Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
975/22.9T8VNF-E.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
ART.º 238.º N.º 1
AL. D) DO CIRE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, referida na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE, exige a verificação cumulativa de vários pressupostos, consoante as situações e que são:
a) o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência; esse facto tenha causado um prejuízo para os credores; e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
b) não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; esse facto tenha causado um prejuízo para os credores; e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
II. Não se verificando um dos citados elementos, não é possível indeferir in limine o pedido de exoneração do passivo restante.
III. Os pressupostos referidos, na medida em que traduzem factos impeditivos do direito do devedor pessoa singular de pedir a exoneração do passivo restante, no sentido em que se tratam de factos substantivos que inviabilizam tal pedido, devem ser alegados (art.º 5º n.º 1 do CPC) e provados (art.º 342º n.º 2 do CC) pelos credores ou pelo administrador da insolvência.
IV. Quanto ao primeiro pressuposto - o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência - está relacionado com o art.º 18º do CIRE.
V. Assim: a) devedor pessoa singular “titular de uma empresa”: aplica-se o n.º 1 e deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la, sendo que, nos termos do n.º 3, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º; b) devedor pessoa singular “não titular de uma empresa”: aplica-se o n.º 2 e dele resulta que não tem o dever de se apresentar á insolvência. Mas se não tem o dever de se apresentar á insolvência, para não incorrer na verificação de um dos pressupostos da causa de indeferimento liminar prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE, tem o ónus de apresentar-se à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação da mesma.
VI. O devedor será titular de uma empresa, quando esta integre o seu património geral e, assim, a mesma seja necessariamente abrangida pela insolvência, ou possa ser afectada, ainda que subsidiariamente, no seu património específico, por via da declaração da insolvência do seu titular, pessoa singular, o que ocorre, nomeadamente, nos casos em que não há qualquer distinção entre o património privado e o património da empresa.
VII. Os sócios ou accionistas das sociedades por quotas ou anónimas e os gerentes ou administradores das mesmas sociedades, não podem, por tais factos, ser considerados como titulares de uma empresa, tendo em consideração que, em tais situações, a titularidade da empresa é da própria sociedade, pessoa jurídica diversa dos seus sócios/accionistas e representantes legais e, em regra, é o património da sociedade que responde pelas suas próprias dívidas.
VIII. Quanto ao pressuposto – “…com prejuízo em qualquer dos casos para os credores…” – o mesmo não resulta automaticamente do mero retardamento da apresentação da pessoa singular á insolvência
IX. O prejuízo para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE tem o sentido de, no período que decorreu desde a data em que devia ter ocorrido a apresentação á insolvência e a data em que ela foi declarada, o devedor ter praticado ou omitido actos dos quais resulte, objectivamente, para os credores, uma maior dificuldade ou até impossibilidade de obter o pagamento dos seus créditos.
X. Integra-se em tal hipótese a constituição de novas dividas e o seu vencimento, determinando um agravamento do passivo (que não o mero vencimento dos juros) ou a dissipação ou oneração, dolosa, do património que constitui a garantia dos credores.
XI. A exigência de constituição de novas dividas significa que não estão em causa obrigações cujo facto constitutivo ocorreu em momento anterior à situação de insolvência, mas que só se tornaram exigíveis posteriormente, como sejam as prestações de capital e juros de contratos de crédito constituídos em momento anterior ou outra espécie de obrigações duradouras, cujas prestações se vencem pelo decurso do tempo.
XII. O que está em causa são obrigações constituídas e vencidas em momento posterior à situação de insolvência, pois só relativamente a essas se pode falar num comportamento do devedor desconforme á boa fé, á transparência e á honestidade, ou seja, apesar de se saber ou não poder ignorar que se encontra em situação de insolvência, isto é, em situação de impossibilidade de cumprir com as suas obrigações, o devedor contrai novas obrigações e permite que se vençam, agravando o passivo, tornando mais difícil ou até impossível aos credores obter o pagamento dos seus créditos.
XIII. O pressuposto do prejuízo exige ainda seja colocada em confronto a situação patrimonial do devedor á data em que devia ou tinha o ónus de se apresentar à insolvência e a data em que a mesma foi declarada e verificado se a possibilidade de os credores verem pagos os seus créditos naquela data era melhor – por haver mais património ou, sendo o mesmo, por haver menos credores – do que na data da insolvência, ou seja, se entre um e outro momento, se tornou impossível ou diminui a possibilidade de verem os seus créditos satisfeitos.
Decisão Texto Integral:
Recorrente: AA
Recorrido BB
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ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

A 09/02/2022 AA intentou acção declarativa com processo especial requerendo a declaração de insolvência de BB, tendo alegado para o efeito que:
- é portadora de uma letra no valor de € 51.905,00, aceite pelo requerido e entregue à requerente a 10/08/2010;
- não foi aposta na letra qualquer data de vencimento, sendo assim pagável á vista;
- após interpelação para proceder ao pagamento, o requerido não o fez,
- intentou acção executiva contra o requerido sob o n.º 4127/10...., requerendo o pagamento do montante supra referido, acrescido de juros á taxa de 6%;
- na acção executiva foram penhorados dois quinhões hereditários e uma participação social, de que o requerido era titular;
- procedeu-se á tentativa de venda dos referidos bens, mas nunca surgiram interessados nos referidos bens;
- na presente data a divida ascende a € 87.740,78 (€ 51.905,00 de capital e € 35.835,78 de juros vencidos desde 10/08/2010).

O requerido não deduziu oposição.

Por sentença de 11/07/2022 foi declarada a insolvência do requerido.

