Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2733/21.9T8GMR-I.G1
Relator: PEDRO MAURÍCIO
Descritores: INSOLVÊNCIA
MODALIDADE DE VENDA
PODERES DO ADMINISTRADOR
CREDOR COM GARANTIA REAL
OBRIGAÇÕES DO ADMINISTRADOR
PROPOSTA DE AQUISIÇÃO DO BEM PELO CREDOR EM “TEMPO ÚTIL”
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O administrador da insolvência goza de competência funcional autónoma para promover a liquidação do activo, dispondo dos amplos poderes para determinar quais são as diligências mais adequadas e convenientes com vista à venda dos bens e à cobrança dos créditos do insolvente, ainda que sujeito aos deveres estatutários e funcionais com que deve desempenhar tal função.
II - Embora o administrador da insolvência disponha de total liberdade para determinar a modalidade da venda e o valor base do bem a vender, no caso da venda de bens onerados com garantia real no âmbito do processo de insolvência, no nº2 do art. 164º do C.I.R.E., o legislador impôs-lhe o cumprimento de certas obrigações: sobre o administrador da insolvência impende o ónus de ouvir (sempre) o credor com garantia real sobre a modalidade da venda e o ónus de informá-lo (sempre) do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
III - O normativo contido no nº2 do referido art. 164º visa conferir ao credor com garantia real o poder de influenciar a venda dos bens que garantem o seu crédito e, dessa forma, obter a melhor satisfação do seu direito. Para o efeito, no nº3 do aludido art. 164º, o legislador concedeu-lhe a faculdade legal de adquirir, para si ou por terceiro, o bem onerado com garantia real.
IV - A expressão normativa «em tempo útil» constante do nº3 do art. 164º deve ser interpretada no sentido de que a proposta da aquisição (do credor com garantia real, por si ou por terceiro) pode ser apresentada até ao momento em que o administrador da insolvência comunica a sua aceitação («dá o seu acordo») da proposta de compra apresentada no âmbito de uma das modalidades da venda: até este momento, ainda se mostra oportuno, apropriado e pertinente o exercício de faculdade em causa (ou seja, a defesa da melhor forma de satisfação do seu crédito), sendo que é a aceitação da proposta de compra que conclui («fecha») a venda e, por isso, impede definitivamente o exercício de tal faculdade.
V - Visando proteger o crédito de que é titular o credor com garantia real, a norma do nº2 do art. 164º impõe ao Administrador da Insolvência a obrigação de o informar da venda (e do valor base fixado) e do preço da alienação projectada a certa entidade, o que tem a finalidade específica de lhe permitir o exercício da faculdade prevista no nº3 do mesmo preceito, isto é, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao valor base fixado ou ao preço da alienação projectada; mas, em simultâneo, exige-se que o credor com garantia real formule uma proposta por preço superior num reduzido espaço temporal, numa semana ou até ao momento anterior ao da concretização da venda ou ao da assunção do compromisso firme de venda pelo administrador da insolvência («em tempo útil»).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães[1]

1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada

Nos autos principais, por sentença proferida na data de 16/03/2022, foi declarada a insolvência da Herança Jacente de AA (com o nif ...79, falecida em ../../2015).   
No apenso relativo à apreensão de bens (apenso B), na data de 11/04/2022, a Administradora de Insolvência apresentou o «Auto de Arrolamento e Apreensão de Bens», do qual consta, para além do mais, que «Aos cinco de Abril de 2022 (…) procedi à apreensão do seguinte bem imóvel: Verba nº1 Fração autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação tipo ..., correspondente ao ... andar recuado, com um terraço a sul com 100m2, um garagem e  uma arrecadação na cave identificadas pela letra ..., sita na Rua ..., ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...96 da freguesia ... (...) e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...04 da freguesia ..., ... e ...».
No apenso relativo à reclamação de créditos (apenso C), na data de 07/10/2022, a Administradora de Insolvência apresentou a «lista definitiva de créditos reconhecidos», na qual está consignado (na parte que aqui releva):
 “(…) São, então, detentores de créditos reconhecidos: (…)
º EMP01..., SARL (…) veio reclamar um crédito no montante de 317.071,05 (…) adquirido por contrato de cessão à Hipoteca EMP02..., SA, que os havia adquirido por Contrato de Cessão de Créditos ao Banco 1..., SA (…).
Para garantia do capital mutuado, juros e despesas, foi constituída hipoteca sobre o prédio descrito na CRP ... sob o n.º ...96, fração ..., da freguesia ... (...) e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...04 da freguesia ..., ... e ..., registadas pelas APs ...6 e ...0 de 2011/10/29 (…)
O crédito apresentado foi reclamado com a natureza de crédito garantido, acrescido do privilégio previsto no art.º 98º do CIRE, e está reconhecido (…)”.
No presente apenso relativo à liquidação (apenso F), na data de 10/11/2022, a Administradora de Insolvência apresentou a «Planificação da Liquidação».
A Administradora de Insolvência determinou que a venda do bem imóvel correspondente à Verba nº1 do «Auto de Arrolamento e Apreensão de Bens» fosse realizada através de leilão electrónico a realizar pela EMP03..., pelo valor base de € 282.690,00 e ocorrendo o fim do leilão na data de 11/01/2023.
Na data de 15/11/2023, através de correio electrónico dirigido à sua mandatária, a Administradora de Insolvência notificou a Credora Hipotecária, EMP01..., SARL, para se “pronunciar, querendo, nos termos do disposto no artigo 164.º do CIRE, sobre a modalidade da venda e valor base da liquidação do imóvel (…). Caso nada nos seja referido em contrário em 5 dias (…) prosseguimos para liquidação do ativo, tal como planificado no Relatório: Leilão eletrónico, com intervenção da Leiloeira EMP03... –Agência de Leilões, pelo valor base constante do Relatório de avaliação elaborado pelo Engenheiro Avaliador [282.690.00€]”.
Na data de 25/11/2022, a Administradora da Insolvência notificou todos os Credores e a Insolvente do início das diligências de venda.

Nos autos principais, na data de 14/01/2023, a Administradora da Insolvência apresentou requerimento (com a ref. citius «14011649») com o seguinte teor (na parte que aqui releva):
“1 – O leilão Electrónico conclui-se, tendo sido obtida uma proposta ano valor de 248.000,00, correspondente sensivelmente ao valor mínimo de venda [cfr. Doc N.º 1];
2 – Ora, nos presentes Autos existem, reconhecidos, um Credor Hipotecário que cedeu o seu credito a BB, o qual, entretanto, celebrou contrato de cessão do crédito com CC e a DD, habilitações essas que estão a decorrer nos presentes Autos com vista ao reconhecimento do seu crédito e respectiva garantias, conforme documentação que foi enviada à ora Administradora de Insolvência, e que se anexa como Doc. N.º ...;
3 – Pese embora tais Apensos/Petições se encontrem a ser elaborados e instruídas com vista à respetiva decisão judicial de reconhecimento da respetiva habilitação, parece à ora Administradora nada poder opor-se a receber a posição dos sucessivos habilitados– e que é unanime – no sentido de não aceitar aquela proposta e antes aceitar a proposta, de valor superior, do Credor Hipotecário, cumprindo-se as condições de venda e demais legislação, mormente, a caução de 10% do valor da proposta que apresentam no valor de 248.500,00€, relegando-se a escritura publica para momento posterior ao trânsito da Sentença Judicial que virá a ser proferida quer nos Apensos de Habilitação quer nos Apensos de Reclamação de Créditos, pondo-se assim termo à Liquidação e terminando-se o Processo com a Prestação final de Contas e Rateio (…)”.

Nos autos principais, EMP04..., Lda., apresentou requerimento em 18/01/2023 (ref. citius «14032001»), expondo e requerendo o seguinte:
“1. A Requerente tomou conhecimento do leilão eletrónico promovido pela “EMP03...” no âmbito dos presentes autos.
2. O objeto do aludido leilão foi a fração ... correspondente a um apartamento do tipo ..., ... andar recuado, com garagem, arrecadação e terraço com 100m2, sita na Rua ..., ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...96, freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...04 da freguesia ..., ... e ....
3. O valor base anunciado fixou-se nos €282.690,00 (duzentos e oitenta e dois mil, seiscentos e noventa euros).
4. E o termo do leilão no dia ../../2023 às 17:00h.
5. Tudo conforme melhor resulta do anúncio do referido leilão que se junta sob documento n.º ....
6. No âmbito deste leilão, a Requerente apresentou uma proposta no valor de €248.000,00 (duzentos e quarenta e oito mil euros) tendo a mesma ficado registada.
7. No dia ../../2023, pelas 17:04h, quatro minutos depois da hora anunciada para o encerramento do dito leilão, a Requerente recebeu uma comunicação eletrónica dando-lhe nota que a sua proposta tinha sido a vencedora – cfr. documento n.º ....
8. Porém, no dia ../../2023, às 10:21h a Requerente recebeu novo email da Leiloeira, assinado por “EE”, remetido de ..........@..... com o seguinte teor que se transcreve:
“Exmos. Senhores, Vimos pelo presente, e por instruções da Sra. Administradora de Insolvência, Dra. FF, informar V. Exas. que a proposta efetuada para o imóvel, apresentada na diligência de Leilão Eletrónico, no passado dia 11 de Janeiro de 2023, no âmbito da insolvência em epígrafe, não foi aceite, tendo sido adjudicado ao Credor Hipotecário. Sem outro assunto de momento, subscrevemo-nos com os melhores cumprimentos. Atenciosamente EE”
9. Ao que a Requerente retorquiu, também por email enviado no mesmo dia às 11:46h, questionando o seguinte:
“Bom dia, Agradeço me informe com base em que direito foi adjudicado o imóvel ao credor hipotecário uma vez que o prédio foi licitado por valor acima de 85% do valor base. Cpts GG EMP04..., Lda”
10. Em resposta igualmente por email, ainda no mesmo dia ../../2023, às 14:18h, a Leiloeira informa o seguinte:
“Exmos. Senhores, Em resposta ao email infra, e por indicações e instruções da Sra. Administradora
de Insolvência, Dra. FF, vimos por este meio informar que o credor hipotecário não aceitou a proposta naquele valor, tendo o novo credor hipotecário requerido a adjudicação, por valor superior, na sequência de nova habilitação do crédito hipotecário aos filhos da DE CUJUS. Sem outro assunto de momento, subscrevemo-nos com os melhores cumprimentos. Atenciosamente
EE”
11. Tudo conforme melhor resulta da troca de emails aqui transcrita que se junta sob documento n.º .... Ora,
12. Salvo o devido respeito e melhor opinião, não compete ao credor hipotecário aceitar ou deixar de aceitar o resultado do leilão.
