Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES | ||
| Descritores: | DIVISÃO DE COISA COMUM USUCAPIÃO DESTAQUE | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 05/02/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I- Apesar de o direito de propriedade incidir, em regra, sobre a totalidade da coisa (certa, determinada e autonomizada juridicamente), nada obsta a que exista posse em termos de direito de propriedade sobre a parte de um prédio ainda não autonomizada, mas suscetível de vir a sê-lo. II- Ocorrendo uma situação dessas, é de admitir, em termos gerais, a possibilidade de aquisição por usucapião da parte do prédio sobre a qual recai a posse, ainda que não tenha ocorrido o prévio destaque da mesma. III- Não pode, no entanto, prescindir-se da observância das regras urbanísticas que impunham, no momento em que teve início a posse, as condições para que aquela operação pudesse ser realizada. IV- A observância de tais regras apresenta-se assim como um facto constitutivo do direito à aquisição por usucapião de uma parcela de terreno que será, por essa via, autonomizada do prédio de que fazia parte. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. 1) AA e BB intentaram ação, sob a forma de processo especial de divisão de coisa comum, contra CC, DD (primeiros Requeridos), EE e FF (segundos Requeridos). Alegaram, em síntese, que: Requerentes e Requeridos são comproprietários do prédio rústico, composto de leira de cultivo, situado no lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o art. ...22 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...55; a quota dos Requerentes em tal direito é de 1/2, sendo as quotas dos primeiros e segundos Requeridos de ¼ cada; os Requerentes não pretendem continuar na situação de indivisão. Concluíram pedindo que, na procedência da ação, seja “decretada a divisão da coisa comum entre Requerentes e Requeridos.” *** 2) Citados os Requeridos, apenas os primeiros (CC e DD) contestaram dizendo, também em síntese, que: o identificado prédio rústico confina, de um lado, com o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...38, do qual são proprietários; quando, no final da década de 90, edificaram, neste prédio urbano, a casa onde habitam, construíram sobre uma parte daquele prédio rústico, a qual lhes tinha sido doada, para esse efeito, verbalmente, pelo então proprietário do mesmo; de facto, sobre essa parcela (que identificaram como Parcela A), construíram parte da referida casa e ainda um pátio ladrilhado que funciona como logradouro exclusivo para acesso de pessoas e veículos; a parcela foi, assim, destacada do prédio rústico e anexada ao prédio urbano; deste modo, são possuidores exclusivos dela, desde o final da década de 90; exercem essa posse de forma pública e pacífica, na convicção de que são titulares do direito nos termos do qual possuem, o que lhes confere a aquisição deste por usucapião.Concluíram pedindo: a improcedência (pelo menos, parcial) da pretensão dos Autores, “uma vez que a divisão de coisa comum não poderá contemplar a parte do prédio rústico integrada na Parcela A, da qual (..) são, por via de usucapião, exclusivos donos e legítimos proprietários (…); e, a título de reconvenção, que: se reconheça que são titulares do direito de propriedade “sobre a Parcela A por via de usucapião, respeitando-se a doação e consequente divisão efetuadas no que concerne àquela Parcela (…)”; seja proferida sentença que declare que são titulares “do direito de propriedade pleno e exclusivo sobre aquela parcela e a condenação dos Autores / Reconvindos e demais comproprietários a reconhecerem tal direito de propriedade” e, bem assim, que ordene “o cancelamento da respetiva inscrição da propriedade a favor dos comproprietários e a consequente desanexação e inscrição predial da Parcela A” a seu favor, por ampliação da área do prédio urbano. Requereram ainda a intervenção principal dos segundos Requeridos como associados dos Requerentes no que tange à instância reconvencional. *** 3) Por despacho de ../../2021, foi determinada a citação dos segundos Requeridos nos “termos do 319º do CPC” (sic), a qual veio a ser realizada com a fixação de um prazo de trinta dias para apresentarem resposta à reconvenção.*** 4) Os Requerentes apresentaram réplica, em que impugnaram os factos alegados pelos Primeiros Requeridos, concluindo que o pedido reconvencional deve improceder.*** 5) No dia ../../2022, foi proferido despacho a: determinar que a ação, mantendo a forma especial de divisão de coisa comum, passasse a seguir os termos do processo comum; admitir o pedido reconvencional; fixar em € 39 500,01 o valor processual; afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; identificar o objeto do litígio; enunciar os temas da prova.*** 6) Não tendo sido apresentadas reclamações contra aquele despacho, realizou-se audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença, datada de ../../2023, em que foi decidido: julgar os pedidos reconvencionais improcedentes; declarar que o prédio rústico identificado em 1) é detido em compropriedade por Requerentes e Requeridos e é divisível, se transformado em dois logradouros; fixar o quinhão dos Requerentes em ½ e os quinhões dos Primeiro e dos Segundos Requeridos em ¼ para cada um deles.*** 7) Inconformados com o assim decidido, os Primeiros Requeridos (doravante identificados como Recorrentes) interpuseram o presente recurso, constituído por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):“1.ª Conforme se expendeu no Capítulo I das alegações, o presente recurso tem como objeto a impugnação da douta decisão que julgou improcedentes os pedidos reconvencionais formulados pelos Recorrentes na sua contestação. 2.ª O recurso visa a impugnação da sentença recorrida quanto à sua fundamentação de facto e de direito, incluindo a reapreciação de prova gravada. 3.ª Com todo o respeito, no que concerne aos factos dados como não provados, errou o Tribunal a quo ao dar como não provada a matéria constante dos pontos de facto correspondentes aos pontos 1, 2, 6, 7, 8, 11, 15 e 16 da fundamentação de facto da sentença recorrida. 4.ª Diversamente do que foi decidido pelo Tribunal recorrido, a matéria de facto contida nos anteditos pontos deveria ter sido dada como provada, nos termos explicitados pelos Recorrentes. 5.ª Ao contrário do que se expende na douta sentença recorrida, foi produzida prova testemunhal bastante e que impunha uma decisão inversa da recorrida no que concerne à apreciação da matéria de facto em apreço. 6.ª Errou o Tribunal a quo ao considerar “equívocos” os depoimentos prestados pelas testemunhas GG e HH, desde logo, quanto ao uso dado pelos Recorrentes à parcela descoberta e à forma como a Parcela “A” chegou à posse daqueles. 7.ª Diferentemente do que se concluiu na douta decisão recorrida, os depoimentos das anteditas testemunhas (que disseram muito mais do que se conta na motivação de facto) revelaram-se suficientemente precisos (e, bem assim, credíveis, idóneos e desinteressados) sobre os pontos de facto em apreço, revelando efetivo conhecimento mesmos. 8.ª A conjugação da seguinte prova produzida impõe que, diversamente do que consta da douta decisão recorrida, tais factos sejam como provados nos termos peticionados pelos Recorrentes: a) Depoimento da testemunha GG (vizinha dos Recorrentes e que conhece a família e o prédio dos autos desde que nasceu), inquirida na audiência de discussão e julgamento de ../../2022, nas partes que estão gravadas a 00h01m46s a 00h10m57s e 00h11m36s a 00h16m25s; b) Depoimento da testemunha HH (construtor que realizou as obras na Parcela “A”), inquirida na audiência de discussão e julgamento de ../../2022, nas partes que estão gravadas a 00h01m17s a 00h09m50s, 00h14m10s a 00h15m43s e ainda as passagens gravadas a 00h01m00 a 00:03:07, das instâncias que lhe foram dirigidas pelo Meritíssimo Juiz a quo, no depoimento registado no sistema informático do Tribunal com a Ref. ../../2016. c) documento n.º ... da contestação (planta topográfica da Parcela “A”) e que corresponde à planta apresentada à testemunha e as fotografias juntas no requerimento ../../2022, com a Ref. ...88 do Citius; 9.ª Os depoimentos prestados por GG e HH corroboraram, de modo determinante e em grande parte, a veracidade da matéria de facto que os Recorrentes consideram provada com referência aos pontos 1, 2, 6, 7, 8, 11, 15 e 16 da matéria de facto dada como não provada pelo Tribunal recorrido. 10.ª De outra face, o Tribunal recorrido sobrevalorizou ou valorizou indevidamente as declarações de parte prestadas pelo Autor, as quais, para além de não serem corroboradas por qualquer outro meio de prova, constituíram afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objeto em litígio e que apresentou um discurso confuso e pouco objetivo, não merecendo ter o valor probatório que o Tribunal a quo lhes atribuiu. 11.ª Aliás, analisadas tais declarações, as partes gravadas de 00h08m09s a 00h09m32s, de 00h09m36s a 00h16m06s, de 00h21m30 a 00h21m48s e de 00h34m33s a 00h35m02s, corroboram mesmo a versão dos factos dos Reconvintes, no sentido de que estes são os únicos possuidores que praticam atos típicos do direito de propriedade sobre a Parcela “A”, incluindo o espaço descoberto de tal parcela. 12.ª Com efeito, das declarações prestadas pelo Reconvindo, resulta que os Autores, tal como já fazia a doadora, irmã do Reconvinte, exercem apenas sobre a Parcela “A” (por via da respetiva porta de homem) o direito de passagem a pé por tal espaço descoberto para acesso ao seu imóvel confinante, pelo que não de detêm qualquer posse sobre aquela parcela que envolva a prática de atos típicos do direito de propriedade. 13.ª Questionado sobre a matéria de facto relativa aos pontos em apreço, declarou o Autor que tinha as chaves dos portões de acesso à Parcela “A” apenas para entrada e saída, para passar por aquela parcela para aceder à sua casa e ao espaço que o próprio dividiu com sebe e que considera ser dele dentro do prédio comum. 14.ª Como se denota, a única coisa que os Autores opõem aos Reconvintes é o direito de passarem a pé pela Parcela “A” e não efetivamente o uso como proprietários da mesma. Inclusivamente, o Autor isolou a sua parte do prédio comum com rede e sebe, com isso reconhecendo pretender uma divisão do prédio em que a Parcela “A” não integra a parte que os próprios Autores considera ser deles naquele mesmo prédio comum – cf. alínea P) do probatório que deverá sofrer as alterações que, mais à frente, se mencionarão. 15.ª Ora, a posse correspondente ao mero direito de passagem pela Parcela “A” – que é realmente o que os Autores invocam e pretendem – não se confunde com a posse correspondente ao direito de propriedade, sendo evidente que os Autores não demonstraram praticar quaisquer atos típicos do direito de propriedade com relação àquela parcela. 16.ª Não andou bem, assim, o Tribunal a quo ao valorizar a mera detenção das chaves pelo Autor para aceder ao seu imóvel através daquela parcela, facto que, de modo algum, constitui obstáculo à aquisição de tal parcela pelos Reconvintes, com fundamento em usucapião decorrente da sua posse exclusiva como proprietários, manifestada e demonstrada, desde logo, através de todos os factos dados como provados - cf. alíneas H) a M) do probatório. 17.ª Ter o direito de passar a pé (e dispor das chaves da porta para o efeito) não significava nem significa, de modo algum, que os Autores exercem qualquer posse como proprietários da Parcela “A”. 18.ª O mero ato de passar por tal parcela (segregada da própria parte do prédio comum que o Autor declarou ser apenas dos Autores, por contraposição à parte dos Reconvintes) evidencia precisamente o contrário, isto é, que a posse como proprietários da Parcela “A” pertencia e pertence efetiva e exclusivamente aos Recorrentes. 19.ª Pelo exposto, impunha-se e impõe-se, assim, que seja julgado provado que a habitação referida em H) foi parcialmente construída sobre uma parcela do prédio rústico dos autos (Parcela “A”) com autorização e consentimento do pai II - que lhes cedeu o espaço para o efeito - e dos irmãos - EE, aqui réu e JJ – cf. Ponto 1 da fundamentação de facto, devendo a decisão da matéria de facto ser alterada em conformidade com esta redação. 20.ª Deverá o Ponto 2 da matéria de facto não provada ser alterado, passando a dar-se como provado que o logradouro referido em I) é efetivamente possuído em exclusivo como proprietários pelos Reconvintes CC e DD, sendo que a comprovação de tal matéria de facto que não colide com o mero direito de passagem (a pé) para o prédio confinante, alegado pelo Autor nas suas declarações de parte, pois que tal não constitui uma posse representativa ou correspondente à prática de atos típicos do direito de propriedade. 21.ª Deverá o Ponto 6 da matéria de facto não provada ser alterado, passando a dar-se como provado que a Parcela “A” foi cedida pelo pai ao Reconvinte CC para ali edificar parte da sua casa e correspetivo espaço exterior de tal habitação, passando os Reconvintes a atuar como únicos e exclusivos proprietários da parte coberta e descoberta daquela parcela. 22.ª Provada também deverá ser, pelos mesmos motivos, a matéria constante do Ponto 7 dos factos não provados, pois que, da prova produzida decorre que o logradouro é efetivamente um espaço exterior exclusivo da habitação dos Reconvintes, no qual estes, exercendo a posse como únicos proprietários, realizaram as obras que entenderam. 23.ª À comprovação de tal facto não obsta, reitere-se, o direito de passagem a pé invocado pelos Autores para aceder ao seu imóvel e à parte que consideram ser sua no prédio comum (que os próprios Autores segregaram da Parcela “A”); 24.ª No que concerne ao Ponto 8 dos factos não provados, a prova produzida impõe que se considere provado que, desde o final dos anos 90, os Reconvintes possuem, como únicos proprietários, a totalidade da área correspondente à Parcela “A” (coberta e descoberta), procedendo-se à modificação da decisão de facto proferida nestes precisos termos. 25.ª O mesmo se dirá ainda dos Pontos 11, 15 e 16 dos factos não provados, que deveriam ter sido dados como provados. 26.ª Na verdade, ficou efetivamente provado que os Reconvintes, há mais de 20 anos vêm, sem interrupção, sobre a totalidade da Parcela “A” realizando as obras que entendem, publicamente e à vista de todos com a convicção de serem únicos proprietários daquela parcela, sem a oposição de ninguém (Ponto 11). 27.ª Ficou igualmente provado que tal posse é exercida desde finais dos anos 90, que os Réus vêm ocupando e utilizando, à vista de toda a gente, a área correspondente à totalidade da Parcela “A” (Ponto 15) e que exercem tal posse como proprietários na convicção de se tratar de coisa exclusivamente sua e de não lesarem os direitos de outrem (Ponto 16). 28.ª Entendem, assim, os Recorrentes, que a respetiva matéria de facto deverá ser alterada em conformidade, dando-se como provada a factualidade acima exposta, nos seus precisos termos. 29.ª Sendo dados como provados, como se impõe, os factos acima referidos, é irrefragável a modificação da matéria de facto constante da alínea O) dos factos provados, com relação à qual deverá, nos termos peticionados, dar-se como provado que há mais de 20 anos que os Reconvintes possuem, pela via da ocupação do edifício que levantaram e da construção do respetivo espaço exterior, a totalidade da área da Parcela “A”, na convicção de que são os seus únicos proprietários, o que fazem à vista de todos, sem para tanto usarem de força física ou coação, e sem oposição de quem quer que seja. 30.ª Por se revelar igualmente relevante para a boa decisão da causa, carece igualmente de ser alterada a matéria de facto constante da alínea P) dos factos provados. 31.ª Com efeito, das passagens das declarações de parte prestadas pelo Autor, acima reproduzidas (inter alia, as passagens de 00h34m33s a 00h35m02s), decorre que este dividiu o prédio rústico com rede, sem incluir no que considera ser seu a Parcela “A” (com relação à qual arroga apenas o direito de passar para aceder ao seu imóvel confinante). 32.ª Ora, conjugado este depoimento com as fotografias juntas aos autos pelos Reconvintes no seu requerimento de fls., datado de ../../2022, com a Ref. ...88 do Citius, evidencia-se que a antedita rede foi colocada totalmente fora da área da Parcela “A” (e não dentro desta, o que contraria a tese de que o Autor se considera efetivamente possuidor e proprietário da área correspondente àquela parcela). 33.ª Com efeito, as fotografias juntas aos autos (em especial a segunda fotografia, onde se visualiza a rede colocada pelos Autores), evidenciam que a rede a que alude a alínea P) dos factos provados foi colocada fora da área ocupada pela Parcela “A”, dividindo a parte que os Autores consideram ser sua da parte que, como tal conduta evidencia, reconhecem ser dos Reconvintes. 34.ª Impunha-se, assim, que seja dado como provado que os Autores dividiram o prédio rústico com rede, a qual separa a área respeitante à Parcela “A” da área do prédio comum dos autos que aqueles dizem pertencer-lhes (cf. fotos juntas autos no requerimento de 3827988). 35.ª Tal alteração da matéria de facto afigura-se relevante para a boa decisão da causa, uma vez que o local onde os próprios Autores colocaram a rede divisória demonstra que não exercem efetivamente qualquer posse como proprietários da área ocupada pela Parcela “A”, incluindo, portanto, o respetivo logradouro ou espaço descoberto ilustrado naquelas imagens. 36.ª No que concerne à decisão sobre a matéria de direito, os Recorrentes, desde logo em face dos factos que deveriam ter sido dados como provados e não provados, consideram que a douta decisão recorrida padece igualmente de erro de julgamento, impondo-se uma decisão diversa da recorrida. 