A 17/08/2022 o insolvente veio requerer a exoneração do passivo restante, alegando para tanto que não existe fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, a actual situação de insolvência resulta de factos alheios à vontade do Requerente e a sua actuação em algum momento constituiu razão do agravamento da sua situação, nunca beneficiou da exoneração do passivo restante, a sua situação não integra nenhuma das hipóteses previstas nas alíneas a) a g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, está disposto a observar todas as condições previstas no artigo 239º do CIRE durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência,  preenche os requisitos previstos nos artigos 235.º e seguintes do CIRE, vive em união de facto, encontra-se a trabalhar, auferindo aproximadamente € 800,00 mensais, único rendimento disponível uma vez que a sua companheira está desempregada há vários anos, não tem filhos, vive em casa de familiares da companheira, tem despesas fixas mensais de cerca de € 400,00.

A 19/08/2022 o Sr. AI juntou aos autos Relatório nos termos do art.º 155º em que, quanto á exoneração do passivo restante, diz: “… tendo em conta que nada há no sentido de ter […] mantido uma conduta contrária ao Direito, emite-se parecer no sentido que deve ser concedido ao insolvente a possibilidade de após o período de três anos previsto no art.º 239º, n.º 2, do CIRE, se exonere dos compromissos que até então não lhe seja possível saldar (…).

A requerente da insolvência opôs-se à exoneração do passivo invocando, em síntese, que posteriormente à data do vencimento do crédito da requerente – 25/02/2011 – o insolvente contraiu um conjunto de novas dividas que agravaram a garantia geral que é constituída pelo respetivo património, dividas essas relativas à prestação de avais pessoais à sociedade que indica e permitiu o avolumar da dívida à Segurança Social, quando o fez já se encontrava em situação de insolvência, verifica-se a circunstância prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE, pelo que o pedido de exoneração deve ser liminarmente indeferido.

A10/10/2022 foi proferido despacho que deferiu liminarmente o pedido de exoneração passivo restante.

A requerente da insolvência interpôs recurso, tendo terminado as suas alegações com as seguintes CONCLUSÕES:

a) - No relatório do Exmº. Sr. Administrador de Insolvência, é dito que o insolvente nos últimos três anos exerceu funções de agricultor sociedade “G...- Viveiros, Ldª”, aufere rendimentos no valor de 800,00€ mensais e suporta despesas mensais no valor de 400,00 €.
b) - Consta do mesmo relatório que o Insolvente, depois de vencido o crédito da recorrente, contraiu, em decorrência da prestação de avais pessoais à Sociedade “G...- Viveiros, Ldª”, dividas no montante total de 90.164,42€ entre 25 de Outubro de 2018 e 12 de Outubro de 2020.
c) – Permitiu ainda o avolumar da dívida ao Instituto da Segurança Social, I.P., por contribuições devidas enquanto trabalhador independente de Julho de 2007 a Dezembro de 2020, que atingiu o montante de 30.234,55€.
d) – O insolvente, quando contraiu estas dívidas e permitiu o agravamento do seu passivo junto da Segurança Social, já se encontrava em situação de insolvência.
e) – O Insolvente já se encontrava à data impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, estando assim em situação de insolvência, nos termos do artigo 3º, n.º 1do CIRE.
f) – O Insolvente sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, que estava em situação de insolvência e que não existia perspectiva séria de melhoria da sua situação.
g) – Ao não se apresentar atempadamente à insolvência, o Insolvente causou sérios prejuízos aos credores, entre os quais a aqui Recorrente.
h) – Ao abster-se de se apresentar à insolvência, o Insolvente causou um prejuízo aos credores cujos créditos foram constituídos após 25/02/2011 e à recorrente, uma vez que provocou um agravamento ao já avultado passivo e por consequência uma diminuição da sua garantia patrimonial.
i) . mostra-se verificada a circunstância prevista na alínea d) do n.º 1, do artigo 238º do CIRE, pelo que o pedido de exoneração deveria ter sido liminarmente indeferido.

O recorrido contra-alegou, tendo concluído as suas alegações com as seguintes conclusões:

1) A douta decisão recorrida fez correcta aplicação do direito e perfeita interpretação das normas jurídicas.
2) Como tal, não merece a decisão em sindicância qualquer censura, devendo ser confirmada.

2. Questões a decidir

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

A questão a decidir é se verifica a causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE.
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3. Fundamentação de facto
3.1. Consta da decisão recorrida que:

“Dos documentos juntos aos autos, bem como do relatório do apresentado pela sra. administradora de insolvência, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a decisão do incidente:

 Vive em união de facto, em casa da companheira;
 O devedor exerce as funções de agricultor na sociedade “G...- Viveiros, Lda”, onde aufere cerca de € 798,94 mensais e tem despesas de cerca € 400,00;
 A requerente da insolvência é dona de uma letra no valor de € 51.905,00, aceite pelo insolvente em 10/08/2010;
 Aquele título não foi pago pelo devedor, tendo sido instaurada uma execução que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – ... N. Famalicão Juiz ..., com o n.º 4127/10....;
 O insolvente tem ainda dívidas resultantes de avais prestados à sociedade “G...- Viveiros, Lda”, da qual é detentor de uma quota social;
 Não tem antecedentes criminais.
 Foram reclamados os seguintes créditos:
                                                          
3.2. Além disso verifica-se:
3.2.1. no apenso de Reclamação de créditos:

- A ora recorrente impugnou a lista de créditos apresentada pelo Sr. AI, no que respeita ao crédito do Instituto de Segurança Social, IP no valor de € 30.234,55.
- O ISS, IP veio responder considerando que devem ser reconhecidos os créditos reclamados entre o mês de agosto de 2017 e junho de 2022.
- A 03/01/2023 foi proferida sentença que decidiu:
Assim, julgo parcialmente procedente a impugnação e considero prescritos os créditos reclamados pelo ISS, IP anteriores a Agosto de 2017.
- A aqui recorrente interpôs recurso da referida sentença.