13. E é verdade que a lei lhe confere a possibilidade de adquirir, por si ou terceiro, o bem objeto da venda, mas esse direito não pode ser exercido a todo o tempo.
14. O credor hipotecário, querendo exercer tal direito, está obrigado a respeitar o plasmado no artigo 164º, n.º 2 e 3 do CIRE.
15. De acordo com estes normativos legais, o credor hipotecário é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, sendo informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada – cfr. artigo 164º, n.º 2 do CIRE.
16. E a partir deste momento, o credor hipotecário tem o prazo de uma semana ou, posteriormente, mas em tempo útil, para propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou preço base fixado para a modalidade escolhida – cfr. artigo 164º, n.º 3 do CIRE.
17. Ou seja, o credor hipotecário pode, depois de ouvido quanto à modalidade da venda e preço base, no prazo de uma semana ou, decorrida esta semana mas em tempo útil, antes do leilão ter o seu início entenda-se, comunicar se pretende exercer o direito previsto no n.º 3, do artigo 164º do CIRE.
18. Pelo que, a decisão do credor hipotecário requerer a adjudicação depois de findo o leilão é extemporânea.
19. Logo, a decisão da Sra. Administradora de Insolvência em adjudicar o bem ao credor hipotecário é ilegal por contrária à lei e como tal ferida de nulidade, o que desde já se invoca para os devidos efeitos legais.
20. Não há na lei previsão para a adjudicação nos moldes comunicados ao aqui Requerente.
21. Se o credor hipotecário quisesse adquirir a fração em apreço de duas uma, exercia o direito plasmado já citado n.º 3 do art.º 164º do CIRE ou, não o fazendo, tinha que concorrer no leilão com os demais interessados, licitando.
22. Não o tendo feito ou não tendo a sua proposta sido a vencedora não pode, findo o leilão, vir requerer a adjudicação nos termos em que o terá feito, nem tão pouco é legalmente admissível que a Sra. Administradora de Insolvência decida como decidiu, pela adjudicação.
Termos em que, requer a V.Exa. se digne declarar nula a adjudicação feita pela Sra. Administradora de Insolvência da fração melhor descrita no artigo 2º deste requerimento ao credor hipotecário, reconhecendo-se a aqui Requerente como a legitima adquirente da aludida fração atenta a proposta vencedora apresentada no leilão”.
Nos autos principais, BB apresentou requerimento em 20/01/2023 (ref. citius «14043958») e, alegando exercer “o contraditório no que se refere à pretensão da EMP04..., Lda.”, veio dizer o seguinte:
“Foi certa e correcta a adjudicação pela A.I. ao credor hipotecário, até porque, ao contrário do referido, a proposta apresentada pela referida EMP05... foi inferior ao valor base de venda.
Assim, deve ser indeferido o requerido, mantendo-se a adjudicação já efectuada”
Nos autos principais, EMP01... SARL apresentou requerimento em 26/01/2023 (ref. citius «14072194»), nos seguintes termos:
“Como se constata não houve adjudicação pela AI à dita EMP04..., nem sequer esta depositou o preço, ou houve transmissão de propriedade.
De referir, ainda, e mais importante, que o credor hipotecário ofereceu valor superior ao que foi licitado pela EMP04..., pelo que, e como é evidente, terá de ser indeferido o requerido por aquela, mantendo-se a adjudicação ao credor hipotecário”.
Nos autos principais, na data de 26/01/2023, a Administradora da Insolvência apresentou requerimento (com a ref. citius «14072196») com o seguinte teor (na parte que aqui releva):
“(…) 3 – Relativamente aos requerimentos com as referências ...01 e ...50, importa referir o seguinte:
a) Pese embora a troca de documentos entre os requerimentos do proponente e participante no Leilão eletrónico, EMP04..., importa ainda anexar outros, a saber: documento oficial N.º 1, em anexo, o qual, reportando-se ao leilão, confirma que EMP04... foi o vencedor do REGISTO DE OFERTA, isto é: foi o que deu a proposta mais alta, a qual, POR SER SUPERIOR AO VALOR MINIMO E INFERIOR AO VALOR BASE, teve de ser submetida à apreciação do Credor Hipotecário;
b) Com efeito, se o proponente tivesse apresentado uma proposta de valor inferior ao valor mínimo, a proposta nem ia ser submetida ao Credor Hipotecário [licitação condicional, nos termos do disposto no artigo 2.º, alínea i) do Despacho N.º 12624/2015,de 9 de Novembro, ex artigo 17.º do CIRE e 837.º do CPC];
c) Tendo o proponente apresentado uma Licitação [entenda-se “proposta apresentada por um utente …para um determinado bem… de valor igual ou superior a 85/% do valor base” [cfr. Alínea h) artigo 2.º do citado Despacho], e sendo o valor mínimo o valor, inclusive, a partir do qual o bem pode ser vendido [alínea q) do artigo 2.º do citado Despacho] e não tendo a Licitação alcançado o VALOR BASE [valor do bem tal como determinado no âmbito do processo a que respeita a venda], o Credor Hipotecário NÃO ACEITOU a licitação;
d) Isto mesmo resulta da documentação junta pelo próprio Licitante nos seus dois requerimentos, nomeadamente: a notificação que lhe foi dirigida, diretamente, do site do leilão eletrónico, confirmando que o Licitante é o Vencedor do “Registo de Oferta, a qual vai ser submetida para análise, cujo resultado lhe será comunicado em tempo útil”: Ora, e submetida a licitação (de valor inferior ao valor base) ao Credor Hipotecário, e não tendo a licitação sido aceite pelo Credor Hipotecário, [cfr. Requerimento nos Autos referência ...96], foi tal comunicado pela ora AJ ao Encarregado de venda EMP03..., em conformidade com documento que se anexa para os devidos e legais efeitos como Doc. N.º ...;
e) Assim, nenhuma adjudicação foi efetuada ao proponente da licitação não correspondendo à verdade “que o proponente da licitação tenha recebida qualquer comunicação eletrónica a dar-lhe nota de que a sua proposta tinha sido a vencedora ???????“[itálico nosso, transcrição do ponto 7 do requerimento sob resposta].
f) Isto posto, e porque, e para além do supra referido, de um lado, nem a plataforma nem o montante da licitação foram postos em causa, nem, por outro lado, foi adquirido nem pago - neste processo - qualquer imóvel pelo proponente da licitação, o proponente da licitação não é legitimo adquirente da fração.
g) Para além do supra referido, importa, ainda, esclarecer que o Credor Hipotecário foi, em conformidade com planificação, notificado previamente para se pronunciar nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 164.º do CIRE, tendo fixado o valor base da venda, o qual foi devidamente anunciado. E, iniciado o leilão, obteve-se uma licitação de valor superior ao valor mínimo mas inferior ao valor base, não tendo a proposta sido aceite pelo Credor Hipotecário.
h) Sucessivamente, o Credor Hipotecário cedeu o crédito, e o novo Cessionário, rejeitando, também, a licitação, não ordenou a prossecução para nova venda tendo apresentado, ele próprio, uma proposta na qualidade de Credor Hipotecário, de valor superior à da licitação e caucionada, estando o valor depositado na conta da massa insolvente e sendo o novo Credor Hipotecário os filhos do autor da Herança Jacente, Insolvente nos Autos [cfr. Documento em anexo, referente à notificação do Proponente da licitação].
i) Sem prejuízo do supra referido, sempre se dirá, por cautela, que igualmente não assiste razão ao Proponente da Licitação pois que não se trata de aceitar ou não o leilão mas tão só de aceitar ou não aceitar as licitações do leilão que não alcançaram o valor base, o que o Credor Hipotecário fez, não aceitando a licitação do proponente.
j) Posteriormente, o sucessivo habilitado, rejeitando também a licitação, não ordenou novo leilão, tendo ele próprio proposto a aquisição, por valor superior, e devidamente caucionado.
k) Notificados os Credores e o Insolvente, nada opuseram, pelo que não só a decisão do Credor Hipotecário é valida [não aceitação da licitação, por inferior ao valor base] como também a proposta do sucessivo habilitado é, também, válida - na medida em que não ordenando a prossecução para nova venda, apresenta ele próprio uma proposta, caucionada nos termos legais -
pelo que nem a ora AJ poderia decidir de outro modo que não fosse o de aceitação da proposta do Credor Hipotecário.
Nestes termos, e não sendo o proponente da licitação o adquirente de fração (por nem ter apresentado a proposta vencedora (??) apresentada no leilão nem ter a licitação sido aceite pelo Credor Hipotecário, e tendo a ora AJ de, na prossecução das diligencias de liquidação, aceitar a proposta do novo Credor Hipotecário, Habilitado, deve o requerido pelo proponente de licitação ser indeferido”.
Nos autos principais, Herança Indivisa de AA apresentou requerimento em 27/01/2023 (ref. citius «140760021»), nos seguintes termos:
“Não deve ser aceite o requerido pela mesma, atento que faz uma interpretação restritiva do segmento da norma “em tempo útil”. Com efeito não há no texto da norma qualquer subordinação do “tempo útil” a momento anterior ao início do leilão electrónica ou de qualquer outra modalidade de venda.
Acresce, no nosso ordenamento jurídico, que a transmissão da propriedade só opera pela emissão do título, pelo que, estará o credor hipotecário sempre “tempo útil” até a celebração do contrato de transmissão da propriedade.
No caso em crise não houve adjudicação pela Exma. Senhora Administradora de Insolvência, não foi depositado o preço e muito menos foi transmitida a propriedade.
Finalmente sempre se dirá que o credor hipotecário ofereceu valor superior ao licitante com maior oferta de compra.
