Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1383/20.1T8VRL.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO
TESTAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) Condição é a cláusula por virtude da qual a eficácia de um negócio é posta na dependência de um acontecimento futuro e incerto, por forma a que ou só verificado tal acontecimento é que o negócio produzirá os seus efeitos (condição suspensiva) ou então só nessa eventualidade é que o negócio deixará de os produzir (condição resolutiva);
2) A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, relevando o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer;
3) Relativamente às disposições testamentárias, esta posição sofre desvios num maior subjetivismo no caso das disposições testamentárias, consagrando quanto à sua interpretação, o sentido subjetivo, com o limite do contexto do testamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) AA veio intentar ação declarativa, com processo comum, contra BB, CC e DD, onde conclui pedindo que a ação seja julgada provada e procedente e, consequentemente,
a) Declarar-se que a autora cumpriu com a condição imposta pela testadora EE no testamento por si outorgado em 26 de agosto de 2019, em mérito nos presentes autos;
b) Declarar-se que este testamento é válido e eficaz;
c) Declarar-se que por força e efeito deste testamento a autora é a única herdeira da falecida EE e que não existem outras pessoas que segundo a lei e o invocado testamento lhe possam preferir ou que com ela possam concorrer nesta sucessão;
d) Declarar-se que a autora é dona e legítima proprietária dos prédios urbanos e da metade indivisa do prédio rústico situados no lugar e freguesia ..., concelho ..., e melhor identificados nos artsº 6º e 7º deste articulado, porque os mesmos passaram a integrar o seu património por sucessão testamentária, após o falecimento da EE;
e) Declarar-se que a autora é dona e legítima proprietária do veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XZ-.., porque o mesmo passou a integrar o seu património por sucessão testamentária, após o falecimento da EE;
f) Declarar-se que a autora é titular de metade da quantia de €5.652,59 que se encontrava depositada na conta bancária nº ...00 da Banco 1..., porque a mesma passou a integrar o seu património por sucessão testamentária, após o falecimento da EE;
g) Ordenar-se o cancelamento de todos os registos que os réus hajam efetuado a seu a favor dos bens que tenham pertencido ao acervo hereditário da falecida EE;
h) Ordenar-se que os registos de bens imóveis que a autora pretenda fazer a seu favor dos bens que integravam o património da EE seja efetuado sem a menção de quaisquer cláusulas suspensivas ou resolutivas que condicionem os efeitos dos atos de disposição de bens imóveis;
i) Condenarem-se os réus a reconhecerem os pedidos formulados sob as antecedentes als. a) a f);
j) Condenarem-se os réus a restituir à autora os identificados bens imóveis e o veículo automóvel, que ilicitamente ocupam, entregando-os livre de pessoas e coisas no prazo de 2 dias a contar do trânsito em julgado da sentença condenatória e a pagarem à autor a quantia diária de €50, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na realização desta prestação;
l) Condenarem-se os réus a não continuarem a ocupação dos referidos bens imóveis e do veículo automóvel e a absterem-se de quaisquer atos lesivos do direito de propriedade da autora sobre tais bens;
m) Condenarem-se os réus no pagamento à autora da quantia de €2.826,29, que corresponde, portanto, à metade da quantia que se encontrava depositada na conta bancária nº ...00 da Banco 1..., acrescida dos juros de mora vincendos, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da sua citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alega, em síntese, que por testamento de .../.../2019 outorgado por EE, falecida a .../.../2020, esta instituiu a autora, sua prima, como única e universal herdeira, com a condição suspensiva de cuidar e tratar da testadora com carácter de habitualidade na saúde e na doença até à data do seu falecimento, isto é, de lhe prestar todos os cuidados de saúde, higiene, alimentação, assistência médico medicamentosa, enquanto a testadora fosse viva.
A autora cumpriu a referida condição suspensiva, razão pela qual, dado que aquela não tinha herdeiros legitimários, se tornou sua única e universal herdeira, sendo a autora a proprietária de todos os bens que eram pertença da testadora.
Sucede, porém, que os réus, sobrinhos da testadora, se apoderaram de tais bens e registaram, a seu favor, a aquisição dos bens imóveis.
Pelas rés BB, CC e DD, foi apresentada contestação onde impugnam a factualidade invocada pela autora, alegando que, a autora não cumpriu a condição suspensiva imposta pela testadora, pelo que não é sua única e universal herdeira, entendendo que a autora litiga de má-fé, pedindo a sua condenação, no pagamento de uma indemnização.