3.2.2. no apenso de Apreensão de bens:

- O Sr. AI juntou Auto de apreensão de bens, onde consta que foram apreendidos os seguintes bens:
- Verba n.º 1 - Quinhão hereditário pertencente ao insolvente BB na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu pai CC, a qual é constituída por 40 prédios rústicos, com o valor patrimonial tributário total de € 2.109,88 e um prédio urbano com o valor patrimonial de € 32.429,25
- Verba n.º 2 - Metade indivisa de um prédio rústico, com o valor patrimonial tributário de € 174,92
- Verba n.º 3 - Quota no valor nominal de € 25.000,00 na sociedade “G...- Viveiros, Lda”, com o capital social de € 50.000,00;
- Verba n.º 4 - 70 ações representativas do capital social do ..., no valor de € 259,00.

4. Direito
- Enquadramento jurídico da exoneração do passivo restante -

Dispõe o art.º 235º do CIRE:
Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo.

Na exposição de motivos do DL 53/2004, de 18 de Março e que aprovou o CIRE, refere-se no ponto 45:
“O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos ..., e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.
(…)”

A este respeito explica Alexandre Soveral Martins in Um curso de direito da insolvência, Almedina, 2016, 2ª edição, pág. 583-584, que o regime da exoneração do passivo restante “faculta […] ao devedor (e, muitas vezes á sua família) a possibilidade de não viver o resto da vida (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeira equilibrada.”

Catarina Serra in Lições de Direito da insolvência, Almedina, 2021, 2ª edição, pág. 611, distingue dois modelos de insolvência das pessoas singulares:
a) o modelo do “fresh start” em que “a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído este, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma poder retomar, com tranquilidade a sua vida”;
b) o modelo do “earned start“ ou reabilitação, o qual “ assenta ainda no “fresh start” mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em principio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dividas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, dever-lhe-á ser concedido o benefício” – e conclui que a lei portuguesa se aproxima do último.

Como refere Luís Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, Almedina, 10ª edição, pág. 323, “através deste instituto, após o património do devedor pessoa singular ter sido liquidado para pagamento dos credores, ou decorridos cinco anos [a obra em referência é anterior à alteração do art.º 235º do CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que alterou o período de cessão de 5 para 3 anos] após o encerramento do processo, as obrigações que, apesar dessa liquidação ou decurso desse prazo, não puderem ser satisfeitas, em lugar de subsistirem [até ao limite do prazo de prescrição que pode atingir 20 anos (art.º 309º do CC)], são declaradas extintas”.

A exoneração do passivo restante não é concedida de imediato, mas apenas decorrido o prazo de três anos e cumpridas escrupulosamente as obrigações impostas, demonstrando o devedor ser merecedor, a final, da concessão do benefício.

Como refere Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 384 “ o despacho inicial [de exoneração do passivo restante] determina a abertura, nos cinco anos , [a obra em referência também é anterior à alteração do art.º 235º do CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que alterou o período de cessão de 5 para 3 anos] posteriores ao encerramento do processo, do período de cessão, ou seja, o período dentro do qual, por forma a revelar-se merecedor da concessão da exoneração do passivo restante, o devedor é posto à prova, através da cessão do rendimento disponível a um fiduciário e da imposição de um conjunto de obrigações.”

Assim, após ser facultado aos credores e ao administrador da insolvência pronunciarem-se sobre o pedido de exoneração do passivo restante (art.º 236º n.º 4 e 238º n.º 2, ambos do CIRE), o tribunal apreciará o pedido e proferirá:

a) despacho de indeferimento liminar (em rigor não se trata de um indeferimento liminar, uma vez que pode ser necessário produzir prova sobre os factos fundantes – Menezes Leitão, ob. cit., pág. 326, nota 439 – e não estão em causa fundamentos de cariz processual, mas de cariz substantivo – Ac. do STJ de 24/01/2012, processo 152/10.1TBBRG-E. G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj - relacionados com o comportamento do devedor e que justificam ou não a concessão da exoneração – Ac. do STJ de 14/02/2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1-S1) caso se verifique alguma das circunstâncias referidas no art.º 238º do CIRE;
b) ou “despacho inicial“ (cfr. parte final da alínea b) do art.º 237º do CIRE) de admissão do mesmo, declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no art.º 239º durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência.

Uma das circunstâncias em que o pedido de exoneração do passivo restante deve ser objecto de despacho de indeferimento liminar é a que consta da alínea d) do n.º 1 do art.º 238º, que dispõe:

1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
(…)
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;

Esta causa de indeferimento liminar exige a verificação cumulativa (é entendimento que tanto quanto se pode observar na jurisprudência, é unânime – cfr. a titulo meramente exemplificativo o Ac. desta RG de 21/05/2013, proc. 610/12.3TBGMR-E.G1 consultável in www.dgsi.pt/trg) de vários pressupostos, consoante as situações e que são:

a) o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência; esse facto tenha causado um prejuízo para os credores; e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
b) não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; esse facto tenha causado um prejuízo para os credores; e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica. (cfr. Acs. do STJ de 27.03.2014, processo 331/13.0T2STC.E1.S1 e de 14/02/2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, consultáveis in www.dgsi.pt/jstj; desta RG de 28/03/2019, processo 3616/18.5VNF-D.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg; da RE de 28/09/2017, processo 954/12.4TBALR-G.E1  e de 16/01/2014, processo 1098/13.7TBSTR-C.E1, consultáveis in www.dgsi.pt/jtre e da RC de 07/09/2021, processo 3/21.1T8CBR-B.C1)

Não se verificando um dos citados elementos, não é possível indeferir in limine o pedido de exoneração do passivo restante.

