Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6941/23.0T8VNF.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: CONHECIMENTO NO DESPACHO SANEADOR
NULIDADE DA SENTENÇA
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
AÇÃO PRINCIPAL
PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- As providências cautelares são medidas de caráter urgente que, salvo inversão do contencioso, têm natureza provisória e instrumental em relação à ação principal (já instaurada ou a instaurar) de que são dependentes, que visam: a) antecipar o efeito útil dessa ação, prevenindo a ocorrência de dano grave e irreparável ou de difícil reparação para o direito a que o requerente se arroga titular sobre o requerido, eliminando a situação antijurídica que se verifica no momento em que aquela é decretada, antecipando, assim, o efeito útil da decisão a ser proferida na ação principal (providências cautelares antecipatórias); ou b) conservar o status quo existente, de modo a garantir o efeito útil e a executoriedade da decisão condenatória que venha a ser proferida na ação principal, prevenindo a ocorrência ou a continuação de produção de danos graves e irreparáveis ou de difícil reparação para o direito, garantindo-se que a situação de facto e de direito que se verifica quando aquela é decretada se mantenha inalterada até ao trânsito em julgada da decisão final condenatória (providências cautelares conservatórias).
2- Dadas as finalidades prosseguidas pelas providências cautelares, o regime processual simplificado que lhes é aplicável, as decisões nelas proferidas assentam numa análise sumária da prova (summaria cognitio), em que, ao nível do julgamento da matéria de facto basta a probabilidade séria, de mera aparência ou de mera justificação da verificação dos factos alegados pelo requerente como sendo constitutivos do direito a que se arroga titular sobre o requerido, para que se julgue indiciariamente provados esses factos, e em que, por isso, é bastante a probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni iuris) e, bem assim, a emissão de um juízo de certeza (valorado em função das particularidade do caso concreto), que se revele suficientemente forte para convencer o julgador da existência de perigo sério de lesão grave e irreparável ou de difícil reparação para o direito, para que conclua pela verificação do pressuposto do “periculum in mora”.
3- Daí que a decisão proferida no âmbito da providência cautelar apresente uma natureza qualitativamente distinta (em termos processuais, de causa de pedir e por se destinar a ser substituída pela que vai ser proferida na ação principal) daquela que vai ser prolatada no âmbito da ação principal de que é dependente e se compreenda o comando do n.º 4 do art. 364º do CPC, nos termos do qual o julgamento da matéria de facto e a decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar não têm qualquer influência no julgamento (de facto e de direito) a realizar na ação principal.
4- Por conseguinte, ao ter julgado a ação principal parcialmente procedente, em sede de saneador-sentença, com base nos factos julgados indiciariamente provados no âmbito do procedimento cautelar, o julgador a quo desconsiderou aquela diferença qualitativa que intercede entre a decisão que decretou a providência cautelar e a que terá de proferir no âmbito da presente ação declarativa, de que aquela é dependente, e, em consequência, violou os comandos dos arts. 364º, n.º 4 e 608º, n.ºs 3 a 5 do CPC, incorrendo no vício da nulidade por total e absoluta falta de fundamentação de facto e de direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I- RELATÓRIO

EMP01..., Lda., com sede na Rua ..., ... ..., instaurou ação declarativa, com processo comum, contra EMP02..., Unipessoal, Lda., com sede na Avenida ..., ... – União de Freguesias ..., pedindo que se:

a) Declarasse a nulidade de todas as deliberações tomadas na assembleia geral extraordinária da Ré de 29 de maio de 2023, com as demais consequências;
Subsidiariamente
b) Declarasse a anulabilidade de todas as ditas deliberações, com as demais consequências;
Cumulativamente com o pedido formulado em a) ou b)
c) Decretasse a destituição com justa causa de AA do cargo de gerente da Ré, EMP02... Unipessoal, Lda., e da Autora, EMP01..., Lda.
d) Condenasse AA na quantia que viesse a ser apurada em sede de liquidação de sentença, a título de prejuízos patrimoniais sofridos pela Autora;
e) Ordenasse o cancelamento imediato dos registos Ap. ...05 e Dep. 4028/...27 na matrícula da Ré, EMP02... Unipessoal, Lda.

Para tanto alegou, em suma: A Ré, antes da realização da assembleia geral extraordinária de 29/05/2023, tinha um capital social de 10.000,00 euros, sendo a Autora a sua única sócia; a Autora tem como sócios a Ré e EMP03... Unipessoal, Lda.; o gerente da Autora e da Ré é AA; no dia 29/05/2023, pelas 11 horas, teve lugar uma assembleia geral extraordinária da Ré com a seguinte ordem de trabalho: ponto um, cessão de quotas; ponto dois, alteração da sede social; ponto três, deliberar sobre o aumento de capital social para 100.000,00 euros; e ponto quatro, alteração do pacto social quanto aos arts. 1º e 3º; a única pessoa que esteve presente nessa assembleia geral extraordinária  foi AA, onde interveio na qualidade de gerente da Autora e da Ré e a título pessoal; quanto ao ponto um da ordem de trabalho, AA, na qualidade de gerente e único sócio da Autora, deliberou ceder a quota que esta detinha na Ré ao próprio AA, pelo valor nominal desta (10.000,00 euros) e, de seguida, em representação pessoal e já na qualidade de sócio da Ré deliberou acerca dos restantes pontos da ordem de trabalho, tendo aprovado todos por unanimidade; acontece que todo o sucedido tratou-se de um plano cuidadosa e propositadamente estudado e gizado por AA, com a finalidade de celebrar um negócio em proveito próprio e em prejuízo da Autora e da sua sócia, a EMP03...; a dita assembleia geral nunca foi convocada, nem os assuntos que vieram a ser submetidos nela a deliberação foram previamente divulgados, o que tudo foi feito para que  aquela assembleia extraordinária pudesse ser realizada à revelia da EMP03..., Lda. e do sócio-gerente desta sociedade; a ata daquela assembleia geral foi lavrada fora do livro de atas da Ré e foi lavrada em folha não timbrada e sem numeração; a EMP03..., Lda. apenas veio a ter conhecimento da realização daquela assembleia geral extraordinária em 12/10/2023, através da consulta do portal de “Publicações de Autos Societários e de Outras Entidades; o contrato de sociedade da Autora não prevê que a alienação de participações que aquela fosse detentora noutras sociedades pudesse ser deliberada pela gerência; a Autora nunca convocou ou realizou qualquer assembleia que tivesse como propósito submeter à apreciação dos seus sócios a cessão da quota que detinha na Ré, pelo que AA não tinha poderes para a prática do ato de ceder a quota que a Autora detinha na Ré; a partir da realização da dita assembleia extraordinária a Ré começou a desviar para si clientes, que trabalhavam com a EMP03... Lda., e, nesse sentido, começou obras que foram contratadas para serem executadas pela última e apoderou-se de outras obras que já tinham sido iniciados pela mesma; a Autora tem solicitado a entrega de diversos pagamentos de obras concluídas pela EMP03..., cujos montantes foram entregues pelos clientes à Ré e deixou de obter resposta; a Autora perdeu pelo menos dois funcionários da sua confiança, que antes trabalhavam com a EMP03... e que agora trabalham com a Ré, o que tudo tem acarretado prejuízos patrimoniais consideráveis para a Autora e para a EMP03..., em cuja origem está a má gerência levada a cabo por AA, que tem vindo a praticar todos aqueles atos exclusivamente em proveito próprio e à revelia das sociedades aqui representadas, adquiriu ilegalmente a participação social da Autora na Ré e que tem exercido por conta própria uma atividade concorrente com a da Autora.
A Ré contestou defendendo-se por exceção e por impugnação.
Suscitou a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, sustentando que a Autora não dispõe de legitimidade para instaurar a presente ação uma vez que nunca foi titular da quota transmitida na assembleia geral extraordinária de 29/05/2023;
Impugnou parte da facticidade alegada pela Autora.
Concluiu pedindo que se julgasse a ação improcedente e fosse absolvida do pedido e se condenasse a Autora como litigante de má-fé, em multa e em indemnização não inferior a 5.500,00 euros.
A Autora respondeu à contestação, pugnando no sentido de que a exceção dilatória de ilegitimidade ativa suscitada pela Ré fosse julgada improcedente e impugnando parte da facticidade alegada na contestação.
