Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2613/16.0T8BCL-B.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
FINS PROBATÓRIOS
VIOLAÇÃO
RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
TUTELA JURISDICIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O mecanismo previsto no art. 417º do CPC – que regula o dever de cooperação para a descoberta da verdade – encontra-se primordialmente pensado para a permitir à parte onerada com a prova de um facto a obtenção de esclarecimentos da parte contrária, em matéria do conhecimento desta, com vista a dar cumprimento ao ónus da prova que sobre a primeira incide;

II – Por vezes, mais do que a satisfação da pretensão que se possa vir a obter através do eventual esclarecimento prestado, é o resultado indireto da posição assumida pela parte contrária, através de um comportamento de recusa ou de enviesamento e ambiguidade na resposta (indício endoprocessual), que poderá vir a relevar para efeitos probatórios;

III – Numa ação em que se pretende a declaração de nulidade por simulação absoluta e, subsidiariamente, a impugnação pauliana de determinado negócio, a informação pretendida pela Autora/Recorrente, sobre a proveniência de um depósito em dinheiro na conta do Réu comprador, efetuado na data do desconto do cheque com que supostamente o preço foi pago e correspondente ao exato montante do dito preço, não constitui violação do princípio da reserva da intimidade da vida privada, sendo necessária e proporcional à realização dos fins probatórios visados por aquela e à defesa do interesse público do Estado na prestação da tutela jurisdicional que está na base da consagração do princípio da cooperação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

A CAIXA ... intentou contra, entre outros, os recorridos D. A. e mulher, ação na qual, a título principal, peticionou a declaração de nulidade de negócio de transmissão de quinhão hereditário e, a título subsidiário, a impugnação pauliana do aludido negócio, com a consequente possibilidade de execução do dito quinhão no património dos 2ºs Réus.

Alegou, para o efeito, que em 15 de março de 2013, os réus compareceram perante o notário J. C., com cartório em Barcelos, tendo feito consignar em escritura por eles designada de "compra e venda" que o primeiro réu declarou vender o QUINHÃO HEREDITÁRIO, que tem na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de sua mãe MARIA, sucedendo, porém, que, o negócio manifestado na escritura foi combinado entre os réus com o intuito de enganar a autora, divergindo as declarações prestadas da vontade real de cada um, certo que os 1ºs réus não quiseram na realidade vender ao 2.° réu o "quinhão hereditário" referido, nem este o quis comprar, e o 2.° réu não pagou aos 1ºs réus o valor declarado de € 7 500,00 (sete mil e quinhentos euros), nem qualquer outro valor, mais defendendo, subsidiariamente, ser titular de um crédito sobre os 1ºs Réus vencido em data anterior à escritura, sendo que, nessa altura, os 2ºs Réus sabiam que, por efeito da referida venda, a Autora ficava impossibilitada de recuperar o seu crédito.

Os réus contestaram, impugnando as invocadas simulação e impugnação, e juntaram aos autos um cheque alegadamente comprovativo do aludido pagamento, tendo a ação prosseguido para julgamento.

Já nessa fase e na sequência do requerido pela Autora, foi carreado para os autos um extrato da conta bancária relativa ao dito cheque, onde consta um depósito em numerário, de igual montante ao do cheque em causa, efetuado no dia do desconto do mesmo (26.03.2013).

Após a junção do referido extrato, a Autora apresentou requerimento no sentido de que, invocando ela, na ação, a simulação e a impugnação pauliana e sendo a verificação destes fundamentos feita por via indireta, tendo em conta a extrema dificuldade da prova, era essencial saber a origem do depósito em dinheiro, no valor de € 7 500,00, efetuada na conta do Réu D. A., no dia 26 de março de 2013, requerendo, por isso, se procedesse à notificação do aludido réu “em conformidade”.
Em resposta, os Réus defenderam o indeferimento do requerido invocando, para o efeito, que a prova dos factos corre por conta de quem os alega, não cabendo, pois, ao Réu produzir qualquer prova, bem como, por outro lado, que, com o esclarecimento pedido, seria posta em causa a reserva da (sua) vida privada.

Foi então proferido o despacho recorrido, cujo teor é o seguinte:

I - Requerimento de fls. 171 vs:

Considerando que a ora requerente, CAIXA ..., é Autora nos presentes autos de impugnação pauliana, compete fazer provar os fundamentos da acção.