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Foi elaborado despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
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B) Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença onde se declarou e condenou as rés a reconhecerem que, o testamento outorgado por EE em 26-08-2019, é válido e eficaz (enquanto produtor do efeito de, através dele, a testadora ter disposto, para depois da sua morte, dos seus bens).
No demais, foi julgada a ação improcedente, absolvendo as rés do demais peticionado pela autora.
Mais foi absolvida a autora da pretendida condenação em indemnização às rés.
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C) Inconformada com esta decisão, veio a autora AA interpor recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 200).
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Nas alegações de recurso da apelante AA são apresentadas as seguintes conclusões:
- Da matéria de facto:

1ª Devem ser aditados à matéria de facto provada os factos constantes do artº 25º da petição inicial, com o seguinte teor: “Com76 anos de idade que contava à data da sua morte, (a testadora EE) era uma pessoa que se encontrava no uso pleno das suas faculdades mentais, autónoma, que realizava por si só as tarefas diárias básicas à sua sobrevivência, como vestindo-se sozinha, confecionando sempre que lhe apetecia as suas refeições, deslocando-se a pé sozinha, conduzindo o seu veículo sozinha, cuidando da sua higiene e do seu asseio pessoal, entre o demais” e no artº 63º do mesmo articulado, com o seguinte teor: “E o certo é que nunca a EE reclamou à autora o cumprimento desse encargo”.
2ª Tratam-se de factos que a autora não podia, de modo algum, deixar de alegar, quer por serem relevantes, quer por se tratarem de factos constitutivos do seu direito, e cuja prova lhe competia (artº 342º, nº 1 do Código Civil).
3ª E tais factos ficaram demonstrados por via da prova documental apresentada pela autora, concretamente pelo documento junto com a petição inicial sob o nº 16, que na sequência do exame pericial a que foi sujeito veio a confirmar-se ter sido da autoria da testadora EE.
4ª Conclui-se, portanto, que tais factos foram alegados e demonstrados pela autora, pelo que nos termos dos nºs 1 e 2, do artº 5º do Código de Processo Civil configuram factos a serem considerados e, assim sendo, importa o aditamento dos mesmos ao acervo da matéria de facto provada.
- Da matéria de direito:
5ª Na interpretação dos testamentos, há que atender ao disposto no artº 2187º, nºs 1 e 2 do Código Civil, disposição segundo a qual na interpretação das disposições testamentárias deverá ser observado o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, e embora seja admitida prova complementar, ela não surtirá qualquer efeito sem que tenha um mínimo de correspondência com o contexto do testamento, ainda que se possa considerar imperfeitamente expressa a vontade do testador.
6ª A disposição testamentária constante do testamento em mérito nos autos contém uma cláusula modal, porquanto a testadora EE impôs à autora, beneficiária da liberalidade, um encargo ou obrigação de adotar certo comportamento no interesse e em benefício exclusivo da própria testadora, que consistia em a autora ter que cuidar e tratar dela, prestando-lhe todos os cuidados de saúde, higiene, alimentação, assistência médico-medicamentosa, na saúde e na doença e enquanto fosse viva.
7ª Daí que não estejamos perante uma cláusula condicional suspensiva, pela qual a falecida EE quis condicionar os efeitos jurídicos do negócio testamentário, ou seja, a instituição da autora a um facto futuro e incerto, como entendeu o Tribunal a quo, mas sim perante a imposição de um encargo, constituindo a autora numa obrigação a seu favor e a produzir efeitos de imediato e, que no caso de não ser cumprida tal obrigação, tanto a testadora, ou quem lhe sucedesse, podia exigir o seu cumprimento ou fazer cessar os efeitos do negócio para o futuro, se ela testadora assim o tivesse determinado ou fosse lícito concluir que tal disposição não seria mantida sem o cumprimento do encargo – artsº 2247º e 2248º, n º 1, ambos do Código Civil.
8ª O testamento em causa tem, pois, que ser interpretado de acordo com o pensamento e a vontade da EE manifestada no texto e no contexto, pelo que se impõe descortinar qual o sentido que ela quis dar às expressões “cuidar” e “tratar”, sendo que na interpretação desse sentido temos desde logo que “cuidar” significa, entre o demais, “dedicar atenção, ter interesse, ocupar-se, zelar por” e que “tratar” significa, também entre o demais, “dedicar cuidados, dispensar cuidados alimentares, prestar cuidados de saúde”.
