meses desde a data do seu vencimento (melhor dizendo, dos serviços prestados) até à data da instauração da Injunção (22.2.2021). Quanto aos demais serviços prestados, a fatura do mês de junho de 2020, com vencimento a 30.6.2020, ela reporta-se a serviços prestados e vencidos fora do período da suspensão e que, caso não ocorra qualquer outra causa suspensiva, se encontra igualmente prescrita, porque decorreram desde a data do seu vencimento mais de 6 meses. As restantes faturas, de julho e agosto de 2020, cujo vencimento ocorreu em 31.7. e 31.8, respetivamente, por força da aplicação das regras da suspensão do art.º 321º nº1 do CC, conjugadas com as da lei 4-B/2021, de 1 de fevereiro (que aditou novos artigos à Lei 1-A/2020, designadamente o artº 6º B, e que entrou em vigor em 2 de fevereiro e veio retroagir a produção de efeitos a data anterior, determinando a produção de efeitos a 22 de janeiro de 2021), os prazos de prescrição daquelas duas faturas, que deveriam ocorrer em 31.1.2021 e 28.2.2021, respetivamente, suspenderam-se em 22.1.2021, pelo que as mesmas não se encontravam ainda prescritas na data da instauração da Injunção, em 22.2.2021. * Importa finalmente apreciar a terceira e última questão colocada, que é a de saber se o prazo prescricional dos serviços prestados à ré se suspendeu com a nomeação do Administrador Judicial Provisório, no Processo Especial de Recuperação (em 30.7.2020) que a ré intentou em tribunal.Esta questão apresenta-se ainda relevante relativamente à fatura considerada prescrita – do mês de junho de 2020 -, em termos de se averiguar se o prazo prescricional a ela atinente se suspendeu ao abrigo das disposições do PER. Reiteramos aqui o que se disse atrás, de que o facto que leva à suspensão dos prazos da prescrição, tem de ocorrer durante a sua vigência, ou seja, a prescrição só se pode considerar suspensa se ela estiver em curso, se o prazo que a ela diz respeito estiver a decorrer. Dito de outro modo, é necessário que o prazo da prescrição se tenha iniciado e esteja a decorrer ainda aquando do evento suspensivo, que vem no fundo suspender a continuidade ou a completude do prazo extintivo. Isso já não acontecerá, como é evidente, a créditos já extintos pela prescrição aquando da ocorrência do evento que leva à suspensão, a qual já se completou, como sucedeu, no caso dos autos, com as prestações dos serviços efetuados de 26 de outubro 2018 a 31 de agosto de 2019 (que em 30.7.2020 já se encontravam prescritas). Escusado será também apreciar a situação da prestação dos serviços constantes das faturas de setembro de 2019 a maio de 2020, assim como as de julho e agosto de 2020, que como já apuramos se encontram em prazo, sem terem sido atingidas pela prescrição. O mesmo se passa com as faturas de setembro e outubro de 2020, assumidamente em prazo, pela própria ré. Restará então apreciar a situação da fatura restante, do mês de junho de 2020 e cujo prazo de prescrição poderá ter ficado suspenso, por virtude da apresentação da ré ao PER, com a nomeação do Administrador Judicial Provisório em 30.7.2020. * Considerou o tribunal recorrido que de 30/07/2020 a 10.11.2021 (2.ª sentença homologatória, que transitou em julgado), se suspendeu o prazo prescricional em curso relativamente aos créditos decorrentes das prestações em dívida.Vejamos: Dispunha o nº1 do artº 17.º- E do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), à data da instauração da Injunção (excluindo pois as mais recentes alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, de 11/01), intitulado “Efeitos” que: “1 - A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º- C (de nomeação de Administrador Provisório) obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”. E dispunha o nº 7 do mesmo preceito legal que “A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C determina a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pela empresa, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações e até à prolação dos despachos de homologação, de não homologação, caso não seja aprovado plano de recuperação, até ao apuramento do resultado da votação ou até ao encerramento das negociações nos termos previstos nos nºs 1 e 5 do artigo 17.