Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5640/22.4T8GMR.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: INVENTÁRIO
REGIME DA LEI N.º 117/2019
DE 13 DE SETEMBRO
DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS PROFERIDAS PELO NOTÁRIO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA PARA APRECIAÇÃO DO RECURSO
TRIBUNAL DE 1ª INSTÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
No processo de inventário a correr no Cartório Notarial ao abrigo da Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, e que não foi remetido a Tribunal face à entrada em vigor do regime aprovado pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, é da competência da 1ª instância e não da Relação a apreciação de recurso incidente sobre decisão proferida pelo Sr. Notário.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I RELATÓRIO.

Em 18/2/2022, no Cartório Notarial, realizou-se conferência de interessados, constado da ata respetiva, como faltosos, AA e esposa, e, além do mais, o seguinte:

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Terminou com a prolação de despacho determinativo da notificação da ata com o prazo de 10 dias para os interessados reclamarem sobre a conformidade e incorreção da mesma.
AA apresentou reclamação.
Em 18/4/2022 foi proferido despacho pelo Sr. Notário a indeferir a mesma.
O reclamante apresentou recurso, dirigido ao Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
O mesmo não foi aceite pelo Sr. Notário por ser intempestivo.
O recorrente/reclamante apresentou reclamação deste despacho.
*
Remetidos os autos a Tribunal, foi proferido o seguinte despacho, em 10/11/2022:

“Reclamação à rejeição do recurso interposto:
I. A 14.09.2022, o interessado AA reclamou do despacho que rejeitou o recurso que interpusera a 18.05.2022, alegando que esse recurso é tempestivo.
O Sr. Notário arguiu a intempestividade do recurso interposto, por o enquadrar nas situações previstas na al. h) do n.º 2 do art.º 644.º do CPC.
Dos demais interessados, apenas respondeu BB, defendendo a improcedência da pretensão do reclamante.
II. Vejamos.
Nos presentes autos, consta a seguinte factualidade:
- a 18.02.2022, realizou-se conferência de interessados, onde foram apresentadas propostas em carta fechada para adjudicação de bens a partilhar;
- o reclamante compareceu na id. conferência de interessados;
- a 07.03.2022, o reclamante apresentou requerimento em que reclama da ata da id. conferência de interessados e onde pede a anulação dos atos de adjudicação na conferência praticados;
- a 18.04.2022, foi proferido despacho que indeferiu a nulidade arguida pelo reclamante;
- a 18.05.2022, o reclamante interpôs recurso do despacho de indeferimento da nulidade;
- a 02.09.2022, foi proferido despacho que rejeitou o recurso interposto pelo reclamante, com fundamento na ultrapassagem do prazo legal de 15 dias para reagir a tal despacho (al. h) do n.º 2 do art.º 644); e
- a 14.09.2022, o reclamante deduz a presente reclamação quanto a tal despacho de rejeição, defendendo ter um prazo de 30 e não de 15 dias para interpor recurso do despacho de indeferimento da nulidade arguida.
Dispõe o art.º 76.º do CPC, «1 - Da decisão homologatória da partilha cabe recurso, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o regime de recursos previsto no Código de Processo Civil. // 2 - Salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do Código de Processo Civil, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha.».
Ora, nos termos do art.º 644.º do CPC « 1- Cabe recurso de apelação: a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente; b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz;
b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;
c) Da decisão que decrete a suspensão da instância;
d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;
e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;
f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;
g) De decisão proferida depois da decisão final;
h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;
i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.
3 - As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
4 - Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão.»
Revertendo ao caso concreto, claramente não é de subsumir às situações previstas no n.º 1, nem no n.º 2 als. a) a g), do art.º 644.º do CPC.
Relativamente à al. i) do n.º 2, também não será, por a lei não o prever…
Assim, resta-nos a al. h) do n.º 2 considerada pelo Sr. Notário e o n.º 3 do normativo em apreço.
Ora, está em causa uma decisão interlocutória, relacionada com o ato de adjudicação dos bens a partilhar.