37.ª Da prova produzida nos autos resulta, desde logo, que a posse da Parcela “A” é detida pelos Reconvintes, ora Recorrentes, há mais de 20 anos, incidindo sobre a totalidade daquela parcela, o que incluiu toda a habitação coberta e área descoberta (área exterior da habitação) que lhe está afeta. 38.ª A alteração da matéria de facto provada (nos termos requeridos no Capítulo II deste recurso) quanto ao tempo de duração da posse (não titulada) conduzirá, desde logo, à conclusão de que, mesmo que a posse dos Recorrentes fosse considerada de má-fé (no que não se concede e por mera hipótese se cogita), sempre teria já decorrido o prazo de vinte anos estatuído no artigo 1296.º do Código Civil, pelo que se impõe o reconhecimento do direito dos Reconvintes por aplicação da antedita norma. 39.ª Realce-se que à aquisição do direito de propriedade pelos Réus/Reconvintes sobre a totalidade da Parcela “A”, por via de usucapião, não obsta a invocação pelos Autores – reivindicada nas declarações de parte prestadas pelo Autor - do direito de passar e aceder ao seu imóvel através daquela parcela (correspondente a uma mera servidão). 40.ª Tal reivindicado direito configura apenas uma servidão sendo que, das declarações de parte prestadas pelo Autor decorre que, na realidade, tanto ele, como a irmã do Reconvinte (precedente proprietária da casa de família) apenas utilizavam a porta de homem para passar pela Parcela “A” e acederem ao seu imóvel confinante. 41.ª A passagem reivindicada pelos Autores pelo espaço exterior da Parcela “A” materializa apenas o exercício de um mero direito de passagem sendo a respetiva posse somente correspondente ao direito real de servidão e não, na realidade, correspondente ao direito real de propriedade reivindicado pelos Reconvintes (cf. artigo 1251.º do Código Civil). 42.ª Como se considera ter ficado provado (e deve ser levado, por modificação, à matéria assente), foram sempre os Reconvintes que exerceram, desde finais dos anos 90, a posse exclusiva como proprietários da área da Parcela “A”, nela realizando, à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém, todas as obras descritas nos factos provados para seu uso exclusivo, fruindo como seus únicos donos a área (coberta, que passou a integrar a sua casa e descoberta que passou a corresponder à área exterior exclusiva da sua habitação) de tal parcela. 43.ª Temos, pois, que a alteração da matéria de facto provada e não provada permite concluir que, de facto, o prédio rústico dos autos (tal como sucedia antes de finais dos anos 90) deixou de ser utilizado como logradouro comum da antiga casa de família, para passar a constituir somente o espaço exterior exclusivo da habitação dos Reconvintes. 44.ª E isto ainda que, ao longo dos anos, estes pudessem ter concedido passagem através da “portinha” para a casa que era de JJ, ora propriedade dos Recorridos. 45.ª Esta situação, sendo relativa a um tipo de posse diferente (atinente a uma mera servidão de passagem), não afasta, portanto, a posse exclusiva (e há mais de 20 anos) dos Reconvintes como proprietários da área correspondente à Parcela “A”. 46.ª Pelo que, desde logo por aqui, estando preenchidos os carateres aptos à usucapião ao abrigo da segunda parte do artigo 1296.º do Código Civil, se impunha e impõe a procedência das pretensões dos Reconvintes quanto a toda a Parcela “A” e, como tal, a procedência do respetivo pedido reconvencional, tal seja, ser reconhecido o direito de propriedade dos Recorrentes sobre a Parcela “A” por via de usucapião, conforme levantamento topográfico apresentado. 47.ª Em todo o caso, sempre com o maior respeito, afigura-se também inexata (e injusta) a qualificação da posse (não titulada) dos Reconvintes como posse de má-fé à luz do disposto no artigo 1260.º, números 1 e 2 do Código Civil (normas que se consideram, em face dos factos que deveriam ter sido dados como provados e não provados, ter sido indevidamente aplicadas pela douta decisão recorrida). 48.ª Como resulta dos factos que devem considerar-se provados (e da prova produzida), os Reconvintes sempre ocuparam e utilizaram em seu proveito a área da Parcela “A” na convicção de serem os seus únicos proprietários. 49.ª Não merecem, pois, os Reconvintes ser apodados de malfazejos quando atuaram na convicção de que não estavam a prejudicar outrem, sendo que a Parcela “A” chegou “às mãos” dos Reconvintes por a respetiva área ter sido cedida pelo pai do Reconvinte marido para a realização das obras de ampliação da habitação dos Reconvintes e do seu espaço exterior, motivo pelo qual não é correto qualificar como sendo de má-fé a posse invocada. 50.ª Logo, não é o mero facto de os Reconvintes poderem saber que, até ao momento em que passaram a exercer a posse na convicção de passarem a ser os únicos proprietários da Parcela “A”, tal área integrava antes o prédio comum, que significa que os Recorrentes não ilidiram a presunção de que a sua posse é de boa-fé. 51.ª A comprovação da factualidade constante dos pontos de facto elencados nos números 1, 2, 6, 7, 8, 11, 15 e 16 da fundamentação de facto da sentença recorrida, os quais, associados aos factos ali dados como provados nas alíneas H), I), J), K), M) e O) do probatório (com as modificações acima requeridas), permitem concluir que os Reconvintes passaram a ocupar a Parcela “A” e a utilizar o respetivo espaço como coisa exclusivamente sua, não só à frente de seu pai e irmãos, como da vizinhança, sem oposição de ninguém, na convicção de exercerem direito próprio e de não lesarem direitos alheios. 52.ª Desde então, os Reconvintes detêm a posse exclusiva do direito de propriedade, sendo os únicos que praticam atos típicos do exercício desse direito real, como se e aparentando ser os únicos proprietários da Parcela “A”, exteriorizando, como ficou provado, comportamentos e atitudes (corpus) que patenteiam, por sua vez, estados de espírito, intenções e vontades típicas de quem quer beneficiar e aproveitar desse direito (animus). 53.ª Daqui decorre que a posse exercida pelos Recorrentes, desde finais dos anos 90, seria e será de considerar de boa-fé, nos termos do artigo 1260.º, n.º 1 do Código Civil, e que, como tal, decorridos que foram quinze anos, ocorreu a aquisição por usucapião da Parcela “A” – cf. artigo 1296.º do Código Civil. 54.ª Ao considerar não estarem verificados os carateres da posse apta à aquisição da propriedade de qualquer parte (coberta ou descoberta) da Parcela “A” por usucapião, a douta sentença violou ou deu indevida aplicação a todos os normativos legais que cita na sua fundamentação de direito, designadamente o disposto nos artigos 1260.º, n.º 2 e 1296.º do Código Civil. “ Pediram, que, na procedência do recurso, seja revogada a sentença recorrida, substituindo-se a decisão nela plasmada por outra que julgue procedentes os pedidos reconvencionais deduzidos pelos ora Recorrentes na sua contestação. *** 7) Os Requerentes (daqui em diante, Recorridos) não responderam.*** 8) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal ad quem.*** 9) Por despacho do Relator, os Recorrentes foram convidados a pronunciarem-se sobre a possibilidade de ser considerada a aplicação ao caso das normas administrativas de ordenamento do território relativas às operações urbanísticas do tipo das que foram descritas enquanto elementos que condicionam a possibilidade de aquisição por usucapião do direito de propriedade, o que fizeram dizendo, em síntese, que: (i) o direito adquirido por usucapião é autónomo e precede a aplicação de quaisquer normas decorrentes das leis do urbanismo e do ordenamento do território; (ii) de qualquer modo, no caso concreto, não existem condicionantes de natureza urbanística que se revelem impeditivas da aquisição por usucapião a favor dos Recorrentes; (iii) com efeito, escreveram, “o destaque da parcela de terreno sobre a qual os Recorrentes invocam o direito de propriedade por via da usucapião é admissível à luz do disposto no artigo 4.º do RJUE; sendo que de harmonia com o disposto no artigo 38.º do Regulamento do Plano Diretor Municipal de KK, que dispõe sobre os usos e atividades em aglomerados Urbanos não abrangidos por planos de urbanização – como é o caso do prédio dos autos –, tal também se revela possível.” *** 10) Foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.*** II.As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC). Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação. Deste modo, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos: 1.ª: Impugnação da decisão da matéria de facto – erro de julgamento quanto aos factos dos pontos 1, 2, 6, 7, 8, 11, 15 e 16 da fundamentação de facto da sentença recorrida; 2.ª: Erro na subsunção dos factos às normas jurídicas aplicáveis: saber se, ao contrário do decidido na sentença recorrida, os Recorrentes adquiriram o direito de propriedade sobre a identificada parcela A por usucapião. *** II.1) Antes de respondermos às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto da sentença recorrida, bem como a respetiva motivação, destacando a itálico os pontos que foram objeto de impugnação (transcrição): “Factos provados com relevo para a decisão a proferir: A. Mostra-se, pela ap. ...36 de 2010/09/13, registada a favor de CC, casado com DD no regime de comunhão de adquiridos, a aquisição, por sucessão hereditária e partilha dos bens deixados por LL e II, da quota de ¼ do prédio inscrito na matriz rústica sob o artigo ...22, descrita por Leira de cultivo, que confronta do norte com caminho, sul com ..., nascente com MM e do poente com caminho, descrito sob o n.º ...13. B. Mostra-se, pela ap. ...43 de 2010/09/13 registada a aquisição por sucessão hereditária e partilha dos bens deixados por LL e II de outra quota de ¼ desse prédio a favor de EE, casado no regime de comunhão de adquiridos com FF. C. Mostra-se, pela ap. ...50 de 2010/09/13 registada a aquisição por sucessão hereditária e partilha dos bens deixados por LL e II da remanescente quota de ½ desse prédio a favor de JJ, então solteira. D. Mostra-se, pela ap. ...09 de 2017/09/28 registada a favor de AA, casado no regime de comunhão de adquiridos com BB, a aquisição, por doação de JJ, da quota de ½. E. O prédio identificado em A tem a área total de terreno de 1.705m2, sendo a área descoberta de 1639,7m2 e a coberta de 66,2m2, e tem a configuração correspondente ao desenho com tracejado contínuo azul e vermelho constante do documento n.º ... junto com a contestação. F. Este prédio rústico encontrava-se há várias gerações na propriedade da família do réu CC e seus irmãos. G. Confina, de um lado, com uma casa agora propriedade dos réus CC e mulher e, de um outro lado, com a antiga casa da família, agora dos autores. H. Na área de 66,20 m2, que por isso está agora coberta, foi erigida edificação com sala, wc e cozinha, que está fisicamente ligada a edificação erigida noutro prédio que constitui a habitação dos réus CC e DD. I. A área de 83m2 descoberta, identificada sob a letra ... e tracejada a vermelho no documento n.º ... junto com a contestação, é usada como espaço exterior da habitação identificada em H pelos réus CC e DD. J. O pavimento dessa área foi empedrado pelos réus CC e DD. K. O portão mais largo que permite o acesso com viaturas, de e para a via pública, foi aberto e construído pelos réus CC e DD, e a porta mais pequena, pré-existente, foi por eles substituída. L. O prédio rústico era dantes utilizado, em comum e sem qualquer divisão física, por todos os irmãos, funcionando como uma espécie de logradouro comum da antiga casa de família. M. Em vida do pai (II) dos réus, o réu CC construiu a casa mencionada em H supra no prédio urbano (que adquiriu para o efeito) adjacente, a sudoeste, do prédio rústico. N. Em ../../2017, a irmã dos réus, JJ, declarou doar aos autores a quota de metade do prédio rústico acima referido e a casa da família correspondente ao artigo ...12/..., descrito na CRP sob o n.º ...61/.... O. Há mais de 15 anos que os réus contestantes possuem, pela via da ocupação do edifício que levantaram, a totalidade da área coberta da parcela A, na convicção de que são os seus únicos proprietários, o que fazem à vista de todos, sem para tanto usarem de força física ou coação, e sem oposição de quem quer que seja. P. Os autores dividiram o prédio rústico com rede. Factos não provados com relevo para a decisão 1. A habitação referida em H foi parcialmente construída sobre uma parcela do prédio rústico dos autos com expressa autorização e consentimento do pai II e dos demais irmãos – EE, aqui réu e JJ –, por ter ficado assente entre todos (pai e irmãos) que, por não exceder o seu futuro quinhão, tal parcela do prédio rústico de família podia já ser doada ao réu CC. 2. O logradouro referido em I é usado em exclusivo pelos réus CC e DD. 3. Os registos de aquisição referidas em A, B e C assentaram em escritura de habilitação e partilhas lavrada em 22 de fevereiro de 2000. 4. Os réus irmãos visaram especificamente beneficiar a irmã JJ, solteira e com condição económica e social mais débil e vulnerável, atribuindo-lhe, a título gratuito, um quinhão superior do prédio em sede de partilhas. 5. Pelas mesmas razões foi integralmente atribuída pelos réus irmãos, em sede de partilhas e a título gratuito, à irmã JJ a propriedade da antiga casa de família. 6. A parcela identificada com a letra ... no documento n.º ... junto com a contestação foi doada ao réu CC. 7. O pátio empedrado adjacente a noroeste da habitação de CC e DD serve de seu logradouro exclusivo para acesso de pessoas e estacionamento de uma viatura. 8. Desde o final dos anos 90, os réus contestantes possuem, pela via da ocupação do edifício que levantaram, a totalidade da área coberta da parcela A. 9. Os réus irmãos apenas tiveram conhecimento da doação pela irmã em momento posterior à mesma ter sido efetivada. 10. Desde então, na parte não compreendida pela parcela A, a utilização do prédio rústico em apreço, pelos respetivos comproprietários tornou-se conflituosa. 11. Desde há mais de 15 anos que os réus vêm, sem interrupção, sobre a totalidade da parcela A, realizando as obras que entendem, publicamente e à vista de todos, com a convicção de serem os únicos proprietários. 12. Os autores dividiram o prédio rústico com rede em acordo com os autores. 13. Os réus são os únicos detentores das chaves dos portões de acesso à parcela A pelo exterior. 14. Os autores para acesso à antiga casa de família e prédio rústico em apreço utilizam em exclusivo um outro portão grande existente na lateral poente do prédio rústico para acesso de pessoas e viaturas, cuja chave está na sua exclusiva e respetiva posse. 15. Desde finais dos anos 90 que os réus vêm ocupando, fruindo, cuidando, limpando, vigiando e utilizando, à vista de toda a gente, a área correspondente à totalidade da parcela A na convicção de se tratar de coisa exclusivamente sua e de não lesar os direitos de ninguém. 16. Os autores fazem o referido em O convictos de que ao assim procederem não estão a lesar o direito de propriedade de ninguém. Motivação da matéria de facto. A factualidade levada a A, B, C, D retira-se do teor da descrição predial do prédio em questão. O levado a E retira-se do teor da planta junta aos autos, planta essa que não mereceu, em especial do autor, aquando das suas declarações, qualquer oposição. A sua configuração é em tudo semelhante à que se pôde observar em audiência, e encontra perfeita correspondência com o enquadramento das fotografias do local entretanto juntas aos autos. Quanto às áreas nele referidas, não foi adiantada uma única razão para que se não tivesse a medição do Sr. Topógrafo como correta. Do depoimento das testemunhas arroladas (todas pelos réus) resultou a pacífica certeza de que era todo aquele espaço (todo aquele prédio rústico, encabeçado a noroeste pelo urbano que era a habitação da família e que agora é dos autores) há largos anos pertença da família, concretamente dos pais dos réus, e que foi em prédio adjacente que os réus contestantes erigiram a sua casa de habitação, edificação essa que, conforme os próprios alegam e reconhecem, avançou para parte do prédio da família (a tal área coberta da parcela A). A ocupação em exclusivo do edifício levantado pelos réus contestantes nessa parte do prédio é inequívoca (é o local onde têm habitação fechada) e contém as divisões que a testemunha HH lá fez, nos termos dados como provados (factos F a H e L). Também HH confirmou o empedramento da área descoberta da Parcela A e a construção das portas a mando dos réus contestantes nos termos dados provados e, em bom rigor, nada disse o autor apto a afastar o uso do espaço descoberto pelos réus. Esse uso, visto o local e as fotos, é até um facto notório. Só não aceita o autor que os réus o façam em exclusivo. E deu vários exemplos do seu uso por si, explicando que sempre fora por aquele lado a entrada da antiga casa de família (factos I, J e K). HH (uma testemunha, apesar de tudo, mais precisa quanto a datas do que a outra testemunha ouvida, a Sra. GG) deu a conhecer que a edificação foi levantada pelos réus contestantes em vida de seu pai (seu/deles, dos réus) e, acredita ele, na altura ainda dos escudos. Mas não foi seguro nem no ano nem na década, e não foi claro quanto ao tempo da execução da obra, deixando, no entanto, a entender que teria sido por fases, tendo tudo terminado com o empedrado e portões. E, portanto, o que se conseguiu demonstrar é que, por referência à data da entrada da ação, os autores tinham levantado a edificação para habitação que se prolongou pelo prédio rústico em discussão nos autos há mais de 15 anos, mas não demonstraram que o fizeram há mais de 20 anos (factos M e O). O levado a N é extratado de documentação dos autos e o levado a P foi referido pelo próprio autor em declarações. A factualidade que ficou por demonstrar resultou, crê-se, da escassez dos meios de prova apresentados: as testemunhas ouvidas foram claramente equívocas em relação ao uso dado pelos réus contestantes à parcela descoberta e à forma como a totalidade da parcela A chegou às mãos dos réus contestantes. E, por outro lado, o autor, em declarações, foi muito preciso e vigoroso quanto à posse das chaves para anexo ao espaço exterior da parcela A e quanto ao uso que lhes dá, e, portanto, ficaram por demonstrar as declarações e intenções vertidas em 1., 2., 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10. (o conflito não é apenas na parte que não inclui a parcela A), 11., 13., 14. e 15. O referido em 3., dado o teor do assento de óbito do pai dos réus, é uma impossibilidade. O acordo levado a 12., referido pelo autor, não ficou demonstrado de forma inequívoca. E, quanto ao uso da parcela, não ficou o tribunal com a certeza de que ao edificarem não estavam os autores cientes de que ocupavam terreno que não era sua exclusiva propriedade. Sabe apenas que o fizeram sem título (facto 16.). *** 2).1. Sobre a modificabilidade da decisão de facto pela Relação, discorre-se, no Acórdão desta Relação de 2.11.2017 (212/16.5T8MNC.G1), relatado por Maria João Matos, nos termos que, data venia, aqui respigamos:“Lê-se no art. 607º, nº 5 do C.P.C. que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, de forma consentânea com o disposto no C.C., nos seus art. 389º do C.C. (para a prova pericial), art. 391º do C.C. (para a prova por inspeção) e art. 396º (para a prova testemunhal). Contudo, a “livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (II parte, do nº 5 do art. 607º do C.P.C. citado…). Mais se lê, no art. 662º, nº 1 do C.P.C., que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma). Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo. Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, nº 1e 376º, nº 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351º e 393º, ambos do C.P.C.). Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados). (…) Lê-se ainda, no nº 2, als. a) e b) do art. 662º citado, que a “Relação deve ainda, mesmo oficiosamente”: “Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento” (al. a); “Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova” (al. b)”. “O atual art. 662º representa uma clara evolução [face ao art. 712º do anterior C.P.C.) no sentido que já antes se anunciava. Através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis. (…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua atuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos fatores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607º, nº 5) ou da aquisição processual (art. 413º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 225-227). É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efetiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, p. 29 e ss.).” *** 2).2. Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo os Recorrentes observado o disposto no art. 640/1 do CPC, vejamos a resposta a dar à questão, começando por dizer, em jeito de enquadramento, que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador. Ademais, nas situações mais comuns, não existem testemunhas presenciais nem outros meios que permitam uma prova direta, minuciosa e irrefutável do facto; há, assim, que recorrer a prova indireta, através de outros factos (ditos secundários, instrumentais ou probatórios), estes suscetíveis de prova direta, que permitam sustentar juízos de inferência. A este propósito, Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, Madrid: Trotta, 2005, p. 266, ensina que “[o] grau de apoio que a hipótese sobre o facto pode receber dessa prova depende, então, de dois tipos de fatores: o grau de aceitabilidade que a prova confere à afirmação da existência do facto secundário e o grau de aceitabilidade da inferência que se baseia na premissa constituída por aquela afirmação.” Sobre o primeiro fator, as questões que se colocam são as mesmas que surgem no âmbito da prova direta: a atendibilidade e credibilidade da prova sobre o facto secundário. Já o segundo depende essencialmente, no dizer de Michele Taruffo (idem), “da natureza da regra de inferência que se adote para derivar conclusões aptas a representar elementos de confirmação da hipótese sobre o facto principal a partir das afirmações do facto secundário. Assim, o grau de aceitabilidade da prova não equivale ao grau de confirmação daquela hipótese, nem o contrário; o problema principal é precisamente a fundamentação das inferências desde o facto provado ao facto afirmado na hipótese que se tenta confirmar.” Por outro lado, sabemos que o nosso sistema processual é enformado pelo princípio da prova livre, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente os meios de prova e é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada um deles. Isto não significa o arbítrio, posto que a apreciação da prova está sempre vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Por outras palavras – as de Paulo Saragoça da Matta (“A Livre Apreciação da Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, p. 254) –, “a liberdade concedida ao julgador (…) não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional.” Para que o exercício de tal poder seja justificado e comunicacional é pressuposto que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja suscetível de autocontrolo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo os próprios sujeitos prejudicados com a atividade probatória em questão. É esta necessidade que explica o disposto no já citado art. 607/4 do CPC que, por imposição constitucional (art. 205/1 da CRP), diz que “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.” *** 2).3. Perante o referido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal tem liberdade para, em cada caso, considerar suficiente a prova produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório no sentido de ficar convencido da verdade do facto em discussão.Coloca-se então uma outra questão: a do standard ou padrão de prova, a qual, por sua vez, está relacionada com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus. Sobre esta última, temos como assente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes Autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.” Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova. É aqui que surge a questão do standard da prova que, no dizer de Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório cit., pp. 55-56), “consiste numa regra que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira.” De acordo com Jordi Ferrer Beltrán (“La decisión probatória”, AAVV, Jordi Ferrer Beltrán (coord.), Manual de Razonamiento Probatorio, Ciudad de Mexico: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2022, pp. 397-458, disponível em https://bibliotecadigital.scjn.gob.mx/ [18.11.2023)), os standards de prova são regras que determinam o nível de suficiência probatória para que uma hipótese possa ser considerada provada (ou suficientemente corroborada) para fins de uma decisão sobre os factos. Ao realizarem essa determinação, cumprem três funções da máxima importância no marco do processo de decisão probatória: 1) aportam os critérios imprescindíveis para a justificação da própria decisão, no que diz respeito à suficiência probatória; 2) servem de garantia para as partes, pois permitem que tomem as suas próprias decisões sobre a estratégia probatória e controlem a correção da decisão sobre os factos; 3) distribuem o risco de erro entre as partes. Não existe entre nós norma que se pronuncie diretamente sobre esta questão. Afastadas as teorias baseadas no cálculo matemático de probabilidades, mais concretamente no Teorema de Bayes, há quem entenda que, em processo civil, opera o standard da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não.” Este standard consubstancia-se, segundo Luís Pires de Sousa (Direito Probatório cit., p. 61), em duas regras fundamentais: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.” Este critério, salienta o Autor, não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis. Por outro lado, leva a que, perante provas contraditórias de um mesmo facto (rectius, afirmação de facto), o julgador deva sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, “deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.” O Autor ressalva que “pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como verdadeira.” Assim, “para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor, é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica.” Michele Taruffo (La Prueba cit., pp. 266-267 e 277-278) propõe uma metodologia de confirmação do grau de probabilidade das hipóteses sobre o facto em que cada prova concreta é valorável numa escala de 0 a 1 (grau particular de confirmação). Por sua vez, a representação da valoração do conjunto da probabilidade da hipótese deve fazer-se numa escala de valores 0 → ∞, sem limite máximo (grau global de confirmação). As duas escalas combinam-se para determinar a probabilidade do facto. Os números são aqui uma forma de expressar relações lógicas e não supõem medidas quantitativas de nada. Um grau de confirmação da hipótese superior a 0,50 deve considerar-se como o limite mínimo abaixo do qual não é razoável aceitar a hipótese como aceitável. Uma só prova clara e segura pode ultrapassar esse limite mínimo, podendo igualmente ser racional aceitar a hipótese confirmada por várias provas ditas indiretas convergentes, por exemplo. O mesmo Autor nota (La Prueba cit., p. 302) que podem existir contextos em que é sensato aplicar a probabilidade lógica prevalecente no seu estado puro, o que equivale a dizer, sem que se exija que a hipótese dotada de grau de probabilidade comparativamente mais alto seja também aceitável segundo o critério que opera quando está em jogo uma só hipótese (≥ 0,51). A aplicação do critério no seu estado puro poderá ser pertinente em casos em que não se exija a demonstração da aceitabilidade plena da hipótese, bastando algum elemento de confirmação suscetível de atribuir um mínimo de credibilidade a tal hipótese. Temos dúvidas que esta solução seja compatível com o ordenamento jurídico português, em especial com a regra do non liquet consagrada no art. 414 do CPC, como salienta Miguel Teixeira de Sousa (“Standard probatório. Probabilidade prevalecente. Jurisprudência 2019 (100)” e “Por que razão a “probabilidade prevalecente” não é uma medida da prova aceitável no ordenamento probatório português”, disponíveis no Blog do IPCC [19.11.2023). Com efeito, ficando o juiz com dúvida sobre a verdade de um facto, deve julgá-lo como não provado, ainda que entenda que a probabilidade de ele ser verdadeiro é superior a 0,50, o que não sucede se for aplicado o referido critério. De acordo com ele, a referida probabilidade terá como consequência a prova do facto, ainda que subsista um espaço não despiciendo de dúvida, o que equivale à anulação da referida regra do non liquet. Ainda segundo Miguel Teixeira de Sousa, o referido critério é igualmente “incompatível com a contraprova, que é um meio de impugnação da prova que se destina a tornar o facto provado duvidoso (art. 346 do Código Civil); se o standard da prova começa em mais de 0,50, isso significa que pode verificar-se uma dúvida sobre a verdade do facto até 0,49; disto resulta necessariamente que: (i) Se a contraprova é suficiente para impugnar uma prova bastante, então não é coerente admitir uma medida da prova que deixa até 0,49 de dúvida sobre a verdade do facto; se a contraparte provar que há uma dúvida até 0,49 sobre a verdade do facto, a prova bastante fica impugnada, pelo que, ao contrário do que resulta da medida da probabilidade prevalecente, o facto não pode ser considerado provado; (ii) Se, em contrapartida, a medida da prova admite uma dúvida até 0,49, então a contraprova (que se destina precisamente, não a tornar o facto não provado, mas a apenas torná-lo duvidoso) não tem nenhuma possibilidade de aplicação.” Finalmente, “é incoerente com o disposto no art. 368/ 1 do CPC; este preceito determina que, para o decretamento de uma providência cautelar, não é necessária a prova do direito acautelado, mas, em todo o caso, é necessária a prova da probabilidade séria desse direito; a aceitação do critério da probabilidade prevalecente teria como consequência absolutamente surpreendente que a medida da prova seria mais exigente na tutela cautelar ("probabilidade séria") do que na tutela definitiva (probabilidade prevalecente).” No fundo, face ao disposto no art. 414 do CPC, podemos concluir que o legislador português é especialmente exigente quanto ao grau de convicção que é necessário alcançar para que uma afirmação de facto seja considerada como provada, assumindo que é preferível o erro do juiz dar como não provado o que é verdadeiro em detrimento do erro de dar como provado o que é falso, a que conduziria o standard da probabilidade prevalecente. A propósito, colocando esta opção ao nível da política-legislativa, cf. Marina Gascón Abellán, “Sobre la possibilidade de formular estândares de prueba objetivos”, Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 28, nov. de 2005, pp. 127-139, disponível em https://doi.org/10.14198/DOXA2005.28 [20.11.2023). Afigura-se-nos, assim, que o importante nesta sede é que a prova produzida tenha a medida bastante para criar no juiz a convicção de que o facto em discussão corresponde à verdade ontológica. Cabe depois ao juiz deixar transparecer na fundamentação as razões que o levaram a concluir dessa forma. Nesta medida, o standard serve essencialmente como uma orientação para o juiz na produção e na valoração da prova, designadamente na atribuição de um peso específico a cada um dos elementos que a compõem, tudo em ordem à formação da sua convicção. Não é mais que um critério de acordo com o qual deve construir, de forma completa, a justificação da sua decisão sobre a matéria de facto, baseada na solidez epistemológica das provas e dos juízos inferenciais que é necessário fazer para chegar delas até à hipótese de facto. Como referido em RP 23.02.2023 (30/21.9T8PVZ.P1), relatado pelo Desembargador Aristides Rodrigues de Almeida, esta é uma regra que “o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspetos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” Como se salienta no aresto acabado de citar, “a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exatas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida." Nesta apreciação, há que considerar, quando estejam em causa ações humanas, “que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objetivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa atuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de atuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.” Finalmente, há que dizer, a propósito da prova pessoal, que o processo de formação das memórias é frequentemente condicionado por fatores que as deturpam, ainda que não intencionalmente, podendo levar a relatos não conformes à realidade ontológica. Como se escreve no aresto, “[e]sta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto.” A este propósito, Luís Pires de Sousa (Prova Testemunhal, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 9-10) explica que “a memória, mais do que um processo de replicação, constitui um processo reconstrutivo. A evocação dos factos não constitui uma reprodução da realidade, mas sim uma reconstrução a partir de informação incompleta que guardamos do ocorrido. (…) A reconstrução é levada a cabo preenchendo as lacunas da memória mediante inferências que resultam do conhecimento geral e de outros eventos, vividos pela testemunha ou dela conhecidos, bem como com reativação e reorganização de diversas informações de modo a criar uma evocação. Neste sentido, a memória constitui uma combinação contínua de informação proveniente do que se viu, de pensamentos, da imaginação, conversações e outras fontes (…)” *** 2).4. Isto dito, impõe-se agora traçar uma breve panorâmica sobre a prova pessoal produzida em sede de audiência final, a qual será depois conjugada com a prova documental constante dos autos. Assim, na audiência final, realizada no dia ../../2022, foram ouvidas as testemunhas GG e HH. Foi também ouvido, em declarações de parte, o Recorrido. Todos depuseram tendo como referência o levantamento topográfico apresentado com a contestação que, por facilidade de exposição, aqui reproduzimos: [Imagem] A primeira testemunha, nascida e residente no lugar ..., disse, em síntese, que: o acesso ao prédio da família do Recorrente era feito através de um portão existente na zona que atualmente está empedrada; havia aí um pequeno arrumo, conhecido como casa das fornadas, utilizado pelo pai do Recorrente na sua atividade de moleiro; entre os anos de 1995 e 2011, período em que a testemunha esteve a trabalhar fora, deslocando-se, porém, com regularidade ao lugar, os Recorrentes construíram a sua casa; fizeram parte da construção sobre o prédio que era do pai do Recorrente, com autorização do mesmo; empedraram ainda a referida entrada, reconstruíram o muro e colocaram os portões; a casa das fornadas foi deslocada pelos Recorrentes para outa parte do prédio, o que foi feito com a autorização da irmã do Recorrente (JJ); esta continuou a passar por aquela entrada para ir para a sua casa (“casa antiga da família”); entretanto, o Sr. AA (Recorrido) abriu um portão mais à frente; quando este portão foi aberto, a entrada empedrada passou a ser utilizada apenas pelos Recorrentes. A segunda testemunha, construtor civil, disse, também em síntese, que: foi o responsável pela ampliação da casa dos Recorrentes; realizou essa obra ainda na década de noventa do século passado, possivelmente entre 1995 e 1997; também colocou o empedrado e construiu o muro com os portões na entrada, tudo por ordem do Recorrente, “antes de 2000, quando começou o euro”, tanto que foi pago em escudos; o pai e a irmã do Recorrente continuaram a passar por ali para acederem à casa onde habitavam (“casa antiga da família”); aliás, não havia outra entrada para essa casa; sabe que, entretanto, foi aberto, mais à frente, um outro portão que dá acesso ao prédio (“portão de acesso dos Autores”); é por esse portão que agora passa o novo proprietário (ou seja, o Recorrido); há cerca de dois anos foi colocada uma sebe e uma rede que impedem a passagem da entrada empedrada para a casa (“casa antiga da família”). Finalmente, o Recorrido afirmou, em síntese, que: o empedrado foi colocado na entrada do prédio há 15/16 anos; era por lá que a D. JJ passava para casa; naquele espaço havia um arrumo a que chamavam casa das fornadas; recebeu as chaves daquele espaço da D. JJ; de então para cá, sempre utilizou o espaço para passar e colocar objetos; abriu um portão mais à frente, ao qual se acede por um caminho de consortes; usa esse portão apenas para passar com o trator. *** 2).5. Como escrevemos, os Recorrentes insurgem-se quanto à decisão de considerar como não provadas as afirmações dos pontos 1, 2, 6, 7, 8, 15 e 16, nas quais estão em causa, grosso modo, as seguintes questões:1.