Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3268/17.0T8BRG.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO DOS DEPOIMENTOS
NULIDADE PROCESSUAL
PRAZO DE ARGUIÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO DA NULIDADE
ANULAÇÃO DO JULGAMENTO/REPETIÇÃO DE DEPOIMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A deficiência da gravação dos depoimentos prestados em audiência constitui uma irregularidade que pode influir no exame e na decisão da causa, devendo tal nulidade ser arguida pela parte, no prazo de 10 dias a contar da disponibilidade dos registos pelo tribunal, nos termos do artº155º nº4 do CPC.

II- O tribunal da Relação pode, no entanto, conhecer oficiosamente dessa nulidade, ao abrigo do artº 9º do DL nº 39/95, de 15.2 e do artº 156º, “in fine” do CPC.

III- Isto porque o art.º 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, não se encontra revogado (expressamente) pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou o atual CPC, nem de forma tácita pelo preceituado no art.º 155º do mesmo código, constituindo, pelo contrário, aquele normativo um “caso especial em que a lei permite o conhecimento oficioso” (da nulidade processual) a que alude o art.º 196.º, in fine, do atual CPC.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Fernando Fernandes Freitas
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S. N., melhor identificado nos autos, demanda nesta acção declarativa com processo comum, X – Garantia e Assistência Automóvel, S.A., também melhor identificada nos autos, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de
Alega para tanto que adquiriu, no dia 24 de Março de 2016, o veículo automóvel da marca Volksvagen modelo Sharan, à Y Unipessoal, Lda., a qual, na qualidade de vendedora, celebrou com a ré um contrato de garantia n.º ..., tendo como beneficiário o A, e cujo objecto de cobertura eram as eventuais reparações (peças e mão de obra) causadas por uma avaria mecânica ou eléctrica de origem fortuita, e que se tornassem necessárias à reposição do veículo vendido no estado anterior à avaria.

Acontece que na altura do Natal de 2016 o veículo adquirido pelo A. começou a produzir um ruído em andamento e a trepidar o volante, situações que têm origem numa anomalia/avaria na caixa de direcção, e que o A. denunciou à Ré logo em Dezembro de 2016, que não autorizou a reparação do veículo, por entender que a caixa de direcção não padece de qualquer anomalia, o que comunicou ao A. em 12 de Janeiro de 2017, voltando o A. a insistir pela reparação em Janeiro e Maio de 2017, sem êxito, vendo-se então na contingência de ter de mandar reparar a viatura, em Maio de 2107, na qual despendeu a quantia de € 1.724,73, tendo o veículo parado cerca de 5 meses e outras despesas com a paralisação e a resolução do problema, despesas pelas quais pretende ser ressarcido.
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Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte Decisão:

“Face ao exposto julga-se a acção parcialmente procedente, e decide-se: a) Declarar a existência da anomalia referida em 9 dos factos provados e condenar a R. a proceder à reparação da mesma; b) Condenar a R. a pagar ao A. a quantia de 1250€ (mil duzentos e cinquenta euros) a título de danos pela privação do uso e não patrimoniais, que vencerão juros desde esta decisão – actualizadora – até efectivo e integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento que se fixa em 40% para A. (sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie) e 60.% para R…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a ré interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

