Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA LEONOR BARROSO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO PARTICIPAÇÕES OBRIGATÓRIA DO SINISTRO FALTA DE PARTICIPAÇÃO DO TRABALHADOR AO EMPREGADOR | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 12/03/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO SOCIAL | ||
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Sumário: | Verifica-se a caducidade do direito de acção às prestações devidas por acidente de trabalho, porquanto a autora participou ao tribunal um alegado sinistro ocorrido há mais de 6 anos, sem que antes alguma vez o tenha comunicado à empregadora - 179º,1 LAT.. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO Em 30-11-2022, AA, empregada doméstica, patrocinada pelo Ministério Público, deu entrada de participação de alegado acidente de trabalho que teria ocorrido em 28-01-2016, contra o empregador BB. Na tentativa de conciliação compareceram a “sinistrada”, o empregador e a seguradora Companhia de Seguros EMP01..., Sa. Frustrou-se a conciliação porque nem a seguradora, nem o empregador aceitaram a ocorrência de acidente de trabalho. Mais referiu a ré EMP01... que “o evento dos autos ocorreu em 28/01/2016, e que só foi participado à seguradora em 12/12/2022”, ou seja, após a instauração da acção, acrescentando que sempre teriam de ser tido em conta os valores que a autora, vitima de acidente de automóvel, já recebeu da seguradora do ramo automóvel. Os autos prosseguiram para a fase contenciosa, tendo a autora apresentado petição inicial, reclamando valores a título de IT´s e de IPP, além de reembolso por despesas de transporte e juros de mora. Alega que era empregada doméstica do réu BB e que, em 28-01-2016, no percurso da sua residência para o local de trabalho, quando conduzia um ciclomotor, sofreu um acidente de viação na Av. ..., em ..., ..., do qual lhe resultaram lesões determinantes de IT´s e de IPP. A ré seguradora contestou e, além de impugnar os factos, arguiu a excepção de caducidade porque a autora nunca lhe participou o acidente de trabalho (apenas o fez com a instauração da acção), nem tão pouco o participou ao empregador. O réu empregador, além de impugnar os factos, alegou igualmente que a caducidade do direito de acção, porque a autora, sua empregada doméstica, nunca lhe comunicou o alegado acidente de trabalho. Mais refere que sabe que esta sofreu um acidente de mota quando se deslocava para tratar de assuntos pessoais em dia que não viria trabalhar, tendo ficando de baixa médica a partir dessa data (28-1-2016). A autora não respondeu à excepção. O juiz a quo proferiu o seguinte DESPACHO: “Entende-se ser possível decidir desde já a excepção de caducidade invocada pelas RR. Assim, concede-se o prazo de dez dias à A. para, querendo, se pronunciar sobre esta matéria.” A autora não respondeu. Foi proferido despacho saneador a declarar procedente a excepção de caducidade e absolver os RR do pedido. (Dispositivo “Julgar procedente a invocada excepção peremptória de caducidade e, em consequência, absolver os RR. dos pedidos. Sem custas – por a A. se encontrar isenta.”) A autora interpôs recurso deste despacho FUNDAMENTOS DO RECURSO DA AUTORA- CONCLUSÕES: “1) A factualidade em crise dada como assente é controvertida; 2) Não sendo permitida a decisão da matéria de facto, nesta parte, por alegada falta de impugnação; 3) Particularmente quando estão em causa direitos de natureza indisponível, como é o direito à reparação de um acidente de trabalho; 4) O non liquet sobre o ponto de facto em reporte é mandatório do prosseguimento da instância; 5) Os autos não fornecem nesta fase processual todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa e justa; 6) Existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas, é prematuro o conhecimento da excepção peremptória de caducidade antes da fase de julgamento; 7) Pelo que deverá ser revogada a decisão recorrida e determinado o prosseguimento dos autos, visando o conhecimento da excepção em sede de decisão final; 8) Subsidiariamente, caso seja