Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE CÁLCULO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 10/31/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - O ponto i) da alínea b) do n.º 3 do art. 239 do CIRE, ao excluir do rendimento disponível que o insolvente deve entregar ao fiduciário, o valor que for considerado razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, tem subjacente o principio constitucional da dignidade da pessoa humana. II - Nessa medida, tal valor deve ter como referencial mínimo a Remuneração Mensal Mínima Garantida, que contém em si a ideia de que é o mínimo considerado necessário para uma sobrevivência digna. III - Ao invés do que sucede com as prestações periódicas salariais ou pensionistas, os subsídios de férias e de natal não se destinam a garantir a subsistência mínima ou condigna do devedor, sendo antes prestações complementares ou suplementares dos salários e das pensões. IV - Deste modo, a Remuneração Mensal Mínima Garantida, enquanto referencial mínimo para estabelecer o rendimento indisponível do devedor, tem como referência o mês (e, portanto, 12 meses por ano, por ser o número de meses do ano civil) e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por 14 daquele valor. V - Sem prejuízo, uma vez definido o valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, sempre que o montante dos rendimentos efetivamente recebido pelo insolvente não o atinja, deve fazer-se uma ponderação corretiva, considerando-se qualquer acréscimo de rendimentos posterior, como sejam os subsídios de férias ou de Natal, de modo a encontrar-se um constante e consistente “sustento minimamente digno.” | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. 1) No dia 9 de agosto de 2023, AA apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante, alegando, em síntese, que: tem dívidas cujo montante total ascende a € 117 890,68; tem como único rendimento o salário que lhe advém do exercício da atividade de assistente operacional, correspondente ao mínimo nacional fixado para a função pública; vive em casa do seu filho, contribuindo mensalmente com € 100,00 para as despesas; devido a problemas de saúde, despende mensalmente € 140,00 em médicos e medicamentos; encontra-se, assim, impossibilitado de pagar as suas dívidas. Por sentença de 22 de agosto de 2023, foi declarada a insolvência do Requerente e nomeado administrador da insolvência. Na sequência, o administrador da insolvência apresentou o relatório previsto no art. 155 do CIRE, no qual emitiu parecer favorável ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, propondo a fixação do rendimento disponível do Requerente, a entregar à fidúcia, no montante que exceder “um ordenando mínimo nacional da função pública.” Através de requerimento apresentado a 16 de outubro de 2023, o insolvente pronunciou-se no sentido da fixação do rendimento disponível no montante que anualmente exceder o “salário mínimo nacional para a função pública reportado a 14 meses.” No dia 17 de janeiro de 2024, foi proferido despacho a determinar o encerramento do processo de insolvência e a notificação do Requerente para juntar documentos demonstrativos da sua situação económica. Na sequência, o requerente apresentou documentos e, por despacho de 30 de maio de 2024, foi proferido despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nele se estabelecendo a obrigação do Requerente, no período de cessão, entregar ao fiduciário “o respetivo rendimento disponível”, sendo este todo o que por si for auferido, “com ressalva de uma quantia equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida prevista para a função pública, quantia que fica reservada para o devedor”, a qual deverá ser calculada “numa base mensal e por 12 meses.” *** 2) Inconformado com a parte do despacho de 30 de maio de 2024 que fixou o montante do rendimento disponível, o Requerente (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):“PRIMEIRA: Vem o presente recurso interposto do douto despacho inicial de exoneração do passivo restante proferido a 30 de maio de 2024 que determinou que os rendimentos a atender para efeitos de cessão do rendimento disponível são por referência a cada um dos meses, num total de 12, sendo que os montantes relativos aos subsídios de natal e de férias devem ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência. SEGUNDA: O Tribunal a quo validou, assim, o entendimento que “deverão os rendimentos a atender ser calculados numa base mensal [um salário mínimo nacional da função pública] e por 12 meses”, sendo que os montantes relativos aos subsídios de natal e de férias devem ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência; ao contrário do que defende o Recorrente que considera que deverá ser fixado para o seu sustento minimamente digno o valor correspondente a um salário mínimo nacional (da função pública), reportado a 14 meses, e que para efeitos do cômputo do rendimento disponível deverá ser validado o critério que tem por base o rendimento médio anual. TERCEIRA: Ora, salvo o devido respeito, o valor fixado ao Insolvente relativo ao rendimento indisponível (1 SMN da função pública * 12 meses [e não 14 meses, conforme defende o Recorrente]) não parece estar alinhado com a mais recente jurisprudência, além do que tal rendimento se afigura insuficiente, nomeadamente quando efetuada a confrontação com a sua situação pessoal e as despesas inerentes a qualquer agregado familiar, conjugado com o conceito de “sustento minimamente digno”. QUARTA: A remuneração mínima garantida, que corresponde ao mínimo de subsistência com dignidade, inclui a remuneração mensal e os subsídios de férias e de Natal, pelo que o cálculo do montante indisponível não pode ser inferior à remuneração mínima anual (da função pública) dividida por doze, segundo a fórmula: rmmg (da função pública) x 14 / 12 meses. Vejamos: QUINTA: O artigo 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – doravante designado por CIRE – estatui que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ano encerramento do processo; e, nos termos do artigo 237.º do CIRE, a concessão efetiva da exoneração do passivo restante pressupõe, além do mais, que o juiz profira despacho inicial declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º do CIRE durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência. SEXTA: Nesse período que agora se encontra fixado em 3 (três) anos, designado período de cessão, o insolvente tem entregar ao fiduciário, para satisfação dos direitos dos credores e encargos do processo, o seu rendimento disponível, integrado por todos os recursos patrimoniais que aufira, a qualquer título, exceto os créditos previstos que tenham sido cedidos a terceiro e o que seja razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, com o limite do triplo da remuneração mínima mensal garantida (RMMG), para o exercício da sua atividade profissional e para outras despesas que, a requerimento do devedor, venham a ser consideradas pelo juiz, no próprio despacho inicial ou em momento ulterior (artigo 239.º do CIRE). SÉTIMA: Nesse contexto, cabe ao Tribunal, logo no despacho inicial, definir “o que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.” OITAVA: Como se sabe, o conceito de “sustento minimamente digno” é um conceito aberto, que procede do reconhecimento do princípio da dignidade humana, de sagração constitucional (artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa), a partir do qual se afere o montante pecuniário indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da concreta situação do devedor, numa efetiva ponderação casuística do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos disponíveis. Se por um lado haverá que salvaguardar aquilo que garanta o sustento minimamente digno do devedor, também haverá que ponderar que o sentido destas normas não é desresponsabilizar o devedor isentando-o de qualquer obrigação para com os credores. NONA: In casu, cumpre destacar o seguinte: o Recorrente nasceu no dia ../../1959, pelo que conta atualmente com 64 (sessenta e quatro) anos de idade, é divorciado, desempenha funções como “assistente operacional do 2.º e 3.º ciclo”, no Agrupamento de ..., sendo que fruto do seu trabalho aufere, mensalmente, o salário mínimo nacional para a função pública, que ascende, atualmente, à quantia mensal bruta de 821,83€ (ano de 2024), vive em casa do seu filho, e contribui para as despesas que decorrem da sua estadia, designadamente, eletricidade, gás e água, que totalizam um valor mensal médio de 100,00€ (cem euros), a que acrescem as demais despesas com a saúde, alimentação e vestuário. Além disso, a sua condição de saúde acarreta uma despesa mensal para o Insolvente, em média, no valor de 140,00€ (cento e quarenta euros). A que acresce, igualmente, as suas despesas com alimentação, despesas com calçado, vestuário, telefone e outras despesas essenciais, que absorvem praticamente o que resto do seu salário. DÉCIMA: Foi fixado ao insolvente, ora Recorrente, o valor mensal de 1 SMN previsto para a função pública, por 12 meses, como rendimento indisponível. Pretende o Recorrente lhe seja fixado 1 SMN previsto para a função pública, por 14 meses, sendo que o cálculo do rendimento indisponível deverá ser aferido numa base anual. DÉCIMA PRIMEIRA: O Recorrente não é alheio à divergência jurisprudencial existente em torno da questão de se saber se os montantes relativos aos subsídios de natal e de férias devem ser incluídos (ou não) no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência; assim como não é alheio à discussão existente em torno da forma de cálculo quanto ao apuramento do rendimento indisponível (numa base mensal ou anual). DÉCIMA SEGUNDA: Acontece que, salvo o devido respeito, que, reitere-se, é muito, o valor fixado relativo ao rendimento indisponível ao Insolvente afigura-se insuficiente, nomeadamente quando efetuada a confrontação com a situação pessoal do insolvente e com a concretização do conceito de “sustento minimamente digno”. DÉCIMA TERCEIRA: Desde logo, não pode deixar de se apreciar concretamente que: o insolvente, reitere-se, tem 64 anos de idade; dentro de pouco tempo irá ascender à posição de reformado; nessa ocasião, já não estará em condições de reentrar no mercado de trabalho; nesta idade, as despesas de saúde têm tanto de inesperado como de oneroso; pelo que tem de ser salvaguardada “uma almofada financeira” mínima para prover a estas necessidades. DÉCIMA QUARTA: Por outro lado, não se pode olvidar que o critério na fixação do rendimento indisponível deve ser o do “sustento minimamente digno do(s) devedor(es).” Considera, assim, o Recorrente, cujo entendimento parece estar alinhado com a mais recente jurisprudência, que, sendo a Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG) recebida 14 vezes no ano, pode afirmar-se que o seu valor anual é constituído pelo montante mensal multiplicado por 14 (artigos 263.