Por ultimo atento o requerimento da Exma. Senhora Administradora de Insolvência, apresentado aos autos a 26 de Janeiro de 2023, com o qual se concorda in tottum, deverá sempre ser indeferida a pretensão da referida requerente”.
No apenso H, data de 19/01/2013, CC e DD deduziram incidente de habilitação de cessionário contra BB, contra EMP01..., SARL, contra Massa Insolvente da Herança Indivisa de AA, contra Herança Indivisa de AA, e contra Credores Herança Indivisa de AA, pedindo «a habilitação dos cessionários CC e DD, como credores, nos termos do disposto no artigo 356º do Código de Processo Civil», alegando, essencialmente, que «por contratos de mutuo com hipoteca celebrados em 07/11/2001 entre o Banco 1..., S.A. e HH e AA, foram concedidos a estes a quantia global de vinte e oito milhões de escudos e para garantia de tais empréstimos, foram constituídas duas hipotecas, as quais foram registadas,e incidiram sobre a fracção designada pela letra ..., inscrita na Conservatória do Registo Predial sob o número ...96...; esse crédito que ficou reconhecido à EMP01..., SARL, crédito que havida adquirido por contrato de cessão à Hipoteca EMP02..., SARL, que os havia adquirido por contrato de cessão de créditos ao Banco 1..., SA; a requerida EMP01..., reclamou-os no processo principal de insolvência; em 16/11/2022 a referida EMP01... cedeu a BB, a totalidade dos créditos que reclamou nos autos principais; tal cedência comportou, para além do mais, todos os direitos, garantias e acessórios inerentes a esse mesmo crédito, designadamente as hipotecas, bem como a posição processual que o transmitente ocupa quer no processo principal de insolvência, sobre a fracção identificada; em 13/01/2023, o requerido BB, celebrou um contrato de dação em pagamento, no qual dá aos Requerentes CC e DD todos os direitos, garantias e acessórios inerentes a esse mesmo crédito, designadamente as hipotecas, bem como a posição processual que o transmitente ocupa quer no processo principal de insolvência, sobre a fracção identificada».
No apenso H, data de 22/02/2023, foi proferida sentença que julgou «habilitados os requerentes como credor da insolvente».
Neste apenso de liquidação (apenso F), relativamente aos requerimentos supra identificados, na data de 19/02/2023, foi proferido despacho, cujo teor aqui se transcreve parcialmente:
“(…) Quanto a estes requerimentos, este Tribunal pronuncia-se obviamente no sentido de concordar com a posição da senhora A.I. Relembrem-se os autos e os credores que a decisão sobre a venda e os moldes da mesma cabe apenas e tão só à senhora A.I. A qual cumpriu todos os requisitos necessários à realização da mesma.
A mera apresentação de propostas, por valor superior a 85% do valor base, não pode fazer qualquer interessado presumir que a mesma será aceite. O credor hipotecário sempre terá de ser ouvido, e neste caso, tendo o referido credor optado por não pretender seguir a venda, mas adjudicar o bem, caucionando a sua opção, a senhora A.I, terá obviamente de aceitar tal intenção, do credor que goza de garantia real.
Tendo presente que nenhuma adjudicação foi efetuada ao proponente da licitação, nem se pode aqui discutir a validade da venda.
Nestes termos, confirmando-se o referido pela senhora A.I, deverá a mesma, face à caução do credor hipotecário prosseguir para a realização da escritura de compra e venda com este, por ser essa a normal tramitação da venda a realizar”.
*
1.2. Do Recurso da Licitante EMP04...

Inconformada com o despacho, a Licitante EMP04... interpôs recurso de apelação, pedindo que seja “concedido provimento ao presente recurso no sentido das conclusões e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado, devendo ser substituído por decisão que reconheça a extemporaneidade da proposta apresentada pelo credor hipotecário, ordenando-se a adjudicação do imóvel à Apelante pelo preço oferecido em leilão de €248.000,00[2] (duzentos e quarenta e oito mil euros)”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:
«1. O douto despacho de 19.02.2023, com a referência Citius 183433470 viola a lei substantiva, violação essa que se reconduz a erro de interpretação e de aplicação do direito, mormente do artigo 164.º, n.º 2 e 3 do CIRE.
2. O processo de insolvência é um processo de execução universal cujo objetivo consiste na satisfação dos credores pela liquidação do património do devedor insolvente e repartição do produto obtido pelos credores que reclamaram e viram os seus créditos verificados e graduados (art.º 1.º do Código da Insolvência e Recuperação da Empresa (C.I.R.E.)).
3. A AI apreendeu à ordem da massa insolvente destes autos a fração ... correspondente a um apartamento do tipo ..., ... andar recuado, com garagem, arrecadação e terraço com 100m2, sita na Rua ..., ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...96, freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...04 da freguesia ..., ... e ....
4. Em consonância com o disposto no artigo 164º, n.º 1, do CIRE, e no uso de uma prerrogativa que é exclusivamente sua, a AI decidiu operar a venda da aludida fração mediante leilão eletrónico.
5. A AI notificou o credor hipotecário por correio eletrónico de 15.11.2022 na pessoa da Ilustre Mandatária com procuração nos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 164º do CIRE – cfr. documento n.º ... junto pela AI no requerimento de 25.11.2022 do apenso F com a referência Citius 13802827.
6. Não consta dos autos que o credor hipotecário se tenha pronunciado.
7. O leilão foi devidamente anunciado pela empresa “EMP03...”, com a publicidade das condições gerais e termo no dia ../../2023, pelas 17h (cfr. documento n.º ... junto pela AI no requerimento de 25.11.2022 do apenso F com a referência Citius 13802827, igualmente junto sob documento n.º ... pela Apelante no seu requerimento de 20.01.2023 com a referência Citius 14042750).
8. O valor base anunciado para a aludida venda foi de €282.690,00 (duzentos e oitenta e dois mil, seiscentos e noventa euros). A aqui Apelante participou no leilão tendo licitado pelo valor de €248.000,00 (duzentos e quarenta e oito mil euros) montante abaixo do valor base fixado mas acima do valor mínimo (85%) que constava anunciado durante o leilão. Esta proposta que a Apelante apresentou foi a proposta vencedora do dito leilão.
9. Posteriormente, a aqui Apelante foi informada por correio eletrónico expedido a ../../2023 pela leiloeira que, de acordo com instruções da AI, o credor hipotecário não aceitou aquela proposta da Apelante, tendo apresentado uma proposta superior e que a dita fração lhe tinha sido adjudicada a ele, credor hipotecário. O valor proposto pelo credor hipotecário e aceite pela AI foi de €248.500,00 (duzentos e quarenta e oito mil e quinhentos euros).
10. A Apelante não aceita esta interpretação errada que quer AI, quer o tribunal a quo fazem do artigo 164º n.º 2 e 3 do CIRE de que o credor hipotecário terá sempre que ser ouvido depois de obtida uma proposta de compra para o imóvel a liquidar.
11. Pois, a obrigação da AI informar o credor hipotecário do resultado de leilão eletrónico, com vista a que o mesmo possa apresentar, se assim o entender uma proposta superior, não tem, salvo o devido respeito, qualquer sustentação legal, nomeadamente no aludido art.º 164.º, n.º 2 e 3 do CIRE;
12. Do alcance do aludido dispositivo legal surgem apenas duas obrigações da AI para com o credor hipotecário: i) “ouvir” o credor sobre a modalidade escolhida, in casu, o leilão eletrónico e, ii) informar sobre o valor base pelo qual os bens vão ser vendidos.
13. Feita esta notificação, o credor titular de garantia real dispõe, então, de uma semana, ou sempre em tempo útil, de propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado (n.º 3 do art.º 164.º do C.I.R.E.).
14. Ora, da realidade dos autos ressalta, que a AI deu cumprimento ao disposto no art.º 164.º do CIRE quando lhe dirigiu o correio eletrónico no dia 15.11.2022 (acima mencionado) informando a modalidade da venda e o preço base do imóvel a vender.
15. E certo é que, o credor hipotecário percebeu o alcance da notificação tendo anuído à mesma, atento o seu silêncio.
16. Do exposto resulta que, quer a decisão da AI em ouvir o credor hipotecário findo o leilão e o douto despacho em crise fizeram uma errada interpretação do disposto nos n.º 2 e 3 do art.º 164.º do CIRE, o qual não contempla a obrigação da AI de informar o credor hipotecário do resultado de leilão eletrónico, com vista a que o mesmo possa apresentar, se assim o entender, uma proposta superior.
17. Na verdade, inexiste na lei previsão para a adjudicação nos moldes comunicados à aqui Apelante.
18. Razão pela qual, a decisão da AI em adjudicar o bem ao credor hipotecário é ilegal por contrária à lei e como tal ferida de nulidade, assim como o despacho de qua se recorre e que indeferiu o requerimento da Apelante, nulidades que desde já se invocam para os devidos efeitos legais.
19. Se o credor hipotecário quisesse adquirir a fração em apreço de duas uma, exercia o direito plasmado já citado n.º 3 do art.º 164º do CIRE ou, não o fazendo, tinha que concorrer no leilão com os demais interessados, licitando.
20. Não o tendo feito ou não tendo a sua proposta sido a vencedora não pode, findo o leilão, vir apresentar uma proposta nos termos em que o terá feito, nem tão pouco é legalmente admissível que a AI decida como decidiu, posição que foi integralmente corroborada pelo tribunal a quo para quem, aliás, “o credor hipotecário tem sempre que ser ouvido”.
21. Reconhece-se ao credor hipotecário - titular do direito de crédito que beneficia da hipoteca - o direito de ser pago com preferência ou prioridade sobre todos os credores que não beneficiem de privilégio creditório especial ou de prioridade de registo - nos termos do disposto no art.º 686.º do Código Civil, a hipoteca confere ao credor a preferência sobre o produto de venda da coisa hipotecada, em relação aos demais credores. Mas este privilégio creditório não é nem se confunde, porém, com o direito de preferência de que goza, por exemplo, o arrendatário (al. a) do n.º 1 do art.º 1091.º do Código Civil, em cujos termos o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos).
