Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1730/24.7T8BCL.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: LEGITIMIDADE INDIRECTA
REPRESENTAÇÃO LEGAL
MAIOR ACOMPANHADO
ACOMPANHANTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- Para que se apure a legitimidade nos casos em que a mesma não decorre da titularidade da situação objetiva (nomeadamente quando quem intenta a ação age em seu nome e no seu interesse, mas sobre relação jurídica de que não é sujeito) é necessário que se encontre uma atribuição legal que a suporte.
.2- Quando corre um processo de acompanhamento é neste que se deve decidir quem deve ser nomeado representante do incapaz, pelo que não se justifica conceder legitimidade ao irmão do doador para pedir a anulação desse ato com fundamento na incapacidade do outorgante (ainda não verificada em sede própria), sem que este beneficie desses poderes de representação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - Relatório

O Autor terminou a sua petição inicial com os seguintes pedidos:
“A) Admitir a intervenção provocada da AA nos termos do artigo 316º n,º 3 do CPC, para que esta possa requerer a declaração de anulabilidade da escritura pública de doação outorgada em 10/05/2015, no Cartório Notarial do Dr. BB, por incapacidade da 1ª Ré, AA, nos termos do artigo 257º, nº 1 do Código Civil.
B) Nomear um representante legal ou curador para a 1ª Ré, tendo em conta a sua incapacidade de gerir o seu património e de compreender os seus atos, excluindo os réus dessa função devido ao conflito de interesses, notificando o Ministério Público para os efeitos previstos no artigo 23º do Código de Processo Civil, a fim de assegurar a proteção dos direitos e interesses da 1ª Ré.
C) Reconhecer o abuso de direito por parte da 2ª Ré e do 3º Réu, que agiram de má fé ao aceitarem a doação e a procuração, aproveitando-se do notório déficit cognitivo e intelectual da 1ª Ré, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, conforme o artigo 334º do Código Civil, declarando nulos os atos jurídico nos termos do disposto no artigo 280º, nº 2 do Código Civil.
D) Ordenar a restituição imediata dos bens doados pela 1ª Ré à 2ª Ré, nomeadamente o prédio misto composto de casa de dois pavimentos e o terreno de lavradio sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ....”

Alegou, para tanto e em síntese, que
-- a interveniente é sua irmã e apresenta desde a infância um desenvolvimento somático e psíquico bem marcado, como resulta patente de perícia que lhe foi feita quando tinha 17 anos em processo de querela, na qual os peritos concluíram. «É uma oligofrénica (imbecil) com uma idade mental de 6 anos e um Q. I. igual a 40». No entanto, a sua irmã nunca foi alvo de qualquer ação de interdição e/ou inabilitação;
-- foi lavrada escritura pública em 10/05/2015, na qual a Interveniente figura como primeira Outorgante e os demais Réus como segunda e terceiro outorgantes, intitulada “DOAÇÃO E MANDATO», declarando-se que a Interveniente doa à 2ª Ré o prédio misto composto de casa destinada à habitação, logradouro e um terreno de lavradio que identifica e constituiu o 3º Réu seu bastante procurador, a quem confere poderes de representação, junto do Município, dos fornecedores de energia elétrica, água, saneamento, telecomunicações, seguradoras e outras, dos serviços de finanças e registo predial, dos correios ..., bem como de administração do prédio, ficando a donatária (na sua morte, os seus herdeiros) e 3º outorgante obrigados a cuidar da doadora. A 2.ª Ré e o 3º Réu sabiam da incapacidade evidente da Interveniente de perceber os atos que a escritura contém;
-- em 22/09/2022, o aqui Autor deu início ao processo de acompanhamento de maior da Interveniente, que corre termos, no qual foi apresentada contestação em nome desta, pela qual o Autor tomou conhecimento da doação. Nesses autos, o perito concluiu que a Interveniente não apresenta globalmente capacidade para gerir o património e carece de capacidade para testar, mas sabe gerir dinheiro de bolso diário em pequenas quantidades e fazer o pagamento de despesas e disposições de bens de pequena importância.
Os Réus apresentaram contestações, defendendo-se por impugnação e excecionando a ilegitimidade ativa e a caducidade.
Foi proferida decisão que julgou improcedente o incidente de intervenção principal provocada deduzida pelo Autor e julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa do Autor e absolveu os Réus da instância.