º e 264.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Trabalho), e, portanto, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual. DÉCIMA QUINTA: Tal interpretação adequa-se ao conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual (RMNA) a que alude o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 158/2006, de 8 de agosto, que define “o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses”. Na verdade, os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um Natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é, assim, constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que a RMMG garantida mensalmente corresponde à àquela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12. DÉCIMA SEXTA: O mesmo é dizer que este valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador (neste sentido cf. Ac. RP de 22-05-2019, processo 1756/16.4T8STS-D.P1; RL de 27-02-2018, processo 1809/17.1T8BRR.L1-7; RL de 13-03-2018, processo 92/17.3T8LSB-B.L1; RL de 24-04-2018, processo 3553/16.8TABRR-E.L, todos disponíveis em www.dgsi.pt). DÉCIMA SÉTIMA: Abonam, assim, a favor desta orientação, os seguintes argumentos, dos quais o Recorrente comunga: 1. considera-se como retribuição a prestação a que nos termos do contrato (das normas que o regem ou dos usos) o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho (artigo 258.º do Código do Trabalho); 2. O trabalhador tem direito, anualmente, a tal contrapartida mensal fixada vezes 14 (incluindo os subsídios de férias e natal – artigos 263.º, 264.º e 273.º, todos do Código do Trabalho – respeitando este último à garantia aos trabalhadores de uma retribuição mínima mensal; 3. estando consagrado na lei laboral o direito a 14 retribuições mensais durante um ano civil e presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º do CC), entende-se como correta a conclusão de que o legislador ao fixar o valor da remuneração mínima mensal garantida ao trabalhador – correspondente ao valor estritamente necessário para garantir a sua sobrevivência digna - levou em consideração o valor anual que o mesmo tem direito a auferir. O mesmo é dizer que são as 14 retribuições anuais no valor correspondente à RMMG que garantem o almejado mínimo indispensável ao sustento do trabalhador – devedor a que alude o artigo 239º nº 3 al. b) i).; 4. E que o legislador já noutras dimensões considerou as 14 retribuições como forma de cálculo para atribuição de outros direitos, nomeadamente subsídios de renda é o que o demonstra o DL 158/2006 que aprovou os regimes de determinação do rendimento anual bruto corrigido e a atribuição do subsídio de renda. DÉCIMA OITAVA: Efetivamente, as duas retribuições qualificadas como subsídios de férias e de natal foram levadas em conta pelo legislador na fixação do valor mensal retributivo, entendido como o mínimo indispensável ao sustento digno do trabalhador, ou seja na fixação da RMMG por referência ao cômputo anual da retribuição a que o trabalhador tem direito, multiplicado por 14 meses. O mesmo é dizer que o sustento minimamente digno do devedor a que alude o artigo 239.º, n.º, 3, al. b), i), do CIRE, é garantido pela retribuição correspondente à remuneração mínima mensal multiplicada por 14 vezes num ano. DÉCIMA NONA: Com efeito, e tal como afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de maio de 2019, esta posição parece ser aquela que melhor “quadra com a salvaguarda de uma existência condiga do devedor, acolhida pelo CIRE para a definição do sustento mínimo do devedor, e melhor cumpre as exigências constitucionais do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.” VIGÉSIMA: O Recorrente considera, assim, que lhe deverá ser fixado como rendimento indisponível, o montante correspondente ao valor de 1 (um) salário mínimo nacional da função pública, multiplicado por 14 meses num ano. Por outro lado, VIGÉSIMA PRIMEIRA: Outro dos aspetos que importa abordar é o método a considerar para efeito do cômputo do rendimento disponível, devendo também validar-se o entendimento que o critério a adotar é o que tem por base o rendimento médio anual, ou seja, no apuramento dos valores a ceder à fidúcia deverá tomar-se por base o rendimento anual, o qual é dividido pelo número de meses respetivo, assim solucionando disparidades como as que resultam do recebimento por duodécimos de prestações compensatórias como os subsídios de férias e de Natal. VIGÉSIMA SEGUNDA: Além disso, o cálculo anual – e não mês a mês – é, na modesta perspetiva do Recorrente, o critério mais justo e adequado para calcular o rendimento disponível para cessão, pois é aquele que pondera o rendimento global auferido pelo devedor em cada ano de cessão, e divide o valor global por 12 meses, verificando-se depois se se encontra ultrapassado o rendimento indisponível fixado, sob pena de, caso o devedor obtenha rendimentos esporádicos e de valores irregulares (por exemplo receba um valor elevado apenas duas vezes por ano), ver-se privado do rendimento necessário ao seu sustento nos restantes meses do ano. VIGÉSIMA TERCEIRA: Na verdade, em cada ano civil, podem ocorrer variações de rendimento de tal modo abissais que o princípio da sustentabilidade mínima do agregado familiar pode ficar seriamente comprometido, tornando vã a norma legal do artigo 239.º, n.º 3, al. b), subalínea i), do CIRE. VIGÉSIMA QUARTA: Tratando-se de matéria em que a jurisprudência também não é uniforme, o Recorrente comunga do entendimento perfilhado nos Acórdãos do TRP, de 22-05-2019, proc. 1756/16.4T8STS-D.P1 e de 01-03-2021, proc. 1784/19.8T8STS.P1; do TRL, de 22-09-2020, proc. 6074/13.7TBVFX-L1-1; do TRG, de 22-04-2021, proc. 338/19.3T8GMR.G2, e do TRE, de 17-01-2019, proc. 344/16.0T8OLH.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. VIGÉSIMA QUINTA: Assim sendo, e não descurando o sacrifício que se impõe ao(s) devedor(es) para atingir(em) o perdão das dívidas, os rendimentos e a própria subsistência condigna, sempre deverá ser determinado que o valor a ceder pelo aqui Recorrente deverá ser atribuído em 1 (um) salário mínimo nacional da função pública, multiplicado por 14 e depois dividido por 12. Aqui chegados, VIGÉSIMA SEXTA: Deverá ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido e ser substituído por outro que valide o entendimento que o cálculo do rendimento indisponível deverá ser realizado segundo a fórmula seguinte: 1 (um) salário mínimo nacional da função pública x 14 / 12 meses.” *** 3) Não foi apresentada resposta.*** 4) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.*** 5) Colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, realizou-se a conferência.*** II.As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC). Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação. Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC). Tendo isto presente, a questão que se coloca no presente recurso consiste em saber se a decisão recorrida, ao fixar como rendimento disponível do Recorrente, durante o período de cessão, o que exceder a “quantia equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida prevista para a função pública”, calculada “numa base mensal e por 12 meses”, incorreu em erro de interpretação (ut art. 639/2, b), do CPC) da norma jurídica constante do art. 239/3, b), i), do CIRE, que exclui daquele conceito o montante “razoavelmente necessário” para assegurar o “sustento minimamente digno” do devedor que viu liminarmente deferido o pedido de exoneração do pedido restante. *** III.Na resposta à questão acabada de enunciar, há que atender aos factos que foram considerados como provados na decisão recorrida em termos que não mereceram qualquer impugnação por parte do Recorrente. Assim, escreveu-se ali que “[n]o caso em apreço, cumpre considerar que o Requerente é divorciado, desempenha funções como “assistente operacional do 2.º e 3.º ciclo”, no Agrupamento de ..., aufere mensalmente um vencimento no valor correspondente ao valor do salário mínimo nacional para a função pública, vive em casa do seu filho e contribui para as despesas que decorrem da sua estadia, designadamente, eletricidade, gás e água, que totalizam um valor mensal médio de 100,00 € (cem euros), a que acrescem as demais despesas com a saúde, alimentação e vestuário.” Acrescentou-se que “[n]ão foram apuradas quaisquer outras despesas relevantes suportadas pelo devedor consigo mesmo, pelo que as que há que considerar aqui são as inerentes à satisfação das necessidades do quotidiano.” *** IV. 1).1. Isto dito, avançamos com a resposta à questão enunciada, começando por dizer que o instituto da exoneração do passivo restante foi introduzido entre nós pelo CIRE (arts. 235 a 249), tendo por base o modelo do fresh start, com origem no ordenamento jurídico norte-americano (Bankruptcy Act de 1898), depois incorporado na legislação alemã (§§ 286 a 303 da InsO). O modelo parte da constatação de que, numa economia de mercado, é comum que uma pessoa singular se torne devedora de créditos que excedem largamente a medida da sua capacidade patrimonial. O que se pretende é evitar que aqueles que, tendo atuado de boa-fé, num sentido objetivo, enquanto norma de conduta, mas que, por circunstâncias várias, em virtude dos normais riscos associados à contratação, se viram na referida situação, sejam definitivamente afastados do mercado. Para tanto, procede-se à afetação, durante certo período de tempo, ulterior à conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não puderam ser satisfeitos por essa via.