22. O artigo 164º do CIRE não impõe à AI a obrigação de notificar o credor garantido da obtenção de uma proposta apresentada no âmbito da venda por leilão eletrónico em plataforma pública.
23. E, tal como se disse, o credor garantido não tem um “direito de preferência” na venda, ou seja, não tem o aludido credor que ser notificado da proposta apresentada com vista a apresentar, caso entenda, uma proposta superior.
24. O objetivo da notificação ao credor hipotecário prevista no artigo 164º do CIRE, visa precisamente permitir ao credor com garantia real que, na defesa do seu crédito, proponha a aquisição do bem dado em garantia por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado mas dentro do prazo que o n.º 3 daquele normativo fixa.
25. Não se vislumbra que o sentido e alcance da expressão em tempo útil, contida no artigo 164º, n.º 3, do CIRE possa ser outro que não a prerrogativa concedida ao credor hipotecário de propor a aquisição do bem objeto de venda e sobre o qual goza de garantia, mas antes de concretizada a venda ou da tomada de compromisso firme de vender assumida pelo AI.
26. Conforme vem sido entendido pela nossa jurisprudência maioritária “em tempo útil” entende-se ser até ao momento em que o administrador ainda não tenha uma proposta firme para o negócio;
27. Mas no caso em análise, a AI já tinha uma proposta firme para a aquisição do imóvel, a da Apelante.
28. E mesmo assim, mesmo depois de notificar o credor hipotecário para os termos do artigo 164º do CIRE e daquele se manter em silêncio até ao momento do encerramento do leilão eletrónico, decidiu dar a oportunidade ao credor hipotecário de apresentar uma proposta como que se de um direito de preferência se tratasse.
29. O interesse que a lei quer proteger com o vertido nos n.º 2 e 3 do artigo 164º do CIRE é o que se prende com a tutela do direito de crédito e não com qualquer outro interesse do credor garantido que seja paralelo àquele interesse, v.g., relacionado com a aquisição do bem objeto de garantia.
30. Isso mesmo ensinam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda que “(…) Isto significa que, verdadeiramente, o intuito da norma, como já acima assinalamos, é o da tutela do direito de crédito e não de qualquer outro interesse que, paralelamente, pudesse assistir ao credor garantido na compra do bem objeto da garantia (…)” - comentário ao artigo 164º do CIRE, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Volume I, 3ª, ed. Quid Juirs, 2015, página 559.
31. O entendimento sufragado pelo tribunal a quo, ao arrepio dos considerandos supra tecidos atribui, na prática, ao credor hipotecário um direito de preferência na aquisição da fração autónoma objeto da venda que não está previsto na lei e que o legislador, com o regime legal do artigo 164º do CIRE, não pretendeu nunca instituir.
32. O credor hipotecário teve oportunidade de, em tempo, apresentar a sua proposta e não o fez.
33. E não se diga que com a proposta da Apelante a satisfação possível dos direitos dos credores tenha sido comprometida ou sequer prejudicada pois em bom rigor, a proposta do credor hipotecário apenas ultrapassou a da Apelante em apenas €500,00 (quinhentos euros), o suficiente para legitimar que a AI adjudicasse o imóvel ao credor hipotecário pelo facto do valor oferecido ter sido superior.
34. Nesta perspetiva, estranha-se que a oferta do credor hipotecário não tivesse sido superior em, por exemplo, apenas €10,00 (dez euros) pois seria o bastante para bater a proposta existente da Apelante ou que a AI, em defesa do interesse dos credores da insolvente e da massa, não tivesse questionado a Apelante se pretendia cobrir a proposta do credor hipotecário.
35. Concluindo, o douto despacho é nulo nos termos sobreditos pelo que, deve ser revogado e substituído por decisão que reconheça a extemporaneidade da proposta apresentada pelo credor hipotecário, ordenando-se a adjudicação do imóvel à Apelante pelo preço oferecido em leilão de €248.000,00 (duzentos e quarenta e oito mil euros)».
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A Massa Insolvente da Herança Indivisa de AA contra-alegou, pugnando para “o Recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida”.
A Insolvente Herança Indivisa de AA contra-alegou, pugnando para que «seja mantida a sentença recorrida, julgando-se improcedente o recurso apresentado».
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O recurso foi admitido pelo Tribunal de 1ª Instância como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objecto de alteração neste Tribunal da Relação.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[3] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[4]).
Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pela Recorrente, é uma a questão a apreciar por este Tribunal ad quem: se deve ser adjudicado à Recorrente o imóvel pelo preço oferecido em leilão (€ 248.000,00) em virtude de ser extemporânea a proposta apresentada pelo credor hipotecário.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que revelam para a presente decisão são os que se encontram descritos no relatório que antecede, e ainda aqueles que agora se aditam ao seu elenco (assim o completando), nos termos do art. 607º/4 do C.P.Civil de 2013, aplicável por força do art. 663º/2 do mesmo diploma:
1) No leilão electrónico para venda do bem imóvel correspondente à Verba nº1 do «Auto de Arrolamento e Apreensão de Bens», foi registada a oferta da EMP04..., Lda. no valor de € 248.000,00 (documento n.º ... junto com o requerimento datado de 26/01/2023 e com a ref. citius «14072196»).
2) No dia 11/01/2023, pelas 17:04h, por correio electrónico, a EMP03... comunicou à EMP04... que “a sua proposta no valor de 248.000,00 efetuada no Leilão Eletrónico Insolvência Herança Indivisa de AA para o lote n.º... ficou em Registo de Oferta, a qual vai ser submetida para análise, cujo resultado lhe será comunicado em tempo útil” (documento n.º ... junto com o requerimento datado de 18/01/2023 e com a ref. citius «14032001»).
3) Na data de 13/01/2023, CC e DD, através do seu advogado e por correio electrónico, comunicaram à Administradora da Insolvência “na qualidade de credores cessionários e hipotecários vêm declarar que não aceitam o valor da venda no montante de Euros 248000,00 (…) Apresentam uma proposta no montante de 248500,00. Declaram que no início da próxima semana apresentarão o cheque bancário com o valor de 10% dos referidos Euros 248500,00 (…)” (documento n.º ... junto com o requerimento datado de 14/01/2023 e com a ref. citius «14011649»).
4) No dia 16/01/2023, às 10:21h, por correio electrónico, a EMP03... comunicou à EMP04..., Lda. que “a proposta efetuada para o imóvel, apresentada na diligência de Leilão Eletrónico, no passado dia 11 de Janeiro de 2023, no âmbito da insolvência em epígrafe, não foi aceite, tendo sido adjudicado ao Credor Hipotecário” (documento n.º ... junto com o requerimento datado de 18/01/2023 e com a ref. citius «14032001»).
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores ou pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando este se não se mostre possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, como decorre do preceituado no art. 1º do C.I.R.E.
A fase da liquidação está prevista nos arts. 158º e ss do C.I.R.E. e destina-se à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores com vista a satisfazer os seus créditos na medida do possível, o que se concretiza, fundamentalmente, através da venda dos bens que integram a massa insolvente e da cobrança dos créditos de que o insolvente seja titular sobre terceiros tudo por forma a obter os respectivos valores [cfr. arts. 55º/1a) e 158º do C.I.R.E.].
A liquidação é da competência exclusiva do administrador da insolvência, conforme decorre do disposto no citado art. 55º/1a): “Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir: a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram”.
Como é consabido, administrador da insolvência é um órgão da insolvência (cfr. art. 52º do C.I.R.E.) que actua em conjugação com o tribunal (que exerce a sua fiscalização - cfr. art. 58º do C.I.R.E.), e em cooperação com a comissão de credores (que também exerce a sua fiscalização - cfr. art. 55º do C.I.R.E.), tendo autonomia relativamente a certos actos e é civilmente responsável por danos que causar ao devedor e aos credores (cfr. art. 59º do C.I.R.E.), estando ainda sujeito à sua destituição pelo juiz com fundamento em justa causa (cfr. art. 56º do C.I.R.E.). Afirma-se no Ac. RE de 22/10/2020[5] que “nos termos da lei insolvencial, enformada por uma nítida e declarada intenção de desjudicialização do processo, a promoção da alienação dos bens que integram a massa insolvente cabe ao administrador nomeado, tarefa que levará a cabo sob a fiscalização do juiz, da comissão de credores e ainda da assembleia de credores, conforme resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 55.º, n.º 1, al. a), 58.º, 68.º, n.º 1, 79.º e 80.º, todos do CIRE”.
A consagração administrador da insolvência como órgão da insolvência é uma concretização da desjudicialização do processo de insolvência.
Lê-se no ponto 10 do preâmbulo do Dec.-Lei nº53/2004, de 18/03 (diploma que aprovou o C.I.R.E.): “A afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo. Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do juiz no processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da intervenção do juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais. (…) Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa)”.
A «intensificação da desjudicialização do processo», no que especificamente respeita à administração e liquidação da massa insolvente, concretiza-se na retirada ao juiz de qualquer poder de decisão ou mesmo de intervenção e ainda na eliminação da possibilidade de impugnação perante o juiz quer das deliberações da comissão de credores quer dos actos do administrador da insolvência (isto, obviamente, sem prejuízo dos poderes do juiz de fiscalização e de destituição com justa causa). Deste modo, o administrador da insolvência goza de competência funcional autónoma para promover a liquidação do activo, dispondo dos amplos poderes para determinar quais são as diligências mais adequadas e convenientes com vista à venda dos bens e à cobrança dos créditos do insolvente, ainda que sujeito aos deveres estatutários e funcionais com que deve desempenhar tal função[6].

Nestes termos, sem prejuízo da possibilidade legal dos interessados arguirem perante o juiz as nulidades verificadas durante a fase da liquidação, é inquestionável que, como se explica no Ac. da RL de 12/04/2018[7], “o juiz não é um auxiliar do administrador da insolvência na liquidação dos bens da massa insolvente, nem lhe incumbe fixar/dar prazos, autorizar vendas, notificar os credores para tomar posição quanto às propostas, determinar como é que a venda há-de ser feita ou a quem, dar cobertura à actuação do AI na liquidação dos bens, ou pronunciar-se sobre a preclusão do direito de fazer propostas. A venda é feita pelo AI, tal como é do AI a responsabilidade pelos danos que causar com os seus actos, incluindo irregularidades/nulidades da alienação dos bens”.
