Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6608/20.0T8VNF-H.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
CULPA NO AGRAVAMENTO DA SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O pedido de exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferido quando constem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
II- Assim sucede quando esses elementos integrem a previsão de uma das presunções absolutas previstas no art. 186.º, n.º 2, do CIRE, que pela sua natureza sejam adequadas às pessoas singulares, como sucede com a prevista na alínea d), nos termos da qual se presume que o devedor que dispôs de bens em proveito de terceiros nos três anos anteriores ao início do processo criou ou agravou, de forma culposa, a situação de insolvência.
III- Estando demonstrado que o insolvente, sete meses antes do início do processo de insolvência, quando já tinha dívidas vencidas, constituiu uma hipoteca sobre um prédio de que era proprietário e, depois, doou esse mesmo prédio à sua filha menor de idade, tem de concluir-se pelo preenchimento da referida presunção e, em consequência, deve indeferir-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, independentemente do comportamento ulterior do insolvente no processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) Através de petição inicial apresentada no dia 30 de novembro de 2020, Banco 1..., SA, pediu a declaração de insolvência de AA alegando, em síntese, que: é titular de créditos sobre a Requerida cujo montante total ascende a € 38 067,13; a Requerida tem outras dívidas, ascendendo o total do seu passivo a € 140 545,00; a Requerida não tem património nem aufere rendimentos que lhe permitam suportar esse passivo; também não tem possibilidade de recorrer ao crédito.
Citada, a Requerida admitiu os factos alegados pelo Requerente e pediu a exoneração do passivo restante, alegando, para o efeito, também em síntese, encontrarem-se verificados todos os requisitos previstos nos arts. 237 e 238 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Por sentença proferida no dia 10 de fevereiro de 2021, foi declarada a insolvência da Requerida.
Na sequência, o administrador da insolvência designado (AI)  emitiu parecer no sentido do indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante, dizendo que: a insolvente foi sócia e gerente das sociedades denominadas EMP01..., Lda., e EMP02..., Lda., conjuntamente com o seu então marido; no exercício do cargo de gerência, a insolvente avalizou diversas responsabilidades daquelas sociedades junto de várias instituições de créditos; a sociedade denominada EMP01..., Lda., foi declarada insolvente em 26/11/2019, por sentença proferida no processo n.º 6521/19...., que correu termos no Juiz ... do Juízo de Comércio de ... do Tribunal judicial da Comarca de Braga; a insolvência da sociedade denominada EMP01..., Lda., foi declarada com carácter limitado, nos termos do disposto nos arts. 39º e 191º, ambos do CIRE, uma vez que o património da sociedade não era à data suficiente para a satisfação das custas do processo e dívidas da massa insolvente; a sociedade denominada EMP02..., S.A., apresentou resultados líquidos negativos nos anos de 2016 e 2017, nos valores de € 32.451,00 e € 44.456,00, respetivamente; a EMP02..., Lda. apresentou também capitais próprios negativos, nos valores de € 18 139,00 e € 46 007,00, respetivamente; as últimas contas da sociedade denominada EMP02..., Lda., depositadas na Conservatória do Registo Comercial reportam-se ano de 2017, denotando o incumprimento das obrigações legais nos anos seguintes; a sociedade denominada EMP02..., Lda., foi declarada insolvente por sentença proferida em 27/08/2020, no âmbito do processo n.º 3772/20...., que correu termos no Juiz ... do juízo de Comércio de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga; o processo n.º 3772/20.... foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, ao abrigo do art. 230º, n.º 1, al. d) do CIRE, em 21/012/2020; à insolvente apenas é conhecido o salário no valor mensal de € 660,00 que aufere pelo desempenho das funções de assistente técnica por conta do Instituto da Segurança Social, I.P.; não foram localizados e apreendidos quaisquer bens propriedade da insolvente; foram reconhecidos créditos no valor global de € 158 887,85;  a insolvente, em Abril de 2020, conjuntamente com o então marido, confessou-se devedora de um crédito de € 100 000,00 a favor do sogro e constituiu uma hipoteca sobre metade de um prédio a favor do sogro, prédio esse que foi, posteriormente, doado à filha menor BB, através de documento particular autenticado, assinado no dia 24 de Abril de 2020; os mencionados negócios não visaram mais do que enganar e prejudicar os credores da insolvente, forjando um crédito que não se encontra demonstrado e, ao mesmo tempo, favorecendo – de forma habilidosa mas inadmissível do ponto de vista legal – o alegado credor em causa – sogro da insolvente – em detrimento de todos os outros e fazendo com esse bem imóvel/direito não integrasse o respetivo património, evitando a necessária apreensão do mesmo no âmbito do processo de insolvência; à data da realização dos negócios em causa, a insolvente estava ciente que as dívidas que tinha avalizado e afiançado reverteriam para si, na medida em que as devedoras originárias não tinham já solvabilidade para honrar as obrigações assumidas.
Os credores Banco 1..., SA, Banco 2..., SA, e Banco 3..., ... SA ..., sufragaram o parecer do AI. Os demais credores nada disseram.
A Requerida, notificada, manteve o seu requerimento e disse, em síntese, que nunca exerceu de facto a administração das sociedades EMP01... e EMP02...; o preço devido pela aquisição do direito de propriedade sobre o identificado prédio doado foi pago com dinheiro emprestado pelo seu sogro; este exigiu que fosse constituída uma hipoteca para garantia da restituição do tantundem e que a propriedade fosse transmitida para a esfera jurídica da sua filha; não atuou, por isso, de má fé.
Foi proferido despacho a: afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; fixar o valor processual do incidente em € 158 887,85; delimitar o objeto processual; enunciar os temas da prova.
Realizou-se audiência de produção de prova e, no final, foi proferida decisão a indeferir liminarmente o requerimento de exoneração do passivo restante, por se ter entendido não estar verificado o requisito negativo constante da alínea e) do n.º 1 do art. 238 do CIRE, tendo a Requerida contribuído com culpa grave para a situação de insolvência.
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2) Inconformada com a decisão acabada de referir, a Requerida (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, no qual, depois de ter afirmado que foi violado o disposto no art. 238 do CIRE, concluiu nos seguintes termos:

“1. A Insolvência de AA, adveio do facto de ter avalisado vários pedidos de empréstimos a instituições de créditos, formalizados pelas pessoas coletivas EMP01..., Lda., e EMP02..., Lda.
2. Sociedades comerciais, das quais era sócia conjuntamente com o ex-marido CC.
3. E das quais, durante algum tempo, esteve registada como sua sócia gerente, mas sem que, alguma vez, de facto, exercesse tal função.
4. Sociedades Comerciais, que como consta dos autos e se deu como provado, sempre foram geridas, de facto, pelo CC.
5. Porquanto a Insolvente, desde 2002, sempre foi funcionária Pública, na Escola ... e no Centro Regional de Segurança Social, onde ainda continua.
6. Funções que desempenhou sempre a tempo inteiro, em horário normal de expediente, cinco dias por semana.
7. A Insolvente, filha única é mãe de BB, nascida a ../../2005, fruto do casamento com CC.
8. A Insolvente, aufere, € 876,31, do qual se sustenta e sustenta a filha BB, recém-entrada na Universidade, já que o pai, CC, deixou de liquidar a prestação de alimentos a que estava obrigado (levando a Insolvente a reclamar nos processos 943/21.... – Juízo de Família e Menores de Braga – Juiz ... e apresentar queixa no Ministério Público - Departamento de Investigação e Ação penal de Braga 3ª Secção, Processo Nº. 4598/22....).
9. Com a requerida Insolvência, a mesma, passou a residir, com a filha, em casa arrendada, no concelho ..., deixando livre de pessoas o prédio, onde residia e no qual era proprietária de 1/2 (metade), que detinha conjuntamente com o ex-marido.
10. Imóvel este que a Requerente, em 2017, tinha adquirido com o ex-marido CC, bem assim com o irmão deste e seu cunhado – DD;
11. Imóvel, este, adquirido em grande parte, com dinheiro cedido pelo sogro.
12.Ficando o referido prédio na titularidade de ½ (metade da insolvente e do marido) e a outra metade do cunhado DD.