[1] A intenção é, portanto, a de liberar o devedor das suas obrigações, realizando uma espécie de azzeramento da sua posição passiva remanescente, para que, “depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for o caso disso, o exercício da sua atividade económica ou empresarial” (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 610-611). *** 1).2. Como escrevemos, a exoneração do passivo restante encontra-se regulada nos arts. 235 a 249, integrada no título XII, relativo à insolvência das pessoas singulares. Pode ser concedida quando os créditos da insolvência – i. é, todos os créditos de natureza patrimonial que existam sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data de declaração de insolvência (art. 47/1 e 2) – não obtenham pagamento integral no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento (art. 235, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11.01). Não existe, por contraposição, uma libertação quanto às dívidas da massa insolvente, previstas no art. 51, dada a sua natureza e o regime preferencial do seu pagamento. Apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que todos os créditos tenham ficado satisfeitos, o devedor pessoa singular fica adstrito ao pagamento aos credores, durante três anos, findos os quais, poderá ser-lhe judicialmente concedida a exoneração do passivo restante, uma vez cumpridos determinados requisitos. Deste modo, a exoneração é, acima de tudo, uma medida de proteção do devedor (Assunção Cristas, “Exoneração do passivo restante”, Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 167). Com efeito, se não fosse declarado insolvente, o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas, sem prejuízo da eventual prescrição (art. 309 do Código Civil), em respeito pelo princípio pacta sunt servanda. De acordo com Catarina Serra (Lições cit., p. 614), o instituto tem, no entanto, vantagens que apresentam um alcance mais geral: ao constituir um estimulo à diligência processual do devedor, permite o início mais atempado do processo de insolvência, ajudando a atenuar uma das maiores preocupações do legislador – o chamado timing problem; por outro lado, permite a tendencial uniformização dos efeitos da declaração de insolvência, mais particularmente dos efeitos do encerramento do processo, estendendo aos devedores singulares o benefício exoneratório que resulta para as sociedades comerciais do registo do encerramento após o rateio final (art. 234/3), consequência da extinção da respetiva personalidade jurídica; finalmente, acaba por produzir um impacto positivo na economia: “quanto mais restrito é o acesso ao crédito – mais exigente quem o concede e mais responsável quem o pede – menor é o risco de sobre-endividamento e menos provável a insolvência dos consumidores e dos empresários em nome individual.” Já do ponto de vista dos credores, afigura-se duvidoso que o instituto apresente vantagens, ao contrário do que escrevem autores como Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 366, e Letícia Gomes Marques, “O regime especial de insolvência de pessoas singulares”, Revista de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, 2013, n.º 2, p. 137, para quem a exoneração constituiu uma dupla oportunidade de satisfação dos seus créditos: durante o processo de insolvência e durante o chamado “período de cessão.” No mesmo sentido, RP 10.20.2020, 1066/13.9TJPRT.P1, relatado por Eugénia Cunha. Na verdade, com a exoneração, cada um dos credores fica novamente sujeito a um rateio. Para os credores da insolvência, esse rateio é restrito ao remanescente do pagamento dos credores da massa (art. 241/1, d)). Como nota Catarina Serra, Lições cit., p. 614, nota 1168, “[s]e não houvesse exoneração, não haveria rateio; a satisfação do credor dependeria apenas da sua diligência processual e da data de prescrição do seu crédito, o que não poucas vezes representaria um aumento do prazo para agir executivamente contra o devedor. O período de cinco anos [que a Lei n.º 9/2022, de 11.01, reduziu para três] não é, além do mais, suficientemente longo para que seja frequente o devedor reconstituir-se in bonis de forma a pagar, dentro desse período, de formas satisfatória, a todos os que permanecessem seus credores.” *** 1).3. Segundo o art. 236/1, na redação do DL n.º 79/2017, de 30.06, “[o] pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.”Não havendo fundamento para o indeferimento liminar, o juiz profere despacho inicial, em que determina que o devedor fica obrigado à cessão do seu rendimento disponível ao fiduciário durante o período de cessão que corresponde aos três anos subsequentes ao encerramento do processo (art. 239/1 e 2 do CIRE, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11.04). Somos assim remetidos para o conceito de rendimento disponível que, de acordo com o art. 239/3 do CIRE, é composto de todos os rendimentos líquidos (RC 04.02.2020, 695/13.5TBLSA.C1, relatado por Maria João Areias; RE 12.05.2022, 415/19.0T8STR-D.E1, relatado por Emília Ramos Costa) que advenham ao devedor, com exclusão, a um tempo, dos créditos a que se refere o art. 115 (créditos futuros) cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz (alínea a)), e, a outro, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e que não deve exceder, salvo decisão fundamentada em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (alínea b), i)), bem como para o exercício, pelo devedor, da sua atividade profissional (alínea b), ii)) e para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor (alínea b), iii)). A partir daqui, tem sido entendido que são suscetíveis de integrar o rendimento disponível todos os acréscimos patrimoniais ou rendimentos auferidos pelo devedor, nomeadamente os vencimentos, salários, pensões de reforma, os subsídios de férias e de Natal, alimentação (RP 6.09.2021, 8712/17.3T8VNG-B.P1, relatado por Manuel Domingos Fernandes), as ajudas de custo (RC 4.05.2020, 494/18.8T8CBR-B.C1, relatado por Maria Catarina Gonçalves), os reembolsos de IRS (RP 16.1.2020, 499/13.5TJPRT.P2, relatado por Amaral Ferreira), as compensações decorrentes da cessação do contrato de trabalho (RP 29.04.2021, 1544/18.3T8STS.P1, relatado por Deolinda Varão; contra, RP 9.12.2020, 1021/15.4T8AMT.P1, relatado por Manuel Domingos Fernandes), as quantias recebidas do Fundo de Garantia Salarial, para compensação por despedimento (RL 10.05.2022, 64/20.0T8FNC.L1-1, relatado por Nuno Teixeira), bem como as indemnizações que o insolvente receba a título de despedimento (RE 28.03.2019, 1319/12.3TBVNO-E.1, relatado por Maria João Sousa e Faro) e o reembolso das despesas médicas e medicamentosas realizado pela ADSE (RP 27.06.2019, 770/11.TBGDM.P1, relatado por Joaquim Correia Gomes). Particulariza-se, em RG 15.06.2021 (97/18.7T8MGD-B.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias, que “face a determinado suplemento pago pela entidade empregadora ao devedor/insolvente (ex: subsídio de alimentação, transporte, abono para falhas, Kms. em viatura própria, etc.) é de todo irrelevante determinar se esse suplemento tem ou não caráter retributivo face à legislação laboral, posto que o que releva é verificar se o suplemento em causa cai ou não no âmbito das exclusões do rendimento disponível elencados no nº 3 do art. 239º, em particular na sua subalínea ii)”; “Tendo o devedor recebido um determinado suplemento da sua entidade empregadora e pretendendo que este está excluído do rendimento disponível, cumpre-lhe o ónus da alegação e da prova de facticidade de onde decorra encontrarem-se preenchidos os seguintes pressupostos legais cumulativos: (i) que a entidade empregadora lhe pagou esse suplementos com vista a compensá-lo de determinadas despesas para lhe prestar a sua atividade profissional; (ii) que ele, devedor, despendeu efetivamente o montante desse suplemento em despesas para prestar a sua prestação de trabalho à sua entidade empregadora; e (iii) que esse dispêndio era razoavelmente necessário para que o mesmo pudesse exercer a sua atividade profissional.” Especificamente a propósito dos subsídios de férias e de Natal, podem ver-se: RG 14.02.2013 (3267/12.8TBGMR-C.G1), relatado por José Inácio Manso Rainho; RC 11.02.2014 (467/11.1TBCND-C.C1), relatado por Carlos Moreira; RC 13.05.2014 (1734/10.7TBFIG-G.C1), relatado por Luís Cravo; RG 26.03.2015 (952/14.3TBGMR.G1), relatado por Helena Melo; RG 26.11.2015 (3550/14.8T8GMR.G1), relatado por Maria Amália Santos; RG 12.07.2016 (4591/15.3T8VNF.G1), relatado por Francisca Micaela Vieira; RP 07.05.2018 (3728/13.1TBGDM.P1), relatado por Augusto de Carvalho; RC 16.10.2018 (1282/18.7T8LRA-C.C1), relatado por Emídio Santos; RG 17.12.2018 (2984/18.3T8GMR.G1), relatado por Pedro Damião e Cunha; RE 26.09.2019 (2727/18.1TG8STR-C.E1), relatado por Francisco Matos; RP 18.11.2019 (1373/19.7T8AVR-C.P1), relatado por José Eusébio Almeida; RC 03.12.2019 (8794/17.8T8CBR-B.C1), relatado por Ferreira Lopes; RP 24.03.2020 (971/17.8T8STS.P1), relatado por Lina Baptista; RP 08.09.2020 (950/20.8T8OAZ-B.P1), relatado por Jorge Seabra; RG 17.09.2020 (1167/20.7T8VNF-C.G1), relatado por Paulo Reis; RP de 07.06.2021 (3410/20.3T8STS-B.P1), relatado por José Eusébio Almeida; RG 7.10.2021 (4576/20.8T8GMR.G1), relatado por Maria João Matos; RG de 28.10.2021 (2161/18.3T8STS.P1), relatado por Jorge Seabra; RP 08.06.2022 (2836/21.0T8STS.P1), relatado por Jorge Seabra; RC 13.09.2022 (2100/14.0TBVIS.C1), relatado por José Avelino Gonçalves; RP 08.11.2022 (2370/22.0T8VNG.P1), relatado por Anabela Miranda; RG 10.07.2023 (2193/22.7T8VNF-B.G1), relatado por Maria Eugénia Pedro; RG 22.06.2023 (1375/22.6T8VNF.G1), relatado por Maria João Matos; RG 28.09.2023 (2539/22.8T8VNF-C.G1), relatado por José Carlos Pereira Duarte; RG 14.03.2024 (3491/23.23.8T8GMR.G1), relatado por Alexandra Viana Lopes. *** 1).4. Como vimos, o legislador salvaguarda do rendimento disponível o que for razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e do respetivo agregado familiar – que, por contraposição, constitui o rendimento indisponível.O recurso a estes conceitos indeterminados impõe um juízo e uma ponderação casuística do juiz relativamente ao montante a fixar (STJ 2.02.2016, 3562/14.1T8GMR.G1.S1, relatado por Fonseca Ramos; RL 30.11.2011, 8549/10.0TCLRS.L1-8, relatado por Rui da Ponte Gomes; RG de 07.06.2023, 3916/22.0T8GMR.G1, relatado por Maria Eugénia Pedro), feitos à luz do princípio da dignidade humana decorrente do princípio do Estado de Direito, consagrado, designadamente, nas disposições conjugadas dos arts. 1.º, 13/1 e 63/1 e 3 da Constituição da República, bem como no art. 