º-G”. (negrito nosso) Cremos que foi da conjugação dos preceitos legais transcritos que resultou para o tribunal o entendimento – aderindo à tese aventada pela A –, de que os prazos de prescrição se suspendiam com a prolação do despacho de nomeação do Administrador Judicial Provisório, no PER ao qual a ré se apresentou. E temos de concordar desde logo com a decisão recorrida. Desde logo, o argumento literal retirado do preceito legal em análise aponta nesse sentido. A lei é clara no sentido de que a suspensão abrange todos os prazos de prescrição e de caducidade que sejam oponíveis pela empresa nomeadamente aos seus credores, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações e até à prolação dos despachos de homologação, de não homologação, caso não seja aprovado plano de recuperação, até ao apuramento do resultado da votação ou até ao encerramento das negociações. E faz todo o sentido que assim seja, que a empresa que se encontra sujeita a PER, com o apoio dos seus credores, os quais estão impedidos de interpor ações contra a empresa durante o período em que se encontrarem em negociações, e vêm suspensas as ações que haviam interposto antes, que não vejam correr contra eles os prazos de prescrição. Referimo-nos ao preceituado no art.º 17.º- E nº 1, no qual se estipula que “A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”. Trata-se de uma contrapartida legal concedida pela empresa aos seus credores - de não invocar contra eles a prescrição de eventuais créditos vencidos, enquanto durarem as negociações –, em troca da sua colaboração na sua recuperação. É esse também o espírito do PER, que em breves traços passaremos a enunciar. O processo especial de revitalização (PER) foi instituído pela Lei n.º 16/2012, de 2012, que procedeu à sexta revisão do CIRE, dotando-o de um mecanismo com cariz de revitalização empresarial, em detrimento da liquidação das empresas e dos empresários. Conforme se escreve na exposição de motivos da proposta de Lei n.º 39/XII, de 30 de dezembro de 2011, o PER pretendeu “assumir-se com um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontram em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência atual”. Concordantemente com estes fins estabelece o n.º 1 do art.º 17º-A do CIRE que: “O processo de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”. É muito elucidativo o que se diz no Ac. Desta Relação de Guimarães de 18.3.2021 (disponível em www.dgsi.pt) sobre o processo especial de revitalização, de que “…o PER consubstancia um processo especial aplicável às empresas, estas entendidas como toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica (art. 5º), quer sejam detidas por pessoa singular, pessoa coletiva ou integrem um património autónomo (art. 2º, n.º 1), que se encontrem em situação económica difícil ou em situação meramente iminente, mas que ainda sejam suscetíveis de recuperação, destinando-se esse acordo a evitar que essas empresas caiam precisamente numa situação de efetiva insolvência e daí que se possa dizer que o PER visa realizar dois objetivos: um objetivo imediato, que consiste na renegociação do passivo da empresa em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, e um objetivo mediato, que é a recuperação dessa empresa (…). Deste modo (…), para além das características que vimos elencando, o PER comunga também da natureza da consensualidade, na medida em que o atingimento do fim essencial deste – a recuperação da empresa em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas ainda suscetível de recuperação - passa pelo estabelecimento de negociações entre a empresa devedora e os respetivos credores (art.º 17º-D, n.º 5), em que a aprovação do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa passa pela formação de um quórum deliberativo constitutivo e deliberativo qualificado (art.º 17º-F, n.