Estatui o nº1 do citado art. 158º: “Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar”.
Decorre deste normativo que o momento da abertura da fase da liquidação depende do preenchimento em simultâneo de dois requisitos: 1) trânsito em julgado da sentença declaratória de insolvência (esta fase só se pode iniciar após o trânsito em julgado, ou seja, quando a sentença se torne definitiva, já que não se justifica proceder à liquidação do património sem que se mostra estabilizada na ordem jurídica a situação de insolvência do titular desse património); e 2) a realização da assembleia de apreciação do relatório, desde que as deliberações aí tomadas pelos credores não se ponham à liquidação (esta fase só pode ter lugar após a realização da assembleia de apreciação do relatório, na medida em que cabe aos credores decidir quanto à recuperação do devedor ou à liquidação do seu património, sem prejuízo da decisão de atribuir ao administrador de insolvência o encargo de proceder à elaboração de um plano de insolvência).
Nos casos em que o juiz dispensou a realização da assembleia de apreciação do relatório nos termos do art. 36º/1n), 2ªparte, do C.I.R.E., então a fase de liquidação terá início após terem decorrido 45 dias sobre o proferimento da sentença declaratória da insolvência [cfr. arts. 36º/4 e 158º/1 do C.I.R.E.][8].   
 No que concerne às modalidades da venda, dispõe o nº1 do art. 164º do C.I.R.E., “O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente”.
Daqui depreende-se que, embora seja a forma preferencial, não é obrigatório a realização da venda através de leilão electrónico, podendo o administrador da insolvência, de forma fundada, optar por uma das demais modalidades da venda previstas no art. 811º/1 do C.P.Civil de 2013 (mediante propostas em carta fechada, em mercados regulamentados, direta a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens, por negociação particular, em estabelecimento de leilões, e/ou em depósito público ou equiparado), tratando-se de uma decisão da sua competência exclusiva e que, em função das características ou da natureza dos bens, deve ter em vista a melhor satisfação possível dos interesses dos credores: “I - A decisão quanto à escolha da modalidade de alienação dos bens integrantes da massa insolvente incumbe, em exclusivo, ao administrador da insolvência, segundo o seu critério e tendo em conta o que entenda ser mais conveniente para os interesses dos credores. II - Por força da parte final do n.º 1 do art. 164º, do CIRE, é possível o recurso a modalidades de alienação dos bens integrantes da massa insolvente diferentes das tipificadas na lei processual comum”[9].
Como explicam Carvalho Fernandes e João Labareda[10], decorre do nº1 do citado art. 162º que a decisão quanto à escolha da modalidade de alienação dos bens integrantes da massa insolvente “é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência, segundo o seu critério e tendo em conta o que entenda ser mais conveniente para os interesses dos credores”, advertindo para o “facto de a decisão não ser censurável, através de qualquer tipo de impugnação, perante outros órgãos ou perante o juiz”.
Embora o administrador da insolvência disponha de total liberdade para determinar a modalidade da venda e o valor base do bem a vender, no caso da venda de bens onerados com garantia real no âmbito do processo de insolvência, o legislador impôs-lhe o cumprimento de certas obrigações, prevendo-se no nº2 do art. 164º do C.I.R.E.: “2 - O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada”.
Deste preceito resulta que sobre o administrador da insolvência impende o ónus de ouvir (sempre) o credor com garantia real sobre a modalidade da venda e o ónus de informá-lo (sempre) do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
Neste sentido se pronunciou o Ac. da RP de 23/01/2023[11]: “Impende sobre o administrador da insolvência o ónus da audição do credor com garantia real acerca da modalidade da alienação, bem como o ónus de inteirar este do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada”.
Na mesma linha de entendimento, afirma-se no Ac. do STJ de 03/05/2023[12] que “O artigo 164º, nº 2, do CIRE impõe as seguintes e individualizadas obrigações ao administrador da insolvência face ao credor hipotecário: ouvi-lo sobre a modalidade da alienação; informá-lo do valor base fixado ou do preço de alienação projectada a determinada entidade”, mas salientando que não incluem “outras suplementares ou adicionais”.

A propósito da referida obrigação de audição, referem Carvalho Fernandes e João Labareda[13] que, embora seja verdade que o nº2 do citado art. 164º impõe que sejam previamente ouvidos os credores que tenham garantia real sobre os bens a alienar acerca do meio pelo qual devem ser vendidos, também não é menos verdade resultar da mesma norma que “a pronúncia dos credores notificados não é vinculativa, o que parece excluir relevância processual à eventual violação desse dever, apesar de esta poder comportar responsabilidade para o administrador e de constituir justa causa de destituição”. Já quanto à obrigação de informação, acentuam que “mais importante que o de ouvir o credor com garantia real quanto à modalidade de alienação do bem sobre que incide o seu direito é, no entanto, o dever de o informar previamente sobre o valor base fixado ou, se for o caso, do preço da venda projectada a entidade determinada, que o n.º 2 consagra na sua parte final, em disposição que é inovatória. Do que fundamentalmente se trata é de criar um procedimento peculiar de tutela do credor assistido de garantia para, em primeira mão, melhor lhe permitir cuidar da satisfação do seu crédito, embora isso se possa traduzir na possibilidade de aquisição do bem onerado, para si próprio ou terceiro”. E concluem: “(…) Ainda assim, na eventualidade de, pura e simplesmente se prescindir de um valor base, essa situação não pode também deixar de ser previamente comunicada ao credor, por maioria de razão relativamente às hipóteses concretamente previstas, permitindo-lhe que ofereça o que entender, como forma de protecção do seu crédito, que é o escopo fundamental visado pela norma”.
Portanto, o normativo contido no nº2 do referido art. 164º visa conferir ao credor com garantia real o poder de influenciar a venda dos bens que garantem o seu crédito e, dessa forma, obter a melhor satisfação do seu direito. Visa-se tutelar o direito de crédito de que é titular o credor com garantia real (e não qualquer interesse do insolvente, o qual não é ouvido sobre a venda dos bens)[14].
E, para o efeito, o legislador concedeu-lhe a faculdade legal de adquirir, para si ou por terceiro, o bem onerado com garantia real, estatuindo-se no nº3 do aludido art. 164º: “Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior”.
Ou seja, a «exigência» ao administrador da insolvência constante da 2ª parte do nº2 do art. 164º compreende-se em razão da faculdade que é conferida ao credor com garantia real neste nº3 do mesmo preceito. Decidiu-se no Ac. da RP de 15/11/2018[15] que “A notificação do credor com garantia real a que alude o art.º 164.º do CIRE visa permitir a este credor propor a aquisição do bem em venda por si ou terceiro por preço superior ao da alienação projectada”.
Não suscitam dúvidas quanto à compreensão do segmento «prazo de uma semana»: conta-se a partir da data em que o administrador da insolvência comunica/informa o credor com garantia real sobre o valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
Porém, quanto ao segmento «posteriormente mas em tempo útil» pode emergir alguma dúvida quanto o seu sentido.
Importa começar por salientar que, tendo o legislador inserido a conjunção «ou» no texto legal («no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil»), é manifesto que se pretendeu conceder a possibilidade de exercer de tal faculdade para além do integral decurso daquele «prazo de uma semana», ficando, assim, por determinar qual é momento que ainda constitui «tempo útil».
Uma vez que a faculdade em causa surge no âmbito da alienação/venda dos bens, então a expressão normativa «em tempo útil» deve ser interpretada no sentido de que a proposta da aquisição (do credor com garantia real, por si ou por terceiro) pode ser apresentada até ao momento em que o Administrador da Insolvência comunica a sua aceitação («dá o seu acordo») da proposta de compra apresentada no âmbito de uma das modalidades da venda. Com efeito, até este momento, ainda se mostra oportuno, apropriado e pertinente o exercício de faculdade em causa (ou seja, a defesa da melhor forma de satisfação do seu crédito), sendo que é a aceitação da proposta de compra que conclui («fecha») a venda e, por isso, impede definitivamente o exercício de tal faculdade.  
 Vão, aliás, neste sentido interpretativo os ensinamentos de Carvalho Fernandes e João Labareda[16]: “A proposta deve ser apresentada ao administrador no prazo de uma semana após a notificação recebida pelo credor e, se apresentada depois disso, só releva quando ainda tenha sido oferecida em tempo útil, isto é, antes de concretizada a venda ou da tomada do compromisso firme de vender assumido pelo administrador(o sublinhado é nosso).
Esta linha de entendimento tem sido sufragada pela Jurisprudência: no Ac. desta RG de 19/09/2019[17] entendeu-se que “O direito do credor garantido a propor a aquisição do bem por si, ou por terceiro, nos termos do artigo 164º nº 3 CIRE, deve ser efetuado no prazo de uma semana ou posteriormente, em tempo útil, isto é, antes de concretizada a venda (o sublinhado é nosso); e no Ac. da RE de 27/05/2021[18], após se acolherem os ensinamentos dos referidos autores, considerou-se que “se o credor garantido manifestou interesse na aquisição do bem após realização do leilão eletrónico e depois de o AI ter informado o licitante, com o valor mais elevado no leilão, de que a sua proposta foi aceite, a pretensão do credor garantido é extemporânea, porque efetuada mais de uma semana após as informações previamente oferecidas pelo AI e num momento em que este havia já tomado posição firme sobre a venda perante o licitante com o valor mais elevado (artigo 164.º/2 e 3, do CIRE)” (os sublinhados são nossos).