1 Por requerimento entrado em juízo via plataforma "citius" a ora Recorrente arguiu a Nulidade dos depoimentos prestados em audiência de julgamento nos termos e com os fundamentos seguintes:
2 A R. foi notificada da sentença proferida nos presentes autos, via citius, por notificação eletrónica elaborada em 29/10/2018, pelo que tida como notificada em 02/11/2018, sexta-feira.
3. lnconformada com o teor da sentença, por requerimento junto aos autos via citius, em 06/11/2018, a R. solicitou que, para efeitos de recurso, lhe fosse facultada cópia dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, juntando o respetivo CD para o efeito.
4. O prazo para a R. poder apresentar as suas alegações de Recurso termina no dia 12 de Dezembro, uma vez que o mesmo, tendo por objeto a reapreciação da prova gravada, atento o disposto nos nºs 1 e 7 do artº 638.° do Código do Processo Civil, é de 40 dias.
5. O mesmo requerimento referido em 2. foi enviado ao Tribunal, via CTT, acompanhado do mencionado CD, com registo da mesma data (cfr Doc 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
6. O CD para ser transcrito foi recebido no Tribunal no dia 8 de Novembro, cfr mesmo Doc 1 e, apesar da cota lavrada, com data de 08/11/2018, a R., na pessoa da sua mandatária, recebeu a cópia daqueles registos em 14/11/2018, quinta-feira.
7. A A. iniciou a audição do CD na segunda-feira seguinte, dia 20/11/2018, tendo iniciado também a sua transcrição integral na mesma data.
8. Apesar de ter verificado que os depoimentos das testemunhas indicadas pelo A., correspondentes aos depoimentos iniciais, apresentavam cortes e registos impercetíveis, foi à medida que foi avançando na transcrição dos depoimentos que a R. percebeu que tais problemas afetavam efetivamente a perceção da audiência de julgamento.
10. Ora as falhas registadas comprometem, não só o direito de Recurso da A. como a possibilidade da sua sindicância pelo Tribunal superior.
11.Tal deficiência afeta partes de todos os depoimentos, não só as perguntas colocadas pelos mandatários são de difícil perceção, como é particularmente afetada a audição das respostas das testemunhas.
12. Existem excertos dos depoimentos, designadamente das testemunhas A. G., L. S., da testemunha S. S. e da testemunha M. R., absolutamente ininteligíveis.
13. Ora, as audiências finais, os depoimentos, informações e esclarecimentos nelas prestados são gravados quando alguma da partes o requeira ou o tribunal o ordene oficiosamente, sendo a gravação efetuada, em regra, por sistema sonoro, nos termos dos artº 155º do C. P. Civil.
14.Como decorre do nº 7 do artº 638.° do mesmo diploma legal, sobre o recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto recai o ónus de indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na ata, nos termos do artº 155º do C. P. Civil, sob pena do recurso ser rejeitado.
15.A falta de gravação (ou a sua deficiência), nos casos em que a lei a prevê, constitui a omissão de ato prescrito por lei que é suscetível de ter influência no exame e decisão da causa, o que importa nulidade do ato e dos subsequentes e absolutamente dependentes (artº 195º e 196º do C. P. Civil).
16. Constituindo a omissão ou deficiência da gravação dos depoimentos uma nulidade (…) sujeita à regra/prazo geral de arguição previsto no artigo 198º do C. P. Civil.
17. O prazo da arguição é de 10 dias (artº 149 do C. P. Civil) a contar do conhecimento da nulidade ou do momento em que se considere que esse conhecimento deveria ter ocorrido, se a parte tivesse sido diligente.
18. 0 prazo de arguição deve, assim, ser contado a partir do momento concreto em que a parte teve conhecimento da falta ou falha de gravação dos depoimentos prestados em audiência, conquanto esteja dentro do prazo que dispõe para alegar, o que pode mesmo remeter o campo da sua arguição para as alegações de recurso (cfr entendimento jurisprudencial pacífico e unânime, vertido, nomeadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão de 15-07-2009 disponível em www.dgsi.pt).
19.Assim, requer-se a anulação da prova produzida em audiência de julgamento, bem como dos demais atos processuais subsequentes à mesma, com a consequente repetição da produção de prova testemunhal,
21. a sentença recorrida fez errada apreciação da Prova carreada para os autos e, consequentemente, encerrando decisão errada sobre a matéria de facto.
22. a sentença recorrida fez errada apreciação da prova carreada para os autos, nomeadamente dos documentos juntos, dos depoimentos e declarações prestados em audiência de julgamento, pelo que, encerrou errada decisão sobre a matéria de facto, quanto aos factos que considerou provados, designadamente sob os números 9, 11,13 a 16.
23. Quanto ao Facto 9, 1ª parte - relativo à existência de ruído e trepidação, não podia o Tribunal a quo ter dado como provada a existência de trepidação, uma vez que, em documento algum, ou nas declarações do A. que se deixaram parcialmente transcritas, foi mencionada trepidação na direção.
24