9ª E cuidar e tratar de alguém com carácter de habitualidade não significa, seguramente, que o obrigado tenha que manter-se permanentemente disponível para essa pessoa, sujeitando-o a uma dedicação intensa e ininterrupta.
10ª Incumbia, pois, à autora o ónus da prova dos factos alegados que consubstanciassem o cumprimento do encargo proveniente do testamento e da vontade da testadora.
11ª E da matéria de facto dada como provada, designadamente a constante dos pontos 3 a 5, por um lado, e, por outro, considerando que a partir de janeiro de 2020 o País foi assolado pela pandemia da COVID 19, com as consequências inerentes conhecidas de todos, nomeadamente as que respeitaram a deslocações, confinamentos, ajuntamentos, e que a morte da EE ocorreu em pleno estado de emergência, tais factos permitem revelar suficientemente o tipo de relacionamento que existia entre a autora e esta, bem como que a autora tratou e cuidou dela, que zelou pelas suas necessidades, sejam de alimentação, de lides domésticas, higiene e outras do dia-a-dia, e que lhe deu atenção na medida em que lhe telefonava quase diariamente.
12ª Portanto, provaram-se os factos essenciais que a autora alegou para suportar a sua pretensão, pois ficou demonstrado que a autora em face das suas condições pessoais, familiares e profissionais e as circunstâncias sociais que se verificaram naquele período de 7 meses que mediou entre a feitura do testamento e a morte da EE dedicou-lhe toda a assistência possível, donde poder-se também concluir que esta nunca reclamou à autora o cumprimento do encargo que lhe impôs e que não viu, seguramente, frustradas as expetativas que a levaram a outorgar o testamento em causa.
13ª Aliás, se a falecida EE verificasse que a autora não era digna de lhe suceder, então sempre poderia ter resolvido o problema, revogando o testamento – artº 2179º, nº 1 do Código Civil.
14ª O modo ou encargo obriga e a sua inobservância pode ter como consequência a resolução da disposição testamentária, nos termos previstos no artº 2248º do Código Civil, exigindo-se para tanto, todavia, que o incumprimento seja imputável ao seu beneficiário a título de culpa.
15ª Porém, atenta a matéria de facto provada nos autos, é manifesto que não resulta provado que a autora tenha incumprido, culposamente, o encargo que a falecida EE lhe impôs em seu próprio benefício.
16ª A Douta Sentença recorrida violou o disposto nos artsº 5º, nºs 1 e 2, e 607º, nºs 4 e 5, do Código de Processo Civil, e nos artsº 2187º, 2229º, 2244º, 2248º, n º 1, entre outros, do Código Civil.
Termina entendendo dever a presente apelação ser julgada procedente, substituindo-se a Decisão recorrida por outra que julgue a ação também procedente e, por via disso, se declare que a autora cumpriu com o encargo imposto pela testadora EE no testamento por si outorgado em 26 de agosto de 2019, em mérito nos presentes autos, que por força e efeito deste testamento a autora é a sua única herdeira, bem como ainda se declare, se reconheça e se condene nos demais termos formulados na petição inicial, e tudo com as legais consequências.
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Pelas apeladas e rés BB, CC e DD, foi apresentada resposta onde sustentam dever ser mantida a decisão recorrida e, consequentemente, julgado improcedente o presente recurso, por não provado.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) As questões a decidir são as de saber:
1) Se deverá ser alterada a matéria de facto;
2) Se deverá ser alterada decisão jurídica da causa, julgando-se a apelação procedente, declarando-se que a autora cumpriu com a condição imposta pela testadora e, como tal, é a sua única herdeira, condenando-se nos termos formulados na petição inicial.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) I. FACTOS PROVADOS

1. Em testamento outorgado por EE, no dia 26-08-2019, no Cartório Notarial ..., a cargo da Notária FF, aquela declarou não ter herdeiros legitimários, pelo que, fazia este seu segundo testamento e disposição de última vontade, nos termos seguintes:
“Institui sua única e universal herdeira, sua prima, AA, NIF ..., casada, residente no ..., com a condição suspensiva de cuidar e tratar da testadora com carácter de habitualidade na saúde e na doença até à data do seu falecimento, isto é, de lhe prestar todos os cuidados de saúde, higiene, alimentação, assistência médico-medicamentosa, enquanto a testadora for viva.
Que a presente condição carece de ser provada, ou seja, a herdeira testamentária, deve provar que se verificaram os eventos condicionantes.
Mais incumbe a identificada herdeira de prover pelo seu funeral e de assegurar o respetivo pagamento (disposição a favor da alma).
Assim o outorgou, declarando ainda que por este revoga qualquer testamento que anteriormente tenha feito e que de momento não especifica”.
2. EE faleceu em .../.../2020, no estado de viúva de GG.
3. A autora residia no ..., ali tendo estabelecida a sua vida familiar e profissional.
4. Pelo menos desde agosto de 2019 e até 26-03-2020, a autora telefonava, quase diariamente, a EE, para saber como esta estava, como tinha passado e se precisava de alguma coisa.
5. Em alguns fins-de-semana, com uma regularidade indeterminada, mas superior à de “fim de semana sim/fim de semana não” e, após o Natal de 2019, apenas no primeiro fim de semana de março, a autora vinha ao ..., onde residia EE, para estar com ela, em sua casa, trazendo-lhe refeições preparadas e ajudando-a nas lides domésticas, pondo-lhe a roupa a lavar, limpando-lhe a casa e fazendo-lhe companhia.
6. Após .../.../2019, data em que faleceu o seu irmão, EE ficou depressiva.
7. Quando EE tinha algum problema de saúde e precisava de ir ao médico, era à amiga HH que recorria para a ajudar, tendo-a levado ao médico, nos últimos 6 meses de vida daquela, cerca de 8 vezes.
8. Desde pelo menos janeiro de 2020, a Santa Casa da Misericórdia ... passou a prestar a EE, serviços de higiene habitacional e alimentação.
9. E, pelo menos no seu último mês de vida, EE deixou de poder tomar banho sozinha, sendo a vizinha II que lhe dava banho.
10. A 6 de abril de 2020, no Cartório Notarial ..., foi outorgada uma escritura de habilitação de herdeiros, por HH, JJ e KK, na qual declararam que era do seu conhecimento:
I) que no dia .../.../2020, na freguesia e concelho ..., tinha falecido EE, no estado de viúva de GG,
II) que a falecida não tinha deixado testamento público, nem outra disposição de última vontade,
III) que lhe tinham sucedido, como únicos herdeiros, três sobrinhos, filhos do seu pré-falecido irmão germano LL, a saber: BB, MM e DD,
IV) e que não havia assim outras pessoas que segundo a lei preferissem a estes herdeiros ou que com eles pudessem concorrer na sucessão da herança aberta por óbito da mencionada EE.
11. No dia 17 de abril de 2020, no Cartório Notarial ..., a cargo da Notária NN, a autora outorgou uma escritura de habilitação, nos termos da qual declarou:
I) que no dia .../.../2020, na freguesia e concelho ..., tinha falecido EE, no estado de viúva de GG,
II) que a falecida não tinha deixado descendentes nem ascendentes, mas que tinha deixado testamento público outorgado no dia 26-08-2019, no Cartório Notarial ..., a cargo da notária FF, pelo qual a tinha instituído como sua única e universal herdeira,
III) e que não havia outras pessoas que, segundo a lei e o aludido testamento, lhe preferissem ou que com ela pudessem concorrer na sucessão da herança aberta por óbito de EE.
12. Por via da realização da escritura de habilitação de herdeiros mencionada em 10, os réus, a 27 de abril de 2020, promoveram junto do serviço de finanças de ..., a instauração do processo de imposto de selo, por óbito da indicada EE, processo a que foi atribuído o n º ...29 e à respetiva herança o NIF ..., e no qual relacionaram como fazendo parte do seu acervo hereditário os seguintes bens:
a) Prédio urbano, sito no lugar e freguesia ..., concelho ..., em cuja respetiva matriz se acha inscrito sob o artº ...17º;
b) Prédio urbano, sito no lugar e freguesia ..., concelho ..., em cuja matriz se acha inscrito sob o artº ...14º;
c) Prédio urbano, sito no lugar e freguesia ..., concelho ..., em cuja matriz se acha inscrito sob o artº ...51º;
d) Metade indivisa de um prédio rústico, sito em ..., no lugar e freguesia ..., concelho ..., em cuja matriz respetiva se acha inscrito sob o artº ...62º;
e) veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XZ-..;
f) Metade da quantia de € 5.652,59, depositada na conta bancária n º ...00, da Banco 1....