º 5), posto que só assim se justifica que essa vontade maioritária qualificada dos credores que aprovam o plano de recuperação, uma vez homologado pelo juiz, se possa impor (e impõe) aos credores minoritários que não tenham reclamado os seus créditos, ou que, tendo-o feito, ou tendo esses seus créditos, apesar de não reclamados, sido reconhecidos pelo administrador provisório de insolvência na lista provisória de créditos, e não tenham sido alvo de impugnação (o que equivale ao reconhecimento desses créditos – art.º 17º-D, n.º 4), decidiram não participar nas negociações ou que, tendo-o feito, votaram contra a aprovação do plano de recuperação que acabou por ser aprovado pela maioria qualificada e por ser homologado pelo juiz (art.º 17º-F, n.º 10). Além de ser um processo pré-insolvencial, recuperatório, voluntário e consensual, o PER é igualmente um processo concursal, uma vez que não só todos os credores interessados podem nele participar, como se procura incentivar que o máximo de credores participem nas negociações (…). Aqui chegados, sintetizando, o PER é um processo que tem por finalidade a obtenção de um acordo entre uma empresa devedora, que se encontre numa situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de ser recuperada, e a maioria dos seus credores, que seja capaz de a viabilizar, obstando que incorra numa situação de insolvência efetiva, em que a eficácia desse acordo (plano de recuperação) pressupõe que seja aprovado por uma maioria qualificada de créditos, de modo a que, uma vez homologado por sentença judicial, torná-lo vinculativo para todos os credores (Ac. RL. de 09/05/2013, disponível em www.dgsi.pt; Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”; Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., Almedina; Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., Quid Juris), Trata-se de um processo híbrido, nele sobressaindo a componente da negociação entre a empresa devedora e os respetivos credores, a qual se processa extrajudicialmente, com a participação e sob a orientação e fiscalização do administrador judicial provisório (art.º 17º-D, nºs 8 e 9), mas em que a intervenção do juiz no processo está reservada a momentos chave, que reclamem um controlo jurisdicional efetivo, como é o caso do controlo inicial do processo, com vista a verificar se a empresa devedora que se apresente a PER se encontra efetivamente numa situação de facto que lhe permita recorrer a esse processo especial e se estão ou não cumpridas as formalidades necessárias para o prosseguimento do processo (arts. 17º-A, nºs 1 e 2, 17º-B, n.ºs 1 e 2), na nomeação do administrador judicial provisório (arts. 17º-C, n.º 3, al. a) e 17º-E, n.º 2), na decisão da impugnação dos créditos (art.º 17º-D, n.º 2 in fine) e no cômputo dos votos e na decisão de homologação (arts. 17º-F, nºs 4 e 5, 215º e 216º)”. Direcionando agora novamente a nossa atenção para a questão da prescrição dos créditos reclamados nos autos pela A, constatamos desde logo que o art.º 17º-E nº 7 é uma mera “clonagem” decalcada do art.º 100º do CIRE, relativo ao processo de insolvência, e à semelhança daquele, trata-se de uma norma que visa reforçar a proteção dos credores que ao verem os seus poderes processuais paralisados (por estarem impedidos de avançar com ações de cobrança de dívida contra a empresa), não merecem ser penalizados pela sua eventual inércia até ao encerramento das negociações. É esse de facto o desiderato do art.º 100.º do CIRE, intitulado “Suspensão da prescrição e caducidade”, direcionado já para a situação de insolvência da empresa, estabelecendo que “A sentença de declaração da insolvência determina a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor, durante o decurso do processo”. Como se deixou já dito acima, a prescrição, enquanto instituto jurídico em geral, impõe-se por razões relacionadas com a segurança, certeza e paz jurídicas. No campo do direito civil, invocam-se também razões relacionadas com um presumível desinteresse do credor na efetivação do seu direito, relacionadas com um certo decurso prolongado de tempo sem que o mesmo manifeste ou exteriorize, designadamente através do exercício do direito de ação, a sua intenção na satisfação do mesmo (cfr. Vaz Serra, “Prescrição e caducidade”, estudo publicado no BMJ, n.