ª Momento em que foram realizadas as obras referidas no facto provado H. (prolongamento do edifício sobre a parte coberta da denominada parcela A) e as obras referidas nos factos provados J. e K. (pavimentação da parte descoberta da denominada parcela A e colocação dos portões); 2.ª Realização das obras com a autorização e o consentimento do pai e dos irmãos do Recorrente; 3.ª Doação dessa parcela ao Recorrente; 4.ª Utilização exclusiva da totalidade da parcela A, incluindo da parte descoberta descrita no facto provado I. Tendo presente a descrita prova pessoal, podemos assentar, desde logo, que as duas testemunhas foram conformes em afirmar que os Recorrentes prolongaram a casa de habitação descrita na primeira parte da alínea G) do rol dos factos provados, com isso ocupando parte do prédio em discussão nos autos (a correspondente à área coberta da denominada parcela A). Foram também conformes em afirmar que os Recorrentes providenciaram pelo empedramento da entrada do prédio (que corresponde à parte descoberta da denominada parcela A), reconstrução do muro e colocação dos portões. Foram ainda conformes em afirmar que os Recorrentes fazem uso exclusivo da casa de habitação descrita em G), incluindo da parte edificada na parcela A. Já no que tange ao momento em que aquelas obras foram levadas a cabo (1.ª questão), a primeira testemunha revelou-se incapaz de o indicar com o mínimo rigor – apenas fez referência ao longo arco temporal que mediou entre os anos de 1995 e 2011. Já a segunda testemunha, com maior precisão, localizou a obra de prolongamento do edifício, de que foi executante, entre os anos de 1995 e 1997. Quanto ao empedramento, reconstrução do muro e colocação dos portões, situou-o “antes de 2000, quando começou o euro”, dando assim, claramente a entender que esta obra foi realizada depois do prolongamento do edifício. O referente temporal, pela explicação dada pela testemunha, afigura-se estar relacionado o início da circulação de notas e moedas de euros, facto este ocorrido no dia 1 de janeiro de 2002. Isto permite-nos concluir que, na tese da testemunha, a obra foi realizada, seguramente, antes da referida data. Um outro elemento aponta no mesmo sentido: a testemunha referiu que, depois da obra, o pai do Recorrente, que veio a falecer no dia 14 de maio de 2003, conforme resulta da certidão do respetivo assento de óbito, continuou a passar pelo mesmo local (a parte descoberta da parcela A) para aceder à casa de habitação da família. Deste modo, podemos retirar, com segurança, que a testemunha afirmou que as obras referidas em J. e k. dos factos provados foram realizadas antes de 1 de janeiro de 2002. Nas declarações que prestou, o Recorrido disse que a obra foi realizada há cerca de 15/16 anos. A forma imprecisa com que localizou o facto no tempo afigura-se insuficiente para contrariar o que foi dito pela testemunha HH, que assim deve prevalecer. Por outro lado, não resulta da referida prova qualquer menção segura quanto à existência de autorização e consentimento por parte do pai e da irmã do Recorrente (JJ) para a realização das referidas obras e, muito menos, quanto a uma doação do terreno correspondente à referida parcela A (2.ª e 3.ª questões). Apenas a testemunha GG fez referência a autorização por parte do pai do Recorrente. Fê-lo, porém, sem indicar a sua razão de ciência. Sem prejuízo, tendo em conta, por um lado, a natureza das obras levadas a cabo, bem visíveis, e, por outro, o facto de nunca ter havido qualquer reação da parte do pai e da referida irmã do Recorrente, que continuaram a fazer uso da parte descoberta da parcela A, à sua realização, afigura-se que o funcionamento das regras do id quod plerumque accidit aponta no sentido de que, pelo menos, o consentimento destes existiu. Finalmente, quanto ao uso em exclusivo da parte descoberta da parcela A (4.ª questão), a prova produzida não sustenta o juízo feito pelos Recorrentes: como vimos, a primeira testemunha afirmou que, mesmo depois de feitas as obras descritas em J. e K., a irmã do Recorrente (JJ) continuou a passar por ali para aceder à “casa de habitação da família” e acrescentou que o arrumo que ali existia (a casa das fornadas) foi removido com a autorização da referida irmã do Recorrente; no mesmo sentido, a segunda testemunha disse que tanto o pai como a referida irmã do Recorrente continuaram a passar por ali para entrarem no prédio. Estas afirmações não contrariam o que foi declarado pelo Recorrido. Associadas ao facto de não haver qualquer solução de continuidade entre a parte descoberta da parcela A e a casa da família para além de uma rede entretanto colocada pelo Recorrido (facto provado P), conforme se pode ver na 2.ª fotografia apresentada na audiência final, indicam que aquele espaço continuou, depois das obras, a ter um uso comum, obstando assim a uma convicção positiva quanto ao alegado uso em exclusivo por parte dos Recorrentes. Sintetizando, entendemos que os únicos pontos em que a decisão da matéria de facto tomada pela 1.ª instância merecem censura são os referidos a propósito das duas primeiras questões enunciadas, o que tem como consequência a procedência parcial da impugnação da matéria de facto, com o consequente aditamento ao rol dos factos provados das seguintes afirmações: H1: Essa obra [a referida em H.] foi levada a cabo antes do final do ano de 1997. K1: As obras referidas em J. e K. foram levadas a cabo antes do final do ano de 2001. K2: As obras referidas em H., J. e K. foram realizadas com o consentimento do pai e da irmã do Recorrente JJ. Estas modificações têm repercussão na redação do facto provado da alínea O), de modo a adequá-lo com afirmação feita em H1: se a construção foi feita no final de 1997, é de presumir que o edifício vem sendo utilizado pelos Recorrentes desde aquele momento e não apenas desde “há mais de 15 anos”, conforme ali foi escrito. Assim, este segmento da alínea O) será substituído em conformidade pela expressão “desde então.” Em decorrência, deve ser eliminada, do rol dos factos não provados, a afirmação do ponto 8, uma vez que a mesma está compreendida na nova redação do facto provado da alínea O). Finalmente, deve ser eliminada do rol dos factos não provados a afirmação do ponto 16, assim se pondo termo a uma contradição evidente com a referida alínea O): dizer-se que os Recorrentes possuem a área coberta da parcela A “na convicção de que são os seus únicos proprietários” também significa que atuam “convictos de que ao assim procederem não estão a lesar o direito de propriedade de ninguém.” No mais, improcede a impugnação da matéria de facto. *** 2).6. Respondida que está a 1.ª questão, cumpre agora proceder à reordenação dos factos provados de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto retratarem[1]:1 Mostra-se, pela ap. ...36 de 2010/09/13, registada a favor de CC, casado com DD[,] no regime de comunhão de adquiridos, a aquisição, por sucessão hereditária e partilha dos bens deixados por LL e II, da quota de ¼ do prédio inscrito na matriz rústica sob o artigo ...22, descrita por Leira de cultivo, que confronta do norte com caminho, sul com ..., nascente com MM e do poente com caminho, descrito sob o n.º ...13. 2 Mostra-se, pela ap. ...43 de 2010/09/13 registada a aquisição por sucessão hereditária e partilha dos bens deixados por LL e II de outra quota de ¼ desse prédio a favor de EE, casado no regime de comunhão de adquiridos com FF. 3 Mostra-se, pela ap. ...50 de 2010/09/13 registada a aquisição por sucessão hereditária e partilha dos bens deixados por LL e II da remanescente quota de ½ desse prédio a favor de JJ, então solteira. 4 Mostra-se, pela ap. ...09 de 2017/09/28 registada a favor de AA, casado no regime de comunhão de adquiridos com BB, a aquisição, por doação de JJ, da quota de ½. 5 O prédio identificado em 1 tem a área total de terreno de 1.705m2, sendo a área descoberta de 1639,7m2 e a coberta de 66,2m2, e tem a configuração correspondente ao desenho com tracejado contínuo azul e vermelho constante do documento n.º ... junto com a contestação. 6 Este prédio rústico encontrava-se há várias gerações na propriedade da família do réu CC e seus irmãos. 7 O prédio rústico era dantes utilizado, em comum e sem qualquer divisão física, por todos os irmãos, funcionando como uma espécie de logradouro comum da antiga casa de família. 8 Confina, de um lado, com uma casa agora propriedade dos Requeridos CC e mulher e, de um outro lado, com a antiga casa da família, agora dos Requerentes. 9 Em vida do pai (II) dos Requeridos, o réu CC construiu a casa mencionada em 8, 1.ª parte, no prédio urbano (que adquiriu para o efeito) adjacente, a sudoeste, do prédio rústico. 10 Na área de 66,20 m2 [deste prédio rústico], que por isso está agora coberta, foi erigida edificação com sala, wc e cozinha, que está fisicamente ligada a edificação erigida noutro prédio que constitui a habitação dos Requeridos CC e DD. 11 Essa obra [a referida em 10] foi levada a cabo antes do final do ano de 1997. 12 Deste então, os Requeridos contestantes possuem, pela via da ocupação do edifício que levantaram, a totalidade da área coberta da parcela A [a área referida em 10], na convicção de que são os seus únicos proprietários, o que fazem à vista de todos, sem para tanto usarem de força física ou coação, e sem oposição de quem quer que seja. 13 A área de 83m2 descoberta, identificada sob a letra ... e tracejada a vermelho no documento n.º ... junto com a contestação, é usada como espaço exterior da habitação identificada em 10 pelos Requeridos CC e DD. 14 O pavimento dessa área foi empedrado pelos Requeridos CC e DD. 15 O portão mais largo que permite o acesso com viaturas, de e para a via pública, foi aberto e construído pelos Requeridos CC e DD, e a porta mais pequena, pré-existente, foi por eles substituída. 16 As obras referidas em 14 e 15 foram levadas a cabo antes do final do ano de 2001. 17 As obras referidas em 10, 14 e 15 foram realizadas com o consentimento do pai e da irmã do Recorrente JJ. 18 Em ../../2017, a irmã dos Requeridos, JJ, declarou doar aos Requerentes a quota de metade do prédio rústico acima referido e a casa da família correspondente ao artigo ...12/..., descrito na CRP sob o n.º ...61/.... 19 Os Requerentes dividiram o prédio rústico com rede. *** 2).6.1. Aos factos que antecedem acrescentam-se ainda (ut art. 607/4, 2.ª parte, ex vi do art. 663/2, ambos do CPC) os seguintes (que estão provados pelas peças processuais indicadas):20 A petição inicial da ação foi apresentada em juízo no dia 11 de abril de 2020, cf. ref. Citius 2740146. 21 Os Requeridos CC e DD foram citados, por contacto pessoal, no dia ../../2020, cf. referências Citius ...77 e ...88. *** 3).1. Avançamos assim para a 2.ª questão enunciada, começando por lembrar que estamos perante uma ação de divisão de coisa comum: os Requerentes (ora Recorridos) pretendem, através dela, pôr termo à situação de compropriedade sobre o prédio composto de leira de cultivo, situado no lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o art. ...22 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...55. De acordo com o n.º 1 do art. 1403 do Código Civil (diploma ao qual pertencem as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência), existe propriedade em comum ou compropriedade quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. O n.º 2 acrescenta que os direitos dos consortes sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes. Na falta de indicação em contrário no título constitutivo, as quotas presumem-se quantitativamente iguais, o que não corresponde a uma genuína presunção, mas a uma verdade interina (Luís Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2023, p. 9). A compropriedade diverge, portanto, de outras situações de contitularidade de direitos, em especial a comunhão conjugal de bens e a comunhão sucessória, em que o objeto do direito consiste num património e não numa coisa. É isto que explica que a forma de pôr termo a estas últimas seja a partilha e não, como sucede com a compropriedade, a divisão da coisa comum. Atualmente, afastada a ideia segundo a qual cada comproprietário é titular de um direito sobre uma quota ideal ou intelectual da coisa, defendida por autores como Manuel Rodrigues (“A Compropriedade no Direito Civil Português”, RLJ, ano 58.º, pp. 17 e ss.) e Carlos Alberto Mota Pinto (Direitos Reais, Coimbra: Almedina, 1970-71, pp. 256-257), discute-se se nas situações em apreço existe (i) uma pluralidade de direitos de propriedade plena cujo exercício é reciprocamente limitado ou (ii) um direito de propriedade pertencente a uma multiplicidade de sujeitos. A primeira conceção é defendida por autores como Menezes Cordeiro (Direitos Reais, reimpressão, Lisboa: Lex, 1993, pp. 442-443), Oliveira Ascensão (Direito Civil – Reais, 5.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 270), Luís Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, Lisboa: Quid Juris, 1996, pp. 295-296) e José Alberto Vieira (Direitos Reais, Coimbra: Coimbra Editoral, 2008, pp. 365-366) e seguida, na jurisprudência, por exemplo, em STJ 19.09.2013 (433/2001.C1.S1), relatado por Granja da Fonseca. De acordo com ela, cada comproprietário é titular de um direito de propriedade plena sobre a coisa comum, o que equivale à afirmação de que a compropriedade constitui uma situação de concurso de direitos de propriedade sobre o mesmo bem. Há apenas uma comunhão de objeto e não de situação jurídica. A segunda conceção, defendida por autores como Henrique Mesquita (Direitos Reais, Coimbra: UC, 1967, pp. 246-247), Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., Cascais: Principia, 2007, p. 60) e Elsa Vaz de Sequeira (“Art. 1403.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, Lisboa: UCE, 2021, pp. 381-383) e seguida, inter alia, em STJ 16.06.2015 (1010/06.0TBLMG.P1.S1), STJ 29.03.2012 (680/2002.L1.S1) e STJ 7.04.2011 (30031-A/1979.L1.S1), o primeiro e o terceiro relatados por Hélder Roque e o segundo por Ana Paula Boularot, formula três críticas fundamentais em relação à anterior: a sua desarmonia com o teor do art. 1403/1, que define a compropriedade como a situação em que “duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, indiciando, assim, o carácter comum não apenas do objeto, mas do próprio direito de propriedade sobre ele incidente; não explica por que razão os comproprietários têm, no seu conjunto, os mesmos poderes que tem o proprietário singular, conforme resulta do n.º 1 do art. 1405; é contrária à vocação de plenitude e exclusividade típicas do direito de propriedade, que confere ao respetivo titular a totalidade do domínio sobre a coisa. Considerando que “nada na natureza do direito subjetivo obsta à possibilidade de pluricefalia” (Elsa Vaz de Sequeira, loc. cit., p. 383), os defensores desta conceção invocam ainda em seu favor o regime da transmissão de direitos expresso no brocardo nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet: “[s]e um titular singular transmite o seu direito a uma multiplicidade de pessoas, aquilo que elas adquirem, enquanto parte plural, é exatamente o mesmo que aquele alienou. Isto é, o direito singular” (Elsa Vaz de Sequeira, idem). Concluem, em conformidade, que a complexidade subjetiva implica que cada um dos comparticipantes não pode deter o direito comum na sua totalidade, mas apenas numa parcela. Não se prescinde, portanto, da ideia de participação proporcional no direito comum, o que é expresso pelo conceito de quota. Deste modo, como escreve Elsa Vaz de Sequeira (idem), a quota “exprime a participação de cada comuneiro no direito comum, enquanto participação imediata nos poderes que o respetivo conteúdo abarca. Se, por um lado, goza de existência no mundo do Direito, podendo inclusive ser objeto de negócios jurídicos, por outro lado, essa exigência encontra-se na estrita dependência quer do direito subjetivo que lhe serve de esteio quer da presença de outras quotas. São estas que, na realidade, permitem a individualização da posição jurídica de cada consorte na titularidade do direito comum e, com isso, a acomodação recíproca de todos.” Compreende-se assim que a finalidade da divisão da coisa comum, que é um direito potestativo de cada comproprietário, nos termos enunciados no art. 1412/1, seja a dissolução da situação de contitularidade e não propriamente a divisão em substância da coisa objeto do direito. A demonstrá-lo está o facto de o poder de extinguir a comunhão existir quer no que tange às coisas divisíveis – isto é, “as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”, como proclama o art. 209 –, quer no que tange às coisas natural ou legalmente indivisíveis (v.g., art. 1376). Isto não significa que esta distinção não assuma relevo. Na verdade, ela importa para a determinação em concreto do meio de operar a divisão. Sendo a coisa divisível, a divisão pode operar-se por um de três meios: o fracionamento da coisa, sofrendo então o direito de propriedade uma fragmentação, quer na sua titularidade, quer no seu objeto, “transmutando-se em diversos direitos de propriedade singular por tantos sujeitos quantos os consortes a quem os quinhões forem adjudicados”, na expressão de Manuel Tomé Soares Gomes (Ação de Divisão de Coisa Comum, Lisboa: CEJ, 1997, pp. 3-4); a adjudicação da coisa a um dos comproprietários; a venda da coisa, repartindo-se o produto obtido pelos comproprietários na proporção das respetivas quotas. Sendo a coisa indivisível, apenas os dois últimos meios de operar a divisão são cogitáveis. *** 3).2. No caso vertente, não suscita dúvida a existência de uma situação de compropriedade sobre o identificado prédio. O dissenso que ocorre entre as partes verifica-se em relação à composição do prédio: os Recorrentes entendem que, ainda antes de constituída a situação de compropriedade, quando ainda não eram titulares de qualquer direito sobre o prédio, iniciaram uma situação de posse em termos de exercício do direito de propriedade sobre uma parcela do terreno respetivo – a identificada parcela A –, posse essa que se manteve com os caracteres e pelo tempo necessários à aquisição do direito por usucapião. Concluem que essa parcela de terreno deixou de fazer parte do prédio e, assim sendo, deve ser excluída da divisão.Quid inde? *** 3).2.1. Diz o art. 1287 que “[a] posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.”Deste modo, a usucapião assume-se como um dos efeitos da posse, ao lado de outros, como sejam a presunção de titularidade do direito (art. 1268), a possibilidade de recurso às ações possessórias (arts. 1276 e ss.) ou a aquisição de frutos (arts. 1270 e 1271). Precisa-se, no entanto, que a noção legal deve ser corrigida: não se possuem direitos, mas sim coisas (Menezes Cordeiro, Direitos Reais cit., p. 466). O instituto surgiu com a finalidade de proteger a boa-fé daqueles que, tendo adquirido legitimamente qualquer objeto, não tinham ficado desde logo seus proprietários, ou porque a coisa adquirida não era propriedade do alienante, ou porque não tinham sido respeitadas as formalidades legais no ato da aquisição. A evolução histórica posterior implicou, porém, um alargamento da sua razão de ser. Entre outras razões, a usucapião é perspetivada como um prémio dado àquele que promove o aproveitamento económico da coisa, mesmo não sendo titular de qualquer direito sobre ela, e como um meio de permitir, tanto quanto possível, a coincidência entre titularidade efetiva e a titularidade aparente, assente na posse, que é o seu primeiro pressuposto. O possuidor exerce uma função social, encorajada pela lei, o que justifica que esta o proteja.[2] Esta proteção há-de ir até onde, razoavelmente, satisfaça o interesse do sujeito beneficiado com ela; quando a atuação possessória revela virtualidades para provocar a aquisição do direito de que ela própria era a aparência já nada de jurídica e socialmente útil resta aos mecanismos tutelares do fenómeno possessório. Passa, então, a tutelar-se o próprio direito nos termos do qual foi exercida a posse. Com efeito, a posse consiste na aparência de titularidade de um direito real (art. 1251). Não é indispensável uma ininterrupta atuação que a ela se revele simétrica, embora esse seja o seu mais frequente modo de manifestação. Neste sentido, o art. 1257/1 diz que a posse mantém-se enquanto durar a possibilidade de continuar a atuação correspondente ao exercício do direito real. Não cabe aprofundar aqui o estudo dogmático da posse, por sinal uma das tarefas mais árduas do direito (Menezes Cordeiro, A Posse: Perspetivas Dogmáticas Atuais, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 8-9), pelo que vamos deixar apenas expresso que, tanto a doutrina nacional dominante, como a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, se manifestam no sentido de o Código Civil conceber a posse no quadro da conceção subjetivista, segundo a qual não basta o corpus, isto é, a relação de senhorio sobre uma coisa, para que se possa afirmar a existência de posse; é ainda necessário que aquele elemento seja o sinal revelador de uma específica disposição anímica por parte de quem o exerce. Por outras palavras, não é suficiente a voluntariedade dos atos exteriorizadores do poder de facto; requer-se ainda que quem os pratica atue convicto de que é titular do direito de propriedade (animus dominii) ou de outro direito real limitado (animus sibi habendi). Neste sentido, cf. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 5; Carlos Alberto Mota Pinto, Direitos Reais cit., p. 189; Henrique Mesquita, Direitos Reais cit., p. 69 e ss.; Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, RLJ, ano 122, pp. 65 e ss.; Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, Lisboa, 1992, p. 243; Paula Costa e Silva, Posse ou Posses?, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, passim. Na jurisprudência mais recente, STJ 30.06.2020 (638/15.1T8STC.E1.S1), relatado por Raimundo Queirós, STJ 7.04.2011 (956/07.2TBVCT.G1.S1), relatado por Fonseca Ramos, STJ 17.04.2007 (07a480), STJ 11.05.2006 (06b404), relatado por Alves Velho, e STJ 6.07.2005 (04b1862), relatado por Lucas Coelho. Em abono desta tese são invocados, sobretudo, os arts. 1251 e 1253, designadamente a alínea a) do último. Há, todavia, quem sustente que as disposições do Código Civil são compatíveis com um entendimento objetivista da posse, como são os casos de Menezes Cordeiro (Direitos Reais cit., pp. 395-396), Oliveira Ascensão (Direito Civil – Reais cit., pp. 86 e ss.), Luís Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais cit., pp. 274 e ss.) e José Alberto Vieira (Direitos Reais cit., pp. 536 e ss.). Para estes autores, o art. 1251 apresenta uma noção de posse sem fazer qualquer menção à intenção ou vontade do possuidor. Dispõe apenas que a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício de um direito real. Nos arts. seguintes, vem explicitado que esse poder é um “poder de facto”. Esta expressão surge no art. 1252 (“presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto”) e no art. 1253, a) (“os que exercem o poder de facto…”); ela pretende traduzir o habitualmente designado corpus possessório, ou seja, o controlo material de uma coisa corpórea por um sujeito. Quer isto dizer que a noção de posse vertida no art. 1251 faz coincidir a posse com o chamado corpus possessório, denominado “poder de facto”, e deixa ignorado qualquer elemento intencional. Nenhuma menção ao animus surge no art. 1251, como também não surge a propósito da regulação dos factos constitutivos da posse, nomeadamente do apossamento (art. 1263, a)) e da inversão do título da posse (art. 1265). Por outro lado, acrescentam, o Código Civil, depois de apresentar uma noção de posse (art. 1251) e de dispor que a posse pode ser exercida direta ou indiretamente pelo possuidor (art. 1252), elenca no art. 1253 os grupos de casos em que, não obstante haver poder de facto (corpus possessório), não é atribuída posse – ou, noutra formulação, a posse vem descaracterizada para mera detenção. Esta técnica legislativa segue o esquema de Jhering, para quem os casos de detenção resultavam da incidência de uma norma jurídica que afastava a posse quando havia corpus – isto é, havendo corpus existiria posse exceto se uma particular regra jurídica afastasse essa solução, descaracterizando a situação para mera detenção. Concluem que a argumentação subjetivista que se tem retirado do art. 1253, a), não é decisiva. Se o animus tivesse o papel de um elemento constitutivo da posse, a referência a ele constaria do art. 1251 e não de um preceito dedicado à detenção. Neste sentido, José Alberto Vieira (ob. cit., p. 541) escreve que “a função desempenhada pela intenção no Direito português, segundo a alínea a) do art. 1253, é justamente a oposta à defendida pela teoria subjetivista: a de afastar a posse numa situação em que normalmente ela existiria. A intenção funciona como vetor de exclusão da posse, não de atribuição da mesma.” Havendo corpus possessório e não incidindo nenhuma norma jurídica que descaracterize a situação para mera detenção, nomeadamente qualquer das alíneas do art. 1253, existirá posse. Neste contexto, diremos que a própria lei retira alcance à exigência de intenção, esbatendo os termos e a relevância da controvérsia, na medida em que o n.º 2 do art. 1252 estabelece uma presunção de posse a favor dos que exercem o poder de facto. Tal presunção, de resto, tem sido interpretada em termos amplos, designadamente no acórdão uniformizador do STJ de 14.05.1996 (DR de 24.06.1996 e BMJ 457, pp. 55 e ss.), nos termos do qual “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre a coisa.” Dir-se-á, assim, que a qualificação de uma determinada situação como mera detenção dependerá da prova de que o animus não existe. A posse pode ser causal ou formal. Ela é causal quando surja apenas como o corolário do exercício de um direito de que efetivamente se é titular. Ao invés, é formal quando, surgindo desacompanhada do correspondente direito de fundo, a sua relevância jurídica de nada mais dependa do que da sua própria existência. Para efeitos de usucapião pressupõe-se, naturalmente, a posse formal. Finalmente, para poder conduzir à usucapião, a posse deve revestir certos caracteres. Desde logo, deve ser uma posse efetivamente exercida e não meramente mantida (art. 1257) durante o lapso de tempo requerido. Seria paradoxal que o não exercício (da posse, neste caso) pudesse conduzir à aquisição de um direito quando, na normalidade (art. 298/3), ele produz o efeito exatamente inverso: a sua extinção. Depois, como a atribuição de um direito ao possuidor deve supor a inércia daqueles que potencialmente a tal se poderiam opor, para iniciar a contagem do prazo exige-se que a sua posse tenha sido adquirida pacífica e publicamente. Caso contrário, ele apenas começa a correr quando cesse a violência ou a posse se torne pura (arts. 1297 e 1300/1). É violenta a posse adquirida mediante coação moral ou coação física (art. 1261/2). É oculta aquela cujo exercício não seja cognoscível pelos interessados (art. 1262). O lapso de tempo exigido para efeitos de usucapião varia, na sua extensão, essencialmente em função de dois fatores: natureza mobiliária ou imobiliária da coisa objeto da posse; boa ou má-fé do possuidor. A boa-fé consiste no desconhecimento de, ao adquirir a posse, se estar a lesar um direito alheio (art. 1260/1). Por isso – ainda que a sua aferição em momento posterior não se mostre totalmente irrelevante (cf. art. 1270) –, em geral, mala fides superveniens non nocet (D.41.1.4.1.). Apela-se ao conceito de boa-fé subjetiva, embora seja hoje ponto assente que o respetivo critério de aferição é de base normativa e não puramente psicológica. Boa-fé será assim sinónimo de desconhecimento desculpável ou não censurável. Outros fatores que relevam para o prazo exigido para a invocação da usucapião são o carácter titulado ou não titulado da posse e a existência de registo, do título ou da própria posse. A posse é titulada quando a sua aquisição se funde na existência de um ato jurídico (não necessariamente negócio jurídico – pode tratar-se, por exemplo, de uma decisão judicial) translativo ou constitutivo de um direito real que, a ser válido, seria a sua causa (aquele direito, entenda-se). Requer-se que ele haja observado, no mínimo, a forma legalmente prescrita para o efeito (art. 1259/1). Ao invés, a posse será não titulada quando a sua aquisição: (i) se funde num "ato" juridicamente inexistente; (ii) não se apoie num ato com a referida eficácia, como sucede, de um modo geral, nos casos de aquisição originária da posse (art. 1263, a) e d)), exceto tratando-se de inversão do título por ato de terceiro (art. 1265, 2.ª parte); (iii) se baseie num ato existente, com eficácia translativa ou constitutiva de um direito real, mas formalmente inválido. A posse titulada faz presumir a boa-fé do possuidor e a não titulada a sua má-fé (art. 1260/2). Tratando-se de coisas móveis não registáveis, as características até agora expostas são as únicas que fazem variar o prazo de usucapião. No regime da usucapião de direitos sobre imóveis, o critério principal leva a classificar os possuidores em possuidores que tenham título aquisitivo do direito a que a posse se reporta e o hajam registado e aqueles que não tenham registo do título. No primeiro caso, aplica-se o disposto no art. 1294; no segundo, o art. 1296. Havendo título e registo do mesmo, é aplicável o art. 1294. No entanto, este preceito estabelece dois prazos diferentes para a usucapião de acordo com um outro critério: a boa ou má-fé do possuidor: (i)) havendo registo do título e boa-fé do possuidor, o prazo para a usucapião é de 10 anos (alínea a) do art. 1294); (ii)) havendo registo de título e má-fé do possuidor, o prazo para a usucapião é de 15 anos (alínea b) do art. 1294. Em ambas as situações, o prazo conta-se da data do registo e não do início da posse. A existência de título não se confunde com título válido. A compra e venda, a doação, a permuta e o testamento, por exemplo, podem ser inválidos, qualquer que seja o vício que em concreto afeta o negócio jurídico. Desde que o registo do facto jurídico tenha sido feito em conformidade com as disposições do direito registal, existe título registado para efeitos da usucapião, ainda que o facto jurídico seja inválido, e o possuidor pode invocar a usucapião nos termos do art. 1294. Se o possuidor tiver título, mas sem registo do mesmo, ou não tiver título algum, o prazo para a usucapião é o constante do art. 1296. Também aí a lei introduz o critério da boa ou má-fé do possuidor para determinar o prazo aplicável: Não havendo registo do título, sendo a posse de boa-fé, o prazo para a usucapião é de 15 anos; sendo a posse de má-fé, o prazo para a usucapião é de 20 anos. Desde que se possa recorrer à acessão dos tempos de posse (art. 1256), o prazo aproveita-se na totalidade a favor do possuidor que pretenda usucapir ainda que ele, por si, o não tenha cumprido por inteiro. A acessão pressupõe unicamente que entre a posse daquele que invoca a usucapião e aquela cujo tempo de duração se pretende anexar exista um nexo de proveniência. Vale isto por dizer que apenas podem aceder os tempos das posses que, ininterruptamente, tenham sido derivadamente adquiridas (art. 1263 b) e c)). É o que se retira da utilização, no artigo 1256 da locução sucedido. Nos termos do n.º 2 deste art. 1256, é irrelevante o facto de os tempos que se agregam se reportarem a posses de diferente espécie ou natureza, embora, em tal caso, a acessão se dê apenas dentro do âmbito daquela que benefícios mais limitados atribuir. Se o caso for de sucessão mortis causa, o problema da acessão de tempos possessórios nem sequer se põe, já que os herdeiros continuam (necessariamente) a posse do de cuius (art. 1255). O tempo de duração conta-se desde a data em que o de cuius a começou e as suas características são aquelas que na sua titularidade ela apresentava. À usucapião aplicam-se, de um modo geral, por força do disposto no artigo 1292, as regras da prescrição (extintiva): quer esta, quer aquela, produzem a extinção de direitos não exercidos durante um longo período de tempo. Em qualquer caso, por conseguinte, sanciona-se a inércia dos seus legítimos titulares com a perda (absoluta) dos direitos que antes lhes pertenciam. Tendo em conta esta profunda similitude, facilmente se justifica, assim, a remissão genérica operada através do citado artigo para o regime da prescrição extintiva. Daqui decorre uma importante consequência. A usucapião não conduz ipso iure à aquisição do direito em causa; é imprescindível que o possuidor cuja posse seja boa para usucapir a invoque (art. 303), judicial ou extrajudicialmente (por intermédio da escritura pública de justificação notarial prevista nos art. 89 a 101 do Código do Notariado ou do processo de justificação previsto nos arts. 117-B a 117-P do CRP). O ato judicial ou extrajudicial que a reconhecer serve meramente, no entanto, para a corroborar, pois a usucapião opera regressivamente os seus efeitos à data do início da posse (art. 1288). Tem legitimidade para pedir a usucapião não apenas o possuidor que haja preenchido os mencionados requisitos como também os respetivos “credores e (…) terceiros com legítimo interesse na sua declaração” (art. 305/1). A aquisição por usucapião é originária. Quer dizer que o direito de gozo adquirido funda-se exclusivamente na posse exercida e não em qualquer outro direito (anterior) na titularidade de outrem. Tal posse é a medida da aquisição – ou seja, o conteúdo do direito usucapido é igualmente dado pelo modo como ela se exerceu até à invocação da usucapião: tantum praescriptum, quantum possessum. Todos os direitos anteriormente existentes a favor de terceiro sobre a coisa objeto da usucapião extinguem-se, por incompatibilidade, uma vez ela invocada. *** 3).2.2. Sendo a usucapião uma forma de aquisição do direito de propriedade sobre uma coisa como efeito do exercício da posse sobre a mesma, afigura-se axiomático que apenas podem ser adquiridas por esta via coisas que existam como tal e que também sejam suscetíveis de ser adquiridas por outro modo. Com efeito, por um lado, um direito real incide, em regra, sobre a totalidade da coisa que constitui o respetivo objeto, corolário lógico do princípio superficies solo cedit – que, no entanto, conhece algumas exceções, como as que resultam dos arts. 1389 a 1391 e 1395, onde se admite que o direito de propriedade sobre as águas existentes num prédio pertença a pessoa diversa do dominus do referido prédio, do art. 1528, que admite a constituição do direito de superfície mediante a alienação de obra ou árvores já existentes, e do instituto da propriedade horizontal; por outro lado, resulta do n.º 2 do art. 408 que os direitos reais só podem incidir sobre coisas certas, determinadas e autonomizadas juridicamente. De acordo com a doutrina (por todos, Maria Clara Sottomayor / Ana Teresa Ribeiro, “Art. 204.º”, AAVV, Comentário do Código Civil. Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, pp. 552-553), o conceito de coisa implica um objeto com existência autónoma apropriável, suscetível de subordinação jurídica ao poder de ação ou na disponibilidade exclusiva de alguém. Assim, pode dizer-se que não cabe na noção jurídica de coisa um objeto que não tenha existência autónoma – isto é, que não seja uma entidade distinta e separada ou que não esteja individualizado. Vale isto por dizer que sobre aquilo que apenas existe enquanto parte de um todo mais vasto não podem constituir-se relações jurídico-reais com individualidade própria. A demonstrá-lo está o regime das partes componentes e das partes integrantes que, sendo passíveis de identificação da sua individualidade, mas encontrando-se estreitamente conexas com uma coisa diferente, não podem ser objeto de direitos reais diversos dos que incidem sobre a coisa a que se encontram ligadas enquanto não se produzir a desafetação ou a separação desta (cf. Maria Clara Sottomayor / Ana Teresa Ribeiro, loc. cit., p. 551).[3] Na verdade, os direitos reais podem ser constituídos sobre parte de uma coisa, na medida em que esta seja autonomizável e, como tal, objeto de um tratamento autónomo – a partir daí, a parte será, ela própria, uma coisa (Menezes Cordeiro, Direitos Reais cit., pp. 339-341). Estando em causa um prédio, seja urbano, seja rústico, é de admitir, pela própria natureza das coisas, o seu fracionamento, o que pode passar, designadamente, pela autonomização de uma parcela de terreno, assim se obtendo, por essa via, um novo prédio. Por outro lado, é também de admitir uma posse formal em termos de exercício do direito de propriedade sobre uma parte de um prédio. Significa isto que, conforme sintetizam Mónica Jardim / Dulce Lopes, (“Acessão industrial imobiliária e usucapião parciais versus destaque”, AAVV, Fernanda Paula Oliveira (coord.), O Urbanismo e o Ordenamento do Território e os Tribunais”, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 757-812), “apesar de o direito de propriedade incidir (…), em regra, sobre a totalidade da coisa (certa, determinada e autonomizada juridicamente) (…), nada obsta a que exista posse em termos de direito de propriedade sobre a parte de uma coisa ainda não autonomizada, mas suscetível de vir a sê-lo.” A demonstrá-lo está, de resto, o facto de o legislador prever a usucapião como uma das formas de constituição da propriedade horizontal (art. 1417). Ocorrendo uma situação dessas, é de admitir, em termos gerais, a possibilidade de aquisição por usucapião da parte do prédio sobre a qual recai a posse.[4] Este entendimento parte do pressuposto de que a usucapião é, em simultâneo, um meio de autonomizar a parcela possuída e uma forma de aquisição originária do respetivo direito real, que assim pode ocorrer sem um prévio destaque da parcela usucapida. Ao escrevermos isto temos em vista o conceito técnico de destaque enquanto operação destinada ao fracionamento fundiário simples de um prédio (em duas parcelas) que foi introduzida no nosso ordenamento jurídico pelo DL n.º 400/84, de 31.12. Este diploma considerava encontrarem-se fora da noção de loteamento as situações de destaque, isto é, de celebração de negócio jurídico do qual resultasse a divisão de uma única parcela, desde que o prédio se situasse dentro de aglomerado urbano, a parcela confrontasse com arruamento público e o particular detivesse projeto aprovado para a construção, no máximo de dois fogos (com correspondente ónus de não fracionamento pelo prazo de dez anos). Com o DL n.º 448/91, de 29.11, previram-se situações de destaque nos aglomerados urbanos e nas áreas urbanas desde que do destaque não resultassem mais de duas parcelas confrontantes com arruamentos públicos e a construção a erigir dispusesse de um projeto aprovado pela câmara municipal, mas também fora desses aglomerados e áreas urbanas, desde que a parcela a destacar se destinasse exclusivamente a fins habitacionais, não detivesse mais de dois fogos e na parcela restante se cumprisse a unidade mínima de cultura. Também se admitia que, havendo plano de urbanização ou plano de pormenor, o destaque passasse a obedecer apenas às condições previstas no plano, sendo documento bastante, para efeitos de registo predial, a certidão do plano respetivo (art. 5.º). Com o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), estabelecido pelo DL n.º 555/99, de 16.12, na redação do DL n.º 214-G/2015, de 2.10, passou a diferenciar-se entre os destaques dentro e fora do perímetro urbano, admitindo-se que a concretização dos mesmos possa ser feita diretamente no registo predial, desde que com certidão de destaque emitida pela câmara municipal (art. 6.º/4 e 5). Os requisitos para o destaque são similares aos previstos no revogado DL n.º 448/91, muito embora o legislador tenha eliminado a referência aos destaques em áreas com plano de urbanização ou de pormenor e tenha admitido que, nos destaques em solo rural, a referência à unidade mínima de cultura seja substituída pelas áreas mínimas indicadas nos planos de intervenção em espaço rural. Compreende-se assim que se afirme que o destaque, “ao contrário do loteamento e dos demais atos de gestão urbanística que assumem a natureza jurídica de atos autorizativos constitutivos ou, pelo menos, permissivos do exercício de determinados direitos, (…) é um instituto complexo que assenta numa combinação entre um ato certificativo da administração e um ato final, de concretização da divisão fundiária, da responsabilidade do proprietário” (Dulce Lopes, “Destaque: um instituto em vias de extinção”, Direito Regional e Local, n.º 10, abril / junho 2010, pp. 15-28). As câmaras municipais, apesar de não terem aqui um controlo preventivo, têm sempre de intervir através da emissão de uma certidão comprovativa de que os requisitos do destaque estão presentes ou que as normas aplicáveis estão cumpridas. Como se pode concluir pelo que acabámos de escrever, é de entender que a aquisição de uma parcela do terreno de um prédio por usucapião pode ocorrer ainda que não tenha havido uma prévia operação de destaque. O resultado prático que poderia ser obtido através desta – a autonomização da parcela possuída – ocorrerá então por efeito da usucapião. *** 3).2.3. Questão diversa é a de saber se a aquisição de uma parcela do terreno por usucapião, assim levando à cisão do prédio a que pertencia, pode ocorrer sem que se mostrem preenchidos os requisitos que seriam legalmente exigidos para que essa mesma parcela pudesse ser autonomizada, através de destaque, e adquirida por outro meio legal de aquisição (v.g., negócio jurídico). O momento relevante para esse efeito, adiantamos já, é o do início da posse. Neste sentido, STJ 02.05.2019 (514/07.1TBGDL.E1.S1), relatado por Maria da Graça Trigo, onde se lê que, num “recurso em que está em causa apreciar se o reconhecimento do direito de propriedade da ré, adquirido por usucapião, viola regras legais imperativas, considera-se que releva para efeitos de apurar se tal violação ocorre é a data do início da posse. Também STJ de 24.10.2019 (317/15.0T8TVD.L1.S2), relatado por Fátima Gomes, onde se lê que a “data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as invocadas regras legais limitativas do fracionamento de prédios rústicos é a do início da posse.”Esta questão entronca naquela outra mais ampla de saber se a usucapião prevalece face às normas imperativas relativas ao Direito do Urbanismo, como é o caso das que estabelecem os requisitos para as operações de destaque ou de loteamento urbano. Parte-se aqui da consideração de que “o direito do urbanismo encerra normas direta e imediatamente vinculativas tanto para os sujeitos de direito público, como para os particulares. As suas normas têm uma força vinculativa direta e estabelecem, de um modo mais ou menos concreto e preciso, o destino e o regime de ocupação, uso e transformação do solo” (Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, I, Coimbra: Almedina, 2001, p. 65). Tradicionalmente, pugna-se pela irrelevância destas normas com fundamento na natureza originária da aquisição da propriedade (ou de outros direitos reais menores) que decorre do instituto da usucapião. Neste sentido, na doutrina, Durval Ferreira (“Posse e Usucapião – Loteamentos e Destaques Clandestinos”, Scientia Juridica, LII, n.º 295, janeiro / abril 2003, pp. 100 e ss.), escreve que “a posse é agnóstica”, não sendo legítimo ou curial distinguir entre posse “justa ou injusta”, consoante exista, ou não, justa causa possessionis, sendo, pois, indiferente o que quer que historicamente estiver para trás dessa posse. Assim, no confronto entre o interesse público que as leis referentes ao destaque e ao loteamento visam satisfazer e o interesse público que também é a razão de ser da posse e da usucapião – na medida em que conferem certeza à existência de direitos sobre as coisas e respetiva titularidade –, será de atender a este último, sendo imputável à Administração o facto de não ter atuado atempada e preventivamente por forma a impedir a consolidação de uma situação prejudicial ao ordenamento do território: dormientibus non sucurrit jus. O autor advoga, portanto, que face ao direito constituído, seria violar o conteúdo normativo da usucapião, a sua norma, ajuizar-se sequer que a sua invocação ao abrigo do artigo 1287 e ss. do Código Civil ou da posse que a causa, possa ser ilícita ou nula, justa ou injusta, ou que contrarie disposições de carácter imperativo, a ordem pública ou os bons costumes, inexistindo norma excecional que estabeleça, precisamente, que certa e determinada posse não conduz à usucapião. No mesmo sentido, parece apontar a lição de Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado cit., p. 269) que, em anotação ao art. 1379, a propósito do fracionamento de prédios rústicos, escrevem que “[s]e, através de um negócio jurídico nulo (v. g., por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.°, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais (…) Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião.” Na jurisprudência, são vários os arestos dos tribunais superiores em que se entendeu que, correspondendo a uma forma originária de aquisição da propriedade, a usucapião afasta quaisquer vícios que afetem a situação precedente face ao imóvel. São exemplo: STJ 4.02.2014 (314/2000.P1.S1), relatado por Fernandes do Vale, STJ 6.04.2017 (1578/11.9TBVNG.P1.S1), relatado por Nunes Ribeiro, STJ 1.03.2018 (1011/16.0T8STB.E1.S2), relatado por Rosa Tching, STJ 3.05.2018 (7859/15.5T8STB.E1), relatado por Fátima Gomes, STJ 12.07.2018 (7601/16.3T8STB.E1.S1), relatado por Fonseca Ramos, STJ 11.08.2018 (6000/16.1T8STB.E1.S1), relatado por António Abrantes Geraldes, STJ 21.02.2019 (7651/16.0T8STB.E1.S3), relatado por Rosa Ribeiro Coelho, e STJ 25.05.2023 (681/20.9T8TMR.E1.S1), relatado por Nuno Pinto Oliveira. Na jurisprudência desta Relação, é exemplo o Acórdão de 9.02.2023 (146/22.4T8PTB.G1), relatado por Ana Cristina Duarte. Esta jurisprudência parte da consideração de que a usucapião tem efeito originário, ut art. 1288, pelo que, sendo o direito adquirido ex novo, este fica purgado dos vícios ou invalidades de que que padecia antes da aquisição. Acrescenta que a inércia por parte da Administração Pública relativamente à fiscalização e execução do cumprimento de normas urbanísticas está no cerne da possibilidade de se adquirir por usucapião direitos sobre coisas, já que este instituto pretende punir o desleixo dos titulares dos interesses atingidos. Invoca ainda a necessidade de proteção dos interesses subjacentes às normas de direito civil relativas à aquisição da propriedade por usucapião, designadamente, da confiança e da estabilidade de posições jurídicas consolidadas pelo tempo, pela posse e pela publicidade da posse, e a desnecessidade de proteção dos interesses subjacentes às normas de direito do urbanismo relativas à divisão ou ao fracionamento da propriedade. Em termos particularmente impressivos, pode ler-se no citado STJ 6.042017 que “[e]ntender que a posse, baseada em ato ou facto proibido por normas imperativas do loteamento urbano (ou do destaque), é insuscetível de conduzir à aquisição da propriedade por usucapião abstrai da realidade económica e social do nosso país, onde especialmente no interior norte e centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos dos acervos das heranças, ainda é ou era feita ‘de boca’ e posteriormente ‘legalizada’ com suporte na usucapião. Por conseguinte, tendo a posse dos réus sobre a parcela de terreno em litígio nos autos se consolidado por usucapião e não resultando provado que a mesma tenha sido “destinada à construção” nem imediata nem subsequentemente à concretização da divisão física do prédio original, mas antes que se encontra há mais de 20 anos a ser utilizada como parque de estacionamento automóvel, não pode deixar de se reconhecer aos réus/reconvintes o direito de propriedade sobre tal parcela.” Este entendimento não é, porém, unânime. Na doutrina, é amplamente criticado, desde logo por não serem decisivos os argumentos em que se baseia. Neste sentido, Pedro Eiró / Miguel do Carmo Mota (“Art. 1287.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, Lisboa: UCE, 2021, p. 94) escrevem que “[e]stá em causa, apesar de tudo, a aquisição da propriedade contra legem.” Não se trata de “uma mera contraposição de interesses privados”, como sucede com a constituição de servidões de vistas ou de estelicídio quando as distâncias impostas por lei não tenham sido respeitadas no momento da construção (arts. 1362 e 1365, respetivamente), mas da contraposição entre o interesse privado e o interesse público na ordenação do território. Acrescentam que “[t]ambém não procede a invocação da inércia da Administração Pública nesta matéria, já que a inércia que é sancionada pela usucapião é aquela adotada pelo particular, titular do direito real que incide sobre a coisa possuída, já que estão em causa aí, novamente, interesses puramente privados, e não a inércia de qualquer autoridade pública.” É também criticado por colocar em causa a unidade do sistema jurídico que é elemento essencial da interpretação da lei (art. 9.º/1). Assim, António Pereira da Costa (“Loteamento, acessão e usucapião: encontros e desencontros”, Revista do Centro de Estudos de direito do Ordenamento, Urbanismo e Ambiente, ano 6, n.º 11 (2003), pp. 91-103), enfatizando que “o ordenamento jurídico não é constituído por compartimentos estanques, mas por normas e princípios de diversa origem e tutelando interesses diferenciados que deve constituir um todo harmónico de modo a evitar lacunas no cumprimento das obrigações que a cada um são atribuídas”, diz que o entendimento que permite a aquisição de uma parcela de terreno sem considerar as leis urbanísticas relativas ao loteamento e ao destaque dá cobertura a situações de fraude à lei: “Consistindo esta na utilização de um meio legal para fugir ao cumprimento de outras leis, é precisamente isso que acontece quando se criam situações de facto equivalentes a operações de loteamento ou destaques e, através dos institutos da usucapião e da acessão industrial imobiliária, se consegue consagração judicial e legal de tais operações, obtendo-se uma espécie de legalização de loteamentos e destaques clandestinos.” No mesmo sentido, Luís Pires de Sousa (Processos Especiais cit., pp. 74-75) e Rui Pinto Duarte (Curso cit., p. 296). Ainda nesta linha de entendimento, Salazar Casanova (“Usucapião, acessão industrial e construção clandestina”, AAVV, A Interação do Direito Administrativo com o Direito Civil, Lisboa: CEJ, 2016, pp. 73-98, disponível em https://cej.justica.gov.pt/ [3.04.2024]) escreve que “[a] exclusão da usucapião sobre parcelas de propriedade justifica-se quando dela resulte ofensa de princípios de direito público; justifica-se igualmente noutros casos no sentido em que a usucapião, enquanto instrumento legal de aquisição originária de um direito, não pode servir, qual esponja que apaga o ato constitutivo da aquisição derivada da propriedade, para afastar normas imperativas que sujeitam quem adquiriu a coisa por aquisição derivada.” E acrescenta que “[p]ermitir-se em quaisquer circunstâncias a divisão de propriedades em parcelas por via da usucapião (…) com indiferença absoluta face à comprovada violação de normas imperativas do direito urbanístico, levaria a que se conseguisse um resultado que a lei não consente, originando-se uma fragmentação da propriedade contra legem.” De igual modo, Luís Filipe Cravo (“Fracionamento da propriedade: será a usucapião um instituto em vias de extinção”, AAVV, Manuel Capelo / José Codeço (coord.), Estudos em Comemoração dos 100 anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Coimbra: Almedina, 2018, pp. 125-144), afirma que sendo a usucapião “um ato jurídico dependente da manifestação de vontade, se esse ato jurídico está ferido de nulidade, não poderá, atento o disposto nos arts. 294 e 295 do Código Civil, ter por efeito a aquisição da propriedade, se a posse que se invoca contraria disposições legais imperativas como as que disciplinam o fracionamento de prédios.” Mónica Jardim / Dulce Lopes (loc. cit., p. 806) defendem uma terceira via entre quem exige a concretização de um loteamento ou destaque prévio à ocorrência da acessão ou da usucapião e quem ignora as exigências urbanísticas, pondo em causa a tutela de interesses públicos imperativos. Assim, depois de defenderem que pode haver posse (formal) em termos de direito de propriedade sobre uma parte de uma coisa ainda não autonomizada, pelo que nada obsta a que uma parcela de terreno possa ser objeto de posse e que, uma vez verificados os requisitos legais, seja invocada a usucapião, apesar de não haver prévio destaque, escrevem, de forma impressiva, que “a usucapião não pode funcionar como a válvula de escape para adquirir um direito que de outro modo seria insuscetível de aquisição, sob pena de se deixar entrar pela janela o que se impediu que entrasse pela porta.” Como tal, nas situações em que a usucapião seja invocada em relação a partes de prédios nos quais se localiza uma edificação ou em que o interessado vise expressamente ou concludentemente destinar a edificação, será essencial a indagação do respeito pelos ditames jus-urbanísticos, já que um reconhecimento genérico de situações de usucapião parcial, sem averiguação da possibilidade de sujeição a essas regras, implica, com grande probabilidade, a regularização de edificações nelas existentes em desrespeito das exigências urbanísticas aplicáveis. A solução passa, assim, pela obrigação das entidades competentes, antes de se decidirem pelo reconhecimento de uma aquisição parcelar por efeito da acessão industrial imobiliária ou de usucapião, deverem certificar-se de que não irá consolidar-se uma situação desconforme com as regras que limitam o fracionamento de prédios rústicos, bem como com as que regulam as operações de fracionamento para fins urbanísticos. Isso será conseguido mediante a apresentação de uma certidão que defina os pressupostos para a viabilização do fracionamento, nomeadamente, no caso do destaque, uma certidão que, de forma efetiva e completa, ateste essa possibilidade, ainda que tivesse de ser requerida por quem não será o titular do prédio mediante o recurso, por analogia, ao regime aplicável à informação prévia. Desse modo, o juiz, o conservador ou o notário devem, sem se imiscuírem no exercício das competências próprias das autoridades administrativas, apreciar globalmente todos os pressupostos das situações de acessão industrial imobiliária e usucapião. No mesmo sentido, Dinamene Santos (“A usucapião, a acessão industrial imobiliária e as limitações urbanísticas na aquisição e divisão da propriedade”, Revista do Centro de Estudos de direito do Ordenamento, Urbanismo e Ambiente, ano 20, n.º 40 (2017), pp. 105-123), que realça ainda que as “regras jurídicas existentes [as do direito civil e as do direito do urbanismo] devem ser lidas em harmonia, e por isso sem distinguir entre as áreas ou ramos do direito em causa, pois que o fim último é a proteção da segurança imobiliária.” Na jurisprudência, entendeu-se em STJ 19.10.2004 (04B3293), relatado por Salvador da Costa, que a posse sobre determinadas frações prediais, ainda que com os requisitos necessários à aquisição do respetivo direito de propriedade por usucapião, não releva para esse efeito se não estiver autorizado o respetivo loteamento ou destaque pela autoridade administrativa competente. Em STJ 3.12.2009 (1102/03.7TBILH.C1.S1), relatado por Carlos Lopes do Rego, a propósito da aquisição de parcela de terreno por acessão industrial imobiliária, em termos que são perfeitamente transponíveis para a usucapião, atenta a identidade das situações, escreveu-se que[,] “para além dos requisitos especificamente previstos no CC, a aquisição potestativa originária da propriedade, por ela potenciada ,depende de não implicar violação de normas imperativas, reguladoras da edificação e do ordenamento do território, as quais, visando proteger interesses de ordem pública, constitucionalmente consagrados, vinculam o Estado e, obviamente também os Tribunais. Não pode, na verdade, olvidar-se que na interpretação e aplicação das normas do CC relativas ao direito de propriedade de imóveis o intérprete e aplicador não pode restringir-se à estrita consideração dos tradicionais regimes de direito privado, tendo necessariamente, numa perspetiva abrangente e interdisciplinar, que conferir o indispensável relevo aos regimes jurídicos atinentes ao direito do urbanismo e da ordenação do território e à tutela do ambiente, por essa via ponderando, na composição dos litígios, os relevantes interesses públicos que lhes subjazem: ou seja, a adequada composição dos litígios que se situam no domínio da propriedade imobiliária, conexionando-se com o fracionamento, a divisão, o exercício do jus aedificandi e o próprio aproveitamento e utilização dos prédios, envolve a simultânea e concomitante ponderação e aplicação cruzada e articulada dos regimes de direito privado – que sempre tiveram assento no CC – e dos regimes de direito público urbanístico e de ordenamento do território, constantes de legislação avulsa.” Em STJ 2.02.2010 (1816/06.OTBFUN.L1.S1), relatado por João Camilo, negou-se ao autor o direito de obter o destaque de uma parcela de terreno através do instituto da usucapião “pois de outro modo, permitir-se-ia ao tribunal substituir as autoridades administrativas no que concerne à autorização de loteamentos ou de verificação da legalidade dos destaques prediais que é prévia à emissão da pertinente certidão comprovativa.” Em STJ 26.01.2016 (5434/09.2TVLSB.L1.S1), relatado por Sebastião Póvoas, depois de se ter notado que “na presente ação que visa a declaração de validade da aquisição, por usucapião, a que se respeita a mencionada escritura, não invocaram os recorridos que a operação urbanística que resulta da divisão do prédio da autora, não estava sujeita a licenciamento municipal por não se tratar de um loteamento urbano, ou sequer que se tratava de um destaque que reunia as condições do artigo 5.º do Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, designadamente, por disporem de um projeto aprovado pela câmara municipal”, concluiu-se que “não se encontram reunidos, em face do referido regime legal, os pressupostos para que possa ser considerada válida a operação urbanística que decorre da escritura de justificação por usucapião em causa nos autos, pelo que deve a mesma ser considerada nula.” Acrescentou-se de seguida, que “[a] observância de tais procedimentos e a alegação do seu cumprimento mostra-se necessária ao tribunal poder considerar como suscetível de constituição, por via originária ou derivada, o direito de propriedade sobre determinada parte de um imóvel, no caso sobre o prédio objeto da escritura de justificação” e que sempre seria “necessário, enquanto facto constitutivo da pretensão formulada, a alegação e demonstração da observância dos procedimentos legais obrigatórios à regularidade da respetiva operação urbanística que consistiu na criação de um imóvel a partir da divisão de um outro, em concreto, os procedimentos urbanísticos respeitantes aos loteamentos ou destaque por estar em causa uma parcela de terreno destinada à construção (…) que conduziu a descrição no registo predial de um prédio urbano (…).” De referir, finalmente, que o Conselho Consultivo do Instituto de Registos e Notariado (Pareceres R.P. 28/2001, R.P. 80/2007, R.P. 169/2008, R.P. 39/2010 e R.P. 86/2014) tem, de forma constante, indicado, no que se refere à atuação dos notários em sede de justificação notarial, que tem de ser comprovado o licenciamento (ou a dispensa do licenciamento) das operações de loteamento urbano, mesmo quando a causa aquisitiva invocada seja a usucapião. Em tais situações, o notário não está dispensado de fiscalizar o cumprimento do regime legal dos loteamentos urbanos. Segundo esta doutrina, devem fazer-se, na escritura de justificação notarial em que se invoque a usucapião do direito de propriedade sobre um lote de terreno para construção, ou sobre a edificação nele implantada, as menções sobre loteamentos urbanos exigidos pela lei em vigor no momento em que se iniciou a posse e, portanto, se verificou a aquisição. Esta doutrina tem sido seguida pelos notários e, bem assim, pelos conservadores no âmbito dos processos de justificação a correr nos serviços de registo predial, os quais têm indeferido o pedido de justificação formulado na ausência de loteamento ou destaque prévio, conforme dão nota Mónica Jardim / Dulce Lopes (loc. cit., p. 799). *** 3).2.4. Sobre esta questão, importa começar por dizer que, como ensina Joaquim de Sousa Ribeiro (O direito de propriedade privada na jurisprudência do Tribunal Constitucional português, Lisboa, 2009, disponível em tribunalconstitucional.pt), a inserção sistemática do art. 62 fora do elenco dos direitos, liberdades e garantias (regulados no Título II da Parte I da CRP) e dentro do capítulo respeitante aos direitos e deveres económicos (Capítulo I do Título III da Parte I, dedicado aos “direitos e deveres económicos, sociais e culturais”), “não é neutra”, dela retirando, a doutrina e a jurisprudência, importantes indicações normativas prévias. Sem deixar de se acentuar que essa deslocalização não rouba ao direito de propriedade, pelo menos in toto, a natureza e estrutura que tradicionalmente são as suas, de um direito fundamental “de defesa”, pelo que beneficia, em certa dimensão, da específica força jurídica dos “direitos, liberdades e garantias” (arts. 17.º s.), como direito análogo a estes, logo se acrescenta que a qualificação e contextualização normativas que a Constituição deu ao direito de propriedade privada devem ser tidas em conta na determinação do sentido e alcance tutelador do preceito (cf., entre muitos outros, o Acórdão do TC n.º 257/92). Para além da necessária articulação com outros direitos da esfera económica e social, expressivos de interesses coletivos ou gerais potencialmente contrastantes com os do sujeito proprietário, a inserção constitucional dá-nos uma primeira nota de colocação do direito de propriedade num campo privilegiado de incidência de valores, tarefas e objetivos programáticos do Estado de direito democrático – com destaque para os da realização da democracia económica, social e cultural (art. 2.º da CRP) e da promoção da igualdade real entre os portugueses (alínea d) do art. 9.º) – de que decorrem exigências conformadoras e limitativas do direito do titular. Por esta envolvência normativa, imediatamente convocada, logo a nível formal-sistemático (e explicitamente apontada no enunciado do n.º 1 do art. 62.º, na sua parte final), fica claro que a consagração constitucional do direito de propriedade privada não tem a função legitimante, que nas constituições liberais exclusivamente lhe cabia, de garantia absoluta do interesse privado do proprietário, importando antes uma injunção de composição da ordem dos bens, no quadro da qual esse interesse deve ser regulativamente equilibrado com interesses antagonistas ou concorrentes, também constitucionalmente credenciados, de terceiros ou da coletividade, em geral.Neste sentido, uma interpretação do art. 1305 do Código Civil conforme com o texto constitucional, a que deve ser dada prevalência (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1226), impõe que se atente não apenas aos limites intrínsecos do direito de propriedade, mas também aos seus limites extrínsecos, resultantes de outros direitos constitucionalmente protegidos que com ele devem ser conjugados, segundo uma lógica estrita de proporcionalidade (art. 18/2 da CRP), como sejam o direito ao ambiente, o direito à qualidade de vida e o direito ao correto ordenamento do território, que constitui mesmo uma tarefa fundamental do Estado (arts. 9.º, e), e 66 da CRP). A título de exemplo, entendendo-se que o ius aedificandi está abrangido pela tutela constitucional da propriedade, considera-se, no entanto, que apenas pode ser exercido “se, quando e como a lei ou a Administração com base na lei, entenderem que aquela faculdade não afeta os interesses públicos e coletivos que a Constituição incumbiu ao Estado de concretizar para benefício dos cidadãos” (Elizabeth Fernandes, Direito ao Ambiente e Propriedade Privada, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 187). As regras do Direito do Urbanismo a que fizemos referência estão situadas no mesmo patamar, posto que, como escrevemos, citando Fernando Alves Correia, têm uma força vinculativa direta e estabelecem, de um modo mais ou menos concreto e preciso, o destino e o regime de ocupação, uso e transformação do solo. Impõem-se, assim, como limites ao direito de propriedade, inclusive no que tange à sua aquisição quando esta implique a prévia cisão de uma parcela do terreno de um prédio em termos que levem ao surgimento de uma coisa nova, juridicamente autónoma relativamente à preexistente. É o que sucede com a usucapião baseada na posse enquanto poder de facto exercido apenas sobre uma parte da coisa e, bem assim, com a acessão industrial imobiliária quando a nova utilidade económica resultante dos atos de incorporação se limita a parte do prédio em que estes forem realizados.[5] Neste âmbito, desde há muito que é defendida a articulação da norma do n.º 1 do art. 1340 com as normas de direito administrativo que condicionam o fracionamento dos prédios. Assim, em declaração de voto a STJ 17.02.2000 ((CJSTJ, VIII, t. 1, pp. 105 e ss.), o Juiz Conselheiro Sousa Inês, depois de qualificar como correta a solução adotada acerca do âmbito da aquisição, realçou a necessidade de serem tomadas em consideração as exigências da lei administrativa que regula os loteamentos e destaques para fins de construção, cujas normas são de interesse e ordem pública, não podendo ser atropeladas pelos tribunais, nem as respetivas questões ignoradas, pois que são, dada aquela sua natureza, de conhecimento oficioso. O mesmo entendimento foi seguido em arestos ulteriores, como STJ 6.03.2003 (03A663), relatado por Silva Salazar, e STJ 3.12.2009 (05A4270), relatado por Martins de Sousa, e STJ 3.12.2009 (1102/03.7TBILH), relatado por Carlos Lopes do Rego, assim se reconhecendo que, como expressa Quirino Soares (“Acessão e Benfeitorias”, CJSTJ, IV, t. 1, p. 24), o direito que rege uma comunidade, e que constitui a respetiva ordem jurídica, deve ser aplicado com o pensamento na harmonia do sistema, de maneira a que os vários institutos, de direito privado e de direito público, que tenham contacto com o caso a decidir, se harmonizem ou se hierarquizem de acordo com a importância que o legislador lhes atribuiu. No 1.º de tais arestos entendeu-se que, não definindo a lei o que se deve entender por "prédio", à falta de outros elementos, o único critério a permitir a autonomização da unidade económica que o integre é o resultante das leis administrativas respeitantes aos loteamentos e destaques para fins de construção, cujas normas são de interesse e ordem pública, não podendo ser ignoradas pelos Tribunais. Daí que estes não possam declarar a aquisição por acessão do direito de propriedade sobre uma parcela de prédio alheio sem que dos autos conste a prova, a produzir pelos réus por se tratar de elemento constitutivo do direito que estes se arrogam, de a Câmara Municipal competente ter emitido o respetivo alvará de loteamento ou por outra forma autorizado o destaque, como resulta do disposto nos arts. 1.º do DL n.º 289/73, de 6.06, 1.º e 2.º do DL n.º 400/84, de 31.12, 1.º, 3.º, al. a), e 5.º, do DL n.º 448/91, de 29.11, e 2.º, al. i), 4.º e 6.º do DL n.º 555/99, de 16.12. No último pode ler-se que, “[p]ara além dos requisitos especificamente previstos no Código Civil, a aquisição potestativa originária da propriedade, por ela potenciada, depende de não implicar violação de normas imperativas, reguladoras da edificação e do ordenamento do território, as quais, visando proteger interesses de ordem pública, constitucionalmente consagrados, vinculam o Estado e, obviamente também os Tribunais. Não pode, na verdade, olvidar-se que na interpretação e aplicação das normas do Código Civil relativas ao direito de propriedade de imóveis o intérprete e aplicador não pode restringir-se à estrita consideração dos tradicionais regimes de direito privado, tendo necessariamente, numa perspetiva abrangente e interdisciplinar, que conferir o indispensável relevo aos regimes jurídicos atinentes ao direito do urbanismo e da ordenação do território e à tutela do ambiente, por essa via ponderando, na composição dos litígios, os relevantes interesses públicos que lhes subjazem: ou seja, a adequada composição dos litígios que se situam no domínio da propriedade imobiliária, conexionando-se com o fracionamento, a divisão, o exercício do jus aedificandi e o próprio aproveitamento e utilização dos prédios, envolve a simultânea e concomitante ponderação e aplicação “cruzada” e articulada dos regimes de direito privado – que sempre tiveram assento no Código Civil – e dos regimes de direito público urbanístico e de ordenamento do território, constantes de legislação avulsa.” Neste conspecto, já se percebe que, na perspetiva que temos como correta, apenas é de permitir a aquisição por usucapião de uma parcela de terreno, assim autonomizada de um prédio preexistente, com a finalidade de edificar, quando se demonstre que o destaque, realizado no plano factual, não atenta contra as normas jurídicas por que se rege o ato. Trata-se de um facto constitutivo do correspondente direito. Por aplicação da regra do art. 342/2 do Código Civil, o ónus da prova, que pressupõe a prévia alegação[6], recai sobre quem se arrogue da qualidade de proprietário.[7] *** 3).3. No caso vertente, os Recorrentes alegaram que, em finais da década de 90 do século passado, o então proprietário do prédio lhes doou uma parte do respetivo terreno, que identificaram como parcela A, para que sobre ela construíssem parte da sua habitação. Tornaram-se então possuidores dessa parcela, nela incorporando parte de um edifício, assim concretizando a intenção adrede demonstrada. Com o decurso do tempo, adquiriram o direito de propriedade sobre tal parcela por usucapião.Na sequência do que escrevemos, uma resposta afirmativa à pretensão dos Recorrentes depende, a um tempo, da prova da qualidade de possuidores, pelo tempo e com os caracteres necessários à aquisição por usucapião e, a outro, da prova de que a autonomização da parcela, com a finalidade de nela ser feita a construção de parte de um edifício, no momento em que teve início a posse dos Recorrentes, respeitou as normas legais e regulamentares aplicáveis a essa operação que, na verdade, era equivalente a um destaque. A operação em causa precede, logicamente, aquela outra que os Recorrentes pretendem levar a cabo e que consiste no emparcelamento da parcela A com o prédio urbano de que já então eram proprietários. Em relação a esta sempre se dirá, de resto, que não se vislumbra qualquer interesse processual da parte dos Recorrentes, uma vez aceite que adquiriram a parcela A por usucapião: por um lado, a sua subsequente junção a outro prédio dos Recorrentes é assunto alheio ao proprietário do prédio a que ela pertencia originalmente; por outro, a junção de vários prédios do mesmo proprietário com o objetivo de implantar uma edificação urbana pode atualmente ser obtida por simples anexação registal.[8] Pois bem, no momento em que os Recorrentes alegaram ter sido feita a cisão da parcela A – finais da década de 90 do século passado – estava em vigor o DL n.º 448/91, de 29.11, no qual se previam, como já escrevemos, situações de destaque nos aglomerados urbanos e nas áreas urbanas, dispensando-as de prévio licenciamento, desde que do destaque não resultassem mais de duas parcelas confrontantes com arruamentos públicos e a construção a erigir dispusesse de um projeto aprovado pela câmara municipal, mas também fora desses aglomerados e áreas urbanas, desde que a parcela a destacar se destinasse exclusivamente a fins habitacionais, não detivesse mais de dois fogos e na parcela restante se cumprisse a unidade mínima de cultura. Também se admitia que, havendo plano de urbanização ou plano de pormenor, o destaque passasse a obedecer apenas às condições previstas no plano, sendo documento bastante, para efeitos de registo predial, a certidão do plano respetivo (art. 5.º). Verifica-se, assim, que, situando-se o prédio em aglomerado urbano, conforme esclareceram os Recorrentes, o destaque da parcela, com a referida finalidade edificativa, dependia então da existência de um projeto aprovado pela câmara municipal, facto que não foi alegado. Logo por aqui se tem de concluir que não é possível, pelas razões indicadas, aceitar a sua aquisição por usucapião. A situação não se alteraria se ao caso se entendesse ser de aplicar o RJUE: de acordo com este, destinando-se a parcela à edificação urbana, o seu destaque, estando dispensado de prévio licenciamento, não prescinde, porém, do controlo preventivo por parte do município, nos termos previstos no art. 6.º/4 e 5. Isto aponta claramente para a necessidade de emissão de uma ato de cariz certificativo por parte da câmara municipal (art. 6.º/9), cabendo a esta a avaliação sobre se os pressupostos legais se encontram verificados e, portanto, se não é exigível a prática de um ato de licenciamento ou admissão de comunicação prévia de loteamento. Apenas quando com a emissão dessa certidão comprovativa fica o proprietário habilitado a proceder ao destaque na conservatória do registo predial, sem que lhe possa ser exigida qualquer atestação adicional ou recusado o registo (art. 85/1, f), do Código do Registo Predial). Em decorrência, só com a apresentação dessa certidão pode ser reconhecida a autonomização da parcela e a sua aquisição por usucapião. Deste modo, concluímos, que o ajustamento entre o instituto da usucapião e as normas imperativas por que se pauta o fracionamento de prédios para fins urbanísticos exige, como escrevem Mónica Jardim / Dulce Lopes (loc. cit., p. 808), “uma modelação das regras aplicáveis àquela: por um lado, não deve ser possível declarar sem mais a usucapião, quando declaradamente a parcela a usucapir venha a ser destinada a edificação; por outro lado, tem que se admitir que o fracionamento fundiário ocorra com a usucapião, sob pena de se inviabilizar qualquer destaque no prédio e, bem assim, a preterição de expetativas fundadas dos privados na aquisição de um bem.” É necessária, no entanto, a “indagação do respeito pelos ditames jus-urbanísticos, já que um reconhecimento genérico de situações de usucapião parcial, sem averiguação da possibilidade de sujeição das mesmas a destaque, implicaria, com grande probabilidade, a regularização de edificações nelas existentes em desrespeito das exigências urbanísticas aplicáveis.” Não tendo os Recorrentes alegado nem demonstrado a observância dos pressupostos de que dependia o destaque da parcela em questão, nos termos sobreditos, temos necessariamente de concluir que a sua pretensão não pode proceder. O pedaço de terreno que corresponde à dita parcela A continua, assim, a ser uma parte do prédio cuja divisão os Recorridos pretendem obter através da presente ação. Vale isto por dizer que a decisão recorrida deve ser confirmada, ainda que por motivo diverso, situado mesmo a montante daquele em que se estribou o Tribunal a quo, o que prejudica o conhecimento dos pressupostos de que dependeria a aquisição por usucapião. *** 4) Na improcedência do recurso de apelação, os Recorrentes devem suportar as custas respetivas: art. 527/1 e 2 do CPC.*** IV.Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em: Julgar o presente recurso de apelação improcedente, confirmando, ainda que com fundamento diverso, a sentença recorrida; Condenar os Recorrentes no pagamento das custas do recurso. Notifique. * Guimarães, 2 de maio de 2024 Os Juízes Desembargadores, Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães 1.ª Adjunta: Maria Gorete Morais 2.ª Adjunta: Rosália Cunha [1] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.” [2] Ensina Orlando de Carvalho (Introdução à Posse, na RLJ, ano 122.º, p. 66) que “a posse não é apenas um bem que merece tutela. Na sua força jurísgena, aspira ao direito, tende a converter-se em direito. Daí que o ordenamento, não somente a proteja, como a reconheça como um caminho para a autêntica dominialidade, reconstituindo, através dela, a própria ordenação definitiva. É o instituto da usucapião (...) Estatisticamente, conclui-se que às posses correspondem em regra direitos e que às mudanças de posse correspondem mudanças de domínio. A posse é assim um indício do direito, um valor de conhecimento do direito. Donde não só a presunção de direito que se liga à posse, mas também a admissão de que a posse, por certo lapso de tempo e com certas características, deve conduzir ao direito real que indicia.” [3] É isto que explica que o STJ tenha uniformizado, no Acórdão de 31.01.1996, relatado por Cardona Ferreira, jurisprudência no sentido de que “[a]A cláusula de reserva de propriedade convencionada em contrato de fornecimento e instalação de elevadores em prédios urbanos torna-se ineficaz logo que se concretize a respetiva instalação.” [4] Em sentido divergente, considerando que “[a] posse fundamento de usucapião tem de ser uma posse que recaia sobre a totalidade do bem, de onde não se exercendo o poder de facto sobre todo o prédio (…), não pode proceder a pretensão de aquisição”, vide RL 12.05.2011 (184/08.0TCLRS.L1-2), relatado por Ana Paula Boularot. [5] No instituto da acessão industrial imobiliária discute-se se a aquisição do direito de propriedade só tem viabilidade se exercida em relação à totalidade do prédio onde se deu a incorporação ou se pode operar apenas em relação à parte. No primeiro sentido pronuncia-se Rui Pinto Duarte (Curso…, p. 92), argumentando que entendimento contrário favorece a fragmentação dos prédios, o que é sancionado pela ordem jurídica no seu todo, e não tem arrimo na letra da lei: ao dizer que o autor da incorporação “adquire a propriedade dele”, o art. 1340 está a referir-se ao prédio. Esta orientação, criticada na Revista dos Tribunais (ano 94.º, p. 44), foi abandonada pelo STJ. Nos arestos subsequentes passou a entender-se que a aquisição pode abranger a totalidade do prédio ou apenas a parte em que se incorporaram as obras, sementeiras ou plantações, conforme estas se integram na unidade económica do prédio ou, pelo contrário, façam surgir uma unidade económica distinta. São exemplo STJ 4.03.1986 (BMJ, 355, pp. 342 e ss.) e 6.07.1989 (BMJ, 389, pp. 583 e ss.). Em STJ 5.03.1996 (CJSTJ, IV, t. 1, pp. 129 e ss.), a propósito de um caso em que os autores da incorporação pretendiam adquirir todo o prédio, quando a obra ocupava uma área inferior a 1/3 dele, escreveu-se que a acessão representa, no fundo, uma limitação imposta ao direito de propriedade do dono do terreno, sendo certo que a lei só excecionalmente permite limitações desse género, nomeadamente quando só estão em jogo interesses privados. E daí que se compreenda que a valorização resultante das obras se tenha de comparar com o valor do terreno onde foram construídas as obras. Mas porque se trata de uma limitação excecional, impõe-se necessariamente que ela se confine ao estritamente necessário para que o dono da obra adquira a parcela de terreno onde ela se situa, acrescida da zona envolvente minimamente indispensável. Esta é a solução que melhor concilia o interesse do autor da incorporação – que, ao fazê-la, não pretendia ocupar todo o prédio – com o do proprietário. Daí que se tenha entendido não ser razoável que, “tendo os Réus autorizado, no seu terreno com 3300 m2, a edificação de construções que ocupam apenas 289 m2, e sendo a área total da ocupação das mesmas de 960 m2, pudessem os Autores adquirir todo o terreno com aquela indicada área de 3300 m2.” Como se nota no aresto, que exprime com clareza aquele que é o nosso entendimento, apesar da letra do n.º 1 do art. 1340 não ser muito clara, é possível encontrar nela apoio para esta interpretação (art. 9.º): o dele refere-se ao terreno ocupado com a incorporação e não à unidade predial pré-existente, que ficou cindida por virtude da incorporação. Esta jurisprudência foi reafirmada no Ac. do STJ de 17.02.2000 (CJSTJ, VIII, t. 1, pp. 105 e ss.). No mesmo sentido, o Ac. da RC de 22.11.2005 (processo n.º 3204/05). [6] Em regra, há coincidência entre o ónus da alegação e o ónus da prova (arts. 342/1 e 2 e 343/1 do Código Civil). A regra cessa quando a lei ou as partes determinam a inversão do ónus da prova, o que sucede nos casos em que existe uma presunção legal (art. 344/1 do Código Civil), a dispensa ou liberação legal do ónus da prova (art. 344/1 do Código Civil), a dispensa ou liberação convencional do ónus da prova (arts. 344/1 e 345/1 do Código Civil) ou a impossibilitação culposa da prova pela contraparte do onerado (art. 344/2 do Código Civil). A propósito, vide Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 183 e ss.., e Rita Lynce de Faria, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lisboa: Lex, 2001, pp. 33 e ss.. Em nenhum dos apontados casos a inversão do ónus da prova dispensa do ónus da alegação, que se mantém. [7] Em bom rigor, esta regra funciona a jusante, ao nível das regras de decisão. Assim, o que sucede é que, uma vez observado o antecedente ónus de alegação, os factos que aproveitam à parte, assim como outros factos essenciais que integrem a mesma previsão normativa, podem ser considerados como provados em resultado da atividade desenvolvida pelo tribunal e não pela parte a quem aproveitam, tudo com base no princípio do inquisitório, conjugado com o da aquisição processual genericamente consagrado no art. 413 do CPC. [8] Não sucedia assim na redação do art. 2.º/1, i), do RJUE anterior à Lei n.º 60/2007, de 04/09, que estipulava o seguinte: “operações de loteamento: as ações que tenham por objeto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados imediata ou subsequentemente à edificação urbana, e que resulte a divisão de um ou vários prédios, ou do seu emparcelamento ou reparcelamento.” Conforme ensinavam então Maria José Castanheira Neves / Fernanda Paula Oliveira / Dulce Lopes (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação - Comentado. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 54-58), “o emparcelamento de prédios é, para efeitos de aplicação do RJUE, toda a ação voluntária de anexação de prédios autónomos, da qual resulta a constituição de um só lote, destinando-se este, imediata ou subsequentemente, à construção urbana. (…) O emparcelamento urbano corresponde à operação de transformação fundiária mais simples de todas, motivo pelo qual, na nossa opinião, a mesma deveria ser dispensada do cumprimento do conjunto de regras que estão pensadas para os loteamentos como operações que dão origem a núcleos urbanos e que, por isso, implicam um acréscimo na utilização dos solos. (…) concordamos com a necessidade de limitação das situações reconduzíveis aos emparcelamentos sujeitos a regime especifico, devendo promover-se um esforço no sentido de identificar as situações que devem ser excluídas desta noção. Assim, desde logo, entendemos que, contendo um mesmo prédio várias inscrições matriciais, a junção destas não configura um reparcelamento urbano. É que, a nosso ver, a intenção do legislador em submeter as operações de emparcelamento para fins de construção ao mesmo regime dos loteamentos tradicionais, estende-se apenas às operações que incidam sobre diferentes prédios, sendo várias inscrições matriciais um indicio da existência destes, mas não o critério exclusivo para tal. Deste modo, se houver um só prédio, não obstante a existência nele de várias inscrições matriciais, uma operação urbanística que nele ocorra que implique unificar estas não pode ser considerado um emparcelamento para este efeito. (…) Outra situação relativamente à qual se tem questionado a sua inserção de loteamento é a da anexação a prédios pré-existentes de parcelas sem capacidade edificativa e sobre as quais não se pretende edificar ou em que, embora a anexação se encontre associada a obras de reconstrução, alteração e/ou ampliação de edificação existente, da referida não resulte um índice superior ao que já era permitido para o anteriormente à anexação. Nestes casos, pode afirmar-se não se destinar o emparcelamento a edificação urbana já que o mesmo não tem influência na concretização desta. De igual modo, é questionável a situação da construção de edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si que implique o emparcelamento de distintos prédios. Nestes casos, pode defender-se apenas haver o para sujeitar esta operação ao processo de loteamento naquelas em que, nos termos de regulamento municipal em vigor, às mesmas não tenha sido reconhecido um impacto semelhante a uma operação de loteamento, já que, caso tal tenha acontecido, a referida operação, embora não configure um loteamento, está sujeita às mesmas regras deste, pelo que exigir o processo de loteamento seria repetir desnecessariamente. as mesmas exigências. (…) Particular tratamento deveriam ter merecido também, na nossa ótica, aquelas situações que ocorreram com alguma frequência, de o pedido de licenciamento ou de autorização para a edificação de um edifício sobre dois prédios (configurando, por isso, uma operação de emparcelamento) vir instruído com um pedido de informação prévia favorável, que, por ter sido emitida antes da alteração da noção legal do conceito de loteamento, não a enquadrava neste instituto. Nestas situações, tendo em consideração o facto de o pedido de licenciamento se encontrar vinculado pela existência de uma informação prévia favorável, o enquadramento (e identificação) da concreta operação em causa terá de ser feito à luz do diploma regulador do pedido de informação prévia e não do diploma que regula o respetivo licenciamento, motivo pelo qual não se deve considerar estarmos, nestes casos, no que ao procedimento de licenciamento ou de autorização diz respeito, perante uma operação de emparcelamento. Como já tivemos oportunidade de referir, as operações de emparcelamento são, ainda que criticavelmente, de um ponto de vista procedimental (e também sob o ponto de vista substancial), consideradas verdadeiras “operações de loteamento”. Isto ainda que haja quem considere que as operações de emparcelamento apenas são operações de loteamento no que estritamente respeita ao regime procedimental, afastando a premissa de que devam merecer tratamento substantivo exatamente idêntico ao dispensado às «clássicas» operações de loteamento.” |