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o qual “impõe que todo o ser humano – e seu agregado familiar – tenha o necessário para um sustento minimamente digno” (RC 04.05.2020, 2194/19.2T8ACB-B.C1, relatado por Carlos Barreira). Nesse juízo há que ter em consideração que, conforme se nota no citado STJ 2.02.2016 (3562/14.1T8GMR.G1.S1), o interesse do devedor está em confronto com o interesse dos credores, já potencialmente prejudicado com a exoneração, o que permite sustentar que aquele deve ser sacrificado na medida do possível. Esta consideração permite afirmar que não é exigível que o devedor insolvente mantenha o nível de vida anterior. Dito de outra forma, a harmonização dos dois interesses conflituantes “impõe uma redução do nível de vida dos insolventes, conforme com as circunstâncias económicas em que se encontram e que estão na base da declaração de insolvência” (STJ 9.02.2021, 2194/19.2T8ACB-B.C1.S1, relatado por Maria João Vaz Tomé). Neste particular, apesar de a lei apenas estabelecer um limite máximo, correspondente a três salários mínimos nacionais, tem sido maioritariamente considerado como limite mínimo a quantia correspondente à Remuneração Mínima Mensal Garantida (RMMG), atento o facto de constituir o montante mínimo de referência quanto à subsistência em condições de dignidade, até por identidade de razões com o previsto, em sede de penhora, no art. 738/3 do CPC, norma que cristaliza o produto de uma evolução legislativa guiada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, com principal destaque para o Acórdão n.º 177/2002, do Pleno. Neste aresto, foi declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do art. 824/1 e 2 do então vigente CPC de 1961, que permitia a penhora até um terço quer de vencimentos ou salários auferidos pelo executado, quando estes fossem de valor não superior ao salário mínimo nacional em vigor, quer de pensões de aposentação ou de pensões sociais por doença, velhice, invalidez e viuvez, cujo valor não alcançasse aquele mínimo remuneratório, por a mesma contrariar o princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos arts. 1.º, 59/2, a), e 63/1 e 3 da Constituição da República. Em suporte, escreveu-se que “assim como o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o 'mínimo dos mínimos' não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim, também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respetivo beneficiário. Em tais hipóteses, o encurtamento através da penhora, mesmo de uma parte dessas pensões - parte essa que em outras circunstâncias seria perfeitamente razoável, como no caso de pensões de valor bem acima do salário mínimo nacional -, constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do devedor e pensionista, na medida em que este vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo considerado necessário para uma existência com a dignidade humana que a Constituição garante.” No sentido exposto, podem ver-se: RG 07.02.2012 (3178/11.4TBGMR-A.G1), relatado por Fernando Fernandes Freitas; RC 29.05.2012 (1908/11.3TBFIG-B.C1), relatado por Artur Dias; RG 16.05.2013 (4466/11.5TBGMR-F.G1), relatado por Raquel Rego, RG 15.05.2014 (1020/13.0TBBRG-C. G1), relatado por Eva Almeida; RC 6.07.2016 (3347/15.8T8ACB-D.C1), relatado por Falcão de Magalhães, RG 17.05.2018 (4074/17.7T8GMR.G1), relatado por António Barroca Penha; RL 27.09.2018 (15558/16.4T8LSB-B.L1-6), relatado por António Santos; RP 22.05.2019 (1756/16.4T8STS-D.P1), relatado por Maria Cecília Agante, RC 14.01.2020 (2037/19.7T8VIS.C1), relatado por Maria João Areias; RE 29.04.2021 (5788/20.0T8STB.E1), relatado por Maria Domingas Simões; RE 17.06.2021 (1722/20.5T8STR-B.E1), relatado por Vítor Sequinho dos Santos; RE 30.06.2021 (781/20.5T8OLH.E1), relatado por José Manuel Barata; RG de 28.10.2021 (2161/18.3T8STS.P1), relatado por Jorge Seabra; RG 16.02.2023 (3923/22.2T8GMR-A.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias; RG 02.03.2023 (2148/22.1T8GMR.G1), relatado por José Carlos Pereira Duarte; RE 15.06.2023 (462/22.5T8OLH.E1), relatado por José Manuel Barata; e RG 4.04.2024 (5451/22.7T8GMR-A.G1), relatado por Pedro Maurício. Em RC 12.03.2013 (1245/12.5TBLRA-F.C1), relatado por Sílvia Pires, RG 8.01.2015 (1980/14.4TBGMR-E.G1), relatado por Manuela Fialho, e RL 11.100.2016 (1855/14.7TCLRS-7), relatado por Carla Câmara, considerou-se, com apelo à Escala de Oxford, adotada pela OCDE, que devem valer os seguintes limites: 1 salário mínimo nacional para o primeiro adulto, 0,7 para o segundo adulto e 0,5 para cada criança. Em sentido diverso, entendeu-se, em RG 03.05.2011 (4073/10.0TBGMR-A.G1), relatado por Rosa Tching, que cabe ao juiz fixar o limite mínimo do rendimento a ser atribuído ao insolvente, razão pela qual não é adequado considerar-se o salário mínimo nacional “como critério-base de referência para a determinação do limite mínimo”, em RG 20.03.2014 (8552/12.6TBBRG-E.G1), relatado por Helena Melo, atendeu-se ao Indexante dos Apoios Sociais e em RL 20.09.2012 (134/ 12.9TBSSB-D.L1-6), relatado por Tomé D’Almeida Ramião, decidiu-se que, “dada a ausência de outro critério legal, deverá ter-se como critério orientador que o rendimento per capita do agregado familiar do insolvente não deve, em princípio, ser inferior a 3⁄4 do indexante dos apoios sociais (IAS), em consonância com o regime previsto no art. 824/4 do CPC, sem esquecer os seus rendimentos, a composição e encargos do seu agregado familiar.” Pedro Pidwell (Insolvência das Pessoas Singulares. O Fresh Start – será mesmo começar de novo? O fiduciário. Algumas Notas, Almedina: Coimbra, 2016, p. 205) indica várias outras alternativas para a definição do limite mínimo. Aderindo à jurisprudência maioritária, acrescentamos que, no citado RG 02.03.2023 (2148/22.1T8GMR.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias, particularizou-se que “[o] rendimento equivalente ao salário mínimo nacional constitui apenas o limite mínimo de referência abaixo do qual não pode ser fixado o rendimento indisponível devido ao devedor por ser necessário ao seu sustento minimamente condigno e do seu agregado familiar, mas esse limite mínimo tem de ser complementado com outros elementos específicos do caso concreto, incluindo com o número de pessoa que compõem o seu agregado familiar, a idade dessas pessoas, o estado de saúde delas, a realidade profissional desses membros e os rendimentos por eles auferidos.” De modo semelhante, em RL 21.03.2023 (4479/22.1T8FNC-C.L1-1), relatado por Fátima Reis Silva, escreveu-se que “[o] limite mínimo do sustento minimamente digno do devedor abaixo do qual não se poderá descer, situa-se no montante equivalente a um salário mínimo nacional ou regional, sem que isso signifique ser esse valor o critério base de aferição”, e em RG 16.05.2024 (4381/23.0T8VNF-C.G1), relatado por Alexandra Viana Lopes, aqui 1.ª Adjunta, no qual interveio como Adjunto o ora Relator, notou-se que a fixação do rendimento indisponível, “entre estes limites mínimo e máximo, deve ser feita de forma casuística, atendendo às especialidades do caso concreto.” Neste sentido, na doutrina, Marco Carvalho Gonçalves (Insolvência e Processo Pré-Insolvenciais cit., p. 642). *** 1).5. Em face do que antecede, logo surgem duas questões, entrecruzadas entre si, que têm dividido a jurisprudência: i) tendo em conta os subsídios de férias e de Natal cujo pagamento a lei garante a todos os trabalhadores por conta de outrem e, bem assim, aos pensionistas, o referido limite mínimo do rendimento indisponível do devedor deve ser calculado como se a RMMG fosse paga 14 vezes ao ano? ii) o apuramento do que excede o rendimento indisponível do insolvente deve ser feito em cada mês atomisticamente considerado ou com base na média mensal (obtida mediante a divisão do rendimento anual do insolvente por doze)? *** 1).5.1. A propósito da primeira questão, para uma corrente jurisprudencial, os subsídios de férias e de natal devem sempre ser incluídos no rendimento disponível a ceder ao fiduciário na parte em que, nos meses do respetivo pagamento, excederem o rendimento indisponível fixado na decisão para 12 meses, por se entender que, face à sua função complementar, não são indispensáveis à sobrevivência. Esta corrente baseia-se na fundamentação do Ac. n.º 770/2014, do Tribunal constitucional, relatado por Ana Guerra Martins, no qual foi entendido que a norma extraída “da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do C.P.C., na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor não seja superior ao salário mínimo nacional mas que, coincidindo temporalmente o pagamento desta e subsídio de natal ou de férias se penhore, somando as duas prestações, na parte que excede aquele montante” (sic), não é ofensiva do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1.º da Constituição da República Portuguesa. Na fundamentação do juízo decisório escreveu-se que “constituindo o subsídio de férias e o subsídio de Natal um complemento à pensão normalmente devida, não se vislumbra que possam corresponder a uma quantia que deva ser qualificada como garantia desse mínimo essencial à subsistência condigna do recorrente, pelo que a interpretação normativa aplicada pelo tribunal recorrido não se afigura inconstitucional.” Inserem-se nesta corrente: RP 26.10.2020 (8215/13.5TBVNG-F.P1); RP 28.10.2021 (2161/18.3T8STS.P1); RP 8.06.2022 (2836/21.0T8STS.P1), relatados por Jorge Seabra, com voto de vencido de Fátima Andrade; RP 24.03.2020 (971/17.8T8STS.P1), relatado por Lina Baptista; RG de 17.12.2018 (2984/18.3T8GMR.G1), relatado por Pedro Damião e cunha; RG 17.05.2018 (4074/17.7T8GMR.G1), relatado por António Barroca Penha. Para outra corrente, os subsídios de férias e de Natal são indispensáveis à subsistência condigna do devedor, pelo que o rendimento indisponível não deve ser inferior à RMMG durante 14 meses, incluindo aqueles subsídios. Neste sentido: RL 27.02.2018 (1809/17.1T8BRR.L1-7), relatado por Higina Castelo; RP 22.05.2019 (1756/16.4T8STS-D.P1), relatado por Maria Cecília Agante; RP 15.06.2020 (1719/19.8T8AMT.P1), relatado por Fátima Andrade; RL 2.05.2023 (2525/21.5T8BRR.L1-1), relatado por Isabel Fonseca; RL 24.05.2023 (19030/22.5T8SNT-B.L1-1), relatado por Fátima Reis Silva; RL 5.03.2024 (386/23.9T8VPV-C.L1-1), relatado por Renata Linhares de Castro. Esta corrente, por seu turno, baseia-se no voto de vencido do Juiz Conselheiro João Cura Mariano ao referido Ac. n.º 770/2014, do Tribunal Constitucional, no qual se pode ler, no sentido contrário ao que fez vencimento, que “[n]o caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular. Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência. Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador. E se os rendimentos de prestações periódicas deixam de ter justificação para estar a salvo, quando o executado dispõe de outros rendimentos ou de bens que lhe permitam assegurar a sua subsistência, os subsídios de férias e de Natal não podem ser considerados outros rendimentos para esse efeito, uma vez que eles integram o referido mínimo dos mínimos. Os subsídios de férias e de Natal não são outros rendimentos diferentes da pensão paga mensalmente, mas o mesmo rendimento periódico, cujo momento de pagamento coincide com o das prestações mensais.” *** 1).5.1.1. A resposta a esta questão depende, necessariamente, de saber se as prestações em causa (subsídios de férias e de Natal) têm a mesma natureza dos salários, vencimentos ou das prestações periódicas pagas a título de aposentação – isto é, se se destinam a garantir a subsistência do devedor – ou se, pelo contrário, revestem a natureza de mero complemento desses rendimentos.O art. 41 do DL n.º 187/2007, de 10.05, diploma que “define e regulamenta o regime jurídico de proteção nas eventualidades invalidez e velhice do regime geral de segurança social” – diz que “[n]os meses de julho e dezembro de cada ano, os pensionistas têm direito a receber, além da pensão mensal que lhes corresponda, um montante adicional de igual quantitativo.” Por sua vez, o Código do Trabalho estabelece, no seu art. 263/1, que “[o] trabalhador tem direito a subsídio de Natal de valor igual a um mês de retribuição, que deve ser pago até 15 de dezembro de cada ano civil”, e, no seu art. 264/2, que “[o] trabalhador tem direito a subsídio de férias, compreendendo a retribuição base e outras prestações retributivas que sejam contrapartida do modo específico da execução do trabalho, correspondentes à duração mínima das férias.” Destes preceitos legais extrai-se a conclusão de que as prestações pagas a título de subsídio de férias e de Natal não revestem a mesma natureza dos vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação. Na verdade, recorrendo, desde logo, ao elemento literal, constata-se que o art. 41 do DL n.º 187/2007, de 10.05, qualifica estas prestações de “montante adicional” à pensão mensal. Por outro lado, no que concerne à sua natureza, as prestações atribuídas aos pensionistas em julho e em dezembro ou os subsídios de férias e de Natal previstos na legislação laboral não podem ser equiparados aos vencimentos, salários ou prestações periódicas a título de aposentação. É que esses subsídios, ao invés do que sucede com as prestações periódicas salariais ou pensionistas, não se destinam a garantir a subsistência mínima ou condigna do devedor, sendo antes prestações complementares ou suplementares dos salários e das pensões. Assim, no sentido de os subsídios de férias e da Natal constituírem “complementos salariais”, isto é, “acrescentos à retribuição base e diuturnidades devidos ao trabalhador”, Luís Manuel Menezes Leitão, Direito do Trabalho, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 346, Ana Lambelho / Luísa Andias Gonçalves, Manual de Direito do Trabalho – Da Teoria à Prática, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 211. Como refere Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 349-350), o momento do pagamento desses subsídios, o qual coincide temporalmente com os períodos de gozo de férias (art. 264/3 do CT) ou de Natal (art. 263/1 do CT), aponta no sentido desta conclusão. Na verdade, se o subsídio de Natal visa permitir a satisfação de necessidades complementares do trabalhador, que se prendem com as festividades do Natal e com as despesas extraordinárias a elas associadas, o mesmo se passa com a atribuição do subsídio de férias, que procura proporcionar ao trabalhador uma maior comodidade no gozo efetivo das férias. Nesta perspetiva, consideramos que os subsídios de férias e de Natal constituem prestações de natureza diferente da RMMG, tendo uma função complementar desta, pelo que, prima facie, nada obsta a que sejam incluídos no rendimento disponível a ceder ao fiduciário na parte em que, nos meses do respetivo pagamento, excederem o rendimento indisponível fixado na decisão para 12 meses, conforme defende a primeira das correntes jurisprudenciais a que fizemos referência. *** 1).5.1.2. Sem prejuízo do que antecede – e é esta a ressalva que entendemos que deve ser introduzida ao entendimento acabado de expor – não podemos esquecer que nem sempre o plano dos conceitos – ou dos tipos ideais, na terminologia de Max Weber – dá resposta cabal às situações de facto com que o julgador se depara. Toda a argumentação expendida parte do pressuposto de que o devedor aufere mensalmente um rendimento que equivale, pelo menos, ao RMMG. Mas nem sempre assim sucede. Situações existem – e são frequentes – em que o rendimento mensalmente auferido pelo devedor, sem os subsídios de férias e de Natal, fica aquém do RMMG. Nestas, os referidos subsídios acabam por, na prática, desempenhar uma função integradora, sendo eles mesmos necessários para compor o mínimo necessário à subsistência do devedor. A esta luz, compreende-se e adere-se, data venia, à jurisprudência consagrada nos Acórdãos desta Secção de 7.10.2021 (4576/20.8T8GMR.G1) e 22.06.20023 (1375/22.6T8VNF.G1), já citados, ambos relatados por Maria João Matos, com a intervenção de Alexandra Viana Lopes, aqui 1.ª adjunta, segundo a qual “justifica-se a presunção de que, quando o resultado da divisão por doze (meses do ano civil), do montante anual global dos rendimentos do trabalho (incluindo doze salários mensais, um subsídio de férias e um subsídio de Natal) seja inferior à retribuição mínima mensal garantida para o período considerado, os subsídios de férias e de Natal serão necessários para assegurar o sustento minimamente digno do trabalhador insolvente.” Em suporte, escreve-se no último dos citados arestos: “É ainda discutível se esta «retribuição mínima mensal garantida», enquanto limite mínimo do rendimento a reservar imperativamente ao insolvente (salvaguardando-o da cessão aos seus credores) deverá coincidir com o singelo montante mensal que normalmente é auferido, ou deverá antes coincidir com o seu valor mensualizado, que se obtém dividindo o valor global dos rendimentos laborais obtidos pelos doze meses do ano civil (como já vêm fazendo entidades de referência em recolha e tratamento de dados, como a Pordata - Base de Dados Portugal Contemporâneo); e, por isso, incluindo aqui os subsídios de férias e de natal. Crê-se que a resposta a esta pergunta terá necessariamente que ser tributária da especificidade do instituto da exoneração do passivo restante (que aqui nos ocupa), e não tanto dos conceitos gerais de retribuição mínima mensal garantida, de subsídio de férias e de subsídio de natal. Precisando, e começando pelo subsídio de férias, não se ignora que atualmente, «mais do que como um simples período de inatividade, as férias são hoje concebidas como um fator de equilíbrio bio psíquico do trabalhador, implicando um “corte com a rotina”, uma rutura drástica com o quotidiano laboral e extralaboral, o que redunda, mais ou menos inevitavelmente, num acréscimo de despesas para o trabalhador e respetiva família (deslocação, alojamento, etc.)»; e que é precisamente em «ordem a possibilitar que o trabalhador enfrente este previsível aumento de gastos», que a lei determina que, «além da retribuição de férias (…), o trabalhador terá outrossim direito a auferir um subsídio de férias» (João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 3.ª edição, Almedina, pág. 288). Precisando novamente, e agora quanto ao subsídio de natal, dir-se-á que o natal permite ao trabalhador (e ainda que não religioso) o festejo de uma quadra especialmente dedicada à família, entendendo-se por esta não apenas a sua nuclear (cada vez mais reduzida), mas sobretudo a sua alargada (cuja reunião está cada vez mais limitada a esta quadra e à Páscoa), o que implica habitualmente um acréscimo de gastos (quer em deslocações, quer na disponibilidade de uma gastronomia mais rica e alargada no tempo, quer na aquisição das habituais prendas); e que é precisamente em ordem a possibilitar que o trabalhador assegure este aumento previsível de gastos, que lhe é pago o subsídio de natal. Compreende-se, por isso, que se afirme que os subsídios de férias e de natal são, em regra, «prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta doutrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição), duas vezes no ano - no período de férias e no natal - a fim de que se usufrua de forma plena esses dois períodos festivos (de férias e de natal)» (Ac. da RG, de 26.11.2015, Maria Amália Santos, Processo n.º 3550/14.8T8GMR.G1). Contudo, admite-se facilmente que, no caso de trabalhadores (ou pensionistas) que aufiram salários (ou pensões) mais baixos, nomeadamente inferiores ou no limite da retribuição mínima mensal garantida, os subsídios de férias e de natal sejam necessários para garantir o seu «sustento minimamente digno», sendo nomeadamente afetos à satisfação de regulares despesas anuais (v.g. prémios de seguro, contribuições de condomínio), bem como à aquisição de extraordinários bens ou serviços (v.g. óculos graduados, aparelhos dentários, eletrodomésticos de primeira necessidade, tratamentos urgentes), ou mesmo para fazer face a curtos períodos de perda, parcial ou total, ou decréscimo, da habitual remuneração laboral (v.g. baixa médica, menor volume de trabalho – suplementar, extraordinário, noturno, ou noutro regime que justifique um valor hora mais elevado – o , vacatio entre a dispensa de um posto de trabalho e o encontrar de outro). Nestes casos, e infelizmente para o trabalhador ou pensionista, os subsídios de férias e de natal não cumprem a função social subjacente à sua consagração e pagamento, antes asseguram (exatamente como os demais rendimentos laborais que aufira com carácter de habitualidade todos os meses) o pagamento das despesas inerentes ao seu sustento básico. Ora, não temos dúvidas de que, nestes casos, os ditos subsídios de férias e de natal deverão ser subtraídos ao rendimento a ceder pelo insolvente ao fiduciário (no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante). Tem-se, ainda, como conforme a maioria da jurisprudência que se vem pronunciando sobre este tema, uma vez, que quando exclui os subsídios de férias e de natal do rendimento autorizado a reter pelo insolvente, o faz assente na ponderação de que, no caso concreto, não se revela imprescindível ao seu «sustento minimamente digno». Logo, torna-se plenamente justificada a presunção de que, quando o resultado da divisão por doze (meses do ano civil), do montante anual global dos rendimentos do trabalho (incluindo doze salários mensais, um subsídio de férias e um subsídio de