outra a posição sufragada, entende-se que a decisão da matéria de facto em crise enferma de erro de julgamento; 9) Os fundamentos invocados na decisão da matéria de facto são insuficientes para ser considerado como assente o ponto 2 dos factos provados; 10) Do exame crítico do acervo probatório disponível, incidente sobre a prova documental, em conjugação com as máximas da experiência e as regras da lógica, não pode deixar de se considerar que a decisão a proferir sobre a questão de facto impugnada deve ser a seguinte: «2 – a A. comunicou à sua entidade empregadora o sinistro como sendo um acidente de trabalho, no prazo de 48 horas.» 11) Não foram observados todos os imperativos legais do princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 607º, nº. 5, do CPC; 12) Pelo que a decisão da matéria de facto deverá ser alterada em conformidade; 13) O prazo de caducidade respeitante ao direito de acção às prestações pressupõe uma triplicidade cumulativa: - não ter sido proposta no prazo de um ano; - a contar da data da alta clínica; - alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado, através da entrega de duplicado do boletim de alta; 14) Em caso de participação do acidente ao empregador, seguido do incumprimento do dever imposto a este último de o participar à entidade seguradora, o prazo de caducidade não pode produzir os seus efeitos jurídicos, obstando assim ao início da sua contagem; 15) De acordo com as regras e os princípios da hermenêutica jurídica, a interpretação jurídica propugnada é que melhor se adequa à natureza do direito infortunístico; 16) Neste conspecto, a subsunção jurídica defendida na decisão em crise não se revela acertada, mesmo na perspectiva de não operar a pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto; 17) Devendo ser julgada improcedente a excepção peremptória de caducidade; 18) Foram, pois, violadas as normas previstas nos arts. 328º a 333º do Código Civil, e 86º a 92º e 179º, da Lei n.º 98/2009, de 04/09, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, e arts. 595º, 596º, 607º a 612º, do Código de Processo Civil, e arts. 73º, 74º, 77º, 131º e 135º, todos do Código de Processo do Trabalho. “ Nestes termos, e nos demais, que Vossas Excelências, como sempre, sabiamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento, de acordo com as precedentes conclusões...” CONTRA-ALEGAÇÕES DA RÉ EMP01...: propugna pela manutenção da decisão recorrida. Salienta que a A. “nada alega quanto a ter participado atempadamente ao R. empregador o alegado acidente de trabalho... Jamais alegou que comunicou ao seu patrão estarmos perante um acidente de trabalho. Tal facto era, atento o tempo decorrido entre a ocorrência do acidente e a participação do mesmo juízo – quase 7 anos – essencial para a causa de pedir da A. ...Não alegou, nem na PI nem em qualquer momento posterior – maxime – em sede de resposta às contestações das RR. que participara o acidente de trabalho à sua entidade patronal. Não pode, por isso, pretender agora incluir tal matéria nos autos – ao não responder â excepção invocada, só o fazendo agora, em sede de recurso, é evidente que a alegada não participação do acidente tem que ser dada por assente.” CONTRA-ALEGAÇÕES DO RÉU EMPREGADOR: propugna pela manutenção da decisão recorrida, reiterando os argumentos da co-ré. O recurso foi apreciado em conferência – 659º, do CPC. QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso[1]): impugnação da matéria provada, ponto 2; caducidade do direito de acção que a autora pretende exercer nos autos. I.I. FUNDAMENTAÇÃO A) FACTOS: 1 – A A., no dia 30/11/2022, apresentou participação neste tribunal referente a um acidente de que diz ter sido vítima no dia 28/1/2016. 2 – Até à data referida em 1), a A. nunca comunicou à sua entidade empregadora aquele sinistro como sendo um acidente de trabalho. 