13. A insolvente divorciou-se em ../../2020.
14. Exigindo ainda, o sogro, a efetivação de uma escritura de mútuo com hipoteca, e a doação da parte do ... e da insolvente à neta, BB (negócios e referências, descritos nos Pontos 7 e 8 da douta sentença).
15. Decorre que, as empresas EMP01... e EMP02..., insolveram em 26/11/2019 e em 27/08/2020 respetivamente.
16.Tendo os credores, reclamado da aqui insolvente os respetivos créditos.
17.Tendo comunicado, de imediato ao Banco 1..., da sua impossibilidade em cumprir com as suas obrigações.
18.Preparando-se para requerer a sua insolvência, atenta a situação em que ficou, pois, desconhecida as situações em que os créditos e o seu cumprimento se encontravam, viu, por antecipação, o credor Banco 1..., requerer a sua insolvência, cuja sentença transitou em julgado em 03/03/2021.
19. Situação de insolvência esta, que apesar de não ter sido requerida pela Insolvente, foi reconhecida, de imediato;
20. Sem que, tal facto, como reconhecido nos autos e respetiva sentença, tivesse originado atrasos, constrangimentos ou prejuízos aos credores.
21.Reconhecendo, assim a requerida AA, a sua efetiva e real situação de Insolvência, para a qual foi “arrastada” em virtude da incúria com que o ex-marido CC, geriu as empresas e os respetivos créditos contraídos, avalizados pela mesma.
22.Pelo que, a insolvência, de AA, não advém, do facto da mesma incumprir com as suas obrigações pessoais, nem da má gestão dos seus recursos financeiros, mas sim do facto, de ter avalizado débitos das referidas empresas.
23.CC, que, como se demonstrou, sempre exerceu uma administração, autocrática, nada conferenciando, com a sua mulher e sócia das empresas.
24.Assim se podendo e devendo concluir, que a insolvente, ainda que quisesse e pudesse, não lhe era permitida, a ingerência nas empresas e assim acompanhar, ainda que superficialmente, a situação económica e financeira das mesmas.
25.Concluindo o tribunal a quo, em jeito de decisão final, que a Insolvente, no processo de doação, á filha, conjuntamente com o ex-marido, quis ocultar o imóvel, casa de morada de família, facto que, salvo o devido respeito, não existiu.
26.Situação, de resto, que a insolvente, justificou nos autos e audiência final, porquanto o comportamento tido, resultou da exigência do marido e do sogro EE.
27.Decorre que, os créditos eram anteriores á compra do imóvel e á doação de parte á filha.
28.Nenhum encargo ou ónus recaia, sobre o imóvel.
29.Nenhuma garantia, foi exigida, á data da contração das dívidas pelos credores;
30.A Insolvente, era apenas proprietária de ¼ (um quarto) do imóvel.
31.Em todo o caso de boa fé e em colaboração, não se opôs á venda da sua quota parte (ao caso ¼) a favor dos credores.
32.Não impugnou nem colaborou nas resoluções, dos negócios efetuados.
33.Facilitando assim, a venda da sua parte, da casa.
34.Comunicou, por carta tal facto ao Administrador de Insolvência, de forma a poderem dispor, conforme fosse entendido, nomeadamente vendendo-o e fazendo reverter o respetivo valor a favor dos credores.
35. Comunicou, por carta a sua nova residência, ao Sr. Administrador.
36.O Sr. Administrador, na audiência final, manifestou-se favoravelmente, á concessão da Exoneração do Passivo Restante, atenta a colaboração e comportamento exemplar, prestado pela insolvente.
37.Atitude, a da Insolvente, que em nada frustrou ou prejudicou os credores.
38. A Insolvente, facultou toda a documentação, de que dispunha, uma vez que a maior parte dos documentos, nomeadamente dos créditos, ficaram na posse do sócio gerente e ex-marido CC,
39.Facultou cópia dos cheques bancários passados pelo sogro EE para aquisição da casa.
40. O pedido foi tempestivo;
41.A Insolvente, não forneceu, com dolo ou culpa grave, por escrito, á data do inicio do processo de insolvência informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista á obtenção de créditos ou outros ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
42. A Insolvente nunca beneficiou da exoneração do passivo restante,
43. Não existem elementos que indiciem culpa grave da insolvente na criação ou agravamento da situação de insolvência, das empresas.
44. Apesar de requerida, por um dos credores, a insolvente, veio desde logo, reconhecer a sua situação de insolvente, prestando toda a informação e documentação aos autos, sendo que, tal facto, como refere a douta sentença, não gerou qualquer impedimento, constrangimento, atraso ou prejuízo para os credores;
45. A Insolvente, nunca foi condenada por nenhum dos crimes previstos e punidos nos Artigos 227º a 229º do Código Penal, nem antes nem depois do presente processo.
46. A Insolvente em momento algum, violou, com dolo ou culpa grave os deveres de informação e colaboração no decurso do processo de insolvência.
47. De todos os noves credores, reconhecidos, apenas, o Banco 1..., se manifestou contra o deferimento da requerida exoneração.
48. Na audiência final, o Sr. Administrador de Insolvência, atenta a postura reta e exemplar da Insolvente, emitiu parecer favorável á concessão da Exoneração do Passivo Restante.”
Pediu que, na procedência do recurso, seja revogada a decisão recorrida e deferido liminarmente o requerimento de exoneração do passivo restante.
Não foi apresentada qualquer resposta.
O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
Foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, no caso, atendendo às conclusões transcritas, a intervenção deste Tribunal de recurso deve recair sobre a questão que se pode sintetizar nos seguintes termos: a decisão recorrida, ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente (Recorrente), com fundamento no disposto no art. 238/1, e), do CIRE, incorreu em erro na subsunção dos factos à previsão da norma aplicada.
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III.
1).1. Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos, que a Recorrida não colocou em causa (transcrição):
“1. Por sentença exarada em 10.02.2021, transitada em julgado em 03.03.2021, AA foi declarada insolvente e fixada a sua residência na Rua ..., ..., ..., ... ..., após apresentação, em 30.11.2020, do respetivo pedido pelo Banco 1..., S.A.
2. Por requerimento de 16.02.2021, a insolvente informou que “(…) não possui bens em regime de arrendamento, aluguer, locação financeira, ou venda com reserva de propriedade, ou outros. 2- A Requerida não possuiu outros direitos. (…)”.
3. A insolvente até ../../2018 foi sócia-gerente, conjuntamente com o seu então marido CC, das sociedades comerciais que giraram sob as firmas “EMP01..., Lda.” e “EMP02..., Lda.,”, respetivamente pessoas coletivas números ...39 e ...01, data em que renunciou às gerências.
4. No exercício do cargo de gerência, a insolvente avalizou diversas responsabilidades daquelas sociedades junto de várias instituições de créditos.
5. A gestão de facto das sociedades mencionadas em 3 era diariamente encetada por CC, ex-marido da insolvente.
6. As sociedades comerciais identificadas em 3 foram declaradas insolventes respetivamente em 26.11.2019 e em 27.08.2020, por sentenças proferidas nos processos n.ºs 6521/19.... e 3772/20...., que correram termos no Juiz ... e no Juiz ... do Juízo de Comércio de ... do Tribunal judicial da Comarca de Braga, tendo sido encerrada, a primeira, com carácter limitado, e esta última, por insuficiência da massa insolvente, em 21 de dezembro de 2020.
7. Em 20 de Abril de 2020, a insolvente conjuntamente com o seu ex-marido, CC, como segundos outorgantes, celebraram um acordo com FF, enquanto primeiro outorgante, o qual apresentaram a autenticação ao solicitador, sr. dr. GG e denominaram de “Contrato de mútuo com hipoteca”, no qual acordaram, entre o mais que “(…) o primeiro outorgante emprestou, até apresente data, aos segundos outorgantes o montante total de € 100.000,00 (cem mil euros).
Os segundos outorgantes confessam-se, desde já, devedores de todas as quantias que o primeiro outorgante entregou a título de empréstimo até àquele momento de cem mil euros, comprometendo-se a liquidar integralmente a quantia mutuada até ao dia ../../2030, impreterivelmente.
Este empréstimo não vence qualquer juro.
Que, para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, os segundos outorgantes constituem a favor do primeiro outorgante, hipoteca sobre um meio indiviso de que são proprietários no prédio urbano composto por casa de ..., andar e logradouro, sito no Lugar ..., na freguesia ..., do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...14, lá registado a favor dos Segundos e Terceiro Contraentes pela inscrição Ap. ...51 de ...6, e inscrito na matriz predial sob o artigo ...06.º, com o valor patrimonial tributável correspondente de € 57.610,00, ao qual atribuem o valor de CEM MIL EUROS (…)”.
8. Em 24 de Abril de 2020, a insolvente conjuntamente com o seu ex-marido, CC, por si e em representação da filha menor de ambos, BB, celebraram um acordo que denominaram de “CONTRATO DE DOAÇÃO”, o qual apresentaram a autenticação ao solicitador, sr. dr. GG, no qual acordaram que “(…) Que, pelo presente contrato, os contraente doam à sua filha e representada o seguinte imóvel: ½ do Prédio Urbano composto por casa de ..., andar e logradouro, sito no Lugar ..., na freguesia ..., do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...14, lá registado a favor dos doadores pela inscrição Ap. ...51 de ...6, e inscrito na matriz predial sob o artigo ...06.º, com o valor patrimonial tributável correspondente de € 58.474,15.
Incide sobre o referido imóvel uma hipoteca voluntária registada a favor de FF, pela inscrição Ap. ...86 de 2020/04/21. (…) Esta doação, a que atribuem o valor de 30.000,00 € (trinta mil euros), é feita por conta da quota disponível da donatária. (…) Declaram os primeiros contraentes em nome da sua representante donatária, que aceitam a presente doação nas condições mencionadas (…)”.
9. A aquisição da propriedade da insolvente sobre o prédio identificado em 7 era titulada pela apresentação número 1151 de 26.04.2017, constante da descrição predial com o número ...80 da Freguesia ... da ... Conservatória do Registo Predial ....
10. A hipoteca mencionada em 7 titulou a apresentação número 386 de 21.04.2020, constante da descrição predial mencionada em 9.
11. O acordo mencionado em 8 deu origem à apresentação n.º 1503 de 29.04.2020 sobre a descrição melhor identificada no ponto 9.
12. Não foram localizados e apreendidos quaisquer bens propriedade da insolvente.
13. Foram reconhecidos pelo sr. AI créditos no valor global de € 158.887,85 que, por sentença de 07.12.2023, foram declarados verificados e graduados.
14. Por notificação remetida pelo sr. AI, em 26/03/2021, foi solicitado à Insolvente, a FF e a CC junção de qualquer comprovativo do pagamento/recebimento da quantia alegadamente mutuada, bem como do pagamento do preço de aquisição do prédio urbano referenciado em 7, que constituiu a casa de morada de família da insolvente e respetivo agregado familiar.
15. Antes dos acordos mencionados em 7 e em 8, tinham-se vencido os créditos sobre a insolvente: • crédito do EMP03..., S.A., referente ao contrato de crédito pessoal n.º ...01, constituído em 26/07/2017, no valor global de € 15.695,59; • crédito do Banco 2..., S.A., referente aos contratos de crédito n.º ...55 e ...27, celebrados em 20/07/2018 e 14/01/2019, com as sociedades denominadas EMP02..., Lda. e EMP01..., Lda. e avalizados pela insolvente, no valor global de € 16.748,17; • crédito do Banco 4..., S.A – EMP04..., referente ao contrato de mútuo com reserva de propriedade n.º ...33, celebrado com a sociedade denominada EMP01..., Lda. e avalizado pela Insolvente, em 16/10/2018 e resolvido pelo credor por incumprimento em 07/02/2020, no valor global de € 3.436,41; • crédito da Banco 3..., ... S.A. ..., referente ao contrato de mútuo com fiança n.º ...33, celebrado com a EMP02..., Lda. e avalizado e afiançado pela Insolvente, em 25/01/2017 e com vencimento em 15/09/2019, no valor de € 6.696,27, ao contrato de mútuo com fiança n.º ...96, celebrado com a EMP01..., Lda. e afiançado pela Insolvente, em 17/09/2018 e com vencimento em 05/08/2019, no valor de € 22.831,81, ao contrato de mútuo com fiança n.º ...60, celebrado com a EMP01..., Lda. E afiançado pela insolvente, em 14/01/2019 e com vencimento em 10/09/2019, no valor de €10.074,53, e ao contrato de mútuo com fiança n.º ...67, celebrado com a EMP01..., Lda. e afiançado pela Insolvente, em 14/01/2019 e com vencimento em 26/11/2019, no valor de € 10.176,17; • crédito do Instituto da Segurança Social, I.P., referente a contribuições dos meses de Fevereiro, Maio e Agosto, todos de 2018, em que é devedora originária a sociedade denominada EMP01..., Lda. e revertida a Insolvente, no valor global de € 1.008,87; • crédito da EMP05..., S.A., referente à garantia autónoma n.º ...18, emitida em ../../2016, em nome da EMP02..., Lda. e avalizada pela insolvente, e com vencimento em 02/03/2020, no valor de € 7.146,01; • crédito da Banco 5..., referente a contrato de crédito “cartão ...”, celebrado em ../../2018, no valor de € 461,22; • crédito da EMP06..., Lda., referente a contrato de arrendamento celebrado com a sociedade denominada EMP02..., Lda., em 07/02/2019, e afiançado pela insolvente, com vencimento no mês de Julho de 2019, no valor global de € 10.440,41; • crédito do Banco 1..., S.A., referente ao contrato de mútuo n.º ...72, celebrado em ../../2019 e com vencimento em 23/09/2019, e à livrança n.º ...91, emitida em nome da sociedade denominada EMP01..., Lda. em 20/07/2018 e avalizada pela Insolvente, com vencimento em 17/02/2020, no valor global de € 38.067,13.
16. À data da declaração da insolvência da insolvente os créditos elencados em 15 estavam por liquidar.
17. Em 03.05.2021, o sr. AI apreendeu para a massa insolvente a “(…) meação conjugal sobre ½ do prédio urbano composto por casa de ..., andar e logradouro, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na 1ª Conservatória ... sob o n.º ...80 e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ...06 (…)”.
18. A apreensão mencionada em 17 titulou a apresentação n.º 2160 de 29.06.2021 inscrita na descrição predial mencionada em 9.
19. Por comunicações dirigidas pelo AI à insolvente e a CC, recebidas em 04.05.2021, foram resolvidos em beneficio da massa os acordos mencionados em 7 e em 8, com efeitos imediatos.
20. Em 04.08.2021, FF intentou contra a massa insolvente ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, pedindo, a final, a título principal, a declaração da nulidade da resolução levada a cabo pelo Senhor Administrador, mesma não se mostrar devidamente fundamentada, e, a título subsidiário, que seja declarada a invalidade ou a ineficácia da invocada resolução, por não se mostrarem verificados os requisitos necessários e inerentes, quer à resolução condicional, quer à resolução incondicional.
21. Por requerimento junto aos autos em 14.09.2023, FF, conjuntamente com DD, e a massa insolvente celebraram acordo, no âmbito da qual foi vendida a DD a quota parte da insolvente a sobre o imóvel identificado em 6, pelo preço global de 45.000,00€.
22. O acordo mencionado em 21 foi homologado por sentença em 12.10.2023.
23. O preço mencionado em 21 foi pago à massa insolvente em 17.08.2023.
24. A insolvente não tem averbamentos no seu certificado de registo criminal.”
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1).2. Para além dos factos que antecedem, há que considerar o seguinte, revelado pelo iter processual a cuja consulta procedemos através da plataforma informática de apoio à atividade dos tribunais (Citius):
25. Não foi aberto o incidente de qualificação da insolvência.
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2).1 O instituto da exoneração do passivo restante foi introduzido entre nós pelo CIRE (arts. 235 a 249), tendo por base o modelo do fresh start, com origem no ordenamento jurídico norte-americano (Bankruptcy Act de 1898), depois incorporado na legislação alemã (§§ 286 a 303 da InsO).
O modelo parte da constatação de que, numa economia de mercado, é comum que uma pessoa singular se torne devedora de créditos que excedem largamente a medida da sua capacidade patrimonial.
O que se pretende é evitar que aqueles que, tendo atuado de boa-fé, num sentido objetivo, enquanto norma de conduta, mas que, por circunstâncias várias, em virtude dos normais riscos associados à contratação, se viram na referida situação, sejam definitivamente afastados do mercado. Para tanto, procede-se à afetação, durante certo período de tempo após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não puderam ser satisfeitos por essa via.[1] A intenção é, portanto, a de liberar o devedor das suas obrigações, realizando uma espécie de azzeramento da sua posição passiva remanescente, para que, “depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for o caso disso, o exercício da sua atividade económica ou empresarial” (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 610-611).
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2).2. Como foi escrito, a exoneração do passivo restante encontra-se regulada nos arts. 235 a 249, integrada no título XII, relativo à insolvência das pessoas singulares.
Pode ser concedida quando os créditos da insolvência – i. é, todos os créditos de natureza patrimonial que existam sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data de declaração de insolvência (art. 47/1 e 2) – não obtenham pagamento integral no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento (art. 235, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11.01).
Não existe, por contraposição, uma libertação quanto às dívidas da massa insolvente, previstas no art. 51, dada a sua natureza e o regime preferencial do seu pagamento.[2]
Apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que todos os créditos tenham ficado satisfeitos, o devedor pessoa singular fica adstrito ao pagamento dos credores, durante três anos, findos os quais, poderá ser-lhe judicialmente concedida a exoneração do passivo restante, uma vez cumpridos determinados requisitos.
Deste modo, a exoneração é, acima de tudo, uma medida de proteção do devedor (Assunção Cristas, “Exoneração do passivo restante”, Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 167).  Com efeito, se não fosse declarado insolvente, o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas, sem prejuízo da eventual prescrição (art. 309 do Código Civil), em respeito pelo princípio pacta sunt servanda.
De acordo com Catarina Serra (Lições cit., p. 614), o instituto tem, no entanto, vantagens que apresentam um alcance mais geral: ao constituir um estimulo à diligência processual do devedor, permite o início mais atempado do processo de insolvência, ajudando a atenuar uma das maiores preocupações do legislador – o chamado timing problem; por outro lado, permite a tendencial uniformização dos efeitos da declaração de insolvência, mais particularmente dos efeitos do encerramento do processo, estendendo aos devedores singulares o benefício exoneratório que resulta para as sociedades comerciais do registo do encerramento após o rateio final (art. 234/3), consequência da extinção da respetiva personalidade jurídica; finalmente, acaba por produzir um impacto positivo na economia: “quanto mais restrito é o acesso ao crédito – mais exigente quem o concede e mais responsável quem o pede – menor é o risco de sobreendividamento e menos provável a insolvência dos consumidores e dos empresários em nome individual.”
 Já do ponto de vista dos credores, afigura-se duvidoso que o instituto apresente vantagens, ao contrário do que escrevem autores como Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 366, e Letícia Gomes Marques, “O regime especial de insolvência de pessoas singulares”, Revista de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, 2013, n.º 2, p. 137, disponível em https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/3260 [20.09.2023], para quem a exoneração constituiu uma dupla oportunidade de satisfação dos seus créditos: durante o processo de insolvência e durante o chamado “período de cessão.” No mesmo sentido, RP 10.20.2020, 1066/13.9TJPRT.P1, relatado por Eugénia Cunha. Na verdade, com a exoneração, cada um dos credores fica novamente sujeito a um rateio. Para os credores da insolvência, esse rateio é restrito ao remanescente do pagamento dos credores a massa (art. 241/1, d)). Como nota Catarina Serra, Lições cit., p. 614, nota 1168, “[s]e não houvesse exoneração, não haveria rateio; a satisfação do credor dependeria apenas da sua diligência processual e da data de prescrição do seu crédito, o que não poucas vezes representaria um aumento do prazo para agir executivamente contra o devedor. O período de cinco anos [que a Lei n.º 9/2022, de 11.01, reduziu para três] não é, além do mais, suficientemente longo para que seja frequente o devedor reconstituir-se in bonis de forma a pagar, dentro desse período, de forma satisfatória, a todos os que permanecessem seus credores.”
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2).3 Segundo o art. 236/1, na redação do DL n.º 79/2017, de 30.06, “[o] pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.”
Como resulta da sua inserção sistemática, já referida, o instituto não é aplicável às pessoas coletivas, entes que nem sequer dele necessitariam, na medida em que se dissolvem com a declaração de insolvência e veem, por conseguinte, a sua personalidade jurídica ser definitivamente extinta com o registo do encerramento da liquidação.
Em regra, sobre o devedor recai um dever de apresentação à insolvência nos 30 dias subsequentes ao conhecimento da sua situação insolvencial (art. 18/1). Se o devedor for titular de uma empresa, presume-se que ele conhece a sua situação de insolvência, de modo inilidível, se já não satisfizer há 3 meses as suas dívidas tributárias, de contribuições para a Segurança Social, entre outras (arts. 18/3 e 20/1, g)). Assim, se o devedor incumprir este dever de apresentação, presume-se a sua culpa grave (art. 186/3, a), ex vi do art. 186/4), mas não se indefere liminarmente o pedido de exoneração, a não ser que exista prejuízo para os credores e que o devedor soubesse, ou não pudesse ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (art. 238/1, d)).
Por conseguinte, o não cumprimento atempado do dever de apresentação à insolvência não significa que o pedido de exoneração seja tido como feito fora de prazo, uma vez que ainda terão de estar verificados cumulativamente estes requisitos.
Se o devedor não for titular de uma empresa na data em que incorre em insolvência, aquele dever não existe, tendo apenas o devedor de se apresentar à insolvência, no prazo de seis meses a contar da verificação da sua situação insolvencial, para que o pedido de exoneração não seja indeferido liminarmente (arts. 18/2 e 238/1, d)).
Assim sendo, se o pedido de exoneração for feito tempestivamente, o juiz terá sempre de admiti-lo para que seja submetido à assembleia de apreciação do relatório ou dos credores e do administrador da insolvência (art. 236/1 e 4).
Como se afigura evidente, este pedido é totalmente incompatível com um plano de insolvência (art. 237, c)), uma vez que os efeitos da exoneração já resultam da homologação deste (art. 197, c). Ademais, caso o devedor não tenha, aquando da apresentação de um plano de pagamentos, declarado pretender a exoneração do passivo restante, se o plano não for aprovado, esta não lhe pode ser concedida (art. 254). Daqui também resulta que quem for beneficiário de um plano de pagamentos não pode obter a exoneração do passivo restante e vice-versa.
Relativamente ao conteúdo do pedido, do requerimento deverá constar expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas por lei para poder obter a exoneração (art. 236/3). Deverá estar nele contido, de modo expresso, o pedido de exoneração do passivo restante, a referência de que se encontram verificados todos os requisitos de que depende a exoneração e uma menção em como o devedor se dispõe a observar todas as condições que lhe serão impostas no despacho inicial.
A falta de um destes elementos terá como consequência imediata a prolação de despacho de aperfeiçoamento, por aplicação analógica do art. 27/ 1, b), que permite a correção de vícios sanáveis que afetem a petição inicial de declaração de insolvência.
Uma vez apresentado o requerimento de exoneração do passivo restante, o devedor goza do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que as mesmas não sejam pagas pela massa insolvente e pelo seu rendimento disponível durante o período da cessão (art. 248). O mesmo sucede quanto à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado. Uma vez concedida a exoneração, o devedor beneficiará do pagamento em prestações de tais montantes, podendo decorrer este para lá dos 12 meses (art. 33 do Regulamento das Custas Processuais ex vi do art. 248/2).
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2).4. As consequências da exoneração do passivo restante explicam os especiais cuidados colocados pelo legislador na sua concessão que se refletem, desde logo, na previsão de várias etapas até ao alcançar daquele resultado.
Assim, o procedimento tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração.
A liberação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida, nem faria sentido que o fosse, logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial (art. 239/1).
Nessa fase, o que está em causa é, no dizer se Assunção Cristas, ob. cit., pp. 169-170, o “aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado de dívidas, mas a oportuni­dade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável.”
No fundo, citando o Ac. do TC n.º 487/2008, de 7.10.2018, “o despacho inicial em questão só “promete” conceder a exoneração efetiva do passivo restante, se o devedor ao longo de cinco anos [agora três], observar certo comportamento que lhe é imposto no despacho liminar nos termos legais. A libera­ção definitiva do devedor quanto ao passivo restante apenas é concedida pelo despa­cho regulado no artigo 244.º, do CIRE, após ter decorrido o período de cinco anos [agora três] sobre o encerramento do processo de insolvência e se, entretanto, não tiver havido fundamento para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do artigo 243.º, do CIRE.”
Neste contexto, compreende-se que o CIRE tenha estabelecido fundamentos que justificam a não concessão da exoneração do passivo restante, os quais, grosso modo, se traduzem em comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuí­ram ou a agravaram ou que redundam no incumprimento de deveres processuais. É que, como se sintetiza em RC 7.03.2017, 2891/16.4T8VIS.C1, relatado por Jorge Loureiro, “i) a exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores; ii) a excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.”
Os referidos fundamentos podem operar em vários momentos do procedimento de exoneração: no da apreciação liminar do pedido de exoneração (art. 238/1); no da cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243/1, b); no da recusa da exoneração (art. 244/2); no da revogação da exoneração (art. 246/1).
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2).5. Os fundamentos de indeferimento liminar, expressão que é usada, no art. 238/1, com um significado diferente do que lhe é atribuído no direito processual comum (art. 590/1 do CPC), posto que quase todos os previstos implicam a produção de prova e obrigam a uma apreciação de mérito por parte do juiz (Assunção Cristas, loc. cit., p. 169), estão previstos, de forma taxativa (RG 3.12.2020, 1851/20.5T8VNF.G1, relatado por José Flores), no n.º 1 do art. 238.
Assim, “[o] pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
“a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”
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2).6. A jurisprudência, quando chamada a pronunciar-se, em especial sobre o fundamento previsto na alínea d), tem partilhado, com uma quase unanimidade, o entendimento de que a não verificação daqueles fundamentos não é facto constitutivo do direito do devedor à exoneração do passivo restante; pelo contrário, a verificação de tais fundamentos constitui facto impeditivo do direito, que assume uma natureza potestativa, pelo que, por aplicação da regra do art. 342/2 do Código Civil, o ónus da prova, que pressupõe a prévia alegação[3], recai sobre os credores ou sobre o administrador da insolvência. A título de exemplo, podem citar-se os seguintes arestos: STJ 21.10.2010 (3850/09.TBVLG-D.P1.S1), 6.07.2011 (7295/08.BTBBRG.G1.S1), 24.01.2012 (152/10TBBRG-E.G1.S1), 19.04.2012 (434/11.5TJCBR-D.C1.S1), 19.06.2012 (1239/11.9TBBRG-E.G1-S1), 21.02.2013 (542/10.0TBLNH.L1-6), 21.01.2014 (497/13.9TBSTR-E.E1.S1), 27.03.2014 (331/13.0T2STC.E1.S1), 17.06.2014 (985/12.4T2AVR.C1.S1); RL 24.04.2012 (14725/11.1T2SNT-C.L1-7), 28.11.2013 (9507/12.6TBCSC-C.L1-8), 12.12.2013 (1367/13.6TJLSB-C.L1-6), 20.02.2014 (4233/12.9TJLSB-C.L1-2), 5.03.2015 (247/13.0TJLSB-C.L1-2), 8.07.2021 (2475/20.2T8VFX-B.L1-1); RP 27.09.2011 (3713/10.5TBVLG-E.P1), 19.12.2012 (3087/11.7TBVCD.P1); RG 8.06.2017 (3481/16.7T8VNF-C.G1), 23.11.2017 (7111/15.6T8VNF-G.G1), 19.11.2020 (3755/19.5T8GMR-D.G1), 3.12.2020 (1851/20.5T8VNF.G1); RC 25.10.2011 (96/11.0T2AVR-D.C1) e 7.03.2017 (2891/16.4T8VIS.C1). Na doutrina, vide Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª ed., Lisboa: Quid Juris, 2015, p. 865.
Não questionando a bondade desta jurisprudência, afigura-se, no entanto, que a afirmação nela contida tem de ser devidamente concatenada com a norma do art. 238/2 na parte em que esta impõe o indeferimento liminar, sem necessidade de audição prévia dos credores ou do administrador da insolvência, nos casos em que o pedido tenha sido apresentado fora do prazo ou em que conste já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no n.º 1. Significa isto que, nestas situações, o juiz deve indeferir liminarmente o pedido ex officio.
Por outro lado, em RC 16.04.2013, 2488/11.5TBFIG-J.C1, relatado por José Avelino Gonçalves, chama-se a atenção para o princípio do inquisitório, consagrado no art. 11 e indiscutivelmente aplicável ao incidente de exoneração do passivo restante (Ana Prata / Jorge Morais Carvalho / Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Coimbra: Almedina, 2013, p. 39; RP 6.06.2013, 193/12.4TYVNG-C.P1; contra RE 12.04.2018, 569/16.8T8OLH.E1), do qual resulta que o juiz pode fundamentar a sua decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes. Perante esta última consideração, escreve-se em RP 18.11.2013, 2510/13.0TBVFR-C.P1, relatado por José Eusébio Almeida, que “o realce que se dá à questão do ónus de prova, esquece o princípio do inquisitório, expressamente previsto no artigo 11 do CIRE.”
A nosso ver, a questão do ónus da prova funciona a jusante, ao nível das regras de decisão. Assim, o que sucede é que, uma vez observado o antecedente ónus de alegação, os factos que aproveitam à parte, assim como outros factos essenciais que integrem a mesma previsão normativa, podem ser considerados como provados em resultado da atividade desenvolvida pelo tribunal e não pela parte a quem aproveitam, tudo com base no referido princípio do inquisitório, conjugado com o da aquisição processual genericamente consagrado no art. 413 do CPC. Deste modo, a afirmação de que o ónus da prova recai sobre os credores e sobre o administrador da insolvência significa essencialmente que eles suportam as consequências da falta de prova dos factos essenciais alegados – ou de outros que pudessem ser investigados – e não que têm de efetuar a prova deles, consideração que permite conjugar a afirmação contida na indicada jurisprudência, com o princípio do inquisitório.
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2).7. No presente recurso está em causa apenas o fundamento da citada alínea e), o qual constitui, como justamente assinala Alexandre de Soveral Martins (Um Curso de Direito da Insolvência, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 618), um “dos mais perigosos de toda a lista. Como é fácil de ver, o juiz irá decidir sobre o pedido de exoneração do passivo restante sem ter ainda decidido que a insolvência é culposa”, situação que decorrerá, no comum dos casos, do disposto no art. 188/1 do CIRE.
Na verdade, para efeitos de decisão liminar, não é exigida decisão judicial de qualificação da insolvência como culposa. Se esta vier a ser proferida, o procedimento de exoneração em que tenha sido proferido despacho inicial de exoneração cessa antecipadamente (art. 243/1, c)).
Nesta linha, a jurisprudência discute a conciliação do incidente de qualificação da insolvência com este juízo de antecipação a fazer pelo juiz, concluindo que: (i) se for aberto incidente, a decisão final de qualificação, seja ela culposa ou fortuita, vincula o tribunal no âmbito da exoneração; (ii) se não for aberto incidente, mesmo que a insolvência seja qualificada como fortuita para efeitos de encerramento do processo de insolvência (art. 233/6), não há caso julgado que impeça o juiz de indeferir o pedido de exoneração com base na al. e) do n.º 1 do art. 238.
No sentido da 1.ª asserção, argumenta-se que o art. 185 permite a interpretação, a contrario, de que, nas demais ações não mencionadas, a qualificação atribuída é vinculativa. Assim, RC 29.02.2012, 170/11.2TMGR-C.C1, relatado por Carlos Gil, que, para evitar julgados contraditórios, não indeferiu o pedido de exoneração com base na al. e), apesar de a considerar preenchida, porque já existia no processo decisão judicial que qualificava a insolvência como fortuita. De igual modo, RC 24.04.2012 (399/11.3TBSEI-E.C1), RP 4.03.2013 (1043/12.7TBOAZ-E.P1), RG 24.04.2014 (159/13.7TBPTB-F.G1), RG 3.04.2014 (1084/13.7TBFAF-H.G1), RG 11.06.2015 (3546/11.1TBGMR-H.G1) e RG 8.03.2018 (826/14.8TBGMR-F.G1). Ainda neste sentido, RP 28.01.2014 (435/13.9TBPFR-C.P1), relatado por Vieira e Cunha, onde se pode ler:
“A questão pode também ser observada sob o ângulo da autoridade do caso julgado formado pela decisão da qualificação da insolvência no indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, à luz da norma do artº 238º nº1 al.e) CIRE.
Como é sabido, nos termos do artº 619º nº1 NCPCiv, transitada em julgado a sentença, o respetivo conteúdo fica tendo força obrigatória no processo e fora dele, nos limites fixados nos artºs 580º e 581º NCPCiv.
Pode assim estabelecer-se, consoante a lição do Prof. M. Teixeira de Sousa, O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, Bol. 325/159 a 179, que se o objeto do processo precedente não esgota o objeto do processo subsequente, ocorrendo relação de dependência ou de prejudicialidade entre os dois distintos objetos, há lugar à autoridade ou força de caso julgado.
A questão dos autos está pois em que existe um precedente no julgado em matéria de qualificação da insolvência que remete diretamente para o disposto no artº 238º nº1 al.e), assim interferindo com a integração da norma nos factos apurados no processo.
E tratando-se, no caso da qualificação da insolvência, de um julgado vinculativo, não há como fugir à conclusão de que os elementos a que se reporta a citada al.e) do nº1 do artº 238º foram já, na sua integralidade, apreciados, no processo, por forma a lhes retirar completa relevância para efeitos da conclusão sobre “culpa do devedor, na criação ou no agravamento da situação de insolvência, nos termos do artº 186º.”
No sentido da 2.ª asserção, aponta-se para o facto de a qualificação da insolvência como fortuita, nos casos em que o incidente não foi aberto, decorrer diretamente da lei, sem avaliação material por parte do juiz, o que não permite presumir a falta de culpa ou a possibilidade de verificar a sua existência no incidente de exoneração. Assim, RG 17.12.2018, 667/18.3T8GMR-B.G1, relatado por José Amaral, RP 17.06.2019, 1247/18.9T8AMT-B.P1, relatado por Jorge Seabra, RP de 06.09.2021, 2184/20.2T8STS-D.P1, relatado por Joaquim Moura, e RL 26.10.2021, 22213/20.0T8BRR.L1-1, relatado por Paula Cardoso.
O juízo que se exige é de mera probabilidade, ainda que forte, ideia que é transmitida pelo uso do adjetivo “toda.” Significa isto que se, por um lado, não bastam para preencher esta alínea meras suposições ou conjeturas, por outro, não se exige um juízo de certeza semelhante ao que deve ser observado no momento em que o juiz profere a sentença de qualificação da insolvência. Como, a propósito, se escreve no citado RG 17.12.2018, o que se exige são indícios da probabilidade e não demonstração da realidade, o que se compreende “porque, na qualificação, está em causa um juízo definitivo sobre a responsabilidade pela insolvência, a fazer e a declarar em sentença, com efeitos pessoais e patrimoniais severos, aliás dependentes da modalidade e grau de culpa considerados, no caso de transitar em julgado a declaração de que foi culposa. Enquanto que, na exoneração, se trata apenas de viabilizar a possibilidade de concessão de um benefício extraordinário ao devedor insolvente, sujeito ainda a prova durante o longo período de cinco anos, com todas as implicações que tal duração acarreta, mas que o legislador entendeu logo de impedir e rejeitar ad limine quando se verifiquem circunstâncias que o indiciem como desmerecido ou façam perspetivar como inconsequente e apenas redundantes num perdão da dívida, como é o caso de se perfilarem indícios de que, com toda a probabilidade, existem indícios de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência.”
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2).8. Da remissão feita na parte final da norma para o art. 186 resulta que é pressuposto do seu preenchimento a existência de um comportamento do devedor, dentro de um certo limite temporal (três anos anteriores ao início do processo de insolvência, sem prejuízo do disposto no art. 4.º/2), a existência de dolo ou culpa grave e, finalmente, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Os conceitos de causalidade, dolo e culpa grave devem ser entendidos, na falta de indicação em contrário, nos termos gerais de Direito.
É ponto assente que, para a existência de causalidade entre o facto e o dano (rectius, a situação de insolvência ou o agravamento desta), não basta que aquele tenha sido, em concreto, causa deste em termos de conditio sine qua non; é necessário que, em abstrato, seja também adequado a produzi-lo, segundo o curso normal das coisas (vide, por todos, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2001, p. 708).
A averiguação da adequação abstrata do facto a produzir o dano só pode ser realizada a posteriori (prognose póstuma). A doutrina da adequação, tratada sobretudo a propósito da responsabilidade civil e da responsabilidade criminal, aceita que essa avaliação tome por base não apenas as circunstâncias normais que levariam um observador externo a efetuar um juízo de previsibilidade, mas também circunstâncias anormais, desde que recognoscíveis ou conhecidas pelo agente. É esta a teoria que se encontra consagrada no art. 563 do Código Civil: a introdução, na norma, do advérbio provavelmente faz supor que não está em causa apenas a imprescindibilidade da condição para o desencadear do processo causal, exigindo-se ainda que essa condição, de acordo com um juízo de probabilidade, seja idónea a produzir um dano (cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 326. Na jurisprudência, STJ 15.01.2002, CJ-STJ, IX, t. 1, pp. 36 a 38).
Mais que o nexo de imputação objetiva da situação de insolvência à conduta do insolvente, o legislador exige o dolo ou a culpa grave como pressuposto da qualificação da insolvência.
Recorrendo, também neste ponto, à teoria geral do direito das obrigações, diremos que a conceção tradicional da culpa como o nexo de imputação do ato ao agente, que se considerava existir sempre que o ato resultasse da sua vontade – ou seja, quando lhe fosse psicologicamente atribuível (Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1968, p. 321) –, foi substituída por uma definição de culpa em sentido normativo como um juízo de censura ao comportamento do agente. A culpa, ensina Menezes Leitão (ob. cit., p. 296), é atualmente, entendida como o juízo de censura ao agente por ter adotado a conduta que adotou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adotar conduta diferente. “Deve, por isso, ser entendida em sentido normativo, como a omissão da diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe. Nestes termos, o juízo de culpa representa um desvalor atribuído pela ordem jurídica ao facto voluntário do agente, que é visto como axiologicamente reprovável.”
É sabido que existem duas formas de culpa: o dolo e a negligência (cf. art. 483/1 do Código Civil). O dolo corresponde à intenção do agente de praticar o facto. Já na negligência, não se verifica essa intenção, mas o comportamento do agente não deixa de ser censurável em virtude de ter omitido a diligência a que estava legalmente obrigado.
A apreciação do grau de diligência exigível – e, logo, do grau de censura que a conduta do agente merece – pode ser feita por um de dois critérios: (i)) um que aponta para a apreciação da culpa em concreto, exigindo ao agente a diligência que ele põe habitualmente nos seus próprios negócios ou de que é capaz; (ii)) um que aponta para a apreciação da culpa em abstrato, exigindo a lei ao agente a diligência padrão dos membros da sociedade, a qual é naturalmente a diligência do homem médio ou, como diziam os romanos, do bonus pater familias (Menezes Leitão, ob. cit., p. 302).
O Código Civil prevê, no art. 487/2, o critério de apreciação da culpa na responsabilidade delitual – que vale, também, para a responsabilidade obrigacional (art. 799/2). Segundo o texto, a “culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, segundo as circunstâncias do caso” - ou seja, o legislador civil aponta para o critério da apreciação da culpa em abstrato, não deixando de exigir, todavia, uma análise das circunstâncias do caso, ou seja, do circunstancialismo da situação e do tipo de atividade em causa (Menezes Leitão, ob. cit., p. 303).
No art. 186/1 do CIRE, à semelhança do que sucede com alguns preceitos do Código Civil (v.g., arts. 494, 490, 497/1, 507/2 e 570), o legislador alude à ideia de graduação da culpa, implicando o recurso à denominada teoria das três culpas, aceite no nosso direito antigo, que, dentro da culpa stricto sensu, distinguia entre culpa grave, leve e levíssima. Como dá nota Pessoa Jorge (Ensaio…, p. 357), na formulação mais generalizada, que vem dos romanos, a culpa levíssima corresponde ao grau menos grave de culpa, traduzindo a negligência em que só não cai um homem excecionalmente diligente, o diligentissimus pater famílias; a culpa leve corresponde à negligência que seria evitada pelo homem mediano, o bonus pater familias; a culpa grave (também chamada de lata) traduz-se na negligência grosseira, só cometida por um homem excecionalmente descuidado (culpa lata est non intelligere quod omnes intelligunt, na expressão latina). Tradicionalmente, considerava-se aplicável à culpa grave o regime do dolo (culpa lata dolo aequiparatur).
Uma vez que, como vimos, o art. 487/2 só considera como culposa a omissão da diligência do bom pai de família, a categoria da culpa levíssima é agora inócua no domínio da responsabilidade civil. A distinção entre a culpa grave e a culpa leve continua a revestir interesse prático: para além do art. 186/1 do CIRE, exigem aquela para responsabilizar o agente o art. 1323/4 do Código Civil e o art. 10.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (Menezes Leitão, ibidem).
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2).9. Atento às evidentes dificuldades de prova dos pressupostos da qualificação da insolvência, o legislador prevê um duplo sistema de presunções (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 549), as quais permitem qualificar como culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adotado um dos comportamentos aí descritos. Este sistema aplica-se também à atuação da pessoa singular insolvente e seus administradores, quando a diversidade das situações a isso se não opuser (art. 186/4). A presunção implica uma inversão do ónus da prova – que passa a correr pelo insolvente ou pelos seus administradores (art. 350/1 do Código Civil).
Neste sentido, com interesse para a decisão, o art. 186/2, d), diz que “[c]onsidera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Como a jurisprudência e a doutrina têm vindo a entender, o n.º 2 do art. 186 consagra presunções inilidíveis ou iuris et de iure: as situações descritas nas várias alíneas determinam, inexoravelmente, a atribuição de carácter culposo à insolvência, o que significa também que as presunções são simultaneamente de culpa e de causa. Na jurisprudência, inter alia, STJ 15.02.2023, 822/15.8T8VNG-C.P2.S1; RG 1.06.2017, 109/14.3TBCHV-A.G1; 4.11.2021, 5250/19.3T8GMR-A.G1; 17.12.2022, 5015/20.0T8VNF-C.G1; RP 1.06.2017, 35/16.1T8AMT-A.P1. Na doutrina, Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, Revista da Ordem dos Advogados, 2006, II, pp. 653 e ss.; Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 288, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso cit., pp. 567-568. De um ponto de vista mais teórico, alguma jurisprudência vem entendendo, na sequência do Acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 9, de 14.01.2009, que as alíneas transcritas não consagram, em rigor, presunções, tal como estas são definidas no art. 349 do Código Civil, mas factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa.[4] Neste sentido, RP 15.07.2009, 725/06.7TYVNG-C, relatado por Henrique Araújo, e 7.12.2016, 262/15.9T8AMT-D, relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, podendo ler-se no primeiro que, “[d]e todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. O n.º 3 do mesmo artigo apresenta, por seu turno, um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Trata-se, contudo, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária. A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se atuou com culpa grave. Com efeito, como nas hipóteses do n.º 3 já se não presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.”
Sintetizando, pode dizer-se que a qualificação da insolvência como culposa pressupõe que fique demonstrado que a atuação do devedor foi causa da situação de insolvência ou do seu agravamento. Sem prejuízo, verificada uma das situações do n.º 2 do artigo 186, presume-se, iuris et de iure, a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa. Já se apenas estiver verificada uma das situações previstas no n.º 3, presumindo-se a culpa grave, mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum, para a insolvência ser declarada culposa, é necessário que fique demonstrado que a atuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência.
Antes da Lei n.º 9/2020 discutia-se se a presunção era apenas de culpa grave ou de insolvência culposa, abrangendo, portanto, também, o nexo de causalidade. A doutrina e jurisprudência maioritárias perfilhavam o 1.º entendimento. A título de exemplo, na jurisprudência, STJ 29.10.2019, 434/14.3T8VFX-C.L1.S1, RL 11.06.2019, 2278/17.1T8BRR-B.L1-1, RP 11.04.2019, 521/18.9T8AMT-F.P1, RG 1.02.2018, 5091/16.0T8VNF-B.G1, RG 19.09.2019, 4778/15.9T8VNF-B.G1; na doutrina, Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência cit., p. 287; Adelaide Menezes Leitão, “Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei n.º 17/2012, em Cataria Serra (org.), I Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2013, pp. 269-281. O 2.º entendimento, sufragado por Catarina Serra, “Decoctor ergo fraudator? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções – anotação ao Ac. do TRP de 7.01.2008, Proc. n.º 4886/07”, CDP, n.º 21, 2008, pp. 54-71, e Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 301-302, ficou definitivamente afastado com a introdução, pela citada Lei, do advérbio “unicamente” no corpo do n.º 3 do art. 186, o que, como a autora reconhece em artigo recente (“O incidente da qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022”, Julgar, n.º 48, set.-dez. de 2022, pp. 11-38), teve o propósito de “esclarecer que a presunção (relativa) aí consagrada respeita apenas ao requisito da culpa grave e a mais nenhum.”
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2).10. Conforme se escreve em RG 21.10.2021, 1809/19.7T8VNF-G.G1, relatado por José Alberto Moreira Dias, em que também foi Adjunta a Juíza Desembargadora Alexandra Viana Lopes, “a al. e), do n.º 1 do art. 238º do CIRE ao remeter para o regime do seu art. 186º em sede de indeferimento liminar do benefício da exoneração, significa que as presunções que se encontram contempladas nos n.ºs 2 e 3 do art. 186º, na medida em que sejam aplicáveis, com a necessárias adaptações, às pessoas singulares, por a isso não se opor a diversidade das situações, são igualmente aplicáveis ao fundamente de indeferimento liminar do pedido de exoneração previsto na al. e), do n.º 1 do art. 238º.”
Daqui decorre que, conforme se sistematiza no aresto:
“Logo, nos casos em que o administrador de insolvência e/ou os credores não beneficiem de nenhuma das presunções enunciadas nos n.ºs 2 e 3 do art. 186º, para que seja possível indeferir liminarmente o pedido de exoneração com fundamento na al. e), do n.º 1 do art. 238º, é necessário que no momento da prolação do despacho de indeferimento liminar o processo já contenha factos e elementos probatórios desses mesmos factos, ou que o administrador de insolvência e/ou os credores tenham alegado e provado factos dos quais decorram os seguintes requisitos legais cumulativos: a) que o devedor/insolvente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, adotou um comportamento ativo ou omissivo; b) que esse comportamento é indiciariamente imputável ao devedor, com toda a probabilidade, a título de culpa; e c) em consequência direta e necessária desse comportamento resultou a criação ou o agravamento da situação de insolvência em que se encontra o devedor.
Porém, caso no momento em que é proferido o despacho de indeferimento liminar do benefício da exoneração do passivo restante, o processo de insolvência já contenha factos e elementos probatórios desses mesmos factos, ou o administrador de insolvência ou os credores tenham alegado e provado factos dos quais decorram encontrarem-se preenchidas uma das presunções previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 186º, então uma vez feita a prova desses factos base de uma das presunções previstas nesse n.º 2, presume-se não só, de forma inilidível, que a insolvência do devedor é culposa, como que se encontram preenchidos os requisitos legais enunciados na al. e), do n.º 1 do art. 238º para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, ficando, portanto, o administrador de insolvência e/ou os credores dispensados do ónus da alegação e da prova da facticidade prevista nessa alínea e).
Finalmente, se no momento em que é proferido o despacho de indeferimento liminar do benefício da exoneração do passivo restante o processo já contiver factos e elementos de prova desses mesmos factos ou o administrador de insolvência e/ou os credores tenham alegado e provado factos dos quais decorram encontrarem-se preenchidas uma das presunções previstas nas diversas alíneas do n.º 3 do art. 186º, então com vista ao indeferimento liminar do pedido de exoneração, embora se presuma a culpa do devedor (estando, portanto, o administrador de insolvência e/ou os credores dispensados do ónus da alegação e da prova de factos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor, apenas lhe incumbindo o ónus da alegação e da prova dos factos base da presunção previstos numa das alínea do n.º 3 do art. 186º, antes competindo ao devedor/insolvente, ilidir a mencionado presunção), aqueles não estão dispensados do ónus da alegação e da prova em como o devedor nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, adotou um comportamento ativo ou omissivo e, bem assim de facticidade demonstrativa da verificação do nexo causal entre esse comportamento do devedor (presuntivamente culposo) e a situação de insolvência em que se encontra ou o agravamento dessa situação de insolvência em que já se encontrava o devedor quando adotou aquele comportamento.”
Neste sentido, considerou-se ser de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com base na alínea e) do n.º 1 do art. 238, nas seguintes situações: gastos descontextualizados com a situação económica familiar e pessoal do devedor (RP 8.6.2010, 243/09.1TJPRT-D.P1, relatado por João Proença); concessão de vantagens especiais a certos credores da insolvência, nomeadamente familiares, violando o princípio da igualdade de todos os credores;  contração de dívidas como testa-de-ferro de familiares (RC 4.10.2011, 306/11.3TBTMR.C1, relatado por Teles Pereira); contração de  créditos para consumo, muito para além das suas reais possibilidades financeiras (RC 22.03.2011, 1651/10.0TBFIG-C.C1, relatado por Carlos Gil);  incumprimento de dois contratos promessa de compra e venda de imóvel para habitação, com a perda do sinal prestado (RL 3.11.2011, 653/11.4TJLSB-A.L1-8, relatado por Isoleta Almeida Costa);  doação efetuada pelo devedor aos filhos, durante os três anos anteriores ao início do processo de insolvência (RC 19.10.2020, 6505/19.2T8CBR-E.C1, relatado por Maria Catarina Gonçalves).
No já citado RG 21.10.2021, entendeu-se que “[e]stando apurado que menos de um mês antes de se apresentar à insolvência a devedora doou ao seu filho a nua propriedade de um prédio de que era titular, encontra-se preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa do art. 186º, n.ºs 2, al. d) e 4 do CIRE, bem como o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante da al. e), do n.º 1 do art. 238º do mesmo diploma.”
A situação dos autos é semelhante à acabada de descrever: no dia 24 de abril de 2020, sete meses antes do início da ação que veio a redundar na declaração de insolvência – portanto, dentro do limite temporal definido pelo n.º 1 do art. 186 –, a Recorrente, juntamente com o seu cônjuge, doou à filha, então menor de idade, a quota de que ambos eram titulares no direito de propriedade sobre o prédio identificado na fundamentação de facto. Com essa doação, que é o protótipo de um ato de natureza gratuita, ocorreu uma diminuição do património comum do casal, o qual respondia pelas dívidas comuns e, subsidiariamente, pelas dívidas próprias da insolvente (1696/1 do Código Civil), com o correspondente incremento do património da donatária. Tratou-se, portanto, de um negócio jurídico de disposição de um bem da devedora em proveito de terceiros que se insere no âmbito de previsão da alínea d) do n.º 2 do citado art. 186 e que, na sequência do que escrevemos, determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, sem que seja necessária a efetiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a sua atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência. A mesma conclusão deve ser também retirada de um outro negócio jurídico celebrado pela insolvente: a constituição, no dia 20 de abril de 2020, de uma hipoteca sobre a quota no direito de propriedade sobre o prédio em questão, que então ainda existia no património comum do casal constituído pela insolvente e o seu cônjuge, para garantia da restituição da quantia que a ambos havia sido mutuada por um terceiro. Com esse ato, ademais da oneração do património comum do casal, foi constituída uma garantia real de pagamento assim beneficiando o seu titular em detrimento dos demais credores.
Nestas circunstâncias, impõe-se concluir que existem efetivamente, no processo, elementos bastantes que indiciam, com toda a probabilidade, a existência de culpa da devedora (a Recorrente) na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 238, o pedido de exoneração do passivo tinha que ser – como foi – liminarmente indeferido.
A Recorrente pretende, no entanto, que os referidos negócios sejam considerados como irrelevantes dizendo que foram objeto de resolução pelo AI, pelo que nenhum prejuízo resultou deles para os credores.
O mesmo tipo de argumentação foi rebatido no citado RG 21.10.2021 em termos que assentam aqui assentam aqui como uma luva. Aqui os respigamos:
“Acontece que sendo a resolução do contrato uma forma de extinção deste por vontade unilateral e vinculada a um fundamento legal ou convencional, em que os efeitos da resolução são, em princípio, retroativos, isto é, tudo se passando como se o contrato resolvido tivesse sido declarado nulo ou anulado, e sendo a resolução em beneficio da massa insolvente um instituto especial do processo de insolvência, regulado nos arts. 120º e ss. do CIRE, destinado à tutela da generalidade dos credores, ao permitir ao administrador de insolvência que a eficácia dos negócios celebrados antes da declaração da insolvência possa ser destruída, verificados que sejam determinados requisitos, é indiscutível que a doação se concretizou e produziu os seus efeitos jurídicos, operando a transmissão da nua propriedade sobre o prédio da apelante (devedora/insolvente) para a titularidade do filho desta, e daí a necessidade que o administrador de insolvência teve de resolver o contrato de doação da nua propriedade que a apelante fez ao seu filho, por forma a fazer ingressar a titularidade dessa nua propriedade na massa insolvente e, assim, furtar os credores da massa insolvente e da própria insolvência ao prejuízo que desse ato de disposição resultou para a massa e, consequentemente, para os credores.”
Deste modo, notando ainda que o comportamento da Recorrente ulterior à declaração de insolvência não apaga o desvalor do seu comportamento prévio, que se presume, nos termos referidos, em termos absolutos, e que a qualificação não decorre dos termos em que a Recorrente exerceu (ou não exerceu) a gerência das sociedades EMP01... e EMP02..., mas de atos de disposição que levou a cabo na gestão do seu próprio património, concluímos, sem qualquer tergiversação, pela improcedência in totum das alegações do recurso.
***
3) Vencida, a Recorrente deve suportar as custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Julgar o presente recurso de apelação improcedente;
Confirmar a decisão recorrida;
Condenar a Recorrente no pagamento das custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Notifique.
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Guimarães, 27 de junho de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes
2.ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos



[1] No entender de Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade”, AAVV, Catarina Serra (coord.), III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 195, as obrigações continuam a existir, não como obrigações civis, suscetíveis de execução judicial, mas como obrigações naturais, cujo cumprimento, não sendo judicialmente exigível, corresponde a um dever de justiça.
[2] Para maiores desenvolvimentos, vide a exaustiva exposição feita em RG 7.10.2021 (1/08.0TJVNF-ET.G1), relatado pelo Desembargador José Alberto Moreira Dias.
[3] Em regra, há coincidência entre o ónus da alegação e o ónus da prova (arts. 342/1 e 2 e 343/1 do Código Civil). A regra cessa quando a lei ou as partes determinam a inversão do ónus da prova, o que sucede nos casos em que existe uma presunção legal (art. 344/1 do Código Civil), a dispensa ou liberação legal do ónus da prova (art. 344/1 do Código Civil), a dispensa ou liberação convencional do ónus da prova (arts. 344/1 e 345/1 do Código Civil) ou a impossibilitação culposa da prova pela contraparte do onerado (art. 344/2 do Código Civil). A propósito, vide Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 183 e ss.., e Rita Lynce de Faria, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lisboa: Lex, 2001, pp. 33 e ss.. Em nenhum dos apontados casos a inversão do ónus da prova dispensa do ónus da alegação, que se mantém.
[4] Rui Estrela de Oliveira, “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Julgar, n.º 11, mai.-ago. de 2010, pp. 199-249, sublinha que nas hipóteses do n.º 2 do art. 186 “não estamos perante presunções que facilitam a prova de um dos pressupostos da qualificação, mas perante presunções que facilitam o próprio sentido da decisão.”