natal) seja inferior à retribuição mínima mensal garantida para o período considerado, os subsídios de férias e de natal serão necessários para assegurar o «sustento minimamente digno» do trabalhador insolvente. Caberá, então, a quem discorde dessa razoável presunção, ilidi-la, demonstrando a falsidade do facto presumido (isto é, de que apesar do resultado da divisão referida ser inferior à retribuição mínima mensal garantida em vigor no período considerado, ainda assim os ditos subsídios de férias e de natal não são necessários para assegurar a sobrevivência condigna do trabalhador ou pensionista insolvente).” No mesmo aresto acrescenta-se que: “(…) o entendimento contrário é suscetível de consubstanciar, não só a violação do princípio da dignidade da pessoa humana (conforme se crê sobejamente exposto antes), como ainda a violação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade, consagrados nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP. Com efeito, em qualquer situação em que dois trabalhadores (ou pensionistas) insolventes auferissem o mesmo rendimento anual global (v.g. € 6.960,00), mas em que um fosse composto apenas com doze salários mensais regulares, todos correspondentes à retribuição mínima mensal garantida (v.g. € 580,00), e o outro fosse composto por doze salários mensais irregulares (no seu montante), sendo qualquer deles inferior à remuneração mínima mensal garantida (mas em proporção diferenciada) e pelos subsídios de férias e de natal, o primeiro nada estaria obrigado a entregar do montante exclusivamente considerado (€ 6.960,00), enquanto que o segundo estaria obrigado a entregar o montante correspondente aos subsídios de férias e de natal. Contudo, essa diferenciação seria absolutamente injustificada (já que apenas baseada na presunção - injustificada no caso concreto - de que estaria previamente assegurada a salvaguarda de uma retribuição mínima mensal garantida, e de que aqueles subsídios seriam afetos à satisfação das necessidades para que foram criados); e, por isso, violadora do princípio da igualdade. Já relativamente à violação do princípio da proporcionalidade, dir-se-á que, tendo em conta a ponderação de interesses entre os credores do insolvente e o próprio, ínsita no instituto de exoneração do passivo restante (e já sobejamente explicitada supra), a mesma deixará de se verificar se este for obrigado a entregar àqueles parte do rendimento do seu trabalho necessária a assegurar o seu «sustento minimamente digno»; e isso não pode deixar de suceder se a parte entregue for necessária para compor, juntamente com a por ele retida, o valor correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida para cada um dos doze meses do ano civil. Este injustificado excesso do benefício que assim fosse concedido aos credores do insolvente seria, por isso mesmo, violador do princípio da proporcionalidade.” Esta orientação foi seguida nos Acórdãos desta Secção de 28.09.2023 (2539/22.8T8VNF-C.G1), relatado José Carlos Pereira Duarte, e de 14.03.2024 (3491/23.23.8T8GMR.G1), relatado por Alexandra Viana Lopes, já citados. *** 1).5.2. No que tange à questão de saber se o apuramento do que excede o rendimento indisponível do insolvente deve ser feito em cada mês atomisticamente considerado ou com base na média mensal, parte da jurisprudência entende que o juiz deve tomar por referência o espaço de um mês. Servem de exemplo, STJ 9.03.2021 (11855/16.7T8SNT.L1.S1), relatado por José Inácio Manso Rainho; RC 28.03.2017 (178/10.5TBNZR.C1RC), relatado por Emídio Santos; RP 7.05.2018 (3728/13.1TBGDM.P1), relatado por Augusto de Carvalho; RP 30.04.2020 (2441/16.2T8AVR-D.P1), relatado por Carlo Gil; RG 14.05.2020 (4225/18.4T8GMR-D.G1), relatado por Purificação Carvalho, com voto de vencida de Maria dos Anjos Melo Nogueira; RE 12.05.2022 (2955/20.0TBSTB.E1), RE 3.12.2020 (612/14.5T8TSB-F.E1), relatado por Jaime Pestana; RL 6.09.2022 (3612/20.2T8FNC-C.L1-1), relatado por Nuno Teixeira, com o voto de vencido de Manuel Marques; RE 29.09.2022 (380/13.8TBABT.E1), relatado por Mário coelho, com voto de vencida de Maria Domingas Simões; RG 10.07.2023 (2193/22.7T8VNF-B.G1), relatado por Maria Eugénia Pedro. Na doutrina, parece ser este o entendimento sufragado por Marco Carvalho Gonçalves (Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra: Almedina, 2023, pp. 637-638). Em suporte, escreve-se no citado RP 30.04.2020, que: “(…) tendo os rendimentos necessários ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar excluídos da cessão sido fixados no montante de um salário mínimo e meio, o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês (veja-se o artigo 273º do Código do Trabalho). A circunstância de ser anual a informação prestada pelo fiduciário a cada credor e ao juiz nos termos do disposto no nº 2, do artigo 240º do CIRE e de a afetação dos rendimentos nos termos do disposto no nº 1, do artigo 241º do CIRE ser feita no final de cada ano não significa que o apuramento do rendimento disponível apenas se processe no final de cada ano apurando a média auferida nesse período temporal. Se assim fosse, sendo cumprida a lei no que respeita a entrega dos rendimentos diretamente ao fiduciário, só no final de cada ano o devedor receberia o rendimento disponível, o que, convenhamos, o colocaria em sérias dificuldades financeiras. De facto, aquilo que se processa no final de cada ano é a afetação dos montantes recebidos até então e não a liquidação do rendimento disponível nesse momento, liquidação que pelo contrário se foi processando, mensalmente, pelo menos, quando como sucede no caso, o devedor é trabalhador por conta de outrem, sendo os seus rendimentos percebidos mensalmente. Assim, a regra da anualidade que decorre do nº 2, do artigo 240º e do nº 1, do artigo 241º, ambos os artigos do CIRE, dirige-se ao fiduciário, tendo em vista a prestação de informações aos credores e ao juiz e a afetação dos rendimentos que ao longo do ano foram sendo por ele recebidos. A fixação do rendimento disponível do devedor num certo montante, no caso em apreço, em montante superior ao efetivamente auferido em regra em cada mês, não constitui qualquer garantia de que em cada mês receberá rendimentos desse montante, mas apenas que os receberá todos os meses em que os seus rendimentos excederem o aludido montante porque, não sendo esse o caso, isto é, ficando os seus rendimentos mensais aquém do montante do rendimento indisponível judicialmente fixado, apenas terá direito a haver os montantes efetivamente auferidos em cada mês. Na situação hipotética que a recorrente refere do pagamento em duodécimos dos subsídios de férias e de Natal a pessoa com rendimentos do trabalho iguais aos da recorrente, nenhum rendimento disponível haveria a afetar pelo fiduciário porque em cada período mensal o montante auferido pela devedora ficaria sempre aquém do rendimento excluído da cessão por decisão judicial e nunca atingiria uma vez e meia o salário mínimo nacional. Ao contrário, com o pagamento por inteiro do subsídio de férias e do subsídio de Natal, em cada um dos meses em que isso ocorre, o rendimento auferido pela devedora ultrapassa o montante de uma vez e meia o salário mínimo nacional, o que implica a afetação dos rendimentos que ultrapassem esse montante, nos termos previstos no nº 1 do artigo 241º do CIRE. Significa isto que a interpretação e aplicação das regras relativas à determinação do rendimento indisponível do devedor beneficiário de exoneração do passivo restante nos termos que precedem é violadora do princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa) e da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (artigo 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa)? Não o cremos. A igualdade entre a situação da devedora dos autos e a pessoa colocada na situação hipotética configurada pela recorrente é apenas matemática, impendendo sobre esta última um esforço continuado de aforro em cada mês se quiser ter no período de férias ou no Natal os valores pagos em duodécimos a tal título, ao longo do ano. Ao contrário, no caso da devedora, ao menos nos meses em que auferir o subsídio de férias e o subsídio de Natal, além do valor mensal do seu salário, terá logo disponível o valor de metade desse mesmo salário, sem ter que desenvolver um esforço continuado de aforro. Esta diferença foi bem sentida recentemente entre nós quando por força das dificuldades financeiras atravessadas pelo nosso país se proveu no sentido dessas prestações serem pagas em duodécimos, aliviando as entidades pagadoras da necessidade de imobilização de montantes elevados de capital para fazer face aos pagamentos globais desses subsídios, distribuindo essa obrigação pelo ano e onerando os beneficiários desses subsídios com uma gestão cuidada dos valores a mais recebidos em cada mês, a fim de na altura própria deles poderem dispor para as finalidades para que foram previstos. Deste modo, ao invés do que sustenta a recorrente, no caso concreto, entende-se que não resulta da interpretação e aplicação dos preceitos relativos à determinação dos rendimentos do trabalho excluídos da cessão do rendimento disponível na decisão recorrida e neste acórdão qualquer violação dos princípios da dignidade humana e da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.” No mesmo sentido, RP 8.10.2020 (9/20.8T8STS.P1), relatado por Joaquim Correia Gomes, no qual se admite, porém, a possibilidade de “uma ponderação corretiva sempre que o rendimento mensal retido para o insolvente não atinja o RMMG, podendo para o efeito ponderar-se qualquer acréscimo de rendimentos posterior, como seja os subsídios de férias ou de Natal ou qualquer outro rendimento extra.” Em sentido contrário, defendendo um referente anual: RE 17.01.2019 (344/16.0T8OLH.E1), relatado por Maria João Sousa e Faro; RL 22.09.2020 (6074/13.7TBVFX-L1-1), relatado por Amélia Sofia Rebelo; RE 7.04.2022 (78/13.7TBMAC.E1), relatado por Vítor Sequinho dos Santos; RL 2.05.2023 (2525/21.5T8BRR.L1-1), relatado por Isabel Fonseca. Os argumentos a favor desta segunda tese são assim expostos no citado RE 7.04.2022: “Vimos anteriormente que o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição, impõe a salvaguarda constante do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i): Fica excluído do rendimento disponível o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. Na concretização deste regime legal, iluminado por aquele princípio constitucional, o juiz não pode fixar uma quantia exígua, que