Muito relevantes e assertivas mostram-se as explicações explanadas no no Ac. da RP de 29/05/2014[19]: “(…) ainda que a(s) proposta(s) do ora recorrente fosse de facto a melhor e estivesse em condições de ser aceite, sempre restaria ao credor garantido pelo bem a possibilidade de, na semana seguinte ou mesmo depois, desde que antes da celebração da eventual escritura pública com o recorrente, se propor adquirir, por si ou mesmo por terceiro, o bem por preço superior ao da proposta do ora recorrente. É óbvio que não existe aqui qualquer abuso de direito por parte do credor garantido, pela simples razão de que sendo credor garantido ele gozava, independentemente da insolvência, da faculdade de executar o bem para a satisfação do seu crédito, pelo que a possibilidade de, no âmbito do processo de insolvência, sobrepor um preço superior ao da melhor proposta que tenha sido apresentada não passa apenas de uma última oportunidade para assegurar a execução prática da garantia que beneficiava o seu crédito e diminuir na medida do possível a parte do seu crédito que acaba por não ser satisfeita em virtude da insolvência do devedor. Esta faculdade não representa mais que um reflexo, na liquidação em processo de insolvência, da posição de vantagem que qualquer credor beneficiado por uma garantia real sobre o bem a vender tem relativamente aos demais credores e a quaisquer terceiros (que não sejam o devedor e o credor) cujo único interesse é o de pagar o menor preço possível pela aquisição dos bens postos à venda, independentemente do seu valor de mercado e dos prejuízos que uma venda nessas condições acarreta para o devedor e para os seus credores. Essa vantagem justifica-se ainda por não acarretar qualquer prejuízo para o devedor ou para os demais credores, porquanto do exercício da mesma só pode sobrevir um maior produto da liquidação da massa, o que corresponde ao objectivo último do processo de insolvência e da actuação do administrador (…)” (os sublinhados são nossos).
E refere-se no Ac. desta RG de 31/03/2016[20]: “(…) o credor garantido tem de tomar uma posição positiva ou negativa. Não pode ficar indiferente. Compete ao AI promover a venda nas melhores circunstâncias que puder, tendo em conta os interesses dos credores em geral, face às regras do mercado, em cada momento. O credor garantido, depois de lhe ter sido colocada uma determinada proposta de alienação, se não tomar uma posição de subir o preço, no prazo de uma semana, ou em momento que a adjudicação ainda não tenha sido formalizada, perde o direito de formular uma eventual proposta futura ou de pedir qualquer responsabilização ao AI, pela concretização da alienação, que julga que não protege os seus interesses, como credor garantido (…)” (o sublinhado é nosso).
Concluindo: visando proteger o crédito de que é titular o credor com garantia real, a norma do nº2 do art. 164º impõe ao Administrador da Insolvência a obrigação de o informar da venda (e do valor base fixado) e do preço da alienação projectada a certa entidade, o que tem a finalidade específica de lhe permitir o exercício da faculdade prevista no nº3 do mesmo preceito, isto é, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao valor base fixado ou ao preço da alienação projectada; mas, em simultâneo, exige-se que o credor com garantia real formule uma proposta por preço superior num reduzido espaço temporal, numa semana ou até ao momento anterior ao da concretização da venda ou ao da assunção do compromisso firme de venda pelo administrador da insolvência («em tempo útil»).
Por força do disposto no nº4 do art. 164º, a proposta a que alude o nº3 do mesmo preceito “só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10 /prct. do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil”.
Atento o disposto no art. 17º do C.I.R.E., mostram-se aplicáveis à venda de bens no âmbito do processo de insolvência, o regime da venda executiva consagrado nos arts. 811º e ss. do C.P.Civil de 2013.
Estabelece o art. 837º do C.P.Civil de 2013: “1 - Exceto nos casos referidos nos artigos 830.º e 831.º, a venda de bens imóveis e de bens móveis penhorados é feita preferencialmente em leilão eletrónico, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça (…) 3 - À venda em leilão eletrónico aplicam-se as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão em tudo o que não estiver especialmente regulado na portaria referida no n.º 1”.
A portaria a que se reporta o nº1 deste art. 837º, corresponde à Port. nº282/2013, de 29/08 (regulamentadora de vários aspectos das acções executivas cíveis) que no seu art. 20º dispõe: “Entende-se por «leilão eletrónico» a «modalidade de venda de bens penhorados, que se processa em plataforma eletrónica acessível na Internet, concebida especificamente para permitir a licitação dos bens a vender em processo de execução, nos termos definidos na presente portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça”.
Através do Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15, de 09/11, foi definido como entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico a Câmara dos Solicitadores e foram homologadas as regras do sistema aprovadas por ela, sendo que no art. 17º/1 se prevê que “A plataforma www.e-leiloes.pt pode ainda ser utilizada em processos distintos dos previstos no n.º 2 do artigo 1.º ou noutros âmbitos em que se justifique a utilização de uma plataforma de leilões eletrónicos, designadamente: a) Processos de execução em que tenha sido designado oficial de justiça; b) Processos de execução tramitados por outras entidades com capacidade executiva; c) Processos de insolvência”.
Neste “quadro”, constata-se que o regime jurídico da venda por leilão electrónico reparte-se pelo citado art. 837º do C.P.Civil de 2013, pela referida Port. nº282/2013 e pelo aludido Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15, sendo que se aplicam, em primeiro lugar, as regras estabelecidas na Port. nº282/13 e no Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15, e só em tudo o que não estiver especialmente aí regulado, é que se aplicam as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão[21].
Consagra-se no art. 23º da Port. nº282/2013 que “1 - As ofertas de licitação para aquisição dos bens em leilão são introduzidas na plataforma a que se refere o artigo 20.º, entre o momento de abertura do leilão e o dia e hora designados na plataforma eletrónica referida no artigo anterior para o seu termo” e que “2 - Só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação de cada bem a vender e, de entre estas, é escolhida a proposta cuja oferta corresponda ao maior dos valores de qualquer das ofertas anteriormente inseridas no sistema para essa venda” (o sublinhado é nosso). E, por sua vez, no art. 2º do Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15 prevê-se que “(…) o) «Valor base» o valor do bem, ou do conjunto de bens que integram um lote, tal como foi determinado no âmbito do processo a que respeita a venda, designadamente, na execução regulada nos termos do CPC ou no processo de insolvência, regulado nos termos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; p) «Valor de abertura» o valor que é fixado para abertura do leilão e que corresponde a 50 /prct. do valor base; q) «Valor mínimo» o valor, inclusive, a partir do qual o bem pode ser vendido que corresponde, nos termos do n.º 2 do artigo 816.º do CPC, a 85 /prct. do valor base. (…) 3 - A plataforma www.e-leiloes.pt inibe licitação inferior ao valor de abertura. A licitação superior ao valor de abertura mas inferior ao valor mínimo é, para todos os efeitos, considerada licitação condicional”.
Destes normativos decorre que, na venda em leilão electrónico não podem ser aceites ofertas de valor inferior ao valor mínimo de licitação de cada bem a vender, isto é, a 85% do valor base respectivo[22].
Por força do disposto no art. 8º/8 do Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15 e no art. 24º da Port. nº282/13, o encerramento do leilão é validado electronicamente pelo agente de execução que a ele presidiu, indicando o número da proposta de valor mais elevado e o respetivo valor, sendo o resultado disponibilizado em www.e-leiloes.pt.
Nos termos do art. 8º/10 do Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15, “No prazo de 10 dias contados da certificação da conclusão do leilão, o agente de execução titular do processo deve dar cumprimento a toda a tramitação necessária para que a proposta se considere aceite e o bem seja adjudicado ao proponente, nos termos previstos para a venda por proposta em carta fechada”. Atenta esta remissão e em conformidade com o disposto no art. 824º/2 do C.P.Civil e 2013, o licitante deverá ser “notificado para, no prazo de 15 dias, depositar numa instituição de crédito, à ordem do agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, da secretaria, a totalidade (…) do preço em falta” (não é exigida pela lei qualquer caução para a apresentação de proposta de compra em leilão electrónico).

Prescreve o art. 26º da Port. nº282/13, de 29/08 que “1 - Compete ao agente de execução a decisão de adjudicação dos bens” e que “2 - Os direitos ou deveres legalmente previstos podem ser exercidos até ao momento da adjudicação”. E, nos termos do art. 2/1a) do Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15, a «Adjudicação» é “a decisão tomada no âmbito do processo de execução pelo agente de execução, que decida a venda de um bem ou conjunto de bens integrados num lote, a um utente que apresentou a licitação mais elevada, depois de ter depositado o preço e demonstrado o cumprimento das obrigações fiscais”.
Contudo, há que ter presente que, como resulta do disposto no art. 10º/5 do Despacho nº12624/15 da Ministra da Justiça, “O utente é ainda alertado de que, apesar de ter apresentado a licitação mais alta, tal não implica que o bem lhe possa efetivamente vir a ser adjudicado, por força dos condicionalismos legais, nomeadamente processuais, que são alheios à plataforma www.e-leiloes.pt e que devem ser apreciados no âmbito do processo de execução que deu origem ao leilão eletrónico” (o sublinhado é nosso). E, aliás, conforme decorre das FAQ’s da plataforma[23], à pergunta “A minha licitação foi a mais alta. Já posso considerar que o bem é meu?”, responde-se que “Não. Após o encerramento do leilão, o resultado é remetido ao agente de execução titular do processo associado ao bem que foi vendido, cabendo a este agente de execução concretizar os demais trâmites processuais, nomeadamente, notificando as partes das propostas apresentadas e o apresentante da melhor proposta para o depósito do preço e demonstração do cumprimento das obrigações fiscais associadas à compra, quando a elas haja lugar. Só depois será emitido o título de transmissão”.