Na sequência dela, ir-se-á elaborar mapa da partilha, aferir do preenchimento dos quinhões e das tornas, e proferir decisão homologatória da partilha elaborada.
Por conseguinte, somos em concordar com o reclamante quando defende que o recurso que interpôs, a ser apreciado e a ser procedente, apenas acarreta a inutilização dos atos processuais até então praticados, não se tratando de questão cuja retenção da apreciação possa ter um efeito material irreversível sobre o conteúdo do decidido, pois que se poderá proceder a novo destino dos bens, elaborar mapa de partilha e apurar tornas, proferindo nova decisão homologatória.
Desta feita, o prazo para interposição do recurso do despacho que indeferiu a nulidade é de 30 dias, conforme disposto no art.º 638.º n.º 1 do CPC.
Acontece, porém, que o recurso interposto é, de facto, de apelação, mas não é esta autónoma face a outros que possam ser interpostos no âmbito deste tipo de processos.
Na verdade, não se subsumindo às situações previstas no n.º 1 e no n.º 2 do art.º 644.º e n.º 1 do art.º 76.º do DL, subsume-se o recurso interposto ao n.º 3 e n.º 2 de tais normativos.
Logo, o recurso é, sim, intempestivo, porque não apresentado aquando da decisão que merece apelação autónoma ou após o transito desta, em caso de conformação com a mesma.
E, sendo-o, não merece reparo a sua rejeição, ainda que com fundamento diverso, pelo que mostra-se fracassada a reclamação apresentada (como, s.m.o, se mostrará o mérito da posição do reclamante assumida no recurso não admitido).
III. Pelo exposto, julga-se improcedente a reclamação apresentada e, em consequência, mantem-se a rejeição do recurso interposto pelo reclamante AA, do despacho proferido a 18.05.2022 (e que lhe indeferiu a nulidade arguida).
D.N..”
*
Pelo Sr. Notário foi proferido despacho de forma à partilha.
Foi reclamado pagamento de tornas.
Foi elaborado mapa de partilha.
*
Remetido os autos a Tribunal para homologação, em 13/11/2023 foi proferida a seguinte sentença:
“Nestes autos de processo de inventário a que se procede por óbito de CC e de DD, em que é cabeça-de-casal AA, ao abrigo do disposto no artigo 66.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março (aplicável por força do disposto no artigo 11.º, n.º 2, da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro), homologo, pela presente sentença, a partilha constante do mapa de partilha elaborado nos autos a 21.06.2023, adjudicando aos interessados os bens constantes da relação de bens e conforme acordado/licitado na conferência de interessados.
Custas nos termos do disposto no artigo 67.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Processo de Inventário.
Registe e notifique.
Após trânsito, devolva os presentes autos ao competente Cartório Notarial.”
*
Inconformado, veio AA interpor recurso, tendo apresentado alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que se reproduzem):

“1. No âmbito da conferencia de interessados, realizada nos presentes autos, foi proferida decisão a adjudicar as verbas nºs 24, 25 e 26 às Interessadas EE, FF e BB, respetivamente.
2. Porém, nenhuma das propostas poderiam ter sido aceites, por não obedecerem aos requisitos previstos no artigo 824.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 50º, nº 3 do RJPI, porquanto, designadamente, não eram acompanhadas por um cheque visado, conforme estabelece o indicado preceito legal.
3. Nos termos do disposto no artigo 50º, nº 3, do Regime Jurídico do Processo de Inventário, à adjudicação aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil quanto à venda executiva mediante propostas em carta fechada,
4. E, de acordo com o disposto no artigo 824.º, nº 1, do Código de Processo Civil, «os proponentes devem juntar obrigatoriamente com a sua proposta, como caução, um cheque visado, à ordem do agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, da secretaria, no montante correspondente a 5 % do valor anunciado ou garantia bancária no mesmo valor».
5. Assim, nenhuma das propostas poderiam ter sido aceites, por não obedecerem aos requisitos previstos no artigo 824.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 50º, nº 3 do RJPI, mas deveria ser ordenada a venda dos bens objeto das propostas por negociação particular, nos termos dos artigos 822.º, n.º 2, 832.º alínea d) e 833.º, todos do Código de Processo Civil.
6. A obrigação de junção de caução, imposta pelo artigo 824º, n.º 1, do CPC é uma formalidade não dispensável, de cumprimento obrigatório.
7. Deverá, pois, anular-se a adjudicação das verbas 24, 25 e 26, mediante proposta em carta fechada, por violação das referidas normas legais, nulidade essa que foi atempadamente arguida.
8. Aliás. nem sequer estavam presentes todos os interessados, pelo que não poderia dar-se por suprimida a preterição de uma formalidade essencial.
9. E foi na sequência do assim ocorrido que foi proferida sentença homologatória da partilha, inquinada de ilegalidade, por inobservância de uma formalidade processual que deveria ter-se verificado, ilegalidade esta que determinará a observância da formalidade processual preterida e a anulação da subsequente sentença proferida sem o respeito dessa disposição processual.”
Pede que seja julgado procedente o recurso, com as legais consequências, designadamente conhecida a nulidade da adjudicação das verbas 24, 25 e 26, mediante proposta em carta fechada, por violação das referidas normas legais e, consequentemente, ordenar-se a anulação dos atos subsequentes ao momento em que aquela se verificou.
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Foram apresentadas contra-alegações por GG, pugnando:
“a)- Com recurso às faculdades a que aludem os artigos 655º e 656º do CPC, o recurso de apelação interposto pelo Recorrente não deverá ser conhecido ou, subsidiariamente, deverá ser julgado, liminar e totalmente, improcedente;
b)- Caso assim se não entenda, sem qualquer reparo, deverá ser mantida a mui douta sentença recorrida.”
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Analisadas as conclusões, as questões suscitadas e a apreciar, são:
-previamente, se o recurso é admissível;
-sendo, apreciar se foi cometida nulidade na fase de aceitação de proposta e adjudicação.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a considerar é a que consta do relatório supra.
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IV- O MÉRITO DO RECURSO.

QUESTÃO PRÉVIA: admissibilidade do recurso.

Teremos de iniciar a nossa apreciação definindo o regime aplicável ao caso, face ao novo regime do processo de inventário que decorre da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro. Na verdade, os presentes autos deram entrada no Cartório Notarial em 18/7/2018, vigorava então a Lei n.º 23/2013, de 05 de Março.
O inventário continuou a correr no Cartório, não se tendo verificado nenhuma situação que determinasse a sua remessa para o Tribunal –cfr. art.ºs 10º, 11º, e 12º da Lei n.º 117/2019, em especial o n.º 2 do art.º 11º.
O regime dos recursos aplicável é então o daquela Lei n.º 23/2013, concretamente o disposto no art.º 76º, em conjugação com o art.º 66º, nº. 3.
Perfilaram-se então duas correntes no que respeita à competência para apreciação dos recursos interpostos de decisões interlocutórias proferidas pelo notário, designadamente aquelas que só devessem ser impugnadas no recurso que viesse a ser interposto da decisão de partilha –como alias subjaz, salvo melhor interpretação, ao entendimento expresso na decisão proferida pelo Tribunal na reclamação contra a não admissão do recurso (então interposto autonomamente).
Uma posição defende: as decisões interlocutórias proferidas no processo de inventário, que se mostrassem recorríveis, quer as proferidas pelo notário, quer as proferidas pelo tribunal de Comarca, são impugnáveis no recurso que vier a ser interposto da decisão homologatória da partilha e, portanto, em ambos os casos, para o Tribunal da Relação territorialmente competente. O recurso para o tribunal de Comarca limita-se às decisões dos notários que indeferissem o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns (art.º 16º, n.º 4) e do despacho determinativo da forma à partilha (art.º 57º, n.º 4). Neste sentido pode ver-se o Ac. da Rel. de Coimbra de 15/6/2020 (processo n.º 284/19.0T8FIG-A.C1, publicado em www.dgsi.pt, como todos os que se citarão sem indicação de outra fonte), bem como o Ac. da Rel. de Lisboa de 6/12/2018 (processo n.º 71/16.8T8PTS.L1-2).
Outra posição defende a incompetência dos tribunais da Relação, em razão da hierarquia, face ao disposto no art.º 67.º do C.P.C., para conhecerem das decisões interlocutórias dos notários, só podendo apreciar as decisões interlocutórias dos tribunais de 1ª instância. Nesse sentido pronunciaram-se Lopes Cardoso (“Partilhas Judiciais”, págs. 83 e 84 da 6ª edição): “…a despeito da natureza jurídica dos actos decisórios do Notário – deve ser aqui aplicado o regime subsidiário dos recursos civis (ex vi do cit. Art. 82.º do RJPI) vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através dum requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário (CPCiv., art. 637.º-1).”; Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita (“Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime”, pág. 230): “o regime de recursos previsto no RJPI e no CPC (…) apenas se aplica a decisões tomadas pelo tribunal e não pelo notário, uma vez que as decisões tomadas por este último apenas poderão ser objecto de impugnação para o Tribunal de 1.ª instância territorialmente competente nos casos especialmente previstos na lei ou nas situações que temos vindo a apontar.”; e Tomé Ramião (“O Novo Regime do Processo de Inventário”, Quid Juris, 2014, págs. 194 e 195): o art.º 76º, nº 2, refere-se às decisões judiciais uma vez que do art.º 644º, n.º 2, do C.P.C. decorre que o recurso de apelação tem por objecto uma decisão proferida por um tribunal de 1.ª instância, razão pela qual “não é admissível uma espécie de recurso “per saltum” para o Tribunal da Relação de uma decisão proferida pelo notário. O recurso para este tribunal superior tem necessariamente de ter por objecto uma decisão jurisdicional.”
Nesse sentido decidiram os Acs. da Rel. de Évora de 5/4/2016 (processo n.º 38/16.6YREVR), da Rel. de Coimbra de 9/1/2017 (processo n.º 782/16.8T8PBL.C1), de 9/5/2017 (processo n.º 86/17.9YRCBR), de 20/6/2017 (processo n.º 109/17.1YRCBR) e de 8/10/2019 (64/16.5T8CNT-A.C1), da Rel. do Porto de 26/4/2018 (processo n.º 9995/17.4T8VNG-A.P1) e de 27/6/2018 (processo n.º 379/18.8T8GDM.P1), e da Rel. de Lisboa de 12/5/2022 (processo n.º 11484/21.3T8LRS.L1-8), de 25/9/2018 (4833/17.0T8LSB.L1-1), e 7/12/2023 (processo n.º 4403/21.9T8LRS.L1-8).
Perfilhamos esta última posição.
Não entraremos na discussão sobre opções legislativas nesta matéria. Referimos infra apenas alguns argumentos que nos levaram àquela opção. 
O art.º 3 da Lei nº. 23/2013 define a competência do cartório notarial e do tribunal, dizendo o seu n.º 4 que “Ao notário compete dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns.”. Já o n.º 7 ressalvava que “Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz.”. A sentença homologatória da partilha (tal como outros atos que não destacaremos por desnecessário) compete ao juiz cível territorialmente competente –art.º 66º, n.º 1.
Daí resulta que o que não couber, porque expressamente previsto, ao Tribunal, compete ao notário.
Ressalva-se no entanto que este possa, face ao art.º 16º, n.º 1, determinar “a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade.”, e pode ainda “ordenar suspensão do processo de inventário, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior, aplicando-se o disposto no n.º 6 do artigo 12.º” (n.º 2). Nesses casos, prevê expressamente o n.º 4 que “Da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns cabe recurso para o tribunal competente, no prazo de 15 dias a partir da notificação da decisão, o qual deve incluir a alegação do recorrente.”
Idêntica previsão tem o art.º 36º, n.º 1, no caso das reclamações contra a relação de bens: “Quando a complexidade da matéria de facto ou de direito tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o notário abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios judiciais comuns.”
O art.º 57º, n.º 4 prevê também que “Do despacho determinativo da forma da partilha é admissível impugnação para o tribunal da 1.ª instância competente, no prazo de 30 dias, a qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.”
Desta rápida passagem por algumas normas retira-se que o juiz de 1ª instância têm competências específicas na tramitação do processo, como a nível de apreciação (em recurso) de decisões proferidas pelo notário.
Quanto a estas, e para além das previstas expressamente, devem também incluir-se outras, cuja competência para proferir decisão (em primeira linha) cabe ao notário, e que sejam recorríveis de acordo com os princípios gerais –que não deixam de aqui se aplicar. Refere-se a esse propósito a necessidade de afirmar que o elenco (na Lei) dos atos impugnáveis não é taxativo, como é suscetível de ser complementado através da consideração de outros preceitos legais, provenientes de fonte diversa –Ac. da Rel. do Porto de 27/6/2018. Acrescenta-se nessa decisão que “Para o efeito alude-se à interpretação extensiva ou à aplicação analógica de certas das normas contidas naquele regime - é o caso das decisões do notário que julguem procedentes excepções que ponham fim ao inventário, como sucede com a ilegitimidade, litispendência, caso julgado, entre outras (neste sentido, cf. Eduardo Sousa Paiva/ Helena Cabrita, loc. cit., pág. 20) -, ou invoca-se a consideração de preceitos oriundos de diplomas diversos.”
Acompanhamos integralmente o que aí se diz sobre o regime dos recursos, passando a citar: “Se o Notário profere decisões sobre conflitos de interesses e direitos dos particulares num processo que preserva ainda em parte a sua natureza jurisdicional, as decisões do Notário são, em regra, recorríveis. Desde que o valor processual do processo de inventário o permita e a decisão proferida supere o valor da sucumbência, em princípio, todas as decisões do Notário são recorríveis.
À imagem do que sucederia se as decisões fossem proferidas por um juiz num processo de inventário tramitado exclusivamente sobre a sua orientação e jurisdição, verificado o requisito do valor e da sucumbência, apenas não serão recorríveis, por aplicação analógica do disposto no artigo 630.º do Código de Processo Civil, as decisões do Notário proferidas no uso legal de um poder discricionário ou que sejam de mero expediente (artigo 82.º do RJPI).
A regra importada do Código de Processo Civil é, portanto, a recorribilidade, não a irrecorribilidade. Para que assim não sucedesse era necessário que o RJPI contivesse não algumas normas dispersas a dispor sobre o recurso de certas decisões, como se verifica, mas ao invés, uma norma expressa a prescrever que só eram passíveis de recurso as decisões do Notário expressamente previstas nesse diploma, isto é, a prescrever que em todas as restantes situações não era admissível recurso.
Essa disposição legal suscitaria óbvias reservas sobre a constitucionalidade da solução por violação do direito de acesso à Justiça e aos Tribunais e dos princípios da proporcionalidade e adequação inerentes ao Estado de Direito. Também por isso tal norma não existe. E não existindo, no âmbito do processo de inventário não se mostra afastada ou invertida a regra da recorribilidade.”
Já a resposta à questão relativa à competência para o conhecimento dos recursos de decisões proferidas pelo notário, para além das situações previstas nos art.ºs 57º, n.º 4, e 16º, n.º 4, deriva da consideração do disposto nos art.ºs 67º e 68º do C.P.C.. Já o art.º 76º da Lei n.º 23/2013 rege apenas sobre o momento da interposição do recurso.
De facto, parece não oferecer dúvidas (nomeadamente noutra situações) que a 1ª instância é competente para o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo (…). E que o Tribunal da Relação é competente para o conhecimento dos recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1ª instância.
Conclui-se naquele acórdão, e mais uma vez corroboramos, que: “O artigo 76.º do RJPI rege, assim, sobre o recurso de apelação da sentença judicial de homologação do mapa de partilha. Nesse recurso poderão ser impugnadas as decisões interlocutórias proferidas pelo órgão jurisdicional recorrido, isto é, proferidas pelo juiz de 1.ª instância no decurso do processo de inventário, sejam elas as decisões proferidas em sede de competência própria ou já no exercício da competência de órgão de recurso. O n.º 2 do artigo 76.º do RJPI não se refere às decisões do Notário (por definição todas elas interlocutórias porque a decisão final do processo é sempre do juiz, ao qual compete, sempre, a homologação do mapa de partilha), porque estas são impugnáveis para o tribunal de comarca[4], apenas cabendo recurso para a Relação das decisões do Juiz de 1.ª instância.”
No que respeita à previsão do art.º 76º, entende-se que este contempla o regime de recursos das decisões que venham a ser proferidas pelo juiz de 1ª instância no âmbito do processo de inventário, não se reportando ao recurso de qualquer decisão proferida pelo notário. O mesmo alude à aplicação do regime de recursos previsto no C.P.C. com referência ao recurso da decisão homologatória da partilha, decisão esta que cabe ao juiz (em 1ª instância), nos termos do art.º 66º, e não ao notário.
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Quais as consequências a retirar do facto de entendermos que o despacho proferido pelo Sr. Notário não cabe nas competências de apreciação deste Tribunal da Relação, conjugado com a situação verificada no caso concreto de se ter entendido que o recurso do mesmo deveria subir ou com o recurso da sentença (1ª apelação autónoma a subir), ou após o seu trânsito se o recorrente com ela se conformasse (matéria esta discutível e que não foi o entendimento que este subjacente ao acórdão da Rel. do Porto por nós citado, como não foi o entendimento referido no Ac. da mesma Rel. de 28/11/2022, processo n.º601/15.2T8CNT-A.C1)? De facto, o Tribunal de 1ª instância decidiu que o recurso que foi então interposto era intempestivo, porque não apresentado aquando da decisão que merecia apelação autónoma ou após o trânsito desta, em caso de conformação com a mesma.
Analisadas as alegações de recurso verifica-se que, na verdade, o recorrente nada aponta à sentença homologatória da partilha, que não seja o facto de estar consequentemente inquinada pelo vício ocorrido antes –matéria que respeita ao fundamento do recurso de indeferimento da nulidade suscitada e assacada à fase de aceitação e adjudicação das propostas; cfr a última conclusão: “E foi na sequência do assim ocorrido que foi proferida sentença homologatória da partilha, inquinada de ilegalidade, por inobservância de uma formalidade processual que deveria ter-se verificado, ilegalidade esta que determinará a observância da formalidade processual preterida e a anulação da subsequente sentença proferida sem o respeito dessa disposição processual.”
Assim sendo, a sentença não faz parte do objeto do recurso, pelo que cabe mantê-la.
Quanto ao restante objeto do recurso, este Tribunal não pode dele conhecer por não ser para tal competente.
Como no caso verificamos que de facto a sentença não é objeto do recurso, pode entender-se que o recorrente se conformou com a mesma, pelo que, seguindo o decidido pelo despacho proferido em 1ª instância em 10/11/2022, ainda poderia, e após trânsito deste acórdão, naturalmente se ainda estiver em tempo, interpor o competente recurso do despacho proferido pelo Sr. Notário em 18/4/2022 para o Tribunal de 1ª instância, que lhe indeferiu a nulidade suscitada, nos termos do n.º 4 do art.º 644º do C.P.C. –repete-se, porque foi essa a posição da 1ª instância e que não nos cabe aqui voltar a discutir. E caso o recurso interposto e relativo ao demais seja procedente, poderá vir a determinar a anulação de atos subsequentes.
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Não são devidas custas, dado o não conhecimento do mérito do recurso.
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IV DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar incompetente este Tribunal da Relação, em razão da hierarquia, para o conhecimento do recurso do despacho de 18/4/2022.
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Sem custas.
Guimarães, 29 de maio de 2024.
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Os Juízes Desembargadores

Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Alexandra Viana Lopes
2º Adjunto: José Alberto Moreira Dias
(assinaturas eletrónicas)