3 – Até à data referida em 1), nunca foi comunicado à R. seguradora o acidente aí referido, nem nunca esta prestou qualquer assistência médica à A. em virtude desse acidente. B) Impugnação da matéria de facto Pretende a autora que fique provado que: «2 – a A. comunicou à sua entidade empregadora o sinistro como sendo um acidente de trabalho, no prazo de 48 horas.» Diga-se, liminarmente, a talhe de foice, que a autora não cumpre o ónus de impugnação especificada ao não identificar cabalmente o facto impugnado, que exige a referência à peça onde a matéria foi alegada, para que o tribunal possa comparar a resposta dada com a alegação da parte e, assim, avaliar a decisão- 640, 1, a), CPC. O que leva à rejeição do recurso, nesta parte. Ainda que assim não se considere, a impugnação não procederia. Da leitura da petição inicial verifica-se que a autora não alegou este facto. A peça é totalmente omissa na matéria. Já as rés, na contestação, alegaram o facto contrário: que a autora nunca lhes participou o alegado acidente de trabalho, excepciondo a caducidade do direito de acção, face ao decurso do tempo. A autora, expressamente notificada para se pronunciar (ver relatório), não contestou este facto. O qual, por falta de impugnação, se tem por admitido por acordo - 1º, 2, a), CPT, 3º, 572º, c), 573º, 1, 576º, nº 3, CPC. Decorre ainda do exposto que, ao contrário do pretendido pela autora, o tribunal nunca poderia dar como provado que ela participou o acidente à empregadora, quer porque tal facto não foi alegado oportunamente, quer porque o mesmo se opõe a outro já provado. Improcede a impugnação à matéria de facto. C) Impugnação da matéria de direito Coloca-se a questão de saber se ocorreu a caducidade do direito de acção da autora relativamente às prestações conferidas pela lei dos acidentes de trabalho. Segundo o artigo 179º,1, da Lei 98/2009, de 4-09, aplicável aos autos tendo em conta a data do alegado sinistro (doravante LAT): “1-O direito de acção respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta”. Ainda de acordo com o artigo 329º do CC: “O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido”. Para que não ocorra a caducidade terá, em determinado prazo, de ser praticado o acto a que se atribui o efeito impeditivo. No caso será o início da instância que se dá com o recebimento em tribunal da participação do acidente de trabalho – 331º CC, 259º, 1 CPC, 26º, 4, 99º, 1, CPT. A caducidade é uma forma de extinção de direitos potestativos que resulta da falta do seu exercício num determinado prazo. É um instituto que se funda em razões objectivas de segurança e certeza jurídica, prosseguindo o interesse público de definição dos litígios a que respeita – Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., p. 961. O seu fundamento específico é a necessidade de certeza jurídica, o que justifica que certos direitos devam ser exercidos durante certo prazo, findo o qual a situação das partes fica inalteravelmente definida – Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 2ª reimpressão, p. 464. Por regra os prazos de caducidade referem-se a prazos de propositura de acção. Assim, nos termos supraditos, obsta-se à caducidade propondo a acção dentro do prazo estabelecido - Manuel de Andrade, ob. cit., p. 465. No caso dos acidentes de trabalho, a LAT estipula que o prazo se inicia a partir da data da alta clínica comunicada ao sinistrado[2], excepto se do acidente de trabalho resultar em morte, caso em que se conta a partir desta última. Estes serão os eventos “normais” que desencadeiam o início da contagem do prazo. Na realidade:” Somente a partir de então fica o sinistrado habilitado a exercer os seus direitos se não concordar, quer com a situação de cura clínica, quer com o grau de incapacidade que lhe tenha sido atribuído” - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2º ed, p. 152, em anotação ao artigo 32º da 100/97, de 13-09. Só quando o sinistrado tem conhecimento da posição da seguradora está, portanto, apto a reagir. Mas a lei, geral e abstracta, não consegue prever e contemplar todas as hipóteses concretas da vida real. A situação dos autos escapa à referida previsão. A autora não foi assistida pela seguradora, de resto não o poderia ser, dado que até à propositura da acção, nunca lhe