Revertendo ao caso em apreço, resulta dos autos principais e apensos (B, C, F e H) que:
- foi apreendida para a massa insolvente, sob verba nº1, uma «fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ... andar recuado, com um terraço a sul com 100m2, um garagem e uma arrecadação na cave identificadas pela letra ..., sita na Rua ..., ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...96 da freguesia ... (...) e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...04 da freguesia ..., ... e ...»;
- sobre o referido imóvel foi constituída uma hipoteca para garantia do crédito reclamado e reconhecido pela Credora EMP01..., SARL no montante de € 317.071,05 (crédito adquirido por contrato de cessão à Hipoteca EMP02..., SA, que o havia adquirido por Contrato de Cessão de Créditos ao Banco 1..., SA);
- no âmbito da respectiva liquidação, a Administradora de Insolvência determinou a venda do referido bem imóvel através de leilão electrónico, pelo valor base de € 282.690,00 e ocorrendo o fim do leilão na data de 11/01/2023;
- no âmbito da respectiva liquidação, na data de 15/11/2023, a Administradora de Insolvência notificou a Credora Hipotecária EMP01..., SARL para se «pronunciar, querendo, nos termos do disposto no artigo 164.º do CIRE, sobre a modalidade da venda e valor base da liquidação do imóvel», não tendo esta Credora Hipotecária apresentado qualquer resposta;
- no leilão electrónico, a EMP04..., Lda. apresentou proposta no valor de € 248.000,00, tendo-lhe sido comunicado pela encarregada da venda (em 11/01/2023) que tal proposta «ficou em Registo de Oferta» e «vai ser submetida para análise, cujo resultado lhe será comunicado em tempo útil»;
- na data de 13/01/2023, CC e DD comunicaram à Administradora da Insolvência que «na qualidade de credores cessionários e hipotecários não aceitam o valor da venda no montante de Euros 248000,00» e que «apresentam uma proposta no montante de 248.500,00»;
- no dia 16/01/2023, a encarregada da venda comunicou à EMP04... que «a proposta não foi aceite» e que o bem foi «adjudicado ao Credor Hipotecário»;
- e na data 19/01/2013, os referidos CC e DD deduziram incidente de habilitação de cessionário contra BB, contra EMP01..., SARL, contra Massa Insolvente da Herança Indivisa de AA, contra Herança Indivisa de AA, e contra Credores Herança Indivisa de AA, pedindo «a sua habilitação como credores», sendo que, por sentença de 22/02/2023, foram julgados «habilitados como credor da insolvente».
Neste “quadro factual”, a licitante EMP04... (ora Recorrente) apresentou requerimento em 18/01/2023 (ref. citius «14032001») no qual alegou, essencialmente, que «o credor hipotecário pode, depois de ouvido quanto à modalidade da venda e preço base, no prazo de uma semana ou, decorrida esta semana mas em tempo útil, antes do leilão ter o seu início entenda-se, comunicar se pretende exercer o direito previsto no n.º3, do artigo 164º do CIRE, pelo que, a decisão do credor hipotecário requerer a adjudicação depois de findo o leilão é extemporânea» e que «se o credor hipotecário quisesse adquirir a fração em apreço de duas uma, exercia o direito plasmado já citado n.º 3 do art.º 164º do CIRE ou, não o fazendo, tinha que concorrer no leilão com os demais interessados, licitando, e não o tendo feito ou não tendo a sua proposta sido a vencedora não pode, findo o leilão, vir requerer a adjudicação nos termos em que o terá feito», e requerendo que «se declare nula a adjudicação feita pela Sra. Administradora de Insolvência da fração ao credor hipotecário, reconhecendo-se a aqui Requerente como a legitima adquirente da aludida fração atenta a proposta vencedora apresentada no leilão».
Sobre esta pretensão, incidiu o despacho de 19/02/2023 (ora impugnado) no qual se considerou “a mera apresentação de propostas, por valor superior a 85% do valor base, não pode fazer qualquer interessado presumir que a mesma será aceite”, que “o credor hipotecário sempre terá de ser ouvido, e neste caso, tendo o referido credor optado por não pretender seguir a venda, mas adjudicar o bem, caucionando a sua opção, a senhora A.I, terá obviamente de aceitar tal intenção, do credor que goza de garantia real” e que “tendo presente que nenhuma adjudicação foi efetuada ao proponente da licitação, nem se pode aqui discutir a validade da venda”, tendo-se decidido que “confirmando-se o referido pela senhora A.I, deverá a mesma, face à caução do credor hipotecário prosseguir para a realização da escritura de compra e venda com este, por ser essa a normal tramitação da venda a realizar”.
No recurso e apesar da extensão das conclusões, a Recorrente defende essencialmente que: «não aceita esta interpretação errada que quer AI, quer o tribunal a quo fazem do artigo 164º n.º 2 e 3 do CIRE de que o credor hipotecário terá sempre que ser ouvido depois de obtida uma proposta de compra para o imóvel a liquidar»; «a obrigação da AI informar o credor hipotecário do resultado de leilão eletrónico, com vista a que o mesmo possa apresentar, se assim o entender uma proposta superior, não tem qualquer sustentação legal, nomeadamente no aludido art.º 164.º, n.º 2 e 3 do CIRE»; «a decisão da AI em adjudicar o bem ao credor hipotecário é ilegal por contrária à lei e como tal ferida de nulidade»; «o credor garantido não tem um “direito de preferência” na venda, ou seja, não tem o aludido credor que ser notificado da proposta apresentada com vista a apresentar, caso entenda, uma proposta superior»; «no caso em análise, a AI já tinha uma proposta firme para a aquisição do imóvel, a da Apelante, e mesmo assim, mesmo depois de notificar o credor hipotecário para os termos do artigo 164º do CIRE e daquele se manter em silêncio até ao momento do encerramento do leilão eletrónico, decidiu dar a oportunidade ao credor hipotecário de apresentar uma proposta como que se de um direito de preferência se tratasse»; «o credor hipotecário teve oportunidade de, em tempo, apresentar a sua proposta e não o fez»; e «o despacho é nulo, deve ser revogado e substituído por decisão que reconheça a extemporaneidade da proposta apresentada pelo credor hipotecário» (cfr. conclusões 10ª a 35ª).
Estas alegações/conclusões revelam-se insusceptíveis de constituírem um argumento juridicamente válido e fundado para colocar em causa o entendimento sustentado no despacho recorrido. Concretizando.
Como supra já se deixou explicado e ao contrário do que a Recorrente advoga, o disposto no nº2 do art. 164º do C.I.R.E. impõe ao administrador da insolvência (para além da audição sobre a modalidade da venda) a obrigação de informar sempre credor com garantia real quer do valor base fixado quer do preço da alienação projetada a entidade determinada, visando-se tutelar e proteger o tal crédito para obter a melhor satisfação do correspondente direito, tendo o legislador atribuído ao credor com garantia real (no nº3 do mesmo preceito), para esse efeito, a faculdade/ legal de adquirir (para si ou por terceiro) o bem onerado através da apresentação de uma proposta por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado.
Portanto, o ónus de informação que recai sobre o administrador da insolvência decorrente da 2ª parte do nº2 do art. 164º tem em vista precisamente o exercício daquela faculdade conferida ao credor com garantia real.
Nos presentes autos, no âmbito da fase da liquidação, foi determinada a venda do bem imóvel (sobre o qual incidia a garantia real - hipoteca) através de leilão electrónico e pelo valor base de € 282.690,00, tendo sido obtida a proposta da agora Recorrente no valor de € 248.000,00. Esta proposta, embora inferior ao «valor base», corresponde a mais de 85% do «valor base», atingindo o «valor mínimo» para que o bem possa ser efectivamente vendido (cfr. art. 23º da Port. nº282/2013 e art. 2º do Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15).
Logo, tal proposta apresentada no leilão electrónico configura, manifestamente, o «preço da alienação projectada a certa entidade» relativamente ao qual, por força do disposto nos nºs. 2 e 3 do citado art. 164º, a administradora da insolvência estava (e está) obrigada a informar o credor com garantia real e este podia (e pode) exercer a faculdade de propor a aquisição do bem por um valor superior.
Saliente-se que a notificação que a administradora de Insolvência havia realizado ao credor hipotecário (EMP01..., SARL) na data de 15/11/2023 apenas continha informação sobre a modalidade da venda e sobre o valor base, não contendo, naturalmente, qualquer informação sobre a proposta de aquisição que a Recorrente veio a apresentar no âmbito do leilão electrónico, pelo que esta notificação não configura, obviamente, o cumprimento do dever de informação previsto na 2ª parte do nº2 do art. 164º no que concerne ao «preço da alienação projectada a entidade determinada» (o silêncio do credor hipotecário perante aquela notificação reportou-se apenas à modalidade da venda e ao valor base de venda, valor este que nem sequer foi atingido pela proposta da Recorrente, donde tal silêncio jamais sequer podia representar uma «anuência prévia» a esta proposta).  
Deste modo, a comunicação/notificação da administradora da insolvência ao credor hipotecário sobre o valor da proposta apresentada pela Recorrente no âmbito do leilão electrónico, configura o cumprimento de tal dever de informação, ficando o credor hipotecário em efectivas condições para exercer a faculdade de propor a aquisição por valor superior ao daquela proposta (sendo para o efeito irrelevante que o credor hipotecário possa ter conhecimento de tal proposta através da disponibilização do resultado do leilão electrónico - cfr. art. 25º da Port. nº282/13).
Mostra-se, assim, absolutamente infundado o entendimento da Recorrente explanado no recurso no sentido de que «inexiste fundamentação/sustentação legal para que o credor hipotecário seja ouvido depois de obtida uma proposta de compra para o imóvel ou seja informado do resultado de leilão eletrónico», entendimento este que, assinale-se, não tem o mínimo de correspondência verbal no texto da lei (isto é, nos normativos dos nºs. 2 e 3 do referido art. 164º), pelo que não é admissível uma interpretação nesse sentido (cfr. art. 9º/2 do C.Civil).
Acresce que a Licitante/Recorrente tinha que estar consciente de que, como resulta do disposto no já citado art. 10º/5 do Despacho da Ministra da Justiça nº12624/15, “apesar de ter apresentado a licitação mais alta, tal não implica que o bem lhe possa efetivamente vir a ser adjudicado, por força dos condicionalismos legais, nomeadamente processuais”, sendo certo que que a faculdade reconhecida ao credor com garantia real no nº3 do art. 164º do C.I.R.E. configura um caso de «condicionalismo legal de caracter processual».
Mais acresce que, uma vez que a proposta da Licitante/Recorrente foi inferior ao «valor base», e ainda que tenha atingido o «valor mínimo», independentemente do exercício daquela faculdade, sempre a administradora da insolvência poderia recusar a aceitação de tal proposta, por entender, no âmbito da sua competência funcional autónoma para promover a liquidação do activo, que o valor proposto («abaixo do valor base») não era o mais adequado, satisfatório e conveniente (saliente-se que, conforme foi comunicado à Licitante/Recorrente pela encarregada da venda, EMP03..., em 11/01/2023, a sua proposta ia «ser submetida para análise, cujo resultado lhe será comunicado em tempo útil» - cfr. facto provado nº2). Frise-se que tendo o administrador da insolvência liberdade para recusar uma proposta do credor de valor superior ao preço da alienação projectada a entidade determinada (cfr. 2ªparte do nº3 do citado art. 164º), então, por maioria de razão, também liberdade para recusar uma oferta em leilão cujo valor é inferior ao «valor base». 