Assim, o peticionado no requerimento em apreço extravasa a obrigação de colaboração dos Réus, competindo à Autora fazer a prova dos factos que alega e não fazer recair tal ónus sobre os Réus.

Pelo exposto, entendemos que o Tribunal já diligenciou pela realização das diligências probatórios que se mostrando pertinentes para a boa decisão da causa, indeferindo-se, assim, o ora requerido.

Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

1.ª - O conhecimento da origem do depósito em dinheiro, no valor de € 7 500,00, efectuado na conta do réu D. A., no dia 26.03.2013 constitui um elemento de prova pertinente e de imprescindível importância para a descoberta da verdade material, pois permitirá apurar se efetivamente os 2.ºs réus pagaram aos 1.ºs réus, o montante declarado na escritura.
- vd. art.º 411.º e n.º 2 do art.º 429.º do CPC e art.º 341.º CC
2.ª - O indeferimento pelo tribunal a quo da obtenção dessa informação requerida pela recorrente impossibilita-a de fazer prova em juízo da simulação do negócio de compra e venda declarado pelos réus
-vd. n.º 1 art.º7.ºCPC e art.ºs341.º e 342.º CC

Concluiu requerendo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por acórdão que determine a notificação do réu D. A. para que esclareça e justifique a origem do depósito em dinheiro, no valor de € 7 500,00, efectuado na sua conta no dia 26.03.2013.

Os Recorridos não contra-alegaram.
Admitido o recurso, foi depois proferido despacho que o reteve, não obstante o mesmo ter sido anteriormente admitido com subida em separado, pelo que veio, então, a CAIXA ... apresentar reclamação ao abrigo do disposto no artigo 643º do CPC, reclamação, essa, que foi deferida, tendo sido ordenada a imediata subida do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal.

No caso vertente, a única questão a decidir consiste em saber se, ao contrário do decidido, a pretensão de esclarecimento da Autora era legítima face ao dever de cooperação processual que recai sobre as partes, impondo-se, por essa razão, a notificação à contraparte para prestar o pretendido esclarecimento.
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III. FUNDAMENTOS:

Os factos

A factualidade a considerar é aquela que consta do relatório que antecede.
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- Da subsunção jurídica dos factos

No art. 7º do CPC, consagra-se o “princípio da cooperação” nos seguintes termos:

“1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.
3 - As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º.
4 - Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.”

O preceito em análise corresponde à norma do art. 266º, introduzida pelo Decerto Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, que, pretendia, nas intenções do legislador, introduzir “uma nova cultura judiciária”, envolvendo quer o juiz do processo, quer as partes, as quais “sem prejuízo das naturais divergências que possam existir quanto à matéria de facto ou quanto à solução jurídica do caso, devem encarar o processo como um simples instrumento necessário à busca da solução justa” (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Princípios Fundamentais, pág. 80).

Referia, então, José Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, À luz do Código Revisto, pág. 153, que “a progressiva afirmação do princípio da cooperação, considerado já uma trave mestra do processo civil moderno, leva frequentemente a falar de uma comunidade de trabalho (Arbeitsgemeinschaft) entre as partes e o tribunal para a realização da função processual”.

O aludido “princípio da cooperação” mais não é do que corolário do dever de boa fé processual que o legislador também consagrou expressamente (art. 8º do CPC) – “boa fé objetiva que traduz uma conduta exigida pela consciência social como imperativo ético” – e que “visa atender a um interesse que excede o das partes, qual seja, o interesse público do Estado na prestação da tutela jurisdicional”. (Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova por presunção no Direito Civil, 3ª edição, pág.´s 41 e 42).

Em matéria de direito probatório formal, o dever de cooperação para a descoberta da verdade (atualmente previsto no art. 417º do CPC) e o dever de apresentação de documentos em posse de uma das partes e de que a outra pretenda fazer uso (art. 429º e 430º, ambos do CPC), constituem afloramentos do aludido princípio da cooperação.

Para que de dever de cooperação se possa falar necessário é, obviamente, que em causa esteja matéria de conhecimento da parte a quem a colaboração é pedida e que essa factualidade releve na apreciação do mérito segundo as várias soluções plausíveis de direito.