É desta decisão que o apelante recorre, com as seguintes
conclusões:
“I - A legitimidade do Recorrente para interpor a presente ação de anulação da doação está claramente consagrada no artigo 316.º do Código de Processo Civil (CPC).
II - O Recorrente, na qualidade de irmão da doadora, possui um interesse legítimo e direto no caso, visto que a sua participação visa assegurar a proteção dos bens patrimoniais da doadora, que, em razão da sua vulnerabilidade, se encontra suscetível a riscos de manipulação da sua vontade.
III - O Recorrente atua como defensor da integridade do património da doadora, especialmente tendo em conta a possibilidade de que a sua vontade tenha sido indevidamente influenciada ou distorcida, em virtude da nomeação da Ré como acompanhante da doação.
IV - A atuação do Recorrente, ao questionar a validade da doação e a nomeação da Ré, encontra respaldo na legitimidade prevista na legislação processual, sendo essencial para garantir que os interesses da doadora sejam devidamente respeitados.
Da Imparcialidade na Função de Acompanhante
V - A nomeação da Ré como acompanhante da doadora merece ser cuidadosamente analisada, dado que a função de acompanhante visa assegurar que o ato de doação seja realizado de forma transparente, livre de pressões externas e em conformidade com os reais desejos do doador.
VI - A jurisprudência e a doutrina civilista ressaltam que a pessoa nomeada como acompanhante não pode ter qualquer interesse no bem doado, a fim de garantir a imparcialidade do processo de doação.
VII - No presente caso, a Ré, como futura beneficiária do bem doado, possui um interesse material direto no ato de doação, o que compromete a sua imparcialidade.
VIII - A sua nomeação como acompanhante pode comprometer a legitimidade do processo, uma vez que poderá influenciar de forma inadequada a vontade da doadora.
IX - A nomeação de uma pessoa com interesse pessoal no resultado do ato de doação é, portanto, passível de questionamento, pois pode comprometer a equidade e a boa-fé do processo.
X - O Recorrente busca assegurar que a doadora tenha a devida proteção patrimonial e que a doação seja realizada de forma justa, sem pressões externas ou distorções.
Da Necessidade de Proteção da Doadora e da Imparcialidade do Processo
XI - O processo de doação, sendo um ato de liberalidade, exige que sejam respeitados os princípios da boa-fé e da transparência, que assegurem a verdadeira vontade do doador.
XII - A imparcialidade das partes envolvidas é crucial para garantir a validade e a legitimidade da doação.
XIII - O artigo 935.º do Código Civil exige que a doação seja realizada sem qualquer coação ou distorção da vontade do doador, sendo necessário que o ato seja conduzido por pessoas imparciais.
22 XIV - A nomeação de alguém com interesse material direto, como a Ré, como acompanhante compromete a imparcialidade do processo e pode resultar na manipulação da vontade da doadora.
XV - Ao questionar a nomeação da Ré, o Recorrente busca garantir que o processo de doação seja conduzido de forma legítima, respeitando a vontade livre e consciente da doadora.
XVI - A nomeação sem o devido escrutínio judicial comprometeria os princípios fundamentais do direito das doações, que exigem que o ato seja transparente e que o património da doadora seja adequadamente protegido.
XVII - O Recorrente, ao questionar tal nomeação, não age apenas em benefício próprio, mas como defensor da justiça material e da integridade do ato de doação.
Do Incidente de Intervenção Principal Provocada e da Inclusão da Doadora no Processo
XVIII - A decisão de indeferir o incidente de intervenção principal provocada, que visava convocar a doadora como parte no processo, prejudicou a adequada instrução do caso.
XIX - A presença da doadora como parte assistida ou a nomeação de um curador provisório seriam medidas essenciais para garantir que os seus direitos patrimoniais fossem devidamente protegidos.
XX - A doadora, em situação de vulnerabilidade, necessita de representação legal adequada, e a sua ausência no processo impede que a questão da legítima intenção da doadora e a possível manipulação de sua vontade sejam devidamente investigadas.
XX - O Recorrente, ao solicitar a intervenção da doadora, visava assegurar que a sua participação ativa no processo garantisse a preservação dos seus direitos patrimoniais, evitando que qualquer decisão tomada sem a sua presença ou sem a sua devida representação pudesse prejudicar a sua posição jurídica.
XXII - A decisão de não permitir a intervenção da doadora num processo que envolve a sua doação e os seus bens patrimoniais compromete a equidade do julgamento, visto que a análise da situação patrimonial da doadora fica incompleta, prejudicando o andamento e a resolução adequada da causa.
Da Suspensão da Instância em Razão da Incerteza da Legitimidade do Recorrente
XXIII - O artigo 272.º do Código de Processo Civil (CPC) prevê a possibilidade de suspensão da instância quando existirem questões prévias essenciais a serem resolvidas antes do prosseguimento do processo.
XXIV - No caso em questão, a dúvida quanto à legitimidade do Recorrente para representar a doadora numa ação de anulação da doação justifica a suspensão do processo até que essa questão seja devidamente resolvida.
XXV - A suspensão da instância é uma medida prudente, pois permite evitar que o tribunal continue a atuar num processo que poderá ser prejudicado ou até mesmo anulado, caso a legitimidade do Recorrente seja posteriormente contestada ou invalidada.
XXVI - A suspensão contribui para a economia processual, uma vez que impede que o tribunal se debruce sobre um caso que, no futuro, poderá ser considerado inepto, além de contribuir para a celeridade processual, evitando atos processuais desnecessários ou inúteis caso a legitimidade do Recorrente seja questionada e não admitida.
Da Garantia de Tutela Judicial Efetiva a Pessoas Incapazes
XXVII - A questão da tutela judicial efetiva das pessoas incapazes é central no presente caso.
XXVIII - O ordenamento jurídico português, à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Constituição da República Portuguesa, assegura que as pessoas em situação de incapacidade ou vulnerabilidade tenham os seus direitos devidamente protegidos.
XXIX - A doadora, ao ser colocada numa posição vulnerável devido à sua condição, necessita de uma representação legal adequada para garantir que os seus direitos patrimoniais sejam protegidos.
XXX - O incidente de intervenção principal provocada, ao ser indeferido, desconsidera essa necessidade de representação e proteção legal, o que pode resultar em decisões prejudiciais à doadora.
XXXI - A suspensão da instância, até que se resolva a questão da legítima representação da doadora, é, portanto, uma medida essencial para garantir que ela tenha a devida tutela judicial efetiva.
XXXII - O Recorrente, ao buscar garantir a inclusão da doadora no processo, age em conformidade com o princípio da proteção das pessoas vulneráveis, assegurando que os seus direitos sejam preservados de forma justa.
Do Princípio da Verdade Material e da Justiça Substantiva
XXXIII - O princípio da verdade material, consagrado no artigo 6.º do CPC, exige que o juiz do caso investigue profundamente os factos, para que a decisão final esteja em conformidade com a realidade.
XXXIV - No presente caso, a suspensão da instância até que a questão da legitimidade do Recorrente seja resolvida permite que o tribunal só tome uma decisão após a apuração da verdade material.
XXXV - Agir de outra forma, sem ter a certeza de que o Recorrente tem legitimidade para agir em nome da doadora, pode resultar em decisões prejudiciais e injustiças substanciais, uma vez que a resolução do caso poderá ser baseada em premissas incorretas ou incompletas.
XXXVI - O respeito pela verdade material exige que todas as questões preliminares sejam resolvidas antes da decisão de mérito, garantindo que a decisão final seja justa, adequada e conforme aos direitos das partes envolvidas.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deverá a sentença recorrida revogada e substituída por outra que
a) Reconheça a legitimidade ativa do Recorrente para intentar a ação de anulação e ordene o prosseguimento dos autos para apreciação do mérito da ação
b) Que admita o incidente de intervenção principal provocada, com chamamento da doadora assistida ou com curador provisório
c) Ou, subsidiariamente, determine a suspensão da instância até decisão na ação de acompanhamento”