13. E com base na habilitação de herdeiros e no processo de imposto de selo, os R.R. efetuaram os registos de aquisição daqueles identificados prédios urbanos, a seu favor, tendo ficado descritos sob os n ºs ...32, ...33 e ...35, da ficha da freguesia ....
14. A partir de 26 de março de 2020, a autora ficou na posse das chaves de todos os prédios urbanos e ainda do veículo automóvel acima mencionado;
15. E, desde essa altura e até pelo menos ao final do mês de maio de 2020, sempre que autora veio ao ..., era na casa de habitação da EE que ficava, na qual entrava e saía quando queria e aproveitava então para cuidar e tratar da mesma, bem como ainda em relação aos demais bens dela.
16. Porém, os réus mandaram trocar as fechaduras das portas de todos os prédios urbanos da EE.
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II. FACTOS NÃO PROVADOS

1. EE não padecia de qualquer doença, que lhe tivesse determinado a necessidade de recorrer à ajuda de terceiras pessoas para que a auxiliassem.
2. Até à data da sua morte, confecionava, sempre que lhe apetecia, as suas refeições, cuidava sozinha da sua higiene e do seu asseio pessoal.
3. No lapso de tempo que decorreu entre a outorga do testamento e a sua morte, EE não careceu de cuidados e tratamentos médicos e de alimentação.
4. Todos os fins-de-semana, de 15 em 15 dias, a autora vinha ao ..., para estar com EE.
5. A autora passava a ferro a roupa a EE.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações das recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) O recurso visa a reapreciação da decisão da matéria de facto e da decisão propriamente jurídica.
Quanto à matéria de facto, a apelante entende que deverá ser aditada à matéria de facto provada a factualidade constante dos pontos 25 e 65 da PI, com a seguinte formulação:
25. Com 76 anos de idade que contava à data da sua morte, era uma pessoa que se encontrava no uso pleno das suas faculdades mentais, autónoma, que realizava por si só as tarefas diárias básicas à sua sobrevivência, como vestindo-se sozinha, confecionando sempre que lhe apetecia as suas refeições, deslocando-se a pé sozinha, conduzindo o seu veículo sozinha, cuidando da sua higiene e do seu asseio pessoal, entre o demais.
63. E o certo é que nunca a EE reclamou à autora o cumprimento desse encargo.
Para tanto, entende a apelante que, para prova da matéria referida, se deve atender ao documento ...6, junto com a PI.
Mas não parece que assim possa ser.
Desde logo, porque a matéria em causa ou está em contradição com outra matéria dada como provada e não impugnada nesta apelação ou não é possível considerar-se como provada, na medida em que o meio de prova indicado não permite tal finalidade.
Com efeito, importa notar que, relativamente à matéria que consta do ponto 25 está em contradição com a matéria que consta dos pontos 6, 7, 8 e 9 dos factos provados.
Por outro lado, a mesma matéria de facto constante do ponto 25 da PI está em contradição com a matéria de facto dada como não provada nos pontos 1, 2 e 3, não tendo sido requerida a reapreciação desta, motivo pelo qual não é possível dar como provada e não provada a mesma matéria, simultaneamente, sob pena de nulidade da sentença/acórdão (artigos 615º nº 1 alínea c) e 666º nº 1 NCPC).
Importa ainda notar que, não obstante a letra constante do referido documento ...6 (manuscrito) tenha sido feita pela inventariada EE, como decorre da prova pericial efetuada, a verdade é que não contribui, especificamente, para a apreciação da questão em causa, desde logo pelas razões que acabam de se referir e que nunca permitiriam ultrapassar as contradições da matéria de facto que adviriam, caso procedesse a pretensão da apelante.
A matéria constante do ponto 63 da PI, carece de elementos probatórios relevantes que possibilitem que se considere provada.
Por todo o exposto, resulta que se manterá a matéria de facto nos termos decididos pelo tribunal a quo.
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No que se refere à matéria de direito, ter-se-á de atender à matéria de facto apurada, para efeito de aplicação das normas e princípios jurídicos atinentes, com vista a apurar se a decisão constante da sentença se deverá manter ou ser alterada.