Por outro lado, os pressupostos referidos, na medida em que traduzem factos impeditivos do direito do devedor pessoa singular de pedir a exoneração do passivo restante, devem ser alegados (art.º 5º n.º 1 do CPC) e provados (art.º 342º n.º 2 do CC) pelos credores ou pelo administrador da insolvência (cfr. Acs. do STJ de 06/07/2011, processo 7295/08.0TBBRG.G1.S1, de 24/01/2012, processo 152/10.1TBBRG-E.G1.S1, de 14/02/2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, de 21/03/2013, processo 1728/11.5JLSB-B.L1.S1, de 21/01/2014, processo 497/13.9TBSTR-E.E1.S1).

Isto sem prejuízo do tribunal ter em consideração factos relevantes para a verificação de qualquer uma das situações invocadas que resultem dos autos principais e/ou apensos, atento o principio da aquisição processual e o disposto no art.º 11º do CIRE, que não pode deixar de se aplicar ao incidente de exoneração do passivo restante, porque inserido no processo de insolvência em sentido estrito.

Relativamente ao primeiro elemento - o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.

Está relacionado com o art.º 18º do CIRE, o qual dispõe:
1 - O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.
2 - Exceptuam-se do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.
3 - Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º

Uma vez que o pedido de exoneração do passivo restante apenas pode ser deduzido por pessoas singulares, em face deste normativo há que considerar duas situações:

a) o devedor pessoa singular “titular de uma empresa” – aplica-se o n.º 1 do art.º 18º e assim deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la, sendo que, nos termos do n.º 3, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º;
b) o devedor pessoa singular “não titular de uma empresa” – aplica-se o n.º 2 e dele resulta que não tem o dever de se apresentar á insolvência.

Mas relativamente ao último, se não tem, em regra, o dever de se apresentar á insolvência, para não incorrer na verificação da causa de indeferimento liminar em apreço, tem o ónus de apresentar-se à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação da mesma.

Coloca-se a questão de saber quando é que o devedor é titular de uma empresa.
O art.º 5º do CIRE define empresa, para efeitos do mesmo, como sendo toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica.

A obrigação de apresentação à insolvência associada à existência de uma empresa, radica nos interesses relacionados com o exercício do comércio e das outras actividades económicas, ou seja, no interesse público de protecção do crédito comercial e empresarial (cfr.  Catarina Serra, in A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, pág. 341, da ed. de 2009, Coimbra Editora e Ac. da RP de 14/06/2011, processo 1368/09.9TBVLG-D.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp)

A insolvência de um comerciante ou empresário, por força da sua inserção numa cadeia de relações de crédito, causa perturbações mais graves do que a insolvência de um cidadão comum.

Por isso, o legislador, quando constituiu o devedor titular de uma empresa comercial na obrigação de se apresentar à insolvência, pretendeu evitar a repercussão da sua crise numa crise colectiva geral, evitando a produção de danos para os interesses particular e geral.

O devedor será titular de uma empresa, quando esta integre o seu património geral e, assim, a mesma seja necessariamente abrangida pela insolvência, ou possa ser afectada, ainda que subsidiariamente, no seu património específico, por via da declaração da insolvência do seu titular, pessoa singular, o que ocorre, nomeadamente, nos casos em que não há qualquer distinção entre o património privado e o património da empresa (cfr. Menezes Leitão in Direito da insolvência, 10ª edição, 2021 pág. 86), pois todo ele responde sem restrições pelas dívidas do empresário, como sucede, por exemplo, com os comerciantes e outros empresários em nome individual referidos nos artigos 38º e 39º do RNPC, aprovado pelo Dec-Lei 128/98, de 13.05. (cfr. Ac. desta RG de 25/09/2014, processo 269/13.0TBCMN-C.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).

No que diz respeito à questão de saber se os sócios ou accionistas das sociedades por quotas ou anónimas, respectivamente, podem, ou não, ser considerados como titulares de uma empresa, a resposta é negativa, tendo em consideração que, em tais situações, a titularidade da empresa é da própria sociedade, pessoa jurídica diversa dos seus sócios e, em regra, é o património da sociedade que responde pelas suas próprias dívidas ( art.º 197º n.º 2 e 271º do CSC)  (cfr. Acórdãos do STJ de 14/02/2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1 e 19.06.2012, processo 1239/11.9TBBRG-E.G1.S1, consultáveis in www.dgsi.pt/jstj; da RP de 14/06/2011, processo 1368/09.9TBVLG-D.P1; de 08.02.2011, processo 754/10.6TBOAZ-E; 29/06/2010, processo 9085/09.3TBVNG-C.P1 e de 06.10.2009., processo 286/09.5TBPRD-C, consultáveis in www.dgsi.pt/jtrp; e da RG 20/10/2015, processo 264/14.2TBVVD-E.G1, 25/09/2014, processo 269/13.0TBCMN-C.G1, de 19.06.2012., processo 1239/11.9TBBRG-E e de 30/04/2009, processo 2598/08.6TBGMR-G.G1)

O mesmo se diga quanto aos sócio-gerentes ou administradores (cfr. o Ac. desta RG de 19/02/2013, processo 4093/11.7TBGMR-C.G1 e da RC de 13/09/2016, processo 741/16.0T8LRA.C1)

Quanto ao segundo elemento – “…com prejuízo em qualquer dos casos para os credores,…” – exige-se que em consequência do incumprimento do dever de apresentação á insolvência ou a sua não apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, advenha um prejuízo para os credores.

A este respeito refere Alexandre Soveral Martins, in Um curso de direito da insolvência, 2ª edição, 2016, pág. 591-582: “… deve entender-se que o prejuízo para os credores tem que ser provado, não bastando o mero decurso do tempo. A lei exige uma relação causal entre o comportamento do devedor e o prejuízo para os credores. Para que se possa concluir pela existência desse prejuízo, será necessário comparar com o que seria a sua previsível situação se o devedor tivesse cumprido o dever de apresentação ou, não existindo esse dever, se tivesse apresentado nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.”

Relativamente á questão do “mero decurso do tempo“, os tribunais foram confrontados com a questão de saber se a não apresentação tempestiva do devedor à insolvência e, portanto, o mero decurso do tempo, torna evidente / automático o prejuízo para os credores, nomeadamente pelo avolumar dos créditos com os juros que se vão vencendo e, estando em causa créditos de instituições de crédito, isso ter repercussão na necessidade das mesmas provisionarem o incumprimento junto do Banco de Portugal, ficando cativas verbas que, se não fosse esse provisionamento, poderiam utilizar na sua actividade.

A resposta que tem sido dada - cfr. os Ac.’s do STJ de 22/03/2011, processo 570/10.5TBMGR-B.C1.S1, de 24/01/2012, processo 152/10.1TBBRG-E.G1.S1, de 14/02/2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, de 21/03/2013, processo 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1 e de 21/01/2014, processo 497/13.9TBSTR-E.E1.S1 - é que o mero retardamento da apresentação da pessoa singular á insolvência não determina automaticamente um prejuízo para os credores.

Desde logo, á luz das regras da interpretação (cfr. art.º 9º n.º 3 do CC, que manda considerar que o legislador não só consagrou as soluções mais acertadas mas também sabe exprimir-se por forma correcta), tal entendimento é incompatível com o facto de o legislador ter previsto como elemento do indeferimento liminar o prejuízo para os credores.

Destarte, não basta o mero decurso do tempo. O prejuízo tem de ser alegado e provado. E como já referido supra, tal tarefa cabe aos credores ou ao administrador da insolvência.

Por outro lado, quanto ao avolumar dos juros, não há dúvidas que com o decurso do tempo, se vão vencendo e o seu montante vai aumentando.

Mas tal é apenas uma consequência legal da mora no cumprimento das obrigações pecuniárias (art.º 806º n.º 1 do CC), sendo certo que tais juros constituem um crédito da insolvência (art.º 48º n.º 1 alínea b) do CIRE).

Se o legislador entendesse que para o preenchimento do prejuízo bastava um normal aumento do passivo, bastava ter previsto que seria indeferido o pedido de exoneração do passivo restante se o devedor não se tivesse apresentado à insolvência nos prazos definidos: 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la, ou não se apurando tais momentos, três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º para o devedor pessoa singular “titular de uma empresa”;  seis meses seguintes à verificação da situação da insolvência para o devedor pessoa singular “não titular de uma empresa” (cfr. Leticia Marques Costa, A insolvência de pessoas singulares, Almedina, pág. 126)

Neste contexto importa precisar que o prejuízo para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE tem o sentido de, no período que decorreu desde a data em que devia ter ocorrido a apresentação á insolvência e a data em que ela foi declarada, o devedor ter praticado ou omitido actos dos quais resulte, objectivamente, para os credores, uma maior dificuldade ou até impossibilidade de obter o pagamento dos seus créditos (para uma recensão de jurisprudência contemplando várias situações, o Ac. deste RG de 28/03/2019, proc. 3616/18.5T8VNF-D.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).

Integra-se em tal hipótese a constituição de novas dividas e o seu vencimento, determinando um aumento do passivo de capital (que não o mero vencimento dos juros) ou a dissipação ou oneração, dolosa, do património que constitui a garantia dos credores.

Releva aqui a primeira hipótese.

Desde logo entende-se que a mesma não abrange toda e qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, provocada pelo atraso na apresentação á insolvência.

Assim não estão em causa obrigações cujo facto constitutivo ocorreu em momento anterior à situação de insolvência, mas que só se tornaram exigíveis posteriormente, nomeadamente, prestações de capital e juros de contratos de crédito constituídos em momento anterior ou outra espécie de obrigações duradouras, cujas prestações se vencem pelo decurso do tempo.
Nestas situações há um avolumar do passivo, que decorre do mero decurso do tempo.

Mas não são estas as situações que a norma tem em vista pois, de outra forma, o mero decurso do tempo tornava automático o prejuízo para os credores, nomeadamente pelo avolumar dos créditos com as prestações que se vão vencendo.
E se, como vimos supra, tal entendimento não vale para os juros, também não pode valer para as obrigações emergentes de facto constitutivo anterior à situação de insolvência.

O que está em causa são obrigações constituídas e vencidas em momento posterior à situação de insolvência, pois só relativamente a essas se pode falar num comportamento do devedor desconforme á boa fé, á transparência e á honestidade, ou seja, apesar de saber ou não poder ignorar que se encontra em situação de insolvência, isto é, em situação de impossibilidade de cumprir com as suas obrigações, o devedor contrai novas obrigações e incumpre as mesmas, tornando mais difícil ou até impossível aos credores obter o pagamento dos seus créditos.

Neste sentido o Ac. da RC de 11/12/2012, proc. 1194/11.5T2AVR-E.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc, em cujo sumário consta
II – O prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo – e que, não podendo ser presumido, tem que decorrer dos factos demonstrados ou evidenciados nos autos – não é o prejuízo que advém para os credores da situação de incumprimento e da insolvência do devedor, mas sim o prejuízo emergente do atraso na apresentação à insolvência, ou seja, o prejuízo sofrido pelos credores que teria sido evitado caso o devedor se tivesse apresentado à insolvência em tempo oportuno.
III – A afirmação de tal prejuízo pressupõe a verificação de factos ou circunstâncias que permitam concluir que, no caso concreto, o atraso na apresentação à insolvência determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou da diminuição do activo (em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ela se vem apresentar).

Ou no Ac. da RP de 09/05/2019, proc. 2873/15.3T8VNG.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp, onde se afirma:

“ Tanto quanto julgamos, o prejuízo que a norma tem em vista na sua previsão é um dano distinto ou acrescido, que resulte precisamente da não apresentação à insolvência e se some aos danos que independentemente desta sempre ocorreriam. Um dano que sobrevenha de um comportamento censurável do devedor, traduzindo um desprezo pela posição dos credores e que dificulte mais a posição destes no que tange à obtenção do pagamento.
Estaremos perante essa situação, manifestamente, quando o devedor tiver, por exemplo, contraído mais obrigações pecuniárias após a verificação da situação de insolvência (ainda que não se afaste a possibilidade de as mesmas estarem justificadas pela necessidade de acorrer a uma despesa urgente para a conservação do património que irá ser objecto da liquidação). Ou quando tiver alienado património que devesse ser apreendido para a massa falida e o haja feito ao desbarato ou sem entregar à massa o produto dessa alienação.”

Ou no Ac. desta RG de 02/03/2023, proc. 622/22...., em cujo sumário consta:    
VI. O prejuízo resultante da apresentação tardia à insolvência é autónomo e acresce ao que já resultava da anterior situação de insolvência, não podendo advir apenas do mero decurso do tempo (nomeadamente, do avolumar do passivo pelo singelo vencimento de juros, consequência normal do incumprimento gerador da insolvência); e radica nos novos comportamentos assumidos pelo devedor, no período em que se deveria ter apresentado à insolvência (v.g. assumindo mais dívidas sem capacidade patrimonial para o efeito, dissipando - total ou parcialmente - o seu património, abandonando-o ou permitindo a sua acrescida degradação, onerando-o ainda mais), que causam um adicional e distinto prejuízo aos seus credores.

Como refere Leticia Marques Costa, ob. cit. pág. 126-127:
A lei visa (…) comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou que gerem novos débitos ou seja, comportamentos desconformes á boa fé, á transparência e á honestidade.
(…)
Assim, sancionam-se comportamentos que impossibilitam ou diminuem a hipótese de os credores verem os seus créditos satisfeitos, na medida em que essa satisfação seria conseguida se esses comportamentos não se verificassem.”

Mas para que se verifique o requisito do prejuízo não basta que o devedor contraia novas obrigações e permita que se vençam.
É necessário, ainda, colocar em confronto a situação patrimonial do devedor á data em que devia ou tinha o ónus de se apresentar à insolvência e a data em que a mesma foi declarada e verificar se a possibilidade de os credores verem pagos os seus créditos naquela data era melhor – por haver mais património ou, sendo o mesmo, por haver menos credores – do que na data da insolvência, ou seja, se entre um e outro momento, se tornou impossível ou diminui a possibilidade de verem os seus créditos satisfeitos.

O terceiro e último elemento da norma – “…sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.”

Pode acontecer existirem razões sérias, justificadas, fundadas (e não um ajuizar desprovido de ligação á realidade) para o devedor crer que, com o decurso do tempo, a sua situação económica irá melhorar e, assim, será possível passar a satisfazer a generalidade das suas obrigações ou pelo menos reduzir o seu incumprimento de forma substancial e não será necessária a apresentação e declaração de insolvência.

Mas se o devedor, de forma séria, perspectivar que, mesmo com o decurso do tempo, não irá ter um aumento de rendimentos ou património que lhe permita passar a satisfazer a generalidade das suas obrigações, não poderá deixar de saber que não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica e, portanto, nenhum fundamento tem para não se apresentar á insolvência.
           
- Da situação dos autos –
A questão a decidir no presente recurso é a de saber se se verifica a causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE como pretende a recorrente.

Não podemos deixar de verificar que, apesar de a agora recorrente ter suscitada a questão na sua pronúncia, o tribunal recorrido não a abordou de forma concreta, tendo-se limitado, genericamente, a dizer o seguinte:
“Além disso, não consta dos autos qualquer informação ou elemento susceptível de integral os requisitos negativos plasmados nas alíneas b) a e) e g) do n.º 1 do artigo 238.º do referido Código, desde logo, não existem quaisquer elementos que indiciem a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da sua situação de insolvência.”

Vejamos

Em primeiro lugar e muito embora não esteja questionado no recurso, nada consta dos autos que permita afirmar que o insolvente estava obrigado a apresentar-se á insolvência, já que deles não resulta que o mesmo seja “titular de uma empresa.
Muito embora resulta da factualidade provada que o mesmo é titular de uma participação social na sociedade “G...- Viveiros, Lda”, como já ficou referido tal situação não traduz a “titularidade de uma empresa”.

Coloca-se a questão de saber se se absteve de se apresentar á insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, para o que se torna necessário indagar a data em que no caso se verificou a mesma.

O art.º 3º n.º 1 do CIRE dispõe que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

O CIRE contém, no n.º 1 do art.º 20º, um conjunto de factos-indice que fazem presumir a situação de insolvência definida no art.º 3º.

Assim, a alínea b) do n.º 1 do art.º 20º do CIRE determina que constitui um facto-indice da situação de insolvência a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

Sendo caso de aplicar esta alínea, pode afirmar-se que o prazo de seis meses para o devedor se apresentar à insolvência conta-se do momento em que se verifica a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

A insolvência do recorrido foi declarada por sentença de 11/07/2022, por iniciativa da recorrente/credora, tendo sido consignado na mesma:
In casu, com interesse, resultou provado que a requerente é credora do requerido de uma quantia superior a oitenta e sete mil euros e que, apesar de ter intentado acção executiva, nada conseguiu obter.
Em consequência, considera-se preenchida a alínea b) e do n.º 1 do artigo 20.º, do CIRE.

Ainda antes de concluir, o referido quadro impõe precisões.

Assim e desde logo, nos factos provados da decisão recorrida consta que o crédito da recorrente é no valor de € 89.054,76 e o seu vencimento data de 25/02/2011.
Precise-se que a recorrente requereu a insolvência a 09/02/2022 e a mesma declarou que o seu crédito, na referida data, era composto por € 51.905,00 de capital e € 35.835,78 de juros de mora.
Na reclamação de créditos consta que o crédito da recorrente corresponde a € 51.905,00 de capital e € 37.149,76 de juros.
Neste contexto, os juros em referência são os que se foram vencendo, respectivamente, até à data da instauração do processo especial de insolvência e da reclamação de créditos.

Não existem elementos que permitam compreender a razão porque se considerou o crédito da exequente vencido a 25/02/2011.
Mas consta da factualidade provada e não foi impugnado, pelo que se impõe aceitar tal data.
De qualquer forma, se tal data de vencimento abrange naturalmente a totalidade do capital, não pode abranger a totalidade dos juros considerados vencidos na lista dos créditos reclamados.

Neste contexto são patentes as dificuldades em afirmar a data em que estava consolidada a situação de insolvência do recorrido.

Mas, tendo em consideração o montante do crédito de capital da recorrente, a data de vencimento do mesmo, que foi com base no facto-indice previsto na alínea b) do n.º 2 do art.º 20º do CIRE que o recorrido foi declarado insolvente, então pode afirmar-se que o devedor estava insolvente a 25/02/2011.

Destarte impõe-se concluir que, muito embora o recorrente não estivesse obrigado a apresentar-se á insolvência, mas tendo o ónus de o fazer, não o fez nos seis meses seguintes á verificação da situação da mesma, ou seja, situando-se esta a 25/02/2011, até 25/08/2011.

Impõe-se assim dar por verificado o primeiro pressuposto da aplicação da alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE – o devedor não se apresentou à insolvência nos seis meses seguintes à situação de insolvência.

Avançando, coloca-se agora a questão de saber se o facto de o devedor não se ter apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à situação de insolvência, causou prejuízo para os credores.

Resulta da decisão recorrida que foram reclamados diversos créditos.

Assim foram reclamados créditos:
- pela A... - Sociedade de Garantia Mútua, S.A, relativamente a uma Garantia Autónoma celebrada com a empresa G...- Viveiros, Lda., com Livrança avalizada pelo Insolvente, crédito reconhecido sob a condição do não pagamento do contrato por parte da devedora principal;
- pelo Banco 1..., S.A., relativo a Contrato de Empréstimo avalizado pelo insolvente, crédito reconhecido sob a condição do não pagamento do contrato por parte da devedora principal;
- pelo Banco 1..., S.A., relativo a Contrato de Locação Financeira avalizado pelo insolvente, crédito reconhecido sob a condição do não pagamento do contrato por parte da devedora principal;
- pelo Banco 1..., S.A., relativo a Conta Corrente, avalizada pelo insolvente, crédito reconhecido sob a condição do não pagamento do contrato por parte da devedora principal;
- pelo Banco 2... em Portugal, relativo a Contrato de Empréstimo sob a forma de abertura de Crédito, avalizado pelo insolvente
- pelo Banco 2... em Portugal, relativo a Contrato Multilinha de Financiamento para empresas, avalizado pelo insolvente;
- pelo Banco 2... em Portugal, Contrato de Empréstimo sob a forma de Mútuo, avalizado pelo insolvente.

Mas como decorre da reclamação de créditos, estes créditos, que emergem da prestação de avais, não estão vencidos, o que significa que os créditos garantidos estão a ser cumpridos.
Não estando vencidos, não agravam o passivo do recorrido e, assim, não interferem com a satisfação do crédito da recorrente.
Não se podendo afirmar que os referidos créditos coloquem em causa a possibilidade da recorrente ver satisfeito o seu crédito, no todo em parte, os mesmos não podem aqui ser considerados.

Foram ainda reclamados créditos pelo ISS, IP: um no valor de € 30.234,55, vencido a 31/07/2022 e outro crédito do mesmo ISS, IP, no valor de € 373,08, vencido a 31/07/2022.

Em primeiro lugar, impõe-se verificar que não estamos perante a constituição de novas dividas.
Como decorre da factualidade provada, estão em causa contribuições devidas á Segurança Social pelo devedor, pelo facto de ser trabalhador independente, desde Julho de 2007.
O facto constitutivo desta divida é o facto de o devedor ser trabalhador independente, sendo que o art.º 150º n.º 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16/09, determina que a obrigação contributiva  dos trabalhadores independentes (que nos termos do n.º 1 do art.º 151º compreende o pagamento de contribuições e a declaração dos valores correspondentes à atividade exercida) constitui-se com o início dos efeitos do enquadramento e nos termos do n.º 1 do art.º 145º da mesma Lei, na redacção actual, no caso de primeiro enquadramento no regime dos trabalhadores independentes, este só produz efeitos no primeiro dia do 12.º mês posterior ao do início de atividade).
Realidade distinta é o posterior e regular vencimento da contribuição devida pelo trabalhador independente que, nos termos do art.º 155º n.º 2 do já referido CRCSPSS, é mensal, ou seja, vence-se pelo decurso do tempo e enquanto não cessar a situação de trabalhador independente.
Se são devidas contribuições desde 2007, então impõe-se concluir que o  facto de tais obrigações - o devedor ser trabalhador independente - é anterior á situação de insolvência, sendo, pelo menos, de Julho de 2007.

Considerar que a situação em referência era suficiente para configurar o segundo elemento da norma – “…com prejuízo em qualquer dos casos para os credores,…” – seria considerar que era suficiente o mero decurso do tempo, pois é isso que está na base da divida ao ISS, IP: o mero decurso do tempo e o sucessivo vencimento das contribuições porque o facto constitutivo da obrigação, nascido pelo menos em .../.../2007, se manteve.
           
Em segundo lugar e quanto ao crédito do Instituto de Segurança Social, IP no valor de € 30.234,55, não podemos ainda deixar de atentar que, como flui apenso de Reclamação de créditos, a ora recorrente impugnou o referido crédito, invocando a prescrição.

Resulta ainda do referido apenso que ISS, IP veio responder considerando que devem ser reconhecidos os créditos reclamados entre o mês de agosto de 2017 e junho de 2022.
E a 03/01/2023 foi proferida sentença que decidiu:
Assim, julgo parcialmente procedente a impugnação e considero prescritos os créditos reclamados pelo ISS, IP anteriores a Agosto de 2017.
A aqui recorrente interpôs recurso da referida sentença, pretendendo que também as contribuições relativas ao período de Agosto de 2017 a Dezembro de 2020 devem ser consideradas prescritas.

Neste quadro fáctico, tendo presente a proibição de reformatio in pejus e a manter-se a sentença proferida, desconhece-se qual o montante das contribuições devidas pelo  devedor relativas ao período  de Setembro de 2017 a Dezembro de 2020. E caso o recurso da recorrente seja procedente, bem pode ser nulo.

Em terceiro lugar e sem prejuízo do que já ficou referido, sempre se dirá ainda que o outro crédito do mesmo ISS, IP, tem o valor de € 373,08, o que corresponde a 0,4% do crédito da recorrente, ou seja, a medida em que o mesmo poderia afectar a satisfação do crédito da recorrente não é significativa para se poder falar em prejuízo.

Finalmente, impõe-se verificar que a recorrente, para além de alegações de pendor claramente genérico, não invocou quaisquer factos que, uma vez provados, permitam concluir que a probabilidade de obter o pagamento do seu crédito à data em que o devedor tinha o ónus de se apresentar à insolvência – 25/08/2011 – era melhor do que á data em que a mesma foi declarada, pois nada alegou quanto á situação patrimonial do mesmo nas referidas datas.

Sempre se dirá que na petição inicial de insolvência, a requerente alegou que era portadora de uma letra no valor de € 51.905,00, aceite pelo requerido e entregue à requerente a 10/08/2010, a qual não foi paga; intentou acção executiva contra o requerido sob o n.º 4127/10...., requerendo o pagamento do referido montante, acrescido de juros á taxa de 6%; na acção executiva foram penhorados dois quinhões hereditários – do pai e da mãe - e uma participação social de que o requerido era titular; procedeu-se á tentativa de venda dos referidos bens, nunca surgiram interessados nos referidos bens.

O requerido não deduziu oposição e como tal a referida factualidade deve ter-se adquirida por confissão.

Entretanto, flui do apenso de Apreensão de bens que foram apreendidos os seguintes bens:
- Verba n.º 1 - Quinhão hereditário pertencente ao insolvente BB na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu pai CC, a qual é constituída por 40 prédios rústicos, com o valor patrimonial tributário total de € 2.109,88 e um prédio urbano com o valor patrimonial de € 32.429,25
- Verba n.º 2 - Metade indivisa de um prédio rústico, com o valor patrimonial tributário de € 174,92
- Verba n.º 3 - Quota no valor nominal de € 25.000,00 na sociedade “G...- Viveiros, Lda”, com o capital social de € 50.000,00;
- Verba n.º 4 - 70 ações representativas do capital social do ..., no valor de € 259,00.

Neste quadro não se afigura que a possibilidade da recorrente de obter a satisfação do seu crédito fosse melhor até 25/08/2011, do que é agora pois, apesar de ter intentado acção executiva em 2010 e no âmbito da mesma terem sido penhorados bens, ao longo de 12 anos não conseguiu satisfazer o seu crédito.

Isto sem prejuízo de se considerar que a recorrente nada de concreto alegou que, uma vez provado, demonstrasse que a possibilidade de obter a satisfação do seu crédito fosse melhor até 25/08/2011.

Em face de tudo o exposto impõe-se concluir que face aos elementos disponíveis, não é possível afirmar que, tendo o devedor se abstido de apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à situação de insolvência – até 25/08/2011:
- o mesmo praticou actos dos quais resultou, objectivamente, para os credores, uma maior dificuldade ou até impossibilidade de obter o pagamento dos seus créditos, não sendo suficiente o não pagamento de dividas, cujo facto constitutivo se situa em momento anterior àquela data;
-  e que, caso o devedor se tivesse apresentado á insolvência até aquela data, as probabilidades de a recorrente obter o pagamento do seu crédito eram maiores ou melhores do que são actualmente.

E, deste modo, não é possível afirmar o pressuposto do prejuízo.

Sendo os requisitos previstos na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º de verificação cumulativa, inverificado que está o requisito do prejuízo, improcede a pretensão da recorrente de verificação da causa de não admissão liminar da exoneração do passivo restante ali prevista e, assim, o recurso deve ser julgado improcedente.

5. Decisão

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão de admissão liminar da exoneração do passivo restante.
*
Custas pela recorrente – art.º 527º n.º 1 do CPC
*
Notifique-se
*
Guimarães, 30/03/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
José Fernando Cardoso Amaral