Os Recorridos responderam, apresentando as seguintes
conclusões:
“1- Nos presentes autos o recorrente pretende a anulação de uma escritura de doacção e mandato feita pela sua irmã e em que são beneficiários os aqui recorrentes
2- Para tal, alega que a mesma padece de uma incapacidade
3- E funda a sua legitimidade para invocar a nulidade da referida escritura no facto de ser irmão da doadora
4- Os aqui recorridos contestaram a presente acção e entre o mais invocaram a ilegitimidade do recorrente em propor a presente acção
5- O tribunal a quo proferiu despacho em que julgou verificada a excepção de ilegitimidade, decidindo que o recorrente não é parte legitima
6- O recorrente não se conformou com o despacho proferido e interpôs recurso
7- Em nosso entender o recurso interposto carece de fundamento legal, pois nenhum erro se pode apontar ao despacho recorrido
8- O recorrente funda a sua pretensão numa alegada incapacidade da sua irmã
9- Acontece que o processo de maior acompanhado, que o recorrente deu entrada, ainda se encontra pendente, não tendo sido proferida qualquer decisão
10- Mais ainda, um dos peritos que avaliou a doadora no seu relatório diz mesmo que a doadora “…compreendia o significado e alcance de uma doacção sujeita à condição de cuidar de si…”
11- Por outro lado, para dizer que a doutrina e a jurisprudência estão do lado da posição do recorrente, este nas suas alegações quer fazer crer que está apenas e unicamente a ser um irmão protetor
12- Para tal diz que “…a doadora não tem ascendentes ou descendentes vivos, sendo o recorrente o seu único irmão...”
13- Afirmação totalmente falsa, já que a doadora tem ainda quatro irmãos vivos, onde se inclui o recorrente
14- Diz ainda, que tem “um vínculo afetivo, familiar e jurídico suficiente para intervir em defesa do incapaz”
15- Mais uma vez, uma afirmação completamente falsa
16- O recorrente é sim irmão da doadora, mas não mantém qualquer relação com a mesma, tendo estado mais de 20 anos sem manter qualquer tipo de contacto com a mesma
17- Nem mesmo em momentos difíceis para a irmã, como foi a morte do marido
18- Isto mesmo se comprova pelo facto de ser a própria irmã a dizer que quer continuar a ser cuidada e acompanhada pela aqui recorrida, conforme consta dos autos de maior acompanhado em curso
19- Pelo que, julgamos aqui ter demonstrado que nenhuma ligação afetiva existe entre o recorrente e a sua irmã, muito menos que sustente este seu pedido
20- Por outro lado, não podemos afastar o que nos diz a lei, nomeadamente o art. 287 nº 1 do Código Civil, por remissão do art. 154 nº 3, desse mesmo código, que nos diz: “1. Só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece…”
21- E aqui a doutrina e a jurisprudência são claras ao dizer: “as anulabilidades só podem ser invocadas por determinadas pessoas e não por quaisquer interessados. A A. não integra o elenco de pessoas com legitimidade para suscitar a invalidade do negócio, celebrado pela doadora, com fundamento em alegada incapacidade acidental. De facto, ainda que seja herdeira legitimária não tem, em vida da doadora, ter mais que uma expectativa do direito, não podendo impedir aquela de dispor dos seus bens como melhor lhe aprouver.” (in acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo nº 282/13.8TVLSB.L1-6)
22- Ou ainda, o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 12-12-2013, que a este propósito nos diz: “A herdeira legitimária não tem, em vida da doadora, mais que meras expectativas de suceder ao vendedor, pelo que não têm legitimidade para pedir a anulabilidade de doação, invocando a incapacidade acidental da doadora, já que a anulabilidade foi instituída para protecção do incapacitado ou daquele que foi explorado pela sua situação de dependência ou estado mental. 3. Se for decretada a interdição é possível vir a invalidar, nessa altura, actos anteriores, praticados pela (futura) interdita num momento em que a sua incapacidade se não encontrava juridicamente reconhecida, mas a iniciativa caberá, então, à pessoa que, sendo nomeada tutora, passa a representar o incapaz.”
23- Assim, o recorrente, como irmão da doadora, estando esta viva e não tendo sido decretada qualquer medida de acompanhamento da mesma, tem somente uma mera expectativa de vir a herdar
24- Expectativa esta que a lei, a doutrina e a jurisprudência entendem não ser suficiente para legitimar um irmão, no caso o aqui recorrente, a intentar uma acção de anulação como a dos autos
25- Assim, bem andou o tribunal a quo ao julgar que o recorrente não tinha legitimidade para propor os presentes autos de anulação.”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Face às conclusões do recurso, importa apreciar, por ordem lógica:
- Se o Autor é parte legítima para pedir a anulação da doação outorgada pela sua irmã com fundamento na incapacidade acidental;
- Em caso afirmativo, se devia ter sido admitida a intervenção principal ativa desta;
- se se devia suspender a instância.

III- Fundamentação de Facto

Os factos relevantes para a decisão são todos de natureza processual e já se encontram elencados no Relatório.

III- Fundamentação de Direito

O Autor intentou ação em que pede a anulação de uma doação outorgada pela sua irmã, por entender que a mesma não tem capacidade para consentir nesse ato.
Funda em primeiro lugar a sua legitimidade no facto de ser o parente mais próximo desta, que não tem ascendentes, descentes ou cônjuges vivos, o que lhe atribui um interesse pessoal e direto na salvaguarda dos seus interesses patrimoniais. Invoca também ter interesse na defesa da sua irmã, por entender que é incapaz.

-Do pressuposto processual da legitimidade
A legitimidade é um pressuposto processual relativo às partes. Está ligado ao interesse substantivo, que decorre da posição da parte relativamente à relação jurídica do litígio.
Está já consagrada na lei a tese subjetivista, que defende que a legitimidade processual deve ser apurada em função da relação controvertida, tal como configurada unicamente pelo autor na petição inicial, como decorre do nº 3 do artigo 30º do Código de Processo Civil.
E assim, nos termos dos nºs 1 e 3 deste artigo, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer; estes têm interesse direto na causa quando são sujeitos da relação material controvertida tal como ela é configurada pelo autor.
A ilegitimidade é uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que impede o conhecimento do mérito da causa e determina o indeferimento liminar, nos casos em que este é admissível e a absolvição dos réus da instância nos demais casos (artigos 278º, nº. 1, alín. d), 576º, nºs. 1 e 2, 577º, alín. e) e 578º, todos do Código de Processo Civil).
A legitimidade processual é uma aptidão para o processo, para certa ação, para se estar em juízo, face ao objeto processual nos termos em que foi construído pelo Autor e distingue-se da legitimidade substantiva, a qual tem que ver com a titularidade do direito ou de uma situação jurídica que permita o seu exercício e que respeita, já, ao mérito da causa.
Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª edição, pag. 129, esclarece de forma límpida a noção de legitimidade processual: “Ser parte legítima na ação é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida”.
A legitimidade é aferida em função da relação jurídica objeto da ação, tendo em conta os fundamentos da ação e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos, nos termos em que foi alegada pelo Autor.
A legitimidade ativa cabe ao titular da pretensão afirmada na ação e a passiva ao titular do interesse que se opõe a ação.
Assim, tem legitimidade processual direta para propor a ação (legitimidade processual direta ativa) quem materialmente pode dispor em processo da situação que será objeto dos efeitos da decisão final.
Pode considerar-se a legitimidade “um poder para dispor em processo da situação jurídica nele feita valer” (Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, ao artigo 30.º), visto que há casos em que, por força da ressalva contante do n.º 3 do artigo 30.º do Código de Processo Civil, o sujeito que pode dispor da situação em processo não é o mesmo que o poderia fazer materialmente.
Esta ressalva engloba hipóteses em que, excecionalmente, o legislador reconhece legitimidade a quem não é sujeito da relação material controvertida submetida à apreciação do tribunal. Pretende abarcar-se as situações em que terceiros são profundamente interessados na definição da relação jurídica de outrem, como ocorre nos casos da ação de declaração de nulidade dos negócios jurídicos, na ação sub-rogatória prevista no artigo 606º do Código Civil e na ação popular.
É a chamada legitimidade indireta. Para que se apure a legitimidade nestes casos em que a mesma não decorre da titularidade da situação objetiva (nomeadamente quando quem intenta a ação age em seu nome e no seu interesse, mas sobre relação jurídica de que não é sujeito) é necessário que se encontre uma atribuição legal que a suporte: cf acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no processo n.º 9814/03.9TVLSB.L1-7, de 17 de janeiro de 2012, e no mesmo sentido Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, p. 116.
Com efeito, não basta que nas perspetivas das partes exista um ganho ou uma perda, é necessário que esse interesse tenha uma proteção do sistema jurídico. De onde resulta manifesto que o interesse da parte na causa tem que ser um interesse jurídico, não se bastando com razões de ordem moral, sentimental, cultural, benemérita ou social não tutelados pela lei com a previsão de normas específicas que atribuam ao terceiro legitimidade para a sua defesa, como resulta do artigo 31º do Código de Processo Civil.

Isto posto, concretizemos ainda quanto à
- Da legitimidade dos sucessíveis
O Autor intentou ação em que pede a anulação de uma doação outorgada pela sua irmã, por entender que a mesma não tem capacidade para consentir nesse ato. Funda, num primeiro momento, a sua legitimidade no facto de ser o parente mais próximo da sua irmã, que não tem ascendentes, descentes ou cônjuge vivos e ter por isso um interesse pessoal e direto na salvaguarda dos interesses patrimoniais da sua parente.
Parece, pois, fundar-se na sua qualidade de sucessível para validar posição especial que lhe permita intervir no âmbito do contrato que transmitiu bem da titularidade de terceira, sua irmã.
Atualmente tem prevalecido a ideia que os herdeiros legitimários não têm um direito subjetivo à quota parte que constituiu a sua porção legitimária, têm, sim, uma mera expectativa juridicamente titulada à sua quota na legítima e que esta , em vida do “de cuius”, é carecida de meio de tutela ou conservação, com exceção do disposto no artigo 242.º do Código Civil (legitimidade para arguir a simulação) e a inoficiosidade (cf acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa proferidos no processo nº 572/18.3T8OER.L1-2, em 17 Junho 2021 que também cita o acórdão no processo nº. 0062891, de 15/12/1992)
Aos meros sucessíveis, não legitimários, não são concedidos poderes que permitam que de alguma forma possam defender o património daquele a quem podem suceder por morte.
O Autor nem sequer é herdeiro legitimário, embora seja herdeiro legítimo (artigo 2133.º do Código Civil), pelo que não lhe é garantida uma participação mínima na herança (artigos 2156.º e 2157.º do Código Civil).

- Da legitimidade na incapacidade acidental
A incapacidade acidental verifica-se quando pessoa realiza um ato em momento em que está incapaz de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade e tem como consequência a anulabilidade desse ato, desde que seja conhecida do declaratário ou notória, como decorre do artigo 257.º do Código Civil.
O regime desta encontra-se previsto no artigo 287.º do Código Civil:
- têm legitimidade para pedir a anulação as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece. Face ao que se explanou supra, o direito à anulação pode ser exercida pelo incapaz ou por quem o represente, não por qualquer pessoa com interesse nesta, como ocorre com a nulidade.
- dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento, embora se o negócio não estiver cumprido possa ser arguida sem dependência de prazo.

Concretização
O Autor para justificar o seu interesse na anulação da doação outorgada pela sua irmã, com fundamento na sua incapacidade, invoca em primeiro lugar um interesse pessoal e direto no património daquela.
No entanto, não se pode atribuir legitimidade direta do Autor para esta ação, porquanto não se encontra uma situação de objetiva utilidade ou vantagem, visto que a sua esfera jurídica não é diretamente atingida pela decisão que venha a ser proferida, não é titular do interesse protegido. Vimos já que não é herdeiro legitimário, mas mesmo que o fosse não existia norma que lhe concedesse poderes para intervir no património do de cuius com fundamento na expetativa de dele vir a herdar, com exceção de duas situações que aqui também se não verificam: a inoficiosidade e a anulação de atos simulados com vista a prejudicar herdeiros legitimários.
O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de fevereiro de 2023, no processo 5148/22.8T8CBR.C1, ao contrário do que afirma o Recorrente, salienta que: “A lei de processo é terminante em declarar que a legitimidade activa deve ser aferida através de um interesse em demandar, pelo que o que releva para a aferição desse interesse é a relação - directa - entre a parte e o objecto litigioso (art.° 30.°, n.° 1, do CPC). De harmonia com a orientação que se tem por correcta, o interesse em demandar não é suficiente para atribuir legitimidade a uma parte processual: é ainda indispensável que essa parte possa produzir todos os efeitos materiais que podem resultar da decisão de procedência da acção, ou seja que tenha legitimidade material para produzir esses efeitos.”
Por outro lado, o Recorrente salienta que tem interesse jurídico autónomo na proteção de um terceiro vulnerável, que se encontra juridicamente incapacitado ou em vias de ser reconhecido como tal em sede de processo de acompanhamento; este é um interesse moral e de importante valor social e humanitário.
Essa situação encontra-se prevista na lei, no artigo 139.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que permite no âmbito do processo de acompanhamento, em qualquer altura, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.
Corre termos processo especial destinado a zelar pelos interesses da irmã do Requerido (caso a mesma apresente efetivamente incapacidade para reger importantes aspetos da sua vida), e nesse processo existe meio para tomar providências urgentes quanto aos bens que se mostrem ou tornem necessárias com urgência.
As demais providências ou ações poderão aguardar pela nomeação, nesse processo, de pessoa que se encarregue de a acompanhar ou de a representar e zelar pelos seus interesses.
Visto que existem meios próprios para a defesa das pessoas incapacitadas ou necessitadas de acompanhamento, desenhados de forma a defendê-las, sem permitir ingerências abusivas, a lei não permite que um terceiro, sem poderes de representação, venha em processo autónomo, fora da sede em que se defendem os interesses do incapacitado, com fundamento na vontade de o proteger, intentar ação para tal.
O Recorrente defende ainda que como a Ré é uma das pessoas que podem vir a ser nomeadas acompanhantes nesse processo, ocorrerá um claro conflito de interesses, impondo-se a admissão da legitimidade de terceiros para agir em seu interesse. Ora, dado que a doação em causa já ocorreu e é por isso prévia à nomeação do(s) acompanhante(s) e/ou representante(s), não se vê como nessa escolha não se terá em conta essa doação e não se pondere se há ou não que lhe dar relevância.
 Por outro lado, não é certo quem vai ser nomeado acompanhante da irmã do Requerido, não se verificando atualmente a hipótese em que o Recorrente funda a sua legitimidade.
A irmã do Autor, mesmo que incapaz, não está, pois, desprovida de proteção e corre termos processo em que se tutelam efetivamente os seus direitos, sem que seja real a situação imaginada pelo Recorrente.
Concordamos que “o ordenamento jurídico português não pode admitir que a proteção dos incapazes fique refém de formalismos ou de lacunas de representação, sobretudo quando estas se traduzem na inércia ou no aproveitamento de terceiros com interesses contrários àqueles que a lei visa proteger”, mas o invocado pelo Recorrente não nos leva à conclusão que se verifique tal circunstância, visto que o mesmo alega que corre termos processo em que se cuida da proteção da incapaz, sede própria para verificar quem deve ser nomeado acompanhante e no caso de ocorrer algum conflito de interesses onde pode ser levantada a questão de quem deve ser a pessoa adequada para a representar nos mais diversos assuntos.
Não é necessário fugir às normais regras da legitimidade para conceder proteção direta à pessoa a que se atribui a incapacidade de perceber e querer o ato de doação que realizou. É no processo de acompanhamento que se deve decidir se se deve atribuir à Ré a posição de acompanhante, representante ou assistente da doadora, e não nestes autos que, encapotadamente, se deve permitir que o Autor aja como representante daquela, permitindo-lhe que espontaneamente anule os atos jurídicos praticados pela sua irmã com fundamento numa incapacidade (ainda?) não verificada.
Atribuir ao Recorrente legitimidade para interpor a ação de anulação da doação quando se encontra em curso ação destinada exclusivamente à tutela dos interesses da irmã, com o apuramento da sua eventual incapacidade e escolha do(s) competente(s) acompanhante(s) e/ou representante(s) seria desvirtuar completamente os fins do processo de acompanhamento, não tutelar os interesses desta, porque se não mostram desprotegidos.
Verificada a ilegitimidade (singular) do Recorrente para intentar a ação, torna-se patente que carece de sentido proceder ao chamamento da verdadeira titular do direito: fazê-lo seria desvirtuar a função que este pressuposto desempenha no processo, permitindo que quem não tem um interesse tutelado despolete a discussão de uma situação jurídica sem (ou contra) a vontade do titular do direito.
Enfim, neste caso, nada aconselha um alargamento das normais regras da legitimidade, visto que a irmã do Autor está a ser sujeita a processo destinado a zelar por todos os seus interesses, onde, caso se mostre útil para a mesma, pode ser nomeado representante adequado para proteger o seu património e intentar ações.

- Da suspensão da instância
Pretende ainda o Recorrente que se suspenda a instância caso se entenda que a decisão depende do que se vier a decidir no processo de maior acompanhado.
Nos termos do artigo 272º nº 1 a 3 do Código de Processo Civil, norma que versa sobre situação em que foram já intentados dois processos, ambos de natureza civil, para que o tribunal ordene a suspensão da causa com fundamento em causa prejudicial, é mister que:
- a causa a suspender esteja dependente do julgamento de outra;
- que a ação prejudicial esteja já proposta;
- não haja fundadas razões para crer que a ação prejudicial foi intentada apenas para obter a suspensão;
- que a causa dependente não esteja tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
A suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial tem em vista a obtenção de decisões mais uniformes, com valor na segurança e certezas jurídicas, bem como na economia de meios e no prestígio dos tribunais. Mas tem como reverso, o que a contrabalança, a necessidade de evitar processos demorados e logo pouco eficazes, pretendendo-se obter uma justiça tempestiva. Pesam, pois, também, critérios de utilidade e conveniência processual, tendo em vista a melhor composição do litígio, ponderando-se se os inconvenientes processuais que a suspensão de instância produzir são superados pelos objetivos que se cumprem com tal suspensão.
Pretende-se a economia e a coerência dos julgamentos e por isso pode dizer-se que uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial se esteja a apreciar uma questão cuja resolução, por si só, possa modificar uma situação jurídica importante para a decisão desse pleito.
"Uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda" - José Alberto dos Reis - Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, Coimbra, 1946, pág. 268. Ou, numa outra perspetiva, «quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda»; Manuel de Andrade - Lições de Processo Civil, págs. 491, 492.
No entanto do que expusemos resulta que não se entende que a decisão sobre a atual legitimidade do ora Recorrente para intentar a presente ação dependa do que venha a ser decidido no processo de acompanhamento, mas que é nesse processo que se deve decidir quem deve representar a maior se dele for necessitada, se a existência da doação deve pesar na nomeação do acompanhante ou se deve ser nomeado um acompanhante ou representante apenas para matérias relacionadas com essa doação.
Carece, pois, de sentido que se suspenda este processo para o caso de não se concordar com o que venha a ser decidido no processo de acompanhamento de maior, concedendo-se legitimidade para representar ou substituir-se à incapaz a pessoa que ali não venha a ser considerada hábil para esse efeito.

Termos em que se conclui que não é de suspender a instância.

V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, julga-se improcedente o recurso e em consequência mantém-se a decisão recorrida, assim como se não suspende a instância.
Custas pelo Recorrente (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Guimarães,

Sandra Melo
João Paulo Dias Pereira
Anizabel Sousa Pereira