foi comunicado o acidente. A data da alta clínica não é, portanto, um evento que no caso seja operacional. A realidade é que a trabalhadora nunca comunicou o acidente ao empregador (da documentação junta aos autos resulta que foi assistida pela seguradora de ramo automóvel, na altura accionada). O alegado sinistro somente é participado pela sinistrada ao tribunal mais de 6 anos após a sua suposta ocorrência. A lei de acidente de trabalho estabelece uma sequência de participações obrigatórias de sinistro. A primeira do sinistrado e/ou beneficiário ao empregador, a efectuar em 48h (caso este dele não tenha conhecimento). A segunda, do empregador à seguradora[3], a efectuar em 24h a partir do conhecimento. Finalmente, a da seguradora ao tribunal, a qual só é obrigatória se do acidente resultar morte, incapacidade permanente ou incapacidade temporária superior a 12 meses, sendo os prazos, respectivamente, de imediato, de 8 dias a contar da cura clinica e de 8 dias da verificação da IT prolongada– 86º, 87º, 90º LAT. Como se vê tratam-se de prazos curtos. Motivados na natureza urgente e no interesse público e social de que os acidentes de trabalho estão imbuídos, regime que almeja uma rápida reparação. Mas certamente também motivados na constatação natural de que o decurso do tempo dificulta o apuramento das lesões e a fixação dos nexos de causalidade, dos graus e da natureza de eventuais incapacidades, para não falar das dificuldades de reconstituição da verdade histórica do próprio acidente e do esbatimento da força de alguns meios probatórios. Evidencia-se que a base de funcionamento deste sistema começa com a necessidade de o sinistrado informar o empregador do acidente (caso este não o presencie ou dele não tenha conhecimento, como seria o caso dado que terá ocorrido um acidente de viação). Ora, não tendo a autora cumprido a sua obrigação de participar o sinistro à empregadora, o prazo de caducidade deverá contar-se a partir da data do alegado acidente. Não havendo motivo para que assim não seja, considerando este o evento a partir do qual estaria apta a exercer o seu direito e tendo, também, em conta que foi a autora quem inviabilizar que a lei não se cumprisse, isto é, impedindo que o empregador comunicasse o sinistro à seguradora e que esta assistisse a autora e lhe comunicasse a alta, se fosse esse o caso. Não interessa entrar na discussão de saber se a sinistrada teria de participar ao tribunal o sinistro, problemática tratada em certos arestos, a qual pressupõe a prévia comunicação do evento pelo sinistrado à empregadora e uma subsequente omissão desta ou da seguradora. Do que se trata nestes casos é de saber se, tendo já o sinistrado cumprido a sua obrigação, ainda assim, à cautela, face ao incumprimento da empregadora ou da seguradora, deve aquele participar o acidente ao tribunal, embora a isso não esteja obrigado. No caso distinto dos nossos autos, a sinistrada incumpriu a sua própria obrigação de participação, impedindo o funcionamento do sistema. Assim, o início de contagem do prazo de caducidade terá de contar-se a partir da alegada ocorrência de sinistro nos termos já ditos, por, em princípio, a partir de então estar em condições de reclamar os seus direitos. Considerar-se a acção como tempestiva, passados que estão mais de seis anos, seria menosprezar o principio subjacente à caducidade, qual seja a necessidade de segurança jurídica, sem que se vislumbre motivo válido para a inércia da autora. I.I.I. DECISÃO Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663. do C.P.C, acorda-se em negar provimento ao recurso confirmando-se na íntegra a decisão recorrida. Custas a cargo da recorrente. Notifique. 3-12-2024 Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora) Vera Sottomayor Antero Dinis Ramos Veiga [1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s. [2] A necessidade de comunicação ao sinistrado de um modo formal e garantístico está consolidada na jurisprudência. [3] No caso de empregadores com responsabilidade de acidentes de trabalho transferida para seguradoras. |