Em relação às normas acima citadas pode dizer-se que o mecanismo, em cada uma delas, previsto poderá ser utilizado por quem pretenda infirmar a prova de factos cujo ónus recai sobre a parte contrária, mas sê-lo-á, a maioria das vezes, por aquele sobre o qual recai o ónus da prova de determinado facto.

Em particular sobre o art. 429º do CPC, citando Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 462, lê-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 21.04.2015 (Relatora Maria João Areias) que o preceito tem precisamente em vista a prova de factos desfavoráveis ao detentor do documento que, por isso, é notificado, a requerimento da parte contrária para o apresentar.

Como ali se pode ler ainda: “Do respetivo teor resulta que a disposição se encontra pensada primordialmente para a permitir à parte onerada com a prova de um facto a obtenção de determinado documento de que saiba encontrar-se em poder da parte contrária, para através do mesmo dar cumprimento ao ónus da prova que sobre ele incide. Daí a cominação de inversão do ónus da prova, no caso em que a falta de apresentação o documento venha a impossibilitando ao onerado a respetiva prova. Naturalmente, tal sanção só faz sentido se a junção de documentos for requerida para a prova de factos que a si incumba provar e não quando o ónus da respetiva prova incumba à parte contrária.”

E esta argumentação é totalmente transponível para o dever de cooperação para a descoberta da verdade previsto no art. 417º, em cujo nº 2 está prevista a dita inversão do ónus da prova.

Deve, portanto, desde logo, ter-se por totalmente incorreto o argumento usado no despacho recorrido no sentido de que o requerido pela Autora extravasa a obrigação de colaboração dos Réus, competindo à Autora fazer a prova dos factos que alega e não fazer recair tal ónus sobre os Réus, visão que, em bom rigor, na prática, quase tornaria imprestáveis os aludidos mecanismos.

Mas, por outro lado, no caso concreto, também não faz sentido a invocação agora feita pela Recorrente da norma do art. 429º do CPC – preceito que, como já se referiu, visa a apresentação pela parte contrária de um determinado documento, a identificar, na medida do possível, pelo requerente –, certo que, no caso, está apenas em questão um esclarecimento pela parte contrária de determinada factualidade, matéria sobre a qual rege o art. 417º.

Segundo este “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados” (cfr. nº 1).

Para a tomada de decisão em causa, o que importaria era, pois, perceber se o facto que a Autora pretendia que fosse esclarecido pela parte contrária era ou não relevante para a descoberta da verdade e a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito: sendo-o, em princípio, deveria ser determinada a prestação de esclarecimento pedida.

Ora, desde já se dirá, o esclarecimento em questão era manifestamente relevante para a descoberta da verdade: estando controvertido, como estava, ter ou não havido efetivo pagamento do preço do quinhão hereditário e havendo uma aparência de pagamento criada pela entrega e desconto de um cheque com essa suposta finalidade, forçoso é reconhecer que, tendo ocorrido, no dia do desconto do dito cheque, um depósito em numerário, na mesma conta, de igual montante, a indagação sobre a proveniência desse dinheiro – facto que, naturalmente, é do conhecimento do Réu titular da conta – era extremamente pertinente para tentar desmontar a referida aparência e, por essa via, provar o não pagamento alegado pela autora.

Neste ponto, deve, aliás, enfatizar-se algo que, numa visão mais simplista, se tende a esquecer: por vezes, mais do que a satisfação da pretensão que se possa vir a obter através do eventual esclarecimento prestado (ou do documento junto, quando for o caso), é o resultado indireto da posição assumida pela parte contrária, através de um comportamento de recusa ou de enviesamento e ambiguidade na resposta, que poderá vir a relevar para efeitos probatórios.

Na verdade, “o poder de pedir esclarecimentos às partes e seus mandatários sobre a matéria litigada constitui uma ferramenta que tanto pode servir para ultrapassar dúvidas que se suscitem, como para “demonstrar” eventuais estratégias maliciosas, passo que pode mostrar-se fundamental para, mais adiante, aplicar medidas sancionatórias ou para extrair da análise comportamental os pertinentes efeitos ao nível da formação da convicção quer sobre a matéria de facto controvertida, quer sobre a solidez do direito ou da defesa invocada”. (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC Anotado, I, pág. 34).

É que “vigorando o poder da livre apreciação das provas, não está vedado, antes se justifica com toda a pertinência, que se extraiam dos comportamentos processuais das partes elementos que interfiram na formação da convicção”, porquanto tal princípio “não vigora apenas para efeitos da apreciação crítica dos meios de prova, devendo estender-se à apreciação da conduta processual, designadamente à que respeita à instrução da causa”. Assim sendo, mesmo sem inversão do ónus da prova, que, como se sabe, depende da verificação dos pressupostos enunciados no art. 344º, n.º 2, do Código Civil (a este propósito ver Acórdão desta Relação de 31.01.2019 – Relator Alcides Rodrigues), “o juiz poderá sustentar a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada também na ponderação do modo como as partes se posicionaram no que concerne (…) ao acatamento do princípio da cooperação em matéria probatória”. (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC Anotado, I, pág. 491).

Com efeito, há comportamentos das partes, correspondentes à inobservância do dever de esclarecer os factos e, subsequentemente, colaborar na produção da respetiva prova, “suscetíveis de gerarem indícios endoprocessuais”, podendo, no limite, o indício processual adveniente de tais comportamentos, “constituir o único esteio da formação da convicção do juiz quanto a determinado facto” (Luis Filipe Pires de Sousa, Prova por presunção no Direito Civil, 3ª edição, pág. 48 a 50).

Em conclusão, mais não fosse sob a aludida perspetiva da relevância da posição que viesse a ser assumida para efeito da futura apreciação da prova, sempre seria de concluir pela pertinência da pretensão de colaboração visada pela Autora.

Mas será que, concluindo-se, do modo como se concluiu, pela sua pertinência, o esclarecimento pretendido não constitui intromissão na reserva da vida privada como defenderam os Réus?

Vejamos.

A recusa à colaboração é legítima se a obediência importar intromissão na vida privada (art. 417º, nº 3, b), do CPC).

Este constitui, pois, um dos limites impostos pelo legislador ao dever de colaboração, importando, portanto, saber se a indagação da proveniência do concreto depósito bancário em causa constitui “intromissão na vida privada”.

Com vista ao preenchimento deste conceito indeterminado, vejamos os preceitos constitucionais que estão na sua base, bem como os da lei ordinária que com ele se relacionam.

Prescreve o nº 8 do artigo 32º da Constituição da República que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

Por seu turno, dispõe o artigo 26º, nº 1, da Constituição da República, que “a todos são reconhecidos os direitos...à reserva da intimidade da vida privada e familiar...”.

Ao nível da lei ordinária, estipula o artigo 80º, nº 1, do Código Civil (CC), que “todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem”, acrescentando o respetivo nº 2 que “a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”.

Da análise de uns e de outros resulta que, como se frisa no Acórdão da Relação de Coimbra de 03.05.2005 (Relator Hélder Roque), “a lei ordinária, talvez por ser anterior à lei constitucional, nada acrescenta à substância do direito à intimidade da vida privada, consagrado pelo texto desta, servindo, tão-só, para concretizar a lei fundamental, limitando-se a explicitar conceitos, interpretando-os e repetindo mais, claramente, o seu conteúdo. E o legislador constitucional, também, não esclarece o intérprete, neste particular, continuando, por simples decalque em relação à lei ordinária, a utilizar a expressão ambígua “guardar reserva”, em lugar do inequívoco e, indiscutivelmente, mais simples conceito de direito à intimidade Paulo Cunha, Teoria Geral do Direito Civil, 1972, 136 e ss..”

Recorrendo ao direito comparado, verifica-se, porém, que “o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, direito de resguardo, como é designado pela doutrina italiana, ou direito a uma esfera de segredo, para a teoria germânica, corresponde ao reconhecimento de uma merecida tutela quanto à natural aspiração da pessoa a uma esfera íntima de vida, ao direito de estar só (right to be let alone), na terminologia inglesa Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, 209; Januário Gomes, O Problema da Salvaguarda da Privacidade antes e depois do Computador, BMJ nº 319, 31., consistindo no direito de qualquer pessoa a que os acontecimentos íntimos da sua vida privada, que só a ela se referem, não sejam divulgados sem o seu consentimento, independentemente do carácter ofensivo da reputação Adriano De Cupis, Os Direitos da Personalidade, 1961, 129.” (citado acórdão), o que nos ajuda a densificar o aludido conceito.

Prosseguindo nessa densificação e tendo presente o particular caso em análise, cremos ser sobremaneira esclarecedor o Acórdão do STJ de 17.12.2009 (Relator Hélder Roque), onde se concluiu que “o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada tutela a esfera da vida íntima ou de segredo, compreendendo todos aqueles aspectos que fazem parte do domínio mais particular e íntimo que se quer manter afastado de todo o conhecimento alheio, com exclusão da vida normal de relação, ou seja, dos factos que o próprio interessado, apesar de pretender subtraí-los ao domínio do olhar público, isto é, da publicidade, não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros” e que “ao contrário do que acontece no caso da violação da integridade física ou moral das pessoas, que se trata de direitos absolutos ou intangíveis, estando em causa os direitos fundamentais da não intromissão no sigilo bancário, trata-se de “direitos condicionais”, em que já não existe uma proibição absoluta da admissibilidade da prova que, em função das circunstâncias do caso concreto em que foi obtida e do estado de necessidade da situação, será ou não valorizada pelo Tribunal”.

No citado acórdão, entendeu-se, assim, que “as informações pretendidas pela autora, relacionadas com o aprovisionamento e utilização de contas à ordem, de que eram titulares a ré e o marido da autora”, não constituíam violação do princípio da reserva da intimidade da vida privada, considerando-se, pelo contrário, que “a exigência da divulgação dos elementos da conta bancária de uma das partes que permitam o apuramento da situação patrimonial da outra, em causa pendente, no âmbito do, estritamente, indispensável à realização dos fins probatórios visados por aquela, e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, é garantia da justa cooperação das partes com o Tribunal, com vista à descoberta da verdade, à luz da doutrina da ponderação de interesses, sob pena de insanável comprometimento do direito da autora a (…) alcançar uma tutela jurisdicional efectiva, com o consequente e inequívoco abuso de direito da parte que a tal se opõe”.

Aderindo a esta argumentação, concluímos, por igualdade de razões, que, no caso em apreço, o esclarecimento pretendido não integra intromissão na vida privada, sendo necessário e proporcional não só à prossecução do interesse da Autora, como, acima de tudo, à defesa do interesse público do Estado na prestação da tutela jurisdicional, interesse que, como já vimos, está na base da consagração do princípio da cooperação.

Face ao exposto, procede a apelação, devendo, nessa medida, revogar-se o despacho recorrido e determinar-se a notificação do réu D. A. para que esclareça a origem do depósito em dinheiro, no valor de € 7 500,00, efetuado na sua conta no dia 26.03.2013.

Sumário:

I – O mecanismo previsto no art. 417º do CPC – que regula o dever de cooperação para a descoberta da verdade – encontra-se primordialmente pensado para a permitir à parte onerada com a prova de um facto a obtenção de esclarecimentos da parte contrária, em matéria do conhecimento desta, com vista a dar cumprimento ao ónus da prova que sobre a primeira incide;
II – Por vezes, mais do que a satisfação da pretensão que se possa vir a obter através do eventual esclarecimento prestado, é o resultado indireto da posição assumida pela parte contrária, através de um comportamento de recusa ou de enviesamento e ambiguidade na resposta (indício endoprocessual), que poderá vir a relevar para efeitos probatórios;
III – Numa ação em que se pretende a declaração de nulidade por simulação absoluta e, subsidiariamente, a impugnação pauliana de determinado negócio, a informação pretendida pela Autora/Recorrente, sobre a proveniência de um depósito em dinheiro na conta do Réu comprador, efetuado na data do desconto do cheque com que supostamente o preço foi pago e correspondente ao exato montante do dito preço, não constitui violação do princípio da reserva da intimidade da vida privada, sendo necessária e proporcional à realização dos fins probatórios visados por aquela e à defesa do interesse público do Estado na prestação da tutela jurisdicional que está na base da consagração do princípio da cooperação.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se a notificação do réu D. A. para que esclareça a origem do depósito em dinheiro, no valor de € 7500, efetuado na sua conta no dia 26.03.2013.
Custas pelos Recorridos.
***
Transitado em julgado o presente acórdão, remeta certidão do mesmo, com nota de trânsito, ao Processo n.º 2613/16.0T8BCL.G1, pendente nesta Relação, para os fins tidos por convenientes.
Guimarães, 14.03.2019

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues