Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1080/23.6T8VRL-A.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo;
2) Os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

A) AA e BB, vieram intentar ação declarativa, com processo comum, contra CC, onde concluem pedindo que a ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência, o réu condenado a:

a) Reconhecer que a obra por si realizada não cumpriu a memoria descritiva;
b) Que possui defeitos cuja reparação se encontra orlada em (?);
c) Que existe afundamento do piso, e a pagar a sua reparação em montante ainda não determinável, o que se relega para execução de sentença;
d) Suprir os defeitos da obra supramencionados;
e) Resolução do contrato de empreitada;
Simultaneamente,
d) Pagar aos autores a quantia de €5,000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros, a contar da citação;
c) Pagar as custas.
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Para tanto alegam, em síntese, que no dia 29/01/2016 o autor deu entrada de projeto de arquitetura de um edifício com um piso abaixo da cota soleira e um piso acima, na Câmara Municipal ..., que tinha como coordenador o arquiteto DD, projeto esse que foi aprovado.
Foi celebrado um contrato de empreitada entre os autores e o réu tendo em vista a construção de uma habitação unifamiliar no Lugar ..., ..., ..., pelo valor de €150.000,00.
Quando visitaram o imóvel os autores aperceberam-se de inúmeros problemas e defeitos na obra, pelo que, solicitaram a uma entidade independente a realização de um relatório tendo em vista o apuramento dos trabalhos realizados, apurando-se que o valor de todos os materiais e trabalhos necessários para proceder à reparação das anomalias existentes ascende a €92.800,00.
O referido imóvel começou a ceder nas fundações encontrando-se parte do piso a afundar e a inclinar, desconhecendo neste momento a extensão de tais danos, tendo os autores interpelado o réu para a resolução dos defeitos apontados, sem sucesso
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O réu CC apresentou contestação e deduziu pedido reconvencional onde conclui entendendo que:

A) Devem ser julgadas procedentes as exceções invocadas, e absolvido o réu;
B) Deve a ação ser julgada improcedente, por não provada, e absolvido o réu;
C) Deve a reconvenção ser julgada procedente, por provada e condenados os autores:
1. A pagar a quantia total de €37.500,00 dos trabalhos realizados e não pagos, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o final do mês de maio de 2018, e até efetivo e integral pagamento.
2. A pagar a quantia de €2.500,00 a título de compensação pelos danos morais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento, (Cfr. art.º 496º do C.C.).
3. A pagar a quantia referente ao IVA sobre o valor total dos trabalhos realizados de €182.500,00, à taxa legal aplicável à data da decisão a proferir, que será calculado posteriormente, e com faturas integrais a emitir a final pelo réu mediante integral pagamento;
D) Entende ainda deverem ser os autores condenados a pagar as custas e as custas de parte a favor do réu.
Para tanto alega, em síntese, existir ineptidão da PI por notória contradição entre a causa de pedir e o pedido, dado que na petição invocam danos de natureza não patrimonial que cifram em €2.500,00 e, no final, pedem a condenação do réu no pagamento de €5.000,00.
Por outro lado, do confronto entre as alíneas d) e e) existe manifesta ineptidão por contração entre os dois pedidos e entre a causa de pedir e o pedido, bem como ininteligibilidade o que leva à nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial, uma vez que na al. d) pedem que o réu seja condenado a suprir os defeitos da obra mencionada e cumulativamente que seja condenado na resolução do contrato de empreitada na al. e).
Também o pedido da al. c) choca frontalmente com o pedido na al d), uma vez que este também implica a extinção do contrato, dado que não podem os autores pedir a manutenção do contrato para suprir os defeitos e exigir simultaneamente a extinção do contrato por via da resolução e pedir a indemnização para reparar os defeitos.
Também a ininteligibilidade implica a ineptidão da petição inicial, constitui uma exceção dilatória insuprível.
Acresce que os autores em nenhum momento explicam quando e em que circunstâncias é que interpelaram o réu para eliminar os defeitos.
Mais invoca a verificação da exceção perentória da caducidade, uma vez que decorreram no mínimo 5 anos desde o conhecimento dos defeitos até à sua denúncia ao réu, o que em muito ultrapassa o prazo de um ano.
Nega ainda a verificação dos defeitos invocados pelos autores.
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Os autores AA e BB apresentaram réplica onde concluem entendendo que deve a presente reconvenção ser julgada improcedente, por não provada e julgadas procedentes as exceções alegadas. 
Para tanto alegam, em síntese que na al d), o valor de 5.000,00 refere-se quer a danos de natureza patrimonial quer não patrimonial, que existe apenas um lapso de escrita que consiste na repetição da expressão não.
Quanto à alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir bem como entre a causa de pedir e o pedido, referem que, através de uma leitura do pedido, percebe-se claramente que são pedidos alternativos, tendo, por lapso, faltado a colocação da proposição “ou”, pelo que requer que tal seja acrescentado e relevado o lapso.
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B) Foi proferido despacho saneador, onde se decidiu, designadamente:
“(…)
Ao ser pedida a resolução do contrato de empreitada, os autores formulam pedidos substancialmente incompatíveis, uma vez que os mesmos se encontram numa relação de oposição ou contrariedade, «já que a resolução do contrato permite apenas a indemnização pelos danos negativos e a recorrente pede indemnização por todos os danos sofridos, quer negativos (os que não teria sofrido se não celebrasse o contrato) quer positivos (os resultantes da violação do contrato, validamente formado – cfr. Acórdão do STJ supra referido..
Em face do exposto, verifica-se uma incompatibilidade substancial entre, pelo menos os pedidos formulados nas alíneas c), d) e e), da petição inicial, o que gera a nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial.
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Alegam os autores que na situação dos autos, por mero lapso não foi colocada a preposição “ou”, sendo na verdade os pedidos formulados nas referidas alienas alternativos.
(…)
Na situação dos autos, pretendem os autores, em sede de réplica que seja considerada a existência de um lapso, devendo ser introduzida a expressão “ou”, para que, sejam considerados como pedidos alternativos. No entanto, do teor do seu articulado não se consegue aferir em que termos essa alternatividade é definida.
A este respeito cabe referir que apenas se verifica a existência de um lapso de escrita quando tal resulte dos termos do próprio texto, o que, não sucede na situação dos autos.
Posto isto, conclui-se que se verifica a exceção dilatória de nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186º, nº 1, e nº 2, al. c), do Cód. Proc. Civil, que, de acordo com o disposto nos arts. 579º, 577º, al. b), e 578º, do Cód. Proc. Civil implica a absolvição do réu da instância, o que se decide.
Custas pelos autores – cfr. art. 527º, do Cód. Proc. Civil.
Notifique.”
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C) Inconformado, o autor AA veio interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação, a subir em separado, com efeito devolutivo.
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Nas alegações de recurso do apelante AA, são formuladas as seguintes conclusões:

1. A contradição de pedidos resulta de um lapso de escrita, tendo sido omitido a expressão “ou”, em alternativa;
2. Lapso que foi de imediato identificado e referido na réplica pelos autores;
3. Deveria ter sido proferido um despacho de convite ao aperfeiçoamento, visto que estávamos perante um lapso de escrita.
4. Bem visível pela referência antes do pedido e) ao sem simultâneo, que abarcaria as duas soluções alternativas propostas;
5. Mesmo que assim não fosse, deveriam os autores ter sido notificados para informar quais os pedidos que pretendiam manter em face daquela aparente contradição.
6. Este convite ao aperfeiçoamento não redunda numa impossibilidade por ser insuprível tal alteração, nem a mesma colidiria quer com a causa de pedir, quer com os direitos de defesa das partes.
7. Consideram-se violados os art.ºs 547º, 590º, nº 2, al.) b) e nº 3 do C.P.Civil.
Termina entendendo dever dar-se provimento ao presente recurso, alterando a decisão recorrida.
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Não foi apresentada resposta.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) A questão a decidir na apelação é a de saber se a decisão recorrida deverá ser alterada.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) Na presente ação, os autores formularam os pedidos de condenação do réu a:
a) Reconhecer que a obra por si realizada não cumpriu a memoria descritiva;
b) Que possui defeitos cuja reparação se encontra orçada em (€92.800,00);
c) Que existe afundamento do piso, e a pagar a sua reparação em montante ainda não determinável, o que se relega para execução de sentença;
d) Suprir os defeitos da obra supramencionados;
e) Resolução do contrato de empreitada;
Simultaneamente,
d) Pagar aos autores a quantia de €5,000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros, a contar da citação;
c) Pagar as custas.
No despacho recorrido entendeu-se que se verifica a exceção dilatória de nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186º, nº 1, e nº 2, al. c), do Cód. Proc. Civil, que, de acordo com o disposto nos arts. 579º, 577º, al. b), e 578º, do Cód. Proc. Civil implica a absolvição do réu da instância, o que se decide.