não garanta aquele sustento minimamente digno. A jurisprudência tem entendido, pacificamente, que o montante do salário mínimo nacional constitui um mínimo inultrapassável nesta matéria Do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, decorre, nomeadamente, aquilo que, sem exagero, pode considerar-se a essência do conceito de justiça: deve tratar-se igualmente aquilo que é igual e diferenciadamente aquilo que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Subjaz a este princípio uma ideia de proibição do arbítrio, concretizável, nomeadamente, na inadmissibilidade de diferenciação de tratamento sem fundamento material bastante, isto é, sem justificação razoável à luz dos valores que enformam a nossa ordem jurídica, encimados por aqueles que emanam da Constituição. Tendo em conta os princípios enunciados, analisemos a concreta questão que se nos coloca começando por imaginar duas situações em que, para simplificar, os insolventes são os únicos membros dos seus agregados familiares e o montante excluído do rendimento disponível ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i), é de € 750,00 mensais. Para evitar as especificidades decorrentes da legislação laboral, suponhamos que ambos exercem atividades económicas por conta própria. Num determinado ano civil, um dos insolventes auferiu um rendimento mensal de € 750,00 durante os 12 meses do ano e o outro auferiu € 300,00 em janeiro, € 900,00 em fevereiro, € 700,00 em março, € 2.000,00 em abril, € 1.500,00 em maio, € 600,00 em junho, € 0,00 em julho e agosto, € 500,00 em setembro, € 500,00 em outubro, € 1.000,00 em novembro e € 1.000,00 em dezembro. No ano em causa, qualquer destes dois insolventes auferiu, no total, € 9.000,00. Todavia, a seguir-se o critério mensal de aferição do montante dos rendimentos para o efeito de determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), o primeiro não terá de entregar qualquer quantia ao fiduciário, a título de cessão de rendimento disponível, ao passo que o segundo terá de entregar € 2.650,00. O exercício a que vimos procedendo poderá ficar ainda mais expressivo imaginando um insolvente que tenha auferido € 4.500,00 em janeiro e € 4.500,00 em setembro (ainda que como contrapartida por trabalho desenvolvido ao longo dos meses anteriores, em que nada recebeu), o qual, de acordo com o critério mensal, teria de entregar ao fiduciário € 7.500,00. A desigualdade de tratamento destes três insolventes é patente e, dado terem auferido, no período de 1 ano, rendimentos idênticos, tem de considerar-se inadmissível. Não há, com efeito, fundamento material para a exposta desigualdade de tratamento. Analisando as situações expostas sob o ponto de vista do princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana, a conclusão a que chegamos é idêntica. Enquanto o primeiro insolvente pôde afetar ao seu sustento a quantia mensal de € 750,00 e anual de € 9.000,00, superior ao salário mínimo nacional, o segundo e o terceiro apenas puderam afetar ao mesmo fim, respetivamente, as quantias mensais de € 519,17 e € 125,00 e anuais de € 6.350,00 e € 1.500,00. Ou seja, os segundo e terceiro insolventes ficaram abaixo daquilo que é razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e isso aconteceu, sublinhamos, por efeito do funcionamento do critério mensal de cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i). O segundo e, de forma ainda mais evidente, o terceiro insolvente, ficaram, em consequência da rigidez do critério mensal, impedidos de fazer aquilo que qualquer pessoa diligente faz para assegurar o seu sustento minimamente digno nas circunstâncias descritas: poupar quando ganha mais com vista a poder gastar quando ganha menos, ou nada ganha. Isto demonstra a inadequação do critério mensal. A sua rigidez torna-o cego em relação a situações em que, como as descritas, os rendimentos do insolvente são variáveis, impedindo este último de fazer uma coisa tão simples como poupar em meses melhores para poder gastar em meses piores e assim pondo em causa o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar. Não se pense que o critério mensal apenas produz resultados inadmissíveis quando os rendimentos do insolvente provenham de trabalho por conta própria. Também o rendimento mensal de um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode variar. Mesmo pondo de lado a questão resultante da perceção dos subsídios de Natal e de férias (cuja análise, tendo em conta a abundante jurisprudência existente sobre a matéria, nos levaria longe demais, tendo em conta o objeto deste recurso), um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode ver o seu salário variar de mês para mês em função de situações como, por exemplo, períodos de desemprego ou de baixa por doença, a prestação de trabalho suplementar ou salários em atraso. Imaginemos, por exemplo, um insolvente a quem não são pagos os salários durante 3 meses seguidos, sendo esse pagamento efetuado no mês seguinte, juntamente com o salário que a esse mês respeita. Em consequência de um facto que, em si mesmo, é altamente penalizador para um trabalhador como é ter salários em atraso, a situação do insolvente poderia ser agravada pela circunstância, a que ele é alheio e que em nada o beneficiou, de receber 4 salários num só mês e ver uma parte desse rendimento integrada no rendimento disponível. Analisando o problema pelo lado dos credores da insolvência, resulta do artigo 241.º que estes em nada são prejudicados se se adotar o critério anual ou, eventualmente, outro que não exceda o período de 1 ano. O n.º 1 daquele artigo estabelece que o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los e afeta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão, nomeadamente, nos termos da al. d), à distribuição pelos credores da insolvência. Logo, a circunstância de o critério ser mensal, anual ou outro inferior a 1 ano é indiferente do ponto de vista do interesse destes últimos: em qualquer hipótese, só anualmente receberão as quantias a que tiverem direito. Concluindo, na ausência de fixação de critério diverso pelo juiz, no despacho inicial ou, na hipótese de alteração relevante das circunstâncias, em despacho posterior, o critério anual deverá ser adotado para o cálculo do montante dos rendimentos do insolvente com vista a determinar a parte destes que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i). Em casos como o dos autos, apenas esse critério permite soluções conformes com os princípios constitucionais acima referidos.” *** 1).5.2.1. Quid inde?Conforme se pode ler em RG 01.02.2024 (6360/20.0T8VNF-C.G1), do mesmo relator, em que foram adjuntos os Juízes Desembargadores José Alberto Moreira Dias e Rosália Cunha, esta última com voto de vencida, afigura-se-nos que o CIRE não impõe um critério ao juiz, permitindo-lhe que, em cada caso, pondere todas condicionantes de modo a encontrar o ponto certo do equilíbrio entre os dois interesses conflituantes. Para isso, há que atender à natureza e ao montante dos rendimentos que previsivelmente serão auferidos pelo devedor ao longo do período de cessão. Assim, quando estejam em causa rendimentos auferidos com periodicidade mensal, de valor pré-definido, como sucede com os provenientes do trabalho dependente e de pensões, que, no mínimo, sejam sempre superiores ao tido como razoável para salvaguarda do interesse do devedor, aferido em atenção às particularidades do caso em concreto, mais concretamente, a idade do insolvente, a composição do seu agregado familiar, as suas despesas normais, quaisquer despesas especiais relativas à sua saúde ou encargos com ascendentes ou descendentes, etc., e respetivos rendimentos, fará sentido suportar esse cálculo com base no critério mensal. Neste caso, o rendimento é recebido naquele mês e respeita àquele mês. Já se estiverem em causa rendimentos esporádicos ou rendimentos que, revestindo embora natureza periódica, não atingirão sempre aquele valor razoável, fará sentido o recurso a um fator corretivo, que poderá ser o indicado no citado RP 8.10.2020, somando-se os rendimentos e dividindo depois o total obtido por cada um dos meses do ano. Neste sentido, na doutrina, Lilian Almeida Curvo / Maria João Machado (“A exoneração do passivo restante – algumas questões acerca da fixação do rendimento disponível”, Julgar Online, março de 2022, disponível em https://julgar.pt/), que escrevem: “[n]o entanto, poderá acontecer o devedor não auferir uma remuneração base mensal fixa, fazendo sentido, nesses casos, que o Tribunal fixe um rendimento indisponível anual, ou um rendimento indisponível mensal levando em consideração uma média anual. Nesta última opção, “nos casos em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente àqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida. Para esse efeito, terá de apurar-se o montante mensal médio dos rendimentos auferidos pelo insolvente num determinado ano fiscal e cotejá-lo com o valor mensal fixado pelo Tribunal. Se tal montante mensal médio não exceder o valor mensal fixado pelo Tribunal, a obrigação de entrega ao fiduciário a que alude a alínea c) do nº 4 do art.º 239º do CIRE é inexistente.” Na jurisprudência, pode ver-se a introdução de um fator corretivo, destinado a salvaguardar as particularidades do caso concreto, em RG 22.04.2021 (338/19.3T8GMR.G2), relatado por António Sobrinho, no qual se enfatiza que “[a dignidade de] tal sustento mínimo impõe-se dia a dia (durante cada um dos meses e ao longo do ano) e não se compadece com a fórmula matemática do seu apuramento mensal que na prática lhe cerceia o real rendimento ‘indisponível’ fixado de 700,00€, ao longo do período de cessão do rendimento disponível,” e em RG 29.05.2024 (4527/21.2T8VNF-E.G1), relatado por Lígia Venade, onde se pode ler que “[n]ão se trata sequer de alterar o critério mensal como orientação. Trata-se apenas de filtrar esse dever pelo respeito do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no seu art.º 1º da Constituição da República Portuguesa, bem como pela aplicação do princípio da igualdade que obriga a tratar de forma diferente situações diferentes, nomeadamente da igualdade na dignidade social consagrado no art.º 13º, n.