ºs 105 a 107). Ora, quer o art.º 100º (aplicável à insolvência), quer o art.º 17º- E, n.º 7 (aplicável ao PER) manifestam a expressão daquele princípio geral, traduzido na ideia de não poder ser prejudicado pelo decurso do tempo o credor que se vê impossibilitado de, durante um certo período temporal, exercitar o seu direito. Trata-se, ademais, de uma solução imposta pela lei, pela necessidade de assegurar, no âmbito do PER, a igualdade entre os credores. Nesse âmbito, de facto, não faz sentido que os credores do devedor possam ver extintos créditos que estão legalmente impedidos de exigir de outro modo. Aliás, o art.º 17º-E nº 8 determina também que não pode ser suspensa a prestação de serviços públicos essenciais à empresa, desde a prolação do despacho de nomeação do AJP, e durante o tempo das negociações (sendo precisamente nesse âmbito que se situa a A como fornecedora de serviços públicos essenciais). Na prática, e na ausência desta solução, a empresa sujeita a PER empregava esforços no sentido de realização dos pagamentos regulares aos prestadores de serviços, para evitar que tais serviços deixassem de lhe ser fornecidos, o que poderia, necessariamente, colocar em causa a continuidade da sua atividade. Com esta estatuição, os contratos não podem ser resolvidos com fundamento no não pagamento dos serviços prestados antes ou depois das negociações, assim como os fornecedores desses serviços públicos essenciais, durante as negociações, não têm a faculdade de utilização do instituto da exceção do não cumprimento do contrato (arts 428º e ss do CC), nem da resolução do mesmo por incumprimento (art.º 801º/2 do CC). Terminadas as negociações, já poderão ser suspensos os fornecimentos, ou até resolvidos os contratos. A manutenção dos serviços públicos essenciais visa assim assegurar a viabilidade das negociações e a própria aprovação e execução do acordo de revitalização. O art.º 17º-E/9 concede depois um benefício àqueles credores, nos termos do qual, caso tais serviços não venham a ser pagos e a empresa seja declarada insolvente nos dois anos posteriores ao termo das negociações (dois pressupostos cumulativos), os créditos por esses serviços são considerados dívida da massa insolvente. Trata-se de mecanismo legal criado para evitar que a suspensão da atividade da empresa (pela ausência de fornecimento dos serviços públicos essenciais) possa prejudicar a negociação para a sua revitalização. A viabilização da aprovação do acordo e da sua execução ocorre porque o fornecimento destes serviços é condição necessária para que o devedor se mantenha em atividade e aufira rendimentos, de modo a cumprir o acordo. Ora, não faria sentido nenhum que estando estas empresas – na qual se inclui a A -, eventuais credores da requerente apresentada ao PER, obrigadas legalmente a prestarem os seus serviços à empresa, continuamente, e enquanto durarem as negociações, vissem opor-lhes, pela beneficiária dos seus serviços, a prescrição dos créditos entretanto vencidos. Seria no mínimo abusivo o exercício de tal direito. * Objeta a ré nas suas alegações de recurso que a suspensão dos prazos de prescrição a que se reporta o artº 17º-E nº 7 do CIRE não se aplica à A, que não reclamou o seu crédito no PER, nem viu o mesmo ali reconhecido, e também não participou nas negociações levadas a cabo entre a ré e alguns credores.É certo tudo quanto se afirma, de acordo com os dados fornecidos nos autos, ou seja, que não foi reclamado nem reconhecido à A no PER qualquer crédito, e que, consequentemente, a autora também não interveio nem participou nas negociações encetadas naquele processo, mas ainda assim, como acima dissemos, consideramos que a norma em questão, mais do que premiar os credores que viram reconhecidos os seus créditos no PER e/ou que participaram nas negociações, destina-se a reforçar os direitos de todos os credores da empresa, de modo a igualá-los na sua posição perante a empresa. Não faria sentido que um credor que não tenha sido admitido às negociações (por facto que não lhe é imputável) ou que não tenha visto reconhecido o seu crédito (por ser litigioso, por exemplo, como se passa no caso dos autos), tivesse um tratamento diferente de outro credor. Tanto mais que pode bem tratar-se de um dos credores mencionados no nº 8 do art.