O artigo 186º nºs 1 e 2 estabelece que:

“1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2. Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
( … )”

A ineptidão da petição inicial (ou da reconvenção), constitui uma exceção dilatória (artigo 577º b) NCPC) que, sendo geradora da nulidade de todo o processo (artigo 186º nº 1 NCPC), dá lugar à absolvição da instância (artigo 576º nº 2 NCPC).
Os pedidos formulados constituem o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (ou reconvinte), enquanto a causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manuel de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 245).
O apelante refere que a contradição de pedidos resulta de um lapso de escrita, tendo sido omitida a expressão “ou, em alternativa”.
Vejamos.
Efetivamente não consta qualquer expressão, no texto da PI, que permita considerar que entre os pedidos da alínea d) e e) se pretendeu acrescentar a expressão “ou, em alternativa”.
Se atentarmos no que consta do ponto 27 da PI resulta, precisamente, o contrário do que se refere nas alegações, isto é, que não se tratou de lapso.
Com efeito aí se refere: “27. Após todos os contactos e solicitações o réu não procurou corrigir os defeitos apontados, motivo pelo qual os autores pretendem a resolução do contrato de empreitada, condenando-se o réu no pagamento da eliminação dos defeitos que sejam determinados.”
Se assim não fosse, isto é, se a formulação dos pedidos tivesse assentado em lapso, seria normal que na alegação dos fundamentos da ação se referisse que o pedido de resolução era deduzido apenas alternativamente ao pedido de eliminação dos defeitos, mas não é isso que decorre dos fundamentos da ação.
A circunstância de, na réplica, os autores terem invocado tratar-se de um lapso decorre, unicamente, da circunstância, de os réus, na contestação-reconvenção terem suscitado a questão da ineptidão da PI e não resulta existir qualquer lapso, como se viu.
E, ao contrário do que os autores referem, não tinha o tribunal de os notificar para os mesmos informarem qual ou quais os pedidos que pretendiam manter em face da incompatibilidade dos mesmos.
Com efeito, estabelece o artigo 6º nº 2 NCPC que “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”
Conforme referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa, no Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, em anotação ao artigo 6º, a páginas 35, a propósito da insanabilidade das exceções dilatórias que “no que respeita à ineptidão da petição inicial, (com ressalva do caso previsto no artigo 186º nº 3), constituindo uma nulidade absoluta que afeta todo o processo (186º nº 1), é simultaneamente uma exceção dilatória típica [artigo 577º alínea b)], resultando na falta de um verdadeiro pressuposto processual formado pela necessidade de conformação do objeto do processo. Em face da verificação de tais exceções dilatórias, só resta, em linhas muito gerais, a absolvição do réu da instância.”
E acrescentam os mesmos autores (ibidem, página 699) que os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatória insupríveis, incluindo a ineptidão da petição.
Assim sendo, resultando dos pedidos e da fundamentação da petição a existência de pedidos efetivamente incompatíveis, em termos substanciais, resulta que entendemos estar vedada a formulação de qualquer convite ao aperfeiçoamento da petição (cfr. em sentido análogo os Acórdãos da Relação de Guimarães de 22/06/2023, no processo 228/22.2T8GMR-A.G1, relatado pela Desembargadora Rosália Cunha e da Relação do Porto de 28/01/2021, no processo 4024/20.3T8VNG.P1, relatado pelo Desembargador Joaquim Correia Gomes).
Tanto basta para que, sem necessidade de ulteriores considerações, a apelação deva ser julgada improcedente e confirmada a douta decisão recorrida.
As custas terão de ser suportadas pelo apelante, tendo em conta o seu decaimento (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).     
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III. DECISÃO

Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
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Guimarães, 09/05/2024

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Eva Almeida
2º Adjunto: Desembargador Joaquim Boavida