Nestas circunstâncias, quer a comunicação ao credor hipotecário informando-o sobre o valor da proposta obtida no leilão electrónico (€ 248.000,00), quer a não aceitação desta proposta da Licitante/Recorrente, quer a apresentação pelo credor hipotecário de uma proposta de valor superior (€ 248.500,00), quer a intenção da administradora da insolvência de adjudicar ao credor hipotecário o bem imóvel (saliente-se que nos autos ainda não existe uma efectiva decisão da Administradora da Insolvência a adjudicar o bem ao credor hipotecário), traduzem um conjunto de actos e decisões que têm total e absoluto respaldo na previsão legal dos nºs. 2 e 3 do art. 164º do C.I.R.E., pelo que, ao contrário do alegado pelo Recorrente, não padecem de ilegalidade nem de nulidade.
 No que concerne à invocação de que o «credor garantido não tem um “direito de preferência” na venda», releva-se totalmente ininteligível: é inequívoco que a faculdade estatuída no nº3 do art. 164º não corresponde à atribuição de qualquer «direito de preferência» ao credor com garantia real; o legislador apenas consagrou um procedimento peculiar para permitir uma melhor satisfação do crédito garantido, concedendo-lhe a possibilidade legal de propor a aquisição do bem onerado (para si ou para terceiro) por um valor superior ao do «valor base» ou ao do «preço da alienação projectada a entidade determinada», sendo certo que o legislador não estabeleceu qualquer limite mínimo para tal «valor superior» (ou seja, para o exercício desta faculdade apenas se exige que a proposta de aquisição seja de valor superior, independentemente do quantum do montante em que é superior); e assinale-se que essa proposta de «valor superior» pode nem ser aceite pelo administrador da insolvência (“se não aceitar a proposta”), donde resultam inócuas as considerações do Recorrente sobre a proposta do credor hipotecário «ultrapassar a sua apenas em € 500,00» e/ou «poder ser apenas de mais € 10,00».
Por último, não se verifica a alegada «extemporaneidade da proposta apresentada pelo credor hipotecário».
Como supra se explicou, expressão normativa «em tempo útil» constante do nº3 do art. 164º deve ser interpretada no sentido de que a proposta da aquisição pode ser apresentada até ao momento em que o Administrador da Insolvência comunica a sua aceitação («dá o seu acordo») da proposta de compra apresentada no âmbito de uma das modalidades da venda, isto é, até ao momento anterior ao da concretização da venda ou ao da assunção do compromisso firme de venda pelo administrador da insolvência («em tempo útil»).
E na conclusão 25ª a Recorrente defende precisamente este entendimento (“mas antes de concretizada a venda ou da tomada de compromisso firme de vender assumida pelo AI”).
Porém, de forma totalmente contraditória, na conclusão imediatamente seguinte (26ª), já defende que tal expressão normativa deve ser entendida como “até ao momento em que o administrador ainda não tenha uma proposta firme para o negócio”.
Para além de não constituir o entendimento que tem sido sufragado na doutrina e na jurisprudência (como anteriormente se explanou), também não tem qualquer sustentação na letra da lei. Relembre-se que, na 2ªparte do nº2 do art. 164º, o legislador impôs ao administrador da insolvência a obrigação de informar o credor com garantia real sobre o preço da alienação projectada a entidade determinada, o que, obviamente, pressupõe a prévia existência de uma concreta proposta para aquisição do bem a alienar (naturalmente apresentada no âmbito do procedimento de venda). Mais se relembre que tal dever de informação visa permitir ao credor com garantia real usar da faculdade (prevista no nº3 do art. 164º) de propor a aquisição do bem por um valor superior ao preço da alienação projectada a certa entidade (isto é, ao valor daquela concreta proposta da aquisição), donde resulta que é a partir do momento que lhe é prestada a informação que o credor pode, no «prazo de uma semana» ou «posteriormente mas em tempo útil», exercer tal faculdade: logo, não faz qualquer sentido, e é mesmo incompatível, que o segmento «em tempo útil» signifique e imponha que esta faculdade tenha que ser exercida até ao momento em que o administrador de insolvência recebe uma concreta e efectiva proposta de compra no âmbito do procedimento de venda (obviamente de acordo com as regras da modalidade de venda determinada); a ser assim, aquela obrigação de informação sobre o preço da alienação projectada a entidade determinada seria absolutamente ineficaz e inútil, e estaria completamente esvaziado o conteúdo da 2ªparte do nº2 do art. 164º. Portanto, não se pode acolher este segundo «entendimento» defendido pela Recorrente.
Ora, tendo a encarregada da venda comunicado à Licitante/Recorrente, na data de 11/01/2023, que a sua proposta apresentada no leilão electrónico (no valor de € 248.000,00) ia «ser submetida para análise, cujo resultado lhe será comunicado em tempo útil», é manifesto que, nesse momento e relativamente a essa proposta, não estava concretizada a venda nem sequer assumido o compromisso firme de venda por parte da administradora da insolvência, situação que se manteve quando, na data de 13/01/2023, o credor hipotecário (mais concretamente, CC e DD que vieram a ser habilitados no lugar do credor hipotecário) apresentaram à administradora da insolvência uma proposta de compra do bem no montante de € 248.500,00 (cfr. factos provados nºs. 2 e 3).
Daqui decorre, de forma inequívoca, que a proposta do credor hipotecário (de valor superior à oferta/proposta da Licitante/Recorrente) foi apresentada quer «no prazo de uma semana» (embora não se saiba a concreta data em que a administradora da insolvência prestou a informação, certo é que teve de ocorrer entre a data em que terminou o leilão - 11/01/2023 - e a data em que a proposta foi apresentada - 13/01/2023 -, pelo que é evidente que não decorreu este prazo), quer «em tempo útil» e, por via disso, a faculdade concedida ao credor com garantia real no nº3 do art. 164º foi exercida de forma tempestiva (e não extemporânea).
Cumpre aqui fazer a seguinte nota: nem nos autos nem neste recurso foi suscitada qualquer questão relativa à legitimidade dos dois credores que foram habilitados no lugar do credor hipotecário, apesar de, à data da apresentação da proposta (13/01/2023), os mesmos ainda não estarem habilitados (o incidente só foi deduzido em 19/01/2013 e a sentença que os habilitou apenas foi proferida em 22/02/2023); nestes termos, não cabe a este Tribunal ad quem apreciar tal questão.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que ficou exposto, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que não deve ser adjudicado à Recorrente o imóvel pelo preço oferecido em leilão (€ 248.000,00) pois não é extemporânea a proposta apresentada pelo credor hipotecário ao abrigo do disposto no nº3 do art. 164º do C.I.R.E., pelo que se deve manter a decisão recorrida (ainda que com base numa fundamentação mais ampla).
Consequentemente, deverá julgar-se improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente.
Improcedendo o recurso, porque ficou vencida, as custas do presente recurso deverão ficar a cargo da Recorrente - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
* *
5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente e, em consequência, mais decidem manter a decisão recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente.
* * *
Guimarães, 29 de Maio de 2024.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ª Adjunta - Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade;
2ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes.



[1]A presente decisão é redigida segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, mas respeita-se, no caso das transcrições, a grafia utilizada nos textos originais.
[2]Em resultado do requerimento apresentado pela Recorrente na data 17/03/2023 (ref. citius «14320941»), no âmbito do qual se peticionou a rectificação do lapso de escrita constante das alegações, quando se indicou o valor de «€ 240.000,00» quando se queria escrever o valor de «€ 248.000,00», por ser este o correspondente ao valor da proposta que apresentou.
[3]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[4]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [5]Juíza Desembargadora Maria Domingas, proc. nº1218/12.9TJVNF-AJ.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.   
[6]Cfr. Ac. RL 26/01/2023, Juíza Desembargadora Judite Pires, proc. nº718/22.7T8STS-D.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
[7]Juiz Desembargador Pedro Martins, proc. nº19657/15.1T8LSB-F.L1-2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
[8]Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, in Processos de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, 2023, p. 500 e 501.
[9]Ac. RG 23/09/2021, Juiz Desembargador António Barroca Penha, proc. nº1218/12.9TJVNF-AJ.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.  
[10]In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Iuris, 2015, p. 616.
[11]Juíza Desembargadora Teresa Fonseca, proc. nº7028/20.2T8VNG-C.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[12]Juiz Conselheiro Luís Espirito Santos, proc. nº7028/20.2T8VNG-C.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.  
[13]In obra referida, p. 616 a 618.
[14]Cfr. Ac. RG 15/09/2011, Juíza Desembargadora Isabel Rocha, proc. nº4771/07.5TBBCL-H.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrpg.
[15]Juíza Desembargadora Fátima Andrade, proc. nº3/10.7TBMLD-O.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[16]In obra referida, p. 616 a 618.
[17]Juiz Desembargador António Figueiredo de Almeida, proc. nº628/17.0T8AVV-F.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[18]Juiz Desembargador José Manuel Barata, proc. nº676/18.2T8OLH-C.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.
[19]Juiz Desembargador Aristides Rodrigues de Almeida, proc. nº615/11.1TYVNG-D.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[20]Juiz Desembargador Joaquim Espinheira Baltar, proc. nº8579/09.5TBBRG-E.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[21]Cfr. Ac. RG 17/02/2022, Juíza Desembargadora Maria João Matos, proc. nº2549/11.0TJVNF-J.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.  
[22]Cfr. Ac. 21/02/2019, Juiz Desembargador Pedro Martins, proc. nº574/16.4T8ALM.L1-2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrgl e Ac. RG 06/05/2021, Juíza Desembargadora Maria João Matos, proc. nº228/13.3TBCBC-D.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.  
[23]Disponíveis em https://www.e-leiloes.pt/faqs.aspx.