Concluiu como na petição inicial e pedindo que fosse absolvida do pedido de condenação como litigante de má-fé deduzida pela Ré e se condenasse a última como litigante de má-fé, em multa e em indemnização nunca inferior a 5.000.00 euros.  
Realizou-se audiência prévia, em que se ordenou que, “atenta a complexidade da causa” fosse aberta “conclusão a fim de proferir decisão”.
Em 15/08/2024, a 1ª Instância fixou o valor da causa em 30.000,01 euros, e proferiu saneador-sentença, em que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, declarou a nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral extraordinária da Ré de 29 de maio de 2023, relativas aos pontos um, dois, três e quatro da ordem de trabalho.
O saneador-sentença acabado de referir consta da seguinte parte dispositiva (que aqui se transcreve ipsis verbis):
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgo parcialmente procedente a presente ação e determino a nulidade das deliberações relativas aos pontos, UM, DOIS, TRÊS E QUATRO da Assembleia Geral Extraordinária da sociedade EMP02..., UNIPESSOAL LIMITADA, de 29 de Maio de 2023.
Mais deverão ser cancelados os registos Ap. ...05 e a Dep. 4028/2023-06-27 na certidão comercial da R., EMP02..., UNIPESSOAL LIMITADA.
Custas pela requerente”.

Inconformada com o decidido a Ré, EMP02... Unipessoal, Lda., interpôs recurso, em que formulou as seguintes conclusões:
I- O Autor apresentou providência cautelar que correu termos com o Processo n.º 6941/23.... - Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão - Juiz ..., tendo sido proferida sentença, transitada em julgado, com a Ref; ...66, e da qual decidiu quanto à forma de convocação da assembleia geral da sociedade Ré que,
“Argumenta a Requerente que a assembleia em questão não foi convocada.
A este propósito não será de esquecer que a sociedade é uma sociedade unipessoal por quotas, pelo que as suas decisões são tomadas pelo sócio único, o qual exerce as competências das assembleias gerais (artigo 270º-E do CIRE).
A questão que aqui se coloca não é de regularidade de convocação da assembleia, mas ao nível do vício de procedimento, é a de saber se a autora, sendo a única sócia da e como pessoa coletiva que é poderia fazer-se representar e participar na deliberação em causa através do gerente.”;
II- Ou seja, a M.ª Juíza “a quo” tomou a decisão mediante a prova documental indiciária apresentada pela Autora, na providência cautelar, tinha como consideração e assente que a Autora era a única sócia da Ré e como pessoa coletiva que é poderia fazer-se representar e participar na deliberação em causa através de gerente.
III- Decidindo a M.ª Juiz na providência cautelar com elementos de prova indiciários que “Quando o sócio é uma pessoa coletiva (como é o caso da requerente), coloca-se então a questão de saber em que termos pode tal sócio (que é uma pessoa coletiva) designar um representante voluntário para, através dele, exercer o direito de participar nas deliberações da sociedade por quotas de que é sócia.
Na ausência de cláusula contratual que alargue o elenco do art. 249.º/5 do CSC (como no caso dos autos, pois inexiste cláusula), será este preceito que vale.
Assim, não podia o gerente representar a sociedade para a deliberação em causa: cessão das quotas.
IV- Mais decidiu a M.ª Juiz “a quo” no âmbito da providência cautelar que, quanto ao vício de conteúdo da assembleia geral convocada pela Ré, que, “Segundo dispõe o artigo 246º, n.º 1, alínea b) do CSC, a amortização de quotas, a aquisição, a alienação e a oneração de quotas próprias e o consentimento para a divisão ou cessão de quotas depende de deliberação dos sócios.
No presente caso o pacto social da requerente nada dispõe quanto à alienação e cessão de quotas, pelo que vigora a disciplina deste artigo. Mas será que o gerente da requerente podia e tinha poderes para, em representação da sociedade, ceder a sua quota?
Parece-nos que não. Sendo que tal prerrogativa não lhe advinha de ser gerente.
Na verdade, o AA apenas era gerente da requerente (e da requerida). À data da deliberação nem sequer era sócio da requerente, nem da requerida. Apenas gerente de ambas, não tendo poderes para, em representação da requerente, votar favor da cessão da quota que a requerente tinha na requerida ao referido AA. Por outro lado, prescreve o artigo 246º, n.º, al. d) do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que “se o contrato social não dispuser diversamente, compete também aos sócios deliberar sobre” “a subscrição ou aquisição de participações noutras sociedades e a sua alienação ou oneração”.
Enfim, o deliberado padece de vício de conteúdo – não estavam reunidos, em relação à requerente, os pressupostos do art. 246.º/1 do CSC, o que faz com que a deliberação de cessão seja nula (cfr. art. 56.º/1/d) do CSC) por violar os preceitos imperativos do CSC que estabelecem os termos em que pode ser deliberada a transmissão de uma quota. Diremos, pois, sumariamente, que a deliberação em causa violou normas imperativas, pelo que é indiciariamente nula.
V- São requisitos da providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, ter o requerente a qualidade de sócio, e ter a sociedade tomado uma deliberação ilegal, isto é, contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato, e verificar-se, em termos de probabilidade, perigo de ocorrência de dano apreciável decorrente da execução da deliberação inválida,
VI- Sabendo-se igualmente que a providências cautelares estão dependentes de uma ação pendente ou a instaurar posteriormente, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva, na pressuposição de que será favorável ao requerente a decisão a proferir na respetiva ação principal, e os efeitos de qualquer providência cautelar estão dependentes do resultado que for ou vier a ser conseguido na ação definitiva e caducam se essa ação não for instaurada, se a mesma for julgada improcedente ou, ainda, se o direito que se pretende tutelar se extinguir – artº 389º CPC,
VII- No âmbito da presente ação principal vieram os autores na sua p.i., alegar, com a junção de documentos, em síntese, que a R. é uma sociedade por quotas unipessoal que, antes de realizadas as deliberações ilegais cuja nulidade pretendem ver declarada com a presente ação, tinha um capital social de 10.000,00€ (dez mil euros) e a A. era a sua sócia única,
VIII- Que a Autora tem como sócios a sociedade EMP02..., Unipessoal Limitada e a sociedade EMP03..., Unipessoal Lda., com o NIPC ...84, com sede na Rua ..., ... ..., representada pelo seu sócio-gerente BB.
IX- Mais alegam que na sua p.i., quer a A., quer a R. têm como gerente o Sr. AA, e que no dia 29 de maio de 2023, pelas onze horas, alegadamente teve lugar, na sede da R., uma assembleia geral extraordinária, reunida nos termos do art. 54º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), e a única pessoa presente foi o Sr. AA, na qualidade de gerente da sociedade EMP01..., Lda. e a título pessoal, em representação simultânea da A., da R. e da sua própria pessoa,
X- A referida assembleia teve a seguinte ordem de trabalhos: - ponto um: Cessão de quotas; - Ponto Dois: Alteração de sede social; - ponto Três: Deliberar sobre o aumento de capital social para 100.000,00€ (cem mil euros); - ponto Quatro: Alteração do Pacto Social quanto aos Artigos 1º e 3º.
XI- No que respeita ao ponto da ata treze um foi registado que a assembleia, alegadamente, deliberou por unanimidade que a EMP01..., Lda., ali  “representada pelo, Sr. AA, divorciado, maior, contribuinte fiscal número ...67, residente na Rua ..., ..., ... ..., concelho ..., na categoria de gerente, detentora de uma quota no valor nominal de 10.000,00 € (dez mil euros), perfazendo assim a totalidade do capital social de 10.000,00 € (dez mil euros), cede a sua quota, pelo valor nominal da mesma ao Sr. AA, em sua representação pessoal, já anteriormente identificado”.
XII- Mais articulou o A. na sua petição inicial que, seguidamente, em representação pessoal e já na qualidade de pretenso sócio da R., o Sr. AA deliberou acerca dos restantes pontos da ordem de trabalhos, tendo aprovado todos eles por unanimidade, tendo então sido redigida a “ATA NÚMERO ...”, que posteriormente terá sido assinada exclusivamente pelo Sr. AA.
XIII- Segundo o A. na sua petição inicial, tratou-se de um plano cuidadosa e propositadamente estudado e gizado pelo Sr. AA, com a finalidade de celebrar um negócio em proveito próprio e em prejuízo da A. e da sua sócia EMP03..., não obstante a sua consciência de que não tinha poderes nem o consentimento dos sócios para o efeito, e a aludida assembleia nunca foi convocada, nem os assuntos que viriam a ser submetidos a deliberação foram previamente divulgados, para que pudesse ser realizada à revelia da EMP03..., Unipessoal, Lda., e do seu sócio-gerente.