º 1 da mesma.” Cremos que a esta solução não se opõe a natureza da cessão que, como a doutrina entende, se traduz numa efetiva cessão de bens ou de créditos futuros, que tem fonte na lei, sendo-lhe, por isso, aplicável o disposto nos arts. 577 e ss. do Código Civil. Em consequência, defende-se que os rendimentos auferidos durante este período se transferem no momento em que são adquiridos e independentemente do consentimento dos devedores dos rendimentos (arts. 408/1 e 577/1 do Código Civil), sendo acompanhados das garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art. 582/1 do Código Civil). Neste sentido Carvalho Fernandes / João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado cit., p. 860), Carvalho Fernandes (“A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no Direito Português” Carvalho Fernandes / João Labareda, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, Lisboa: Quid Juris, 2009, pp. 275 e ss., Alexandre de Soveral Martins (Um Curso de Direito da Insolvência, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 627-628), Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 411) e Luís Menezes Leitão (Direito da Insolvência, 10.ª edição, Coimbra: Almedina, Coimbra, 2021, p. 329). Na verdade, não passando a cessão de uma fictio iuris, posto que os rendimentos são efetivamente recebidos pelo insolvente e depois entregues ao fiduciário, que os afeta, no final de cada ano, aos pagamentos e reembolsos previstos no n.º 1 do art. 241 do CIRE, a sua concretização pressupõe, a montante, a definição do rendimento disponível, a qual é feita por via da exclusão do que seja indisponível. É nesse momento que o juiz tem de definir o critério a atender para esse efeito. Nesta perspetiva, o advérbio de modo imediatamente que é utilizado na alínea c) do n.º 4 do art. 239 do CIRE mais não significa que o rendimento disponível, aquele que é objeto de cessão, deve ser entregue assim que realizada a dita operação de liquidação, sem necessidade de qualquer interpelação para esse efeito. *** 1).6. Finalmente, o juízo a fazer no despacho inicial de exoneração assenta na situação de facto existente nesse momento (cf. art. 611/1 do CPC). Trata-se de um juízo de prognose: o juiz perspetiva, com os dados aos seu dispor, o que previsivelmente irá suceder ao longo do período da cessão. Como é evidente, a realidade ulterior pode vir a infirmar esse juízo. Nesta hipótese, é de admitir a modificação do decidido com fundamento na cláusula rebus sic stantibus (arts. 282/2 e 619/2 do CPC). Estamos, afinal, perante uma obrigação – a de entregar o rendimento disponível – duradoura. No art. 239/3, iii), do CIRE contém-se um afloramento desta regra quando se escreve que do rendimento disponível podem ser posteriormente excluídas, pelo juiz, as quantias que se mostrem necessárias à satisfação de outras despesas do devedor não contempladas no despacho inicial. A propósito desta norma, pode ver-se RC 03.06.2014 (747/11.6TBTNV-J.C1), relatado por Henrique Antunes, no qual se escreve que "[a] fixação, no despacho inicial, do rendimento disponível não é imodificável, já que, mesmo depois do seu proferimento - e mesmo depois do seu trânsito em julgado - o juiz pode excluir desse rendimento, a requerimento do insolvente, do que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor (artº 239 nº 3, iii), do CIRE)." De igual modo, RP 13.06.2023 (1804/18.3T8VNG.P1), relatado pelo por Artur Dionísio Oliveira. Nesta Relação, RG 15.05.2021 (97/18.7T8MGD-B.G1), já citado, RG 22.06.2023 (1824/20.8T8GMR.G1), ambos relatados por José Alberto Moreira Dias; também RG 10.07.2023 (3785/20.4T8VCT-B.G1), relatado por José Carlos Pereira Duarte, e RG 7.12.2023 (5365/19.8T8VNF.G1), relatado por Alexandra Viana Parente Lopes. Esta jurisprudência visa, como dissemos, situações em que houve um aumento das despesas do insolvente; mas não exclui idêntica ponderação, no sentido da modificação do caso julgado constituído pelo despacho inicial, quando ocorra uma alteração superveniente da natureza dos rendimentos auferidos pelo insolvente. Neste sentido, RG 29.05.2024 (6134/20.8T8VNF.G1), do mesmo Relator. *** 2).1. Aqui chegados, vejamos o caso à luz das precedentes considerações.Assim, resulta da fundamentação de facto da decisão recorrida, não impugnada, que o Recorrente tem como único rendimento o produto do seu trabalho como assistente operacional, por conta do Estado, no montante da base remuneratória da Administração Pública, que é, desde 1 de janeiro do presente ano (2024), € 821,83, cf. resulta do DL n.º 108/2023, de 22.11. Acrescem os subsídios de férias e de Natal, cada um deles de igual montante. Vive em casa de um filho, contribuindo para as despesas domésticas com o montante mensal de € 100,00. Tendo presente o volume desta despesa – a única que resultou especificamente provada – e, bem assim, o volume previsível das demais despesas quotidianas, este aferido à luz das regras do id quod plerumque accidit, entendemos que o montante do rendimento indisponível definido pelo Tribunal a quo se apresenta como adequado. Aliás, assim também entenderá o Recorrente que, neste particular, não faz qualquer reparo à decisão recorrida. Entendemos também que sendo o rendimento mensal recebido pelo Recorrente não inferior ao adrede definido como rendimento indisponível, não há fundamento para que os subsídios de férias e de Natal – ou sequer uma parte deles – não integre o rendimento disponível. Apenas há que ressalvar, como verdadeira válvula de escape, a hipótese de, por qualquer razão (v.g., incapacidade para o trabalho por doença), o resultado da divisão por doze (meses do ano civil) do montante anual global dos rendimentos do Recorrente ser inferior à base remuneratória da Administração Pública para o período considerado. Nesta hipótese, em harmonia com o que escrevemos, os subsídios de férias e de Natal serão necessários para assegurar o sustento minimamente digno do Recorrente, pelo que devem ser imputados no rendimento indisponível. A não introdução desta ressalva, importante face a possíveis variações dos rendimentos do devedor, como referido na Conclusão 23.ª do recurso, é a única censura que merece a decisão recorrida. Em tudo o mais, esta decisão apresenta-se como correta, não merecendo provimento as Conclusões do recurso que foram formuladas no sentido da sua revogação. *** 3) Não havendo norma que preveja isenção (art. 4.º/2 do RCP), o presente recurso está sujeito a custas. A responsabilidade pelo seu pagamento deve ser fixada nesta sede: art. 607/6, ex vi do art. 663/2.No art. 527/1 diz-se que “[a] decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.” De acordo com o n.º 2 do preceito, presume-se iuris et de iure que dá causa à ação, incidente ou recurso quem perde. Assim, de acordo com José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 419, “[q]uanto à ação, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento).” Concluímos, deste modo, que o princípio da causalidade continua a funcionar em sede de recurso, devendo a parte neste vencida ser condenada no pagamento das custas, tendo presente, contudo, a especificidade acima apontada quanto à constituição da obrigação de pagamento da taxa de justiça, pelo que tal condenação envolve apenas as custas de parte e, em alguns casos, os encargos. Apenas nos casos em que não haja vencedor nem vencido, onde, por isso, não pode funcionar o princípio da causalidade consubstanciado no da sucumbência, rege o princípio subsidiário do proveito processual, de acordo com o qual pagará as custas do processo quem deste beneficiou. Dito de outra forma, sempre que haja um vencido, com perda de causa, é sobre ele que deve recair, na precisa medida desse decaimento, a responsabilidade pela dívida de custas. Fica vencido quem na causa não viu os seus interesses satisfeitos; se tais interesses ficam totalmente postergados, o vencimento é total; se os interesses são parcialmente satisfeitos, o vencimento é parcial. Conforme se referiu em RL 22.01.2019 (45824/18.8YIPRT-A.L1), “existindo um vencedor, por princípio e natureza, não lhe pode ser imputada a responsabilidade pela obrigação do pagamento das custas por ser de afastar, naturalmente, a causalidade. Ou seja, por regra, o vencedor é aquele que obteve ganho de causa. Ainda que este ganho de causa implique necessariamente um proveito, não é este proveito que releva quando se recorre ao respetivo princípio subsidiário, pois que, tal como resulta do n.º 1 do art. 527°, n.º 1 do CPC, apenas não havendo vencimento é que funciona o critério subsidiário do proveito. Mas havendo um vencedor e não se encontrando uma parte vencida, esta não pode ser condenada no pagamento de custas porque não se verifica a causalidade (não deu causa à ação ou ao recurso), mas também aquele não o pode ser precisamente por ter havido vencimento (o que afasta o critério do proveito). Nestas situações, impõe-se encontrar uma outra solução. Será apenas quando perante a resolução do litígio não se descortine nem um vencido, nem um vencedor, que a responsabilidade tributária terá de assentar então no critério do proveito, isto é, em função das vantagens obtidas.” No caso vertente, o recurso improcede em parte, pelo que o Recorrente é, nessa medida, parte vencida; na parte em que o recurso procede, não havendo parte vencida, foi o Recorrente quem dele tirou proveito. Deve, portanto, suportar as custas. Isto sem prejuízo do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo de que beneficia. *** V.Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, em: - Revogar a decisão recorrida na parte em que estabeleceu que o montante do rendimento indisponível do Recorrente é sempre calculado numa base mensal, substituindo-a por outra a estabelecer que, sendo essa a regra, assim não sucederá quando, em qualquer um dos anos do período de cessão, o resultado da divisão por doze do montante anual global dos rendimentos do Recorrente for inferior à base remuneratória da Administração Pública para o período considerado, caso em que os subsídios de férias e de Natal serão, na medida do necessário, imputados no rendimento indisponível; - Confirmar, em tudo o mais, a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente. Notifique. * Guimarães, 31 de outubro de 2024 Os Juízes Desembargadores, Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães 1.ª Adjunta: Alexandra Viana Parente Lopes 2.º Adjunto: João Peres Coelho [1] No entender de Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade”, AAVV, Catarina Serra (coord.), III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 195, as obrigações continuam a existir, não como obrigações civis, suscetíveis de execução judicial, mas como obrigações naturais, cujo cumprimento, não sendo judicialmente exigível, corresponde a um dever de justiça. |