Conforme se provou, a inventariada EE, em 26-08-2019, no Cartório Notarial ..., a cargo da Notária FF, outorgou testamento onde declarou não ter herdeiros legitimários, pelo que, fazia este seu segundo testamento e disposição de última vontade, nos termos seguintes:
“Institui sua única e universal herdeira, sua prima, AA, NIF ..., casada, residente no ..., com a condição suspensiva de cuidar e tratar da testadora com carácter de habitualidade na saúde e na doença até à data do seu falecimento, isto é, de lhe prestar todos os cuidados de saúde, higiene, alimentação, assistência médico-medicamentosa, enquanto a testadora for viva.
Que a presente condição carece de ser provada, ou seja, a herdeira testamentária, deve provar que se verificaram os eventos condicionantes.
Mais incumbe a identificada herdeira de prover pelo seu funeral e de assegurar o respetivo pagamento (disposição a favor da alma).
Assim o outorgou, declarando ainda que por este revoga qualquer testamento que anteriormente tenha feito e que de momento não especifica”.
Condição é a cláusula por virtude da qual a eficácia de um negócio é posta na dependência de um acontecimento futuro e incerto, por forma a que ou só verificado tal acontecimento é que o negócio produzirá os seus efeitos (condição suspensiva) ou então só nessa eventualidade é que o negócio deixará de os produzir (condição resolutiva).
Estabelece o artigo 270º do Código Civil que “as partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva.”
A possibilidade legal de sujeitar a instituição de herdeiro a condição suspensiva é permitida nos termos do disposto no artigo 2229º do Código Civil.
E trata-se de uma condição suspensiva e não de uma cláusula modal, por ser essa real vontade declarada expressamente pela testadora, e não um simples encargo modal, questão esta que não merece qualquer dúvida.
Impõe-se, portanto, proceder à interpretação do testamento.
Quanto à declaração negocial, a mesma vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (artigo 236º nº 1 Código Civil).
Trata-se da consagração da chamada teria da impressão do destinatário em que se considera o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e se tomam em consideração os elementos que o mesmo efetivamente conheceu, mais aqueles que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e afigura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável…
Releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer (Professor Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição, pág. 443 e seg.).
A propósito das disposições testamentárias, refere o Prof. Mota Pinto (ibidem, páginas 450 e seg.), que esta posição sofre desvios num maior subjetivismo no caso das disposições testamentárias referindo que se consagra “quanto à sua interpretação, o sentido subjetivo, com o limite do contexto do testamento (cfr. artigo 2187º nº 1 … ).
O significado decisivo é o que o testador quis dizer, desde que se possa averiguar.
Um critério normativo de interpretação aponta aqui, diversamente dos negócios «entre vivos», para a vontade psicológica do testador: não há que tomar em consideração as possibilidades de conhecimento de um destinatário como critério interpretativo, embora, depois da morte, o testamento se torne conhecido dos interessados. ( … ) Não há lugar para dar relevância a expectativas de outrem a uma «auto-responsabilidade do testador por deficiências na formulação das suas disposições».
Na pesquisa desta vontade do testador é admitido o recurso à chamada prova complementar ou extrínseca, isto é, a elementos ou circunstâncias estranhas aos termos do testamento, fundadas em qualquer dos meios de prova geralmente admitidos. Essa possibilidade é expressamente conferida pelo nº 2 do artigo 2187º que, neste ponto, confirma a orientação geralmente admitida, entre nós, embora sem texto expresso, na vigência do Código de 1867. Recorre-se a todas as circunstâncias aptas a permitir concluir qual o sentido da vontade real do testador, e não só àquelas que possam ser conhecidas de determinadas pessoas. Pode atender-se a projetos anteriores se não se conclui que a formalização significa uma modificação objetiva, a esclarecimentos orais ou escritos, devidamente testemunhados, dados pelo testador a terceiras pessoas, às considerações em que se baseou, às finalidades visadas, aos motivos, a anotações pessoais do testador nos seus papéis, etc.
Exige-se, contudo, que a vontade do testador, assim reconstituída, tenha um mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no contexto (artigo 2187º, nº 2). Esta limitação - representada pelo teor do documento - é uma manifestação do carater solene do negócio testamentário.”
Como se vê, a condição suspensiva imposta no testamento é a de cuidar e tratar da testadora com carácter de habitualidade na saúde e na doença até à data do seu falecimento, isto é, de lhe prestar todos os cuidados de saúde, higiene, alimentação, assistência médico-medicamentosa, enquanto a testadora for viva.
Condição essa que é válida, por não violar nenhuma das normas previstas nos artigos 2230º e seguintes do Código Civil.
A sentença recorrida entendeu que a autora não cumpriu a condição referida.
Vejamos.
A enunciação da condição é relativamente clara e permite-nos avaliar do cumprimento ou incumprimento da mesma pela autora.
E importaria também atender à prova documental constante do já referido documento ...6, junto com a PI, a fls. 40 a 41 dos autos, que poderíamos considerar como prova complementar ou extrínseca, conforme acima se referiu, simplesmente a contribuição para a interpretação da cláusula testamentária é extremamente limitada, uma vez que não se pode afirmar que a inventariada não tenha completado aquele escrito, com outras considerações que pudessem, por exemplo, justificar a aposição da condição em questão, pelo que, praticamente nada releva aquele escrito para tal esclarecimento.
No entanto, afigura-se-nos que há um elemento que poderá contribuir para ajudar a densificar o conteúdo daquela condição quando a inventariada escreve que “ … vou ao ... onde ela (a autora) reside até se reformar quando quiser e precise de ir ao médico ela trabalha no Hospital ... e já lhe falta pouco tempo para a reforma e se Deus quiser virão ela e o marido para junto de mim, não podia estar mais bem entregue … “.
Assim sendo, afigura-se-nos que a expectativa da inventariada ao apor a condição em questão no testamento tinha a ver com a pretendida e esperada proximidade da autora consigo (testadora) de forma que aquela pudesse disponibilizar a esta cuidados e tratamentos, com caráter de habitualidade, na saúde e na doença, prestando-lhe todos os cuidados de saúde, higiene e alimentação, assistência médico-medicamentosa, enquanto a testadora fosse viva.
Pressupunha, assim, uma presença diária e regular da autora que lhe permitisse prestar os cuidados e tratamentos referenciados, nomeadamente no que se refere aos cuidados de higiene e alimentação, necessariamente diários, para além de esporádicas necessidades relativas à saúde, como seja deslocação ao médico, o que no caso, não ocorreu, como resulta dos pontos 5, 7, 8 e 9 dos factos provados, dado que a condição é clara e objetiva quando refere a disponibilização de cuidados e tratamentos, com caráter de habitualidade e a prestação de todos os cuidados de saúde e higiene e alimentação e assistência médico-medicamentosa.
Resulta da matéria de facto provada, nomeadamente, que:
5. Em alguns fins-de-semana, com uma regularidade indeterminada, mas superior à de “fim de semana sim/fim de semana não” e, após o Natal de 2019, apenas no primeiro fim de semana de março, a autora vinha ao ..., onde residia EE, para estar com ela, em sua casa, trazendo-lhe refeições preparadas e ajudando-a nas lides domésticas, pondo-lhe a roupa a lavar, limpando-lhe a casa e fazendo-lhe companhia.
6. Após .../.../2019, data em que faleceu o seu irmão, EE ficou depressiva.
7. Quando EE tinha algum problema de saúde e precisava de ir ao médico, era à amiga HH que recorria para a ajudar, tendo-a levado ao médico, nos últimos 6 meses de vida daquela, cerca de 8 vezes.
8. Desde pelo menos janeiro de 2020, a Santa Casa da Misericórdia ... passou a prestar a EE, serviços de higiene habitacional e alimentação.
9. E, pelo menos no seu último mês de vida, EE deixou de poder tomar banho sozinha, sendo a vizinha II que lhe dava banho.
Ora, não obstante a autora tenha prestado à testadora alguns serviços, dado algum apoio, não se pode afirmar, perante a factualidade provada, que tenha preenchido os pressupostos que constavam da condição aposto no testamento, motivo pelo qual não se pode considerar que a condição se tenha verificado e, portanto, que o testamento possa produzir os efeitos previstos, caso a condição se verificasse, motivo pelo qual a autora não pode ser reconhecida como herdeira testamentária da testadora.
De todo o exposto resulta que a apelação terá de improceder e, em consequência, confirmar-se a douta sentença recorrida, inexistindo qualquer violação das normas jurídicas invocadas pela apelante.
Face ao decaimento da apelação, recai sobre a apelante a responsabilidade pelo pagamento das custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
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Guimarães, 23/02/2023

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares