Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO BEÇA PEREIRA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA CONTRATUAL PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/26/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I- Os tribunais judiciais não são competentes, em razão da matéria, para julgar uma ação, fundada na responsabilidade civil extracontratual, em que se demanda uma pessoa coletiva de direito público. II- Por força do disposto no artigo 4.º n.º 1 f) do ETAF, a circunstância de a alegada responsável pelos danos que o autor quer ver ressarcidos, com fundamento na responsabilidade civil extracontratual, ser uma pessoa coletiva de direito público é suficiente para que sejam os tribunais administrativos os competentes para julgar a causa. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I A. F. e sua mulher M. P. instauraram, no Juízo Local Cível de Chaves, a presente ação declarativa contra a Junta de Freguesia de ..., formulando os pedidos de: "Ser a Ré condenada a: - reconhecer o antedito direito de propriedade do A sobre este prédio. - repor, em 30 dias, a situação anterior no muro que delimita o caminho público com a propriedade do A, fechando o orifício/gateira, de forma a impedir que sejam canalizadas para a propriedade do A. as águas pluviais que escorram pelo caminho ou outras que neste caiam. - reconstruir, em 30 dias, a parte do muro, parte integrante do muro da propriedade do A, que ruiu devido às águas pluviais canalizadas e orientadas no seu curso pela gateira para o cimo das terras que suportava, que em virtude do seu encharcamento e saturação e peso acrescido do solo a que se juntou terra e areia que arrastou, conduziu à sua deterioração e posterior e consequente ruina, de forma a que o muro fique no estado que anteriormente se encontrava nos sobreditos termos." Alegaram, em síntese, que são proprietários de um prédio rústico, composto por terreno de cultivo e árvores de fruto, sito no lugar das …, em ..., com a área de 6.358 m2, inscrito na matriz predial sob o artigo ….º da União das freguesias de ... e … e que se encontra registado a seu favor na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … e a inscrição G-1. Esse imóvel confina a nascente com um caminho público que é ladeado por um muro. Uma vez que tal muro se encontrava degradado e a ré não dispunha de meios financeiros para o recuperar, com o acordo desta, o autor procedeu às respetivas obras. Cerca de 5 anos depois a ré abriu uma gateira no muro, que não existia no muro inicial, com a finalidade de escoamento das águas pluviais. Por causa dessa gateira agora as águas pluviais correm na direção de um outro muro, este já situado dentro do prédio dos autores, que se destina a sustentar a parte mais elevada do mesmo e que aí se encontra há mais 100 anos. Numa ocasião, a precipitação intensa provocou uma enxurrada que foi "canalizada" pela gateira diretamente para este muro de suporte de terras, causando o seu desmoronamento em cerca de 5 m. A ré contestou deduzindo a exceção de incompetência do tribunal em razão da matéria, por entender que, nos termos do artigo 4.º n.º 1 g) do ETAF, são os Tribunais Administrativos e Fiscais os competentes para conhecer deste litígio. Foi proferido despacho saneador em que se decidiu que: "Em face do exposto, julgo procedente a exceção de incompetência material arguida pela ré na sua contestação, e nos termos do art. 99.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, absolvo a ré da instância." Inconformados com esta decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respetiva motivação, com as seguintes conclusões: 1- A relação jurídico material controvertida, tal como conformada na p.i., tem natureza privada e daí que tenha de ser dirimida em tribunal judicial e não na jurisdição administrativa. 2- Na verdade, é da competência dos tribunais comuns e não dos tribunais administrativos e fiscais, o julgamento da causa em que a relação jurídica a dirimir, como é o caso, de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, é de direito privado. 3- Considerando o teor do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, sempre a interpretação de todas as disposições do artigo 4.º do ETAF (incluindo a alínea f) do seu n.º 1) terá que ser conforme à Lei Fundamental, nessa medida se limitando a competência dos Tribunais Administrativos apenas aos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas. 4- O Juízo Local Cível de Chaves - Juiz 1, é o tribunal competente para conhecer da causa em razão da matéria. 5- Foi violado o disposto nos artigos 211.º e 212.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 40.º, n.º 1 da Lei Orgânica do Sistema Judiciário. 6- Foi feita incorreta interpretação e aplicação do previsto na alínea f), do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. A ré contra-alegou sustentando a improcedência do recurso. As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil (1), delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se a jurisdição comum é materialmente competente para jugar a presente causa. II 1.º "Como é sabido e constitui jurisprudência constante quer (…) [do] Tribunal de Conflitos quer do STJ e do STA, a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, designadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos". (2) Na verdade, "a competência do tribunal - ensina Redenti - «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor." (3) No caso dos autos os autores alegaram na sua petição inicial que a ré abriu uma gateira num muro de um caminho público, que confina com uma propriedade sua. E num dia de precipitação intensa a água da chuva foi, através dessa gateira, "canalizada" para o seu imóvel, causando o desmoronamento de cerca de 5 m de um outro muro, situado dentro do prédio deles, e que se destina a sustentar a parte mais elevada do mesmo. Neste cenário, a Meritíssima Juiz a quo considerou que: "Sendo a ré Freguesia uma pessoa coletiva de direito público como decorre dos artigos 235.º, n.º 2, e 236.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, e estando em causa uma ação de responsabilidade civil extracontratual deduzida contra a ré, Junta de Freguesia de ..., com vista a obter a reparação por danos emergentes de atos praticados pela referida junta, em bem do domínio público (como os autores alegam), a sua eventual responsabilização insere-se no âmbito do art. 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF." Nas suas alegações, os autores reconhecem que "deduziram contra a Ré, um pedido de reparação, traduzido na obrigação de uma prestação de facto, radicada em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, decorrente da violação do direito de propriedade dos AA.. pela atuação ilícita e culposa da Ré, que lhes causou danos no muro de que são proprietários." Porém, prosseguem afirmado que "a relação material controvertida está configurada na petição inicial como uma relação jurídica de direito privado, a resolver por aplicação de normas do direito privado, sendo que todas questões suscitadas pelos AA. são questões de direito privado, a dirimir segundo as regras de direito privado-cuja aplicação a entidades públicas não está arredada por lei." Vejamos. O artigo 4.º n.º 1 f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (4) dispõe que "compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto a alínea a) do n. º4, do presente artigo". Ora, o que temos em mãos é, justamente, um litígio que tem por objeto a responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa coletiva de direito público, o que é quanto basta para que, por força deste preceito, a competência seja dos tribunais administrativos e fiscais; não dos tribunais comuns (5). Com efeito, "no tocante à responsabilidade civil extracontratual, o ETAF adotou critérios distintos para determinar o âmbito da jurisdição administrativa. Em relação às pessoas coletivas públicas e aos respetivos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, privilegiou um fator de incidência subjetiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos." (6) Evidentemente que, tratando-se de responsabilidade civil extracontratual, aplicar-se-ão as regras do Código Civil sobre esta matéria, sem prejuízo de alguma outra norma especial que se encontre num diploma avulso. E a afirmação dos autores de que a "relação material controvertida está configurada na petição inicial como uma relação jurídica de direito privado" parece ter implícita a ideia de que a responsabilidade civil extracontratual a que se refere aquela alínea f) não abrange os casos em que um particular demanda uma pessoa coletiva de direito público. Mas não é isso que resulta da norma. Com o devido respeito, não assiste razão aos autores. III Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso, pelo que se mantém a decisão recorrida. Custas pelos autores. António Beça Pereira Ana Cristina Duarte Fernando Freitas 1. São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência. 2. Ac. Trib. Conflitos de 20-9-2012 no Proc. 02/12. Neste sentido veja-se, a título de exemplo, o Ac. STJ de 6-5-2010 no Proc. 3777/08.1TBMTS.P1.S1, ambos em www.gde.mj.pt. 3. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91. 4. Lei 13/2002, de 19 de fevereiro. 5. Veja-se os Ac. do Tribunal de Conflitos de 26-1-2012 no Proc. 07/11, de 20-9-2012 no Proc. 02/12 e de 26-09-2007 no Proc. 013/07, todos em www.gde.mj.pt. 6. Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, pág. 714. |