º 17º-E, que se encontra obrigado legalmente a prestar os seus serviços, considerados essenciais, à empresa, desde a prolação do despacho de nomeação do AJP e durante o tempo das negociações – como é o caso da A, o que redundaria numa discriminação injusta. Aliás, estatui o art. 17.º-F, n.º 10 do CIRE (na redação do D.L n.º 79/2017, de 30.06, ainda aplicável ao caso dos autos), a propósito da homologação do plano aprovado no PER, que “…A decisão vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17.º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal”. Ou seja, à partida, a decisão tomada no PER vincula todos os credores do devedor, já que a lei não distingue, quanto ao cariz vinculante da decisão de homologação do plano, entre credores que nele constam e que dele não constam, no sentido de apenas aqueles ficarem vinculados. Já o diploma original que instituiu o processo especial de revitalização – a Lei n.º 16/2012, de 20 de abril – tratava dos efeitos da decisão de homologação do plano de recuperação sobre os credores no n.º 6 do art.º 17.º-F do CIRE no sentido de que “A decisão do juiz vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações…”. Com a alteração introduzida naquele processo pelo D.L n.º 79/2017, de 30.06, a questão dos efeitos da decisão de homologação do plano sobre a empresa e os credores passou a estar disciplinada no citado art.º 17.º-F n.º 10, mas com alterações. Comparando a redação primitiva do preceito em análise com a atual constatamos que a redação atual esclareceu que os créditos que ficavam sujeitos ao plano eram os que estavam constituídos à data da nomeação do despacho judicial provisório, e precisou e esclareceu que os créditos ficavam sujeitos ao plano ainda que não tivessem sido reclamados no processo. Resulta ainda assim da letra do preceito em análise que estão sujeitos ao plano todos os credores cujos créditos estavam constituídos à data do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, ainda que os respetivos créditos não hajam sido reclamados no processo e/ou que eles, credores, não tenham participado no processo negocial que culminou com a aprovação de um plano de recuperação. Será pertinente chamar aqui à colação o que se decidiu na primeira instância, em despacho prévio ao despacho saneador de que “…No caso, estamos ante créditos que devem ser qualificados como litigiosos (art.º 579.º, n.º 3 do Cód. Civil: “Diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso…”), uma vez que a ré deduziu oposição à injunção. Tais créditos respeitam a prestações de serviços da requerente/autora executadas de 26.10.2018 a 31.10.2020, embora só facturados a 3.11.2020 e a 6.11.2020, e vencidos a 3.12.2020 e a 6.12.2020, pelo que, com excepção dos serviços prestados de 1.08.2020 a 31.10.2020, titulados pelas três últimas facturas reclamadas, todos os demais são créditos constituídos em data anterior ao despacho de nomeação do AJ, pois respeitam a serviços prestados antes dessa nomeação, mas cujo pagamento se venceu em data posterior (…). Deste modo, a decisão homologatória proferida no PER vincularia, em princípio, qualquer credor relativamente aos créditos constituídos, tal como decorre do n.º 6 do art. 17º-F do CIRE, e está agora melhor explicitado no n.º 10 desta norma (redação do D.L. n.º 79/2017). Sendo os créditos em causa litigiosos, compreende-se que a devedora (…) não considerasse a ora recorrente como credora e, como assim, que não a tenha feito constar (…) do rol de credores como credora, e que não tenha cumprido (…) quanto a ela o dever a que se refere o n.º 1 do art.º 17º-D do CIRE (comunicação de que deu início ao processo de revitalização e convite a participar nas negociações)….” Todas estas considerações vêm retirar força à objeção da ré de que a não reclamação dos créditos por parte da A no PER nem a sua participação nas negociações no âmbito daquele processo obstam a que lhe seja oposto o instituto da suspensão dos prazos da prescrição previsto no art.º17º-E nº 7 do CIRE. Como se disse, a lei não faz qualquer distinção entre os credores do devedor para efeitos de lhe ser aplicado o instituo da suspensão da prescrição, como também não faz quanto à vinculação de todos à decisão homologatória do plano aprovado, pelo artº 17.º-F, n.º 10 do CIRE (desde que estejam em causa os créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão de nomeação do AJP). Catarina Serra (in Lições de Direito da Insolvência, págs. 389 a 391) justifica também, de forma que consideramos muito clara (embora noutro contexto), o motivo pelo qual muitas vezes (e aqui se pode incluir a situação dos autos), o credor não vê reconhecido o seu crédito no PER e, consequentemente, não é admitido nele às negociações, quando afirma que “…Se o crédito é litigioso isto significa que a empresa contesta o crédito e não reconhece este sujeito como credor e, assim sendo, com toda a probabilidade, não incluirá este sujeito na relação de credores a apresentar ao tribunal e nem tão-pouco lhe comunicará o início das negociações. O administrador judicial provisório tenderá, por seu lado, a não incluir o crédito na lista de créditos, seja por desconhecimento, seja por não reconhecimento (quando o credor, apesar de tudo, se apercebe da abertura do PER e reclama o seu crédito, o administrador judicial provisório não terá, em princípio, elementos que lhe permitam reconhecê-lo)…”. Decidiu-se também no Ac. desta RG de 21.04.2016 (disponível em www.dgsi.pt), que: “A não reclamação de crédito no PER nos termos do artigo 17º-D, nº 2 do CIRE, não tem efeitos preclusivos. Não tendo efeito preclusivo, haverá que permitir ao credor o recurso a tribunal a fim de ver reconhecido o seu direito…” Aliás, é por todos reconhecido que a reclamação de créditos no PER tem apenas efeitos dentro do próprio processo, e apenas para efeitos de formação de quórum deliberativo (contrariamente ao que sucede no processo de Insolvência), visando apenas, como afirma Miguel Pestana de Vasconcelos (Recuperação de Empresas: o Processo Especial de Revitalização, pág. 56) “determinar quem pode participar nas negociações, as maiorias de aprovação e quem pode votar” (no mesmo sentido se decidiu no Ac do STJ de 01.07.2014, disponível em www.dgsi.pt, e é também a posição de N. Salazar Casanova e D. Sequeira Dinis – “PER - O Processo Especial de Revitalização”, pág. 79 e de Fátima Reis Silva, “Processo Especial de Revitalização”, pág. 45). Tudo isto para concluir que não obsta à aplicação do disposto no art.º17º-E nº 7 do CIRE aos créditos da A, o facto de ela não ter reclamado o seu crédito no PER, nem o mesmo não lhe ter sido ali reconhecido (quiçá por ser litigioso), nem, consequentemente, não ter participado nas negociações que ali foram levadas a cabo. * Assim sendo, e fazendo aplicação daquele preceito aos serviços prestados pela A à ré no mês de junho de 2020, concluímos que o crédito reclamado não se mostra prescrito, uma vez que o prazo de prescrição a que ele estava sujeito se suspendeu em 30.7.20, na data em que foi proferido despacho a nomear AJP no processo do PER ao qual a ré se apresentou.* Decisão:Por todo o exposto, Julga-se Parcialmente procedente a Apelação e em consequência: - Julga-se procedente a exceção perentória da prescrição relativamente aos serviços prestados pela A à ré nos meses de setembro de 2018 a maio de 2020 (pelo decurso do prazo de 6 meses sobre a data do seu vencimento); e - Julga-se Improcedente a exceção perentória da prescrição relativamente aos serviços prestados pela A à ré nos meses subsequentes, de maio de 2020 a agosto de 2020 (inclusive). (Fica ressalvado desta decisão o último segmento da decisão proferida, no que diz respeito ao invocado reconhecimento do crédito pela ré, e que o tribunal relegou para decisão final – dado que não foi objeto de recurso). Custas da Apelação por ambas as partes, na proporção do decaimento. Notifique. Guimarães, 20.10.2022. Relatora: Maria Amália Santos 1º Adjunto: Dr. José Manuel Alves Flores 2ª Adjunta: Drª. Sandra Maria Vieira Melo |