XIV- Fundamentam na sua p.i. que a EMP03..., UNIPESSOAL LDA e o seu sócio-gerente nunca tinham tido conhecimento da alienação da participação social que a A. detinha sobre a R., nem tampouco suspeitado da intenção da gerência da R. em realizar o negócio em causa;
XV- Na sua contestação o Réu alegou e demonstrou documentalmente que a Autora, a sociedade EMP01.... Lda., é uma sociedade por quotas, criada em 22/08/2018, constituída, com um capital social de 5.000,00€ (cinco mil euros) dividida em duas quotas, uma de 1.000,00 (mil euros), pertencente a AA, e uma quota de 4.000,00 (quatro mil euros) pertencente à Ré, EMP02... Unipessoal, Lda.,
XVI- Assim como que, por alteração ao contrato societário em 20/05/2019, a Autora, a sociedade Autora, EMP01..., Lda. alterou a sua sede, titularidade do seu capital social e das suas quotas, sendo que, mantendo o capital inicial de 5.000,00€ (cinco mil euros) a mesma foi divida em duas quotas, uma de 1.000,00 (mil euros), pertencente a sociedade EMP04..., Lda. e uma quota de 4.000,00 (quatro mil euros) pertencente à Ré, constando do pacto social da Autora a sociedade obriga-se com a intervenção de um de gerente, e ficou nomeado gerente da Autora o Sr.º AA.
XVII- Mais alegou a Ré, na sua contestação, que, em 17/07/2020 a sociedade EMP03..., Unipessoal Lda., adquiriu a quota pertencente à empresa EMP04..., Lda., e parte da quota pertencente a Ré, não tendo, contudo, alterado o contrato societário, nomeadamente quanto à obrigação da sociedade e da sua gerência,
XVIII- A aqui Ré, EMP02..., Unipessoal Lda., é uma sociedade unipessoal por quotas criada 30/11/2017, com um capital social de 10.000,00 (dez mil euros), quota e gerência esta, pertencente na íntegra a AA,
XIX- A sociedade Ré, e seu sócio e único gerente, de forma a poder utilizar do pavilhão industrial sito na Rua ..., em ..., e onde já se encontrava instalada a sociedade Autora, EMP01..., Lda. (que tinha como sócio própria Ré e o seu gerente), por ata procedeu em 15/05/2019 à transmissão da totalidade e da sua única quota de 10.000,00 (dez mil euros) para a Autora,
XX- Ora tal, transmissão realizada em ata e nunca alterado o seu pacto social, e nunca registada, teve como primeira consequência, é de que a Sociedade Ré, EMP02... Unipessoal, Lda., ao realizar em 15/05/2019 a transmissão da totalidade e da sua única quota de 10.000,00€ (dez mil euros), ficou sem capital social e sem quotas 0€, o que constituiu tal transmissão de uma ilegalidade e irregularidade insuprível;
XXI- A segunda consequência, é que essa transmissão de quota da sociedade Ré, para a sociedade Autora, nunca se verificou, e nunca foi registada legalmente, senão vejamos,
XXII- E por isso, ao contrario do referido na douta sentença proferida no apenso da providência cautelar, e agora com douta sentença da qual se recorre;
XXIII- Sabendo que o capital é a contribuição em dinheiro ou em espécie (neste último caso, com bens diferentes de dinheiro) que o sócio ou acionista realiza ou se obriga a realizar para com uma sociedade comercial aquando da sua constituição ou do aumento do respetivo capital social por novas entradas em dinheiro e/ou em espécie, como contrapartida pela quota, ações ou parte que subscreve ou pelo aumento do respetivo valor nominal, consoante o caso arts.º 20.º al. a) e 87.º a 89.ºCSC;
XXIV- O capital social mínimo da sociedade por quotas, corresponde ao número de sócios da sociedade multiplicado por 1,00€, se a sociedade por quotas tiver dois sócios, o capital social mínimo será de 2,00€ (dois euros), ora as sociedades unipessoais por quotas têm, por natureza, um capital social mínimo de 1,00€ (um euro) nos termos do arts. 201.º e 219.º, n.º 3 do CSC,
XXV- O capital social desempenha, nomeadamente, as seguintes funções, a função de garantia, a função de organização ou ordenação de poder, a função de igualdade de tratamento dos sócios, a função de manutenção e conservação da proporção da participação social do sócio no capital social (da posição relativa do sócio na sociedade; do peso relativo do sócio no capital social), a função de financiamento, e a função de avaliação económica da sociedade, e a função de sinalizar ao mercado a solidez financeira da sociedade;
XXVI- Ora, a transmissão da quota e do capital social no valor total de 10.000,00 euros (dez mil euros), realizada em 15/05/2019 entre a Autora e a Ré, colocou o capital social da Ré a 0,00 euros, violando desta forma as disposições dos arts. 20º al. a) e 87º a 89º e arts. 201º, 219º, n.º 3 e 236º n.º 2 todos do CSC, contudo essa transmissão de quota nunca se verificou;
XXVII- A Autora, foi constituída em 16/05/2018, conforme mencionado nos arts. 3º da presente contestação e constante dos documentos 1 e 2, com capital social de 5.000,00 (cinco mil euros), e posteriormente procedeu a uma alteração do seu pacto social realizado em 20/05/2019, ou seja, 6 (seis dias) após a transmissão do capital de 10.000,00 euros (dez mil euros) alegadamente realizado pela Ré.
XXVIII- Nessa alteração do pacto social da Autora ocorrida em 20/05/2019 a mesma não procedeu ao aumento de qualquer capital social (uma vez que teria um capital social de 15.000,00 euros (quinze mil euros), nem a disposição ou titularidade da quota adquirida, manteve o seu capital de 5.000,00 euros (cinco mil euros), em duas quotas, uma de 1.000,00 (mil euros) pertencente à sociedade EMP04..., Lda., e uma quota de 4.000,00 (quatro mil euros) pertencente à Ré, EMP02... Unipessoal, Lda.;
XXIX- Atualmente, pela alteração do contrato de sociedade realizado pela Autora em 17/07/2020 cfr. documento 5, o capital social continua a ser de 5.000,00 (cinco mil euros), dividida em duas quotas iguais de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros) pertencente uma à Ré, e uma outra, à EMP03..., Unipessoal Lda.;
XXX- A Ré constituída em 24/11/2017, com um capital social de 10.000,00€ (dez mil euros), com uma quota única pertencente a AA, manteve e que até a Ata ...3 de 09/05/2023 em crise aqui nos autos, mantinha o mesmo capital social;
XXXI- Em crise, a ata realizada em 13/05/2023 que é, e foi fundamento da providência cautelar, quer quanto à presente ação comum, no seu ponto numero 1 (um) da ordem de trabalhos, refere que, vem a Autora ceder a quota 10.000,00€ (dez mil euros), quota esta que a mesma nunca teve, uma vez que o seu capital social e quotas nunca foram alterados, e é detentora de uma quota inferior, ceder essa quota a AA;
XXXII- Em conclusão podemos afirmar pela factualidade e documentos juntos que;
 Nunca houve a transmissão da quota de 10.000,00 (dez mil euros) para a Autora, por o ato ter constituído uma ilegalidade;
 Nunca a quota de 10.000,00 (dez mil euros) entregou o capital social da Autora;
 A Autora manteve sempre o mesmo capital social de 5.000,00 (cinco mil euros);
 A Ata ...3, de 29/05/2023, no ponto um da ordem trabalhos, cedeu uma quota de 10.000,00€ (dez mil euros), que a mesma não possuía, nem era detentora,
 Nunca a quota de 10.000,00 € (dez mil euros) saiu do capital social da Ré;
XXXIII- A ata número ...3, elaborada em 29 de maio de 2023, no seu ponto número um da ordem de trabalhos, apenas consistiu no suprimento da ilegalidade e irregularidade cometida em 15/05/2019, e suprimento das normas violadas nomeadamente das disposições dos arts. 20.º al. a) e 87.º a 89.º e arts. 201.º, 219.º, n.º 3 e 236.º n.º 2 todos do CSC.;
XXXIV- Perante tal factualidade a Autora é parte ilegítima quanto ao que peticiona na presente ação, conforme a factualidade descrita na presente contestação, senão vejamos, isto porque, nunca foi titular do capital social ou da quota transmitida em 15/05/2029, uma vez que, não houve a transmissão da quota de 10.000,00€ (dez mil euros) para a Autora, nem definiu o seu titular, ato praticado constituiu uma ilegalidade, nem foi a mesma registada;
XXXV- Nunca a quota de 10.000,00 euros (dez mil euros) integrou o capital social da Autora e, por via disso, nunca a Autora integrou o capital social da Ré, nunca os pactos sociais foram alterados e registados nesse sentido, mantendo ambas o capital social, sócios e quotas.
XXXVI- Não tendo a Autora integrado como sócia, nem nunca adquiriu qualquer quota da sociedade Ré e, por via disso, não tem qualquer legitimidade para requerer a nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas em 29/05/2023 pela ata n.º ...3, pelo que, a assembleia extraordinária realizada em 29/05/2023 foi convocada por quem tinha legitimidade, pelo sócio e único gerente da sociedade Ré, com capital social de 10.000,00 euros (dez mil euros), esteve representado sem qualquer direito de voto ou de decisão, a sociedade EMP01..., Lda., pelo sócio a aqui Ré EMP02... Unipessoal, Lda., com o capital social de uma quota de 4.000,00 (quatro mil euros) e o seu gerente Sr. AA;
XXXVII- As decisões tomadas em ata n.º ...3 de 29/05/2023, não constituíram nenhum vício de conteúdo, apenas dizem respeito à Sociedade Ré, sem qualquer vinculação ou interferência na sociedade da Autora, e sem nenhum efeito no seu capital social e quotas, nomeadamente quanto ao ponto um, e como já referimos, a reposição de uma ilegalidade, e transmissão de quotas nunca verificadas, quer quanto ao ponto número dois, três e quatro, nomeadamente, alteração da sua sede, aumento do seu capital social de 10.000,00 euros (dez mil euros) para 100.000,00 euros (cem mil euros), e alteração do seu pacto social ponto 1 e 3;
XXXVIII- Estatuído no art. 380º, n.º 1 do CPC, se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio mostrando que essa execução pode causar dano apreciável;
XXXIX- Todavia, a douta sentença recorrida deixou de apreciar corretamente alguns pontos essenciais e fundamentais, assim como deixou de considerar factos imprescindíveis, para o deslinde da demanda.
XL- Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Mmo Juiz a quo, porquanto a R. expôs na sua contestação, com documentos factos essenciais e demonstrativos da legalidade da ata e da sua convocatória, aqui posta em crise, não podendo o Recorrente concordar que “O capital social não se altera em função das vicissitudes da vida da sociedade. Assim, a transmissão da quota única para a Autora não enferma de qualquer invalidade ou ilegalidade” e assim como, “como já dissemos não se vislumbra qualquer invalidade na transmissão da quota, pelo que inexiste qualquer ilegitimidade.”. Daí o presente recurso;
XLI- Constitui uma manifestação do principio do dispositivo previsto n.º 1º do art. 3º do C.P.C., segundo o qual o tribunal não pode resolver conflitos de interesses que a ação pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes, e a outra seja devidamente chamada a deduzir a sua oposição, de fazer impender sobre os interessados o ónus da iniciativa processual, estende-se à conformação do objeto do processo integrado não só pela formulação do pedido, como ainda pela alegação da matéria de facto que lhe sirva de fundamento;
XLII- Às partes, é que compete através do pedido e da defesa circunscreverem o thema decidendum, devendo o tribunal a quo dar resposta à específica ou individualizada àquelas que concretamente contendam a subscrição da causa de pedir, do pedido e exceções, e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem, nos termos do n.º 2 do art. 608º do C.P.C.;
XLIII- Da indicação dos factos provados e não provados pelo Mmo. Juiz a quo, seguiria a análise crítica das provas, constituindo esse o momento em que o tribunal justificaria, face à prova produzida em sede de audiência e julgamento, a razão pela qual deu determinados factos provados e outros como não provados, o que não aconteceu na douta sentença;
XLIV- A M.ª juíza “a quo”, apenas considerou e transcreveu a douta sentença proferida na providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, bem sabendo que a mesma tem natureza provisória dos procedimentos cautelares e à respetiva tramitação processual por dependência de uma causa principal onde é proferida uma única decisão definitiva que condicionará o destina daquela outra;
XLV- Na sentença recorrida, a Mma. Juiz a quo fundou a sua convicção e decisão na sentença proferida na providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, sem audição de prova testemunhal ou eventualmente outra prova documental a ser solicitada, e desta forma, o Tribunal a quo levou em consideração na fundamentação da sua convicção e decisão na ténue prova testemunhal inquirida no âmbito do processo da providência cautelar, sem considerar como natureza provisória dos procedimentos cautelares e à respetiva tramitação processual por dependência de uma causa principal onde é proferida uma única decisão definitiva que condicionará o destina daquela outra,
XLVI- Consideramos pois, que a convicção e a decisão do Mmº Juiz a quo tem por base única a douta sentença proferida na providência cautelar que correu termos como Processo n.º 6041/23.... – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz ..., tendo sido proferida sentença e transitada em julgada com a Ref. ...66, e sendo esta decisão de modo a que os mesmos segundo aquilo que se exige, assentes nas regras da experiência, de modo a serem racionais, lógicos e objetivos, possam ser explicáveis e compreensíveis por todos, através de um fundamentação da decisão séria e indubitável;
XLVII- Importa ainda refletir, nesta sede, que a análise crítica da prova visa explicar a razão pela qual o tribunal dá determinado facto provado ou não provado, bem como, quais os elementos probatórios em que se baseou para extrair tal conclusão, e tal justificação deve obedecer a critérios de racionalidade e de lógica, nos termos do n.º 4 do art. 607º do CPC.
XLVIII- A Mm Juiz “a quo” ao dar determinado facto como provado ou não provado, nos presentes autos, valorou a prova de forma livre e segundo a sua convicção, e da aplicação de critérios pré-estabelecidos, tem como contrapartida o dever de fundamentação de forma racional, lógica e objetiva;
XLIX- Assim, a douta sentença violou o disposto nos arts. 20º, 87º, 89º, 201º, 219º n.º 3 e 236º todos do Código das Sociedades Comerciais, bem como o n.º 1 do art. 3º, o n.º 2 do art. 608º, o n.º 4 do art. 607º, todos do Código Processo Civil.
Termos em que e nos melhores de direito, e sempre com mui douto suprimento de Vossa Excelência, na imediata procedência do recurso, deve ser declarada nula a douta sentença recorrida, condenando-se o prosseguimento dos autos, assim se fazendo a devida e sã Justiça.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso interposto como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem, salvo quanto à disposição legal ao abrigo da qual aquela atribuiu efeito suspensivo ao recurso, em que se considerou não ser a disposição legal invocada pela Meritíssima Juiz a quo a aplicável, mas sim a que se identificou.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser, nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar uma única questão que consiste em saber se o saneador-sentença recorrido é nulo por falta de fundamentação?
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade com relevo para a decisão de mérito a proferir no âmbito da presente ação declarativa:

“Resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:(sublinhado e destacado nosso)
1- Sob a Ap. ...1, de 24-11-2017, foi registada a constituição da R., sob a forma de sociedade unipessoal por quotas, com um capital de 10.000,00€ (dez mil euros), pertencente ao sócio único AA.
2- Sob o Dep. 691/2019-05-15 foi registada a transmissão de quota do sócio AA para a Sociedade EMP01..., LDA., aqui A..
3- Sob a AP. ...22 foi registada a constituição da A., com o capital social de € 5.000,00 e com os sócios AA, com uma quota de € 1.000,00 e EMP02..., UNIPESSOAL LIMITADA, com uma quota de € 4.000,00.
4- Sob o Dep. 256/2019-05-22 foi registada a transmissão de quota do sócio AA para a Sociedade EMP04... Lda..
5- Sob o Dep. 500/2020-07-17 foi registada a transmissão de quota, resultante da divisão da quota de € 4.000,00 da EMP02..., UNIPESSOAL LIMITADA, no valor de quota de € 1.500,00 a favor de EMP03..., UNIPESSOAL LDA.,
6. Sob o Dep. 501/2020-07-17 foi registada a transmissão de quota da sócia EMP04... Lda. para a sociedade EMP03..., UNIPESSOAL LDA., com o NIPC ...84, com sede na Rua ..., ... ..., representada pelo seu sócio-gerente BB.
7. No dia 29 de maio de 2023, pelas onze horas, teve lugar, na sede da R., uma assembleia geral extraordinária.
8. A assembleia nunca foi convocada nem foram dados a conhecer previamente os assuntos que seriam alvo de deliberação.
9. A única pessoa presente foi o Sr. AA, na qualidade de gerente da sociedade EMP01..., LDA e a título pessoal, em representação simultânea da A., da R. e da sua própria pessoa.
10. A referida assembleia do dia 29/05/2023 teve a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto um: Cessão de quotas;
Ponto dois: Alteração de sede social;
Ponto três: Deliberar sobre o aumento de capital social para 100.000,00€ (cem mil euros):
Ponto quatro: Alteração do pacto social quanto aos Artigos 1º e 3º.
11. Foi então redigida a “ACTA NÚMERO ...”, que posteriormente terá sido assinada exclusivamente pelo Sr. AA, com o seguinte teor:
[Imagem]
[Imagem]
              
12. Tal ata foi lavrada fora do livro de atas da R., cujo último documento que daí consta é a “Ata n.º ...1”, de folhas 18, encontrando-se a folha seguinte (fls. 19) em branco.
13. A aludida “ACTA NÚMERO ...” foi elaborada em folha não timbrada e sem numeração.
14. A A. nunca convocou ou realizou qualquer assembleia que tivesse como propósito submeter à apreciação dos seus sócios a cessão da quota que detinha na sociedade R..
15. A cessão de quotas celebrada pelo gerente da A. não foi precedida de deliberação realizada pelos sócios da A..
16. O contrato social da A. também não prevê que a alienação de participações que a sociedade detenha noutras sociedades possa ser deliberada pela gerência.
17. A R. e a sociedade EMP03..., sócia da A., trabalhavam em conjunto.
18. Enquanto a R. desempenhava um papel comercial, abordando e gerindo a lista de clientes, a EMP03... orçamentava e executava os trabalhos contratados.
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Em sede de factos não provados consignou: “Não resultaram provados quaisquer outros factos relevantes para a decisão”.
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Motivou/fundamentou o julgamento de facto assim realizado nos termos que se seguem:
“Convicção:
A convicção do Tribunal quanto à matéria dada como provada fundou-se na análise da prova documental junta aos autos”.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da nulidade do saneador-sentença por falta de fundamentação
A recorrente assaca ao saneador-sentença recorrido o vício da nulidade por falta de fundamentação decorrente de nele terem sido inobservados os comandos enunciados nos n.ºs 3 a 5 do art. 607º do CPC, na medida em que a Meritíssima Juiz a quo teria nele reproduzido a facticidade indiciariamente julgada provada e não provada com base em prova perfunctória, produzida no âmbito dos autos de providência cautelar de suspensão de deliberações sociais instaurados previamente à propositura da presente ação e que, na sequência da sua propositura foram a ela apensos, reproduzindo naquele saneador-sentença a fundamentação/motivação do julgamento da matéria de facto exarada naquela decisão cautelar e provisória, a qual não cumpre minimamente com o dever de fundamentação que impende sobre o juiz e sem que tivesse produzido a prova apresentada pelas partes na presente ação, nomeadamente, a testemunhal, apesar de existir matéria fáctica essencial que foi alegada pelas partes que permanece controvertida.
Que dizer?
Compulsado o saneador-sentença recorrido e analisada a facticidade que nele foi julgada provada e não provada (“indiciariamente provada”, conforme no mesmo expressamente se escreve) e a fundamentação do julgamento da matéria de facto que nele se exarou (em que a 1ª Instância se limitou a enunciar que: “A convicção do Tribunal quanto à matéria dada como provada fundou-se na análise da prova documental junta aos autos”) e, bem assim, a sentença proferida no âmbito dos autos de procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, instaurados pela Autora (recorrida) previamente à propositura da presente ação e que, na sequência dessa propositura foram a ela apensos (conforme é determinado pelo n.º 2, do art. 364º do CPC),  resta reconhecer assistir integral razão à recorrente.
Com efeito, no saneador-sentença recorrido o tribunal a quo, com exceção de alguns pontos do julgamento da matéria de facto julgada provada no âmbito dos autos de procedimento cautelar, limitou-se a reproduzir a facticidade aí julgada indiciariamente provada, com base em prova perfunctória, e a reproduzir basicamente a fundamentação/motivação desse julgamento que nela se encontra exarada, o que determina a nulidade daquele saneador-sentença com fundamento na violação de vários princípios estruturantes do processo civil, nomeadamente, por incumprimento do disposto nos arts.  364º, n.º 4 e 607º, n.ºs 3 a 5 do CPC, o que equivale a uma absoluta falta de fundamentação de facto e de direito (art. 615º, n.º 1, al. b) do mesmo Código, a que se referem todas as disposições a que se venha a fazer referência sem menção em contrário).
Concretizando…
Salvo os casos excecionalíssimos em que a lei substantiva (arts. 336º e 337º do CC) admite o recurso à legítima defesa e à ação direta para que o agredido acautele o direito que lhe assiste e que está a ser violado por terceiro(s), numa sociedade organizada e sujeita ao primado da lei, como é próprio de um sistema jurídico moderno, vigora o princípio geral da proibição da autodefesa.
A proibição da autodefesa constitui, portanto, uma das traves mestras fundamentais dos sistemas jurídicos modernos, princípio esse que constitui o primeiro comando do sistema processual civil nacional, cujo art. 1º estabelece que: “A ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei”, e que constitui a concretização do comando constitucional previsto no art. 202º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Do referido princípio basilar decorre, por um lado, que o Estado português  reservou para si o monopólio de, através dos tribunais, exercer a função jurisdicional, isto é, o poder de resolver os conflitos entre cidadãos e empresas, ou entre eles e o Estado quando este atue naquelas relações como qualquer particular, e de conceder as providências adequadas à reintegração do direito violado[2], e por outro, que impende sobre o Estado, através dos tribunais, o dever de dirimir esses conflitos[3].
Sucede que, nas sociedades liberais, submetidas ao primado da autonomia privada, de que a liberdade contratual é uma das suas manifestações (art. 405º do CC), em que aos sujeitos assiste o direito de disporem livremente dos seus direitos e legítimos interesses de natureza privada, como é o caso do ordenamento jurídico nacional, salvo as situações excecionais previstas na lei (em que a natureza dos direitos e interesses privados em jogo reclama que se sacrifique a autonomia privada), não é lícito ao Estado, através dos tribunais, intrometer-se por sua iniciativa nos conflitos de direitos ou de interesses de natureza privada sem que essa intromissão lhe seja pedida.
Neste sentido, preceitua o n.º 1, do art. 3º, que: “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedido por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”.
Consagra-se na norma acabada de referir dois princípios basilares e estruturantes do processo civil nacional: o princípio do dispositivo e o princípio do contraditório.
O princípio do dispositivo significa que cabe às partes disporem do processo e da relação jurídica material nele controvertida.
Do referido princípio decorre, entre outras consequências jurídicas, que o processo só se inicia sob o impulso da parte (autor, requerente ou exequente) e, por outro, que é ao autor que cabe no articulado inicial (petição ou requerimento inicial ou requerimento executivo) delinear em termos subjetivos (quanto às partes) e objetivos (quanto ao pedido e à causa de pedir) a relação jurídica material controvertida que pretende submeter à apreciação e à decisão do tribunal, delimitando o thema decidendum a que este vê a sua atividade instrutória e decisória delimitada, o qual apenas é completado pelas exceções e/ou pedido reconvencional que venham a ser deduzidas pelo réu na contestação, pelas exceções que o autor oponha ao pedido reconvencional na réplica, e pelas contra exceções que aquele oponha às exceções deduzidas pelo réu na contestação[4].
Por sua vez, o princípio do contraditório comporta duas dimensões, uma tradicional, que é a sua vertente negativa, de defesa, a que se reporta a parte final do n.º 1, do art. 3º, segundo a qual, repugnando ao nosso sistema processual civil nacional decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, salvo os desvios expressamente previstos na lei (como é o caso de alguns procedimentos cautelares, nomeadamente  a restituição da posse – art. 378º - e do arresto – art. 393º, n.º 1), não é consentido ao tribunal  dirimir o conflito de direitos ou de interesses explanado na ação sem que a parte contra quem esta foi proposta seja devidamente chamada (o que se processa através da citação – art. 219º, n.º 1), para que tome conhecimento que contra ela foi deduzida uma determinada pretensão (pedido), com determinados fundamentos fáctico-jurídicos (causa de pedir), a fim de, querendo, apresentar a sua defesa. A outra, que é a sua vertente positiva, de influência, associada à proibição da indefesa (art. 20º, n.º 2, da CRP) e, consequentemente, ao proibir a prolação de decisões-surpresa, consagrada no n.º 4, do art. 3º, reconhece às partes uma participação efetiva no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que, em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão a ser nele proferida. E, nessa medida,  ao proibir  ao julgador a possibilidade de proferir qualquer decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, ainda que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido às partes, especialmente àquela contra quem é dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[5].
Nessa conceção positiva de contraditoriedade o fundamento do princípio já não é a sua vertente tradicional de defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, mas sim a vertente de influência, no sentido positivo de reconhecimento do direito das partes de influírem ativa e decisivamente no desenvolvimento e no êxito do processo[6].  
Acontece que da circunstância do Estado reservar para si o monopólio da função jurisdicional e as consequências que daí decorrem acabadas de enunciar (princípios do dispositivo e do contraditório) decorre, por um lado, que aquele tem de conceder a quem pretenda ver reconhecidos ou defendidos os seus direitos e legítimos interesses os meios processuais adequados para esse fim e, por outro lado, que se impõe reconhecer  a esses sujeitos o chamado direito de ação,  ou seja, o direito de reclamarem em tribunal, pelos meios processualmente adequados, a providência judiciária reparadora dos direitos ou dos interesses legítimos que lhes assiste.
O direito de ação encontra-se expresso no n.º 2, do art 2º, onde se dispõe que: “A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-la reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação”.
Destarte, o direito de ação que o preceito reconhece a todos aqueles que vejam os seus direitos e legítimos interesses postergados/lesados ou em risco de serem lesados engloba o recurso a ações declarativas, ações executivas e providências cautelares.
  As ações declarativas têm como objetivo fundamental resolver em definitivo o conflito de direitos ou de interesses explanada na ação que contrapõe os litigantes, ou seja, a declaração pelo juiz da solução concreta que decorre do direito substantivo para a relação jurídica material controvertida explanada na ação, mediante a emanação de um dictat autoritário, vinculativo e definitivo quanto ao modo como esse conflito é resolvido.
Essa resolução é feita pelo juiz na sentença, sendo nela que o mesmo decide a controvérsia que contrapõe as partes espelhada na ação, julgando-a procedente e condenando o réu no pedido quando conclua que assiste razão ao autor, ou julgando-a improcedente, quando não se convença de que ao autor assiste razão, sentença essa que, uma vez transitada em julgado, opera caso julgado material, torna-se definitiva, inquestionável e vinculativa, impondo-se o nela decidido às partes, aos tribunais e, inclusivamente, dentro de determinados pressupostos aos terceiros.
 A ação declarativa esgota-se com a prolação da sentença, a qual, em caso de condenação do réu, uma vez transitada em julgado, terá de cumprir com o nela decidido. Todavia, daí não decorre que aquele o venha a fazer voluntariamente[7].
Por isso é que, no caso do decidido em sentença condenatória transitada em julgado venha a ser incumprido, ou independentemente dela, no caso de um determinado direito de crédito já se encontrar acertado em documento para-judicial ou extrajudicial, a quem a lei reconhece virtualidade suficiente para que se presuma a sua existência (isto é, para servir de título executivo), assiste ao respetivo credor o direito a recorrer à ação executiva.
As ações executivas são os meios processuais que a lei adjetiva coloca ao dispor do credor, no caso de inadimplência do devedor, para obter dele (diretamente ou através de terceiro) a satisfação coerciva do direito de crédito (pagamento de quantia pecuniária, entrega de coisa determinada ou prestação de determinado facto, positivo ou negativo) que lhe foi reconhecido na sentença judicial transitada em julgado ou já acertado naqueles outros títulos executivos extrajudiciais.
O exercício do direito de ação, na sua vertente executiva, pressupõe, portanto, sempre a apresentação de título executivo, documento cuja natureza judicial, para-judicial ou extrajudicial transporta uma forte, ainda que variável, presunção da existência e da titularidade do direito de crédito. Para a instauração da ação executiva não basta, assim, a invocação pelo exequente de um direito de crédito sobre o executado, mas é necessário que esse direito já se encontre reconhecido numa sentença judicial transitada em julgado ou em documento para-judicial ou extrajudicial, a quem a lei atribua a natureza de título executivo, sendo através deste pelo qual se determina o fim e os limites da ação executiva (arts. 10º, n.º s 4 a 6 e 703º). 
Todavia, o direito de ação que assiste a quem se encontra numa situação de perigo iminente de ver os seus direitos ou legítimos interesses violados/lesados ou que já os vejam lesados não ficaria cabalmente assegurado caso o ordenamento jurídico não colocasse ao dispor daqueles procedimentos cautelares.
As providências cautelares têm por finalidade prevenir a violação grave ou dificilmente reparável de direitos, acautelar ou antecipar os efeitos das decisões judiciais ou evitar os prejuízos que podem advir da demora na decisão principal.
Com efeito, reconhecendo que o caminho para a obtenção de uma decisão judicial definitiva é, por via de regra, longo, sinuoso e moroso e que, por isso, entre o momento da propositura da ação e o trânsito em julgado da sentença que ponha termo definitivo ao litígio entre os nela litigantes decorre, por norma, uma considerável dilação temporal, em que a lesão grave do direito que se pretende evitar com a propositura da ação se acaba por concretizar, ou em que a lesão do direito a que se pretende pôr cobro com a propositura daquela ação continuará a verificar-se e até se poderá intensificar até ao trânsito da decisão final nela a proferir, tornando-se a lesão do direito definitiva ou de difícil reparação, o legislador colocou ao dispor dos interessados as providências cautelares.
As providências cautelares são medidas de natureza sumária e urgente que visam antecipar ou garantir o efeito útil do reconhecimento de um direito ou, como se diz no art. 2º, n.º 2, “acautelar o efeito útil da ação”, “neutralizando os prejuízos que possam advir para o interessado na tutela do seu direito em consequência da demora normal e inevitável do processo, isto é, da passagem irreversível do tempo”[8].
As providências cautelares podem ser conservatórias ou antecipatórias, conforme decorre do n.º 1, do art. 362º.
São conservatórias as que se destinam a prevenir “a ocorrência ou a continuação de produção de danos graves e irreparáveis ou de difícil reparação no direito do seu titular, acautelando o efeito útil do reconhecimento definitivo desse mesmo direito. Com efeito, estas providências têm como objetivo conservar, manter ou preservar a situação existente, assegurando ao requerente a manutenção da titularidade de um direito ou de gozo de um bem, que está ameaçado de perder. O mesmo é dizer que as providências cautelares conservatórias destinam-se a garantir a situação de facto e de direito existente numa fase inicial do processo judicial (seja antes ou na pendência da ação judicial) se mantenha inalterada até que o processo chegue ao seu termo, assegurando-se, dessa forma, a efetividade e a executoriedade da decisão judicial”. É o caso das providências cautelares especificadas de suspensão de deliberações sociais, de arresto, de embargo de obra nova e de arrolamento[9].
E são antecipatórias as providências que, face à situação de urgência que lhes está associada, antecipam os efeitos jurídicos que se pretendem almejar com a propositura da ação principal. Os procedimentos cautelares antecipatórios “têm, assim, como finalidade principal prevenir a ocorrência de um dano que poderia advir para o requerente da demora na satisfação da pretensão até que seja decretada a sentença definitiva. Nessa exata medida, estas providências cautelares encontram-se associadas às situações de “pericolo de tardivitá”, já que visam impedir, mediante a antecipação da satisfação da pretensão do requerente, o prejuízo que o prolongamento de uma situação antijurídica provoca ao titular do direito”. Têm natureza antecipatória a restituição da posse, os  alimentos provisórios e o arbitramento de reparação provisória[10].
Dadas as finalidades prosseguidas pelas providências cautelares e o regime processual que lhes é aplicável as sentenças nelas proferidas caraterizam-se por um julgamento de facto assente numa análise sumária da prova produzida (summaria cognitio), que permita concluir pela provável existência do direito invocado pelo requerente sobre o requerido (fumus boni juris) e pelo fundado receio daquele de que esse direito será seriamente afetado ou inutilizado se não for decretada uma medida cautelar (periculum in mora).
Trata-se de decisões urgentes, provisórias e instrumentais.
Com efeito, dadas as finalidades que prosseguem e a sua natureza urgente, nos termos do art. 365º, n.º 3 é-lhes aplicável subsidiariamente o disposto nos arts. 293º a 295º, ou seja, o regime geral dos incidentes da instância, de acordo com o qual apenas são admitidos dois articulados: a petição inicial e a oposição (esta última a ser apresentada após o decretamento do procedimento cautelar nos casos em que a providência seja decretada sem a prévia observância do contraditório – arts. 366º, n.º 7 e 372º); as partes têm de oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova com esses articulados (art. 293º, n.º 1e 365º); as testemunhas encontram-se limitadas ao número de cinco por cada parte (art. 294º, n.º 1) e a oposição tem de ser apresentada pelo requerido no prazo de dez dias (art. 293º, n.º 1).
Por conseguinte, os procedimentos cautelares obedecem a um processamento simplificado que não confere às partes as mesmas garantias que lhes são concedidas no âmbito de uma ação declarativa.
Acresce que, para atingir a finalidade de evitar o risco de lesão grave ou de continuação de lesão grave ou até de inutilização do direito do requerente da providência, a decisão a proferir no âmbito destas tem de ser concedida com celeridade.
Por isso, os procedimentos cautelares revestem sempre caráter urgente, precedendo os respetivos atos qualquer outro serviço judicial não urgente (art. 363º, n.º 1), e implicam necessariamente uma apreciação sumária da prova neles a produzir, que torne provável ou verosímil a situação de facto e de direito nelas alegada[11].
Daí que, salvo os casos em que seja decretada a inversão do contencioso (arts. 369º e 376º, n.º 4, em que o requerente da providência cautelar, no caso desta ser decretada, fica dispensado do ónus de instaurar a ação principal), as decisões proferidas no âmbito das providências cautelares têm natureza provisória e instrumental, na medida em que apenas fornecem uma composição provisória da situação jurídica, interina e provisória, destinada a vigorar até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida na ação principal (já instaurada ou a instaurar), de que são dependentes, onde o litígio que contrapõe os litigantes será em definitivo decidido, com a concessão àqueles de todas as garantias de defesa que são próprias de uma ação declarativa.
Ou seja, a decisão proferida no âmbito da providência cautelar constitui apenas uma composição provisória, assente na prova sumária da situação de facto alegada pelo requerente e na provável existência do direito a que aquele se arroga titular, que visa esconjurar o perigo de lesão grave ou dificilmente reparável  do direito do requerente ou a sua  inutilização, devido à natural demora da ação principal, de que a providência cautelar é dependente, demora essa que faz gerar o justo e fundado receio de que, caso a medida cautelar não seja adotada, o direito em causa venha a ser seriamente afetado ou inutilizado até ao trânsito em julgado daquela decisão a proferir no âmbito da ação principal.
Trata-se, portanto, de uma decisão cautelar e provisória, que se destina a vigorar até ao trânsito em julgado da decisão que vai ser proferida na ação principal, de que o procedimento cautelar é dependente, ação principal essa em que o conflito de direitos ou de interesses que contrapõe os litigantes irá ser composto em definitivo, com a salvaguarda de todos os meios processuais e garantias de defesa, nomeadamente, em termos de prova, que são conferidos pela lei adjetiva aos litigantes no âmbito das ações declarativas (arts. 364ºe 373º)[12].
Com interesse, ensina Teixeira de Sousa que: “As providências cautelares fornecem uma composição provisória. A provisoriedade destas providências resulta quer da circunstância de elas corresponderem a uma tutela que é qualitativamente distinta daquela que é obtida na ação principal de que são dependentes, quer da sua necessária substituição pela tutela que vier a ser definida nessa ação. A diferença qualitativa entre a composição provisória e a tutela atribuída pela ação principal decorre dos seus pressupostos específicos e, nomeadamente, da suficiência da probabilidade da existência do direito acautelado ou tutelado para o decretamento da providência. A suficiência da mera justificação como grau de prova exigido para aquele decretamento constitui indício seguro de uma tutela que é qualitativamente distinta daquela que exige uma prova stricto sensu dos factos relevantes. (…) a composição resultante do decretamento de uma providência (…) é provisória atendendo que ela se destina a ser substituída por aquela que vier a resultar da ação principal da qual depende. Esta ação nem sequer possui o mesmo objeto do procedimento cautelar, pelo que, diferentemente do que se passa no recurso, ela não visa confirmar ou revogar a providência cautelar decretada. Por exemplo: se o autor de uma ação de reivindicação requerer a restituição provisória da posse, o objeto do procedimento cautelar é a verificação dos pressupostos desta providência e o objeto daquela ação é o direito de propriedade sobre a coisa e o dever de a restituir. Mesmo quando na ação principal se reconhece o direito acautelado ou tutelado através da providência, esta, em regra, não subsiste e é substituída pela tutela definitiva atribuída nessa ação”[13].
Por isso é que, atenta a enunciada diferença qualitativa entre a decisão proferida no âmbito de uma providência cautelar e aquela que terá de ser prolatada na ação principal de que aquela é dependente, se compreenda o comando do n.º 4 do art. 364º, nos termos do qual: “Nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da ação principal”.
Ora, no caso dos autos, ao reproduzir, em sede de julgamento da matéria de facto que realizou no saneador-sentença recorrido o julgamento da matéria de facto realizado no âmbito dos autos de providência cautelar de suspensão de deliberações sociais (onde inclusivamente escreve: “Resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:), a 1ª Instância não teve manifestamente em consideração a norma do n.º 4 do art. 364º, que é determinada pela sobredita diferença qualitativa que intercede entre a decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar e a que tem de proferir na presente ação declarativa.
Como acima se deixou sobejamente enunciado, a decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar, como o nome indica, é uma decisão cautelar, urgente, provisória, com natureza instrumental em relação à presente ação declarativa, que teve por objetivo afastar o periculum in mora de lesão dos direitos da ali requerente (aqui Autora e recorrida) decorrente das deliberações aprovadas na assembleia geral extraordinária da ali requerida (aqui Ré e recorrente), de 29 de maio de 2023, se manterem em vigor na ordem jurídica em que, mediante a suspensão dessas deliberações se garantiu que a situação de facto e direito existente antes daquelas deliberações se mantivesse inalterada até ao trânsito em julgada da decisão final a proferir no âmbito da presente ação declarativa (ação principal, de que, na ausência de decisão proferida no âmbito daquele procedimento cautelar, determinando a inversão do contencioso, essa providência cautelar é dependente), acautelando-se, assim, os direitos de que a ali requerente se arroga titular para o  caso da presente ação principal vir a proceder, assegurando-se dessa forma a sua efetividade e executoriedade.
Tratou-se de uma decisão que, tendo sido proferida no âmbito de um procedimento cautelar, não garantiu todos os direitos de defesa às nele partes, que lhes são conferidos no âmbito da presente ação declarativa.
O julgamento da matéria de facto realizado no âmbito daquela providência cautelar baseou-se numa análise sumária e perfunctória da prova (processualmente limitada) que nela foi produzida, em que bastou ao julgador que em face dessa prova pudesse emitir um juízo de probabilidade séria, de mera aparência ou de mera justificação quanto aos factos alegados na petição inicial pela requerida como sendo constitutivos do direito a que aí se arrogou titular sobre a requerida e que pretendia ver acautelado com o decretamento da providência que requereu, para que este tivesse de julgar indiciariamente provados esses factos.
Em sede de julgamento de direito, bastou ao julgador, assim, emitir um juízo de mera probabilidade séria, de mera aparência ou de mera justificação quanto à provável existência do direito invocado pela requerente sobre a requerida para que tivesse concluído pela “provável existência” do mesmo.
E também lhe bastou emitir um juízo (agora) de certeza – valorado em função das particularidade de cada caso concreto –, que se revelasse suficientemente forte para o convencer da existência de perigo de grave e irreparável lesão ou de difícil reparação daquele direito, para concluir pela verificação do pressuposto do “periculum in mora”[14], pressuposto este que, contudo, não integra a causa de pedir da presente ação declarativa, cujo objeto não coincide, por isso, com o objeto do procedimento cautelar.
Ao dar por reproduzidos no saneador-sentença recorrido os factos julgados indiciariamente no âmbito daquele procedimento cautelar, a 1ª Instância desconsiderou os aspetos que se acabam de referir, mas também que a decisão de facto e de direito proferida no âmbito daquele procedimento cautelar tinha natureza provisória e instrumental, não constituindo um fim em si mesmo, mas antes um meio para se acautelar um determinado efeito jurídico, qual fosse a decisão que viesse a ser proferida no âmbito da presente ação declarativa, estando, por isso, dependente do julgamento da matéria de facto e do julgamento da matéria de direito que nela viesse a ser realizado, com observâncias de todas as garantias processuais, incluindo, em sede de prova, em que o julgamento da matéria de facto e de direito realizado no procedimento cautelar não tem (nem pode ter, por via do já antedito), qualquer influência no julgamento a realizar no âmbito da presente ação principal, conforme comando expresso no n.º 4 do art. 364º.
Desconsiderou que o decidido em sede de providência cautelar apenas se destinava a vigorar até ao trânsito em julgado da decisão que viesse a ser proferida no âmbito da presente ação, onde se impõe julgar o litígio em definitivo.
Ao assim ter procedido, a 1ª Instância violou os comandos enunciados nos arts. 364º, n.º 4 (“Nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da ação principal”) e 607º, n.ºs 3 (na sentença, após ter identificados as partes, o objeto do litígio e as questões que ao tribunal cumpre solucionar, “Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”), 4 (“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”) e 5 (“O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação da prova não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes), na medida em que decidiu o litígio com base nos factos indiciariamente provados no âmbito dos autos de procedimento cautelar, com base na prova sumária neles produzida, em total desconsideração do n.º 4 daquele art. 364º, e, em consequência, ao incumprir aqueles comandos legais, o que equivale a uma total falta de fundamentação de facto e de direito, incorreu no vício da nulidade da al. b), do n.º 1, do art. 615º, que afeta o saneador-sentença recorrido.
Frise-se que a Senhora julgadora a quo apenas poderá conhecer de mérito em sede de saneador-sentença caso todos os factos essenciais constitutivos da causa de pedir que foram alegados pela recorrida na petição inicial, e todos os factos essenciais alegados pela recorrente na contestação em que fundamentou a exceção que aí suscitou, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, já se encontrem assentes, por se tratar de facticidade para cuja prova a lei exija prova documental e essa prova já se encontre junta aos autos (de contrário, deverá convidar a parte a juntar a prova documental em falta, em prazo a ser-lhe fixado, conforme é determinado na al. c), do n.º 2 do art. 590º), ou se essa facticidade já se encontrar admitida por acordo, nos termos do n.º 2, do art. 574º, questão essa  (saber se todos os factos essenciais alegados pelas partes já estão - ou não – assentes, de modo a permitir conhecer de mérito em sede de saneador-sentença) de que não cabe a esta Relação pronunciar-se no âmbito do presente recurso, onde o seu campo de cognição se encontra limitado à questão da nulidade do saneador-sentença recorrido por falta de fundamentação.
De contrário, terá a Senhora juiz a quo de elaborar saneador (em que terá de conhecer da exceção dilatória de ilegitimidade ativa suscitada pela Ré na contestação – em relação à qual omitiu pronúncia), fixando o objeto do litígio e os temas da prova, prosseguindo os autos os seus termos para audiência final.
Acresce precisar que o dever de fundamentação/motivação do julgamento da matéria de facto que impende sobre o julgador não se compadece com a singela indicação de que: “A convicção do Tribunal quanto à matéria dada como provada fundou-se na análise da prova documental junta aos autos”, o que, salvo melhor opinião, se reconduz a uma situação de total e absoluta falta de motivação do julgamento da matéria de facto, geradora do vício de nulidade (ou, melhor dizendo, de anulabilidade, atento o disposto no art. 615º, n.º 4[15]).
Na verdade, tratando-se de factos julgados provados com base em prova tarifada, incumbe ao julgador identificar essa prova em sede de motivação/fundamentação (documento, acordo, confissão reduzida a escrito). E tratando-se de facticidade submetida ao princípio geral da livre apreciação da prova incumbe-lhe na motivação/fundamentação do julgamento da matéria de facto que realizou fazer uma análise crítica da prova produzida, conforme lhe é imposto pelo n.º 4, do art. 607º, explicitando as razões pelas quais decidiu assim e não de outro modo. Ou seja, cumpre ao juiz explicar “por que deu prevalência a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu com provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim que, por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, as hesitações que não teve (ou teve), a naturalidade e a tranquilidade que teve (ou não)”[16].
Decorre do exposto, impor-se julgar o presente recurso procedente e, em consequência, anular o saneador-sentença recorrido.
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Das custas do recurso
Nos termos do art. 527º, n.ºs 1 e 2, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito, considerando-se que deu causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No âmbito do presente recurso a recorrente obteve integral vencimento de causa, pelo que nele não é “vencida, mas sim “vencedora”.
Todavia, o saneador-sentença recorrido que se acaba de anular foi proferido pela 1ª Instância sem que a recorrida tivesse pugnado no sentido de que os autos já continham todos os elementos de facto que permitissem proferir decisão de mérito em sede de saneador-sentença e, no âmbito do presente recurso, aquela não contra-alegou, pugnando pela sua improcedência, pelo que nele também não ficou “vencida”.
Deste modo, não existindo parte vencida no âmbito do presente recurso, as custas devem ficar a cargo da recorrente, atento o critério do proveito, uma vez que foi ela quem retirou beneficio da sua procedência, ao ver anulado o saneador-sentença recorrido, em que se julgou a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, anularam-se as deliberações tomadas na assembleia geral daquela de 29 de maio de 2023, quanto aos pontos um, dois, três e quatro da ordem de trabalho (art. 527º, n.º 1, parte final).
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar o presente recurso procedente e, em consequência, anulam o saneador-sentença por total e absoluta falta de fundamentação.
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Custas do recurso pela recorrente (art. 527º, n.º 1, parte final, do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 20 de fevereiro de 2025

José Alberto Moreira Dias – Relator
Maria Gorete Morais – 1ª Adjunta
Rosália Cunha – 2ª Adjunta 
   


[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Paulo Pimenta, 2014, Almedina, pág. 8.
[3] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 15.
[4] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e 374; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., págs. 18 a 21. 
[5] Ac. RC. de 20/09/2016, Proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venham a identificar, sem menção em contrário.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa 1997, págs. 46 a 48. 
[7] Paulo Pimenta, ob. cit., pág. 32.
[8] Marco Carvalho Gonçalves, “Providências Cautelares”, 2016, 2ª ed., Almedina, págs. 85 a 86.
[9] Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., págs. 93 a 95.
[10] Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., págs. 95 a 97.
[11] Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 233, em que expende: “Uma das consequências da summaria cognitio é o grau de prova que é suficiente para a demonstração da situação jurídica que se pretende acautelar ou tutelar provisoriamente. Uma prova strictu sensu (ou seja, a convicção do tribunal sobre a realidade dessa situação) não seria compatível com a celeridade própria das providências cautelares e, além disso, repetiria a atividade e a apreciação que, por melhor se coadunarem com a composição definitiva da ação principal, devem ser reservada para esta última. É por isso que as providências cautelares exigem apenas a prova sumária do direito ameaçado, ou seja, a demonstração da probabilidade séria da existência do direito alegado, bem como do receio de lesão. As providências só requerem, quanto ao grau de prova, uma mera justificação” (destacado nosso).
[12] Marco Carvalho Costa, ob. cit. pág. 99.
[13] Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 228.
[14] Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., págs. 210 a 215.
[15] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, pág. 735: “Os casos das alíneas b) e d) do n.º 1 (do art. 615º do CPC) (excetuada a ininteligibilidade a parte decisória da sentença constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não verdadeira nulidade”.
No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 763, notas 8 e 9, ao escreverem que: “No concerne à arguição das nulidades da sentença, importa distinguir os casos em que a mesma admite ou não recurso. Naquela primeira situação, as nulidades apenas podem ser suscitadas em sede do recurso de apelação (ou, depois, em sede de recurso de revista), como fundamentos autónomos da sua impugnação. Nos casos em que a sentença não admita recurso ordinário, as nulidades devem ser arguidas incidentalmente, sendo apreciados pelo juiz, depois de cumprido o contraditório”.
Ainda Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, pá. 369: “As causas de nulidade (mais correto seria dizer-se de anulabilidade de sentença são os vícios (taxativamente) enumerados noas als. a) a e) do n.º 1 do art. 615º”.
[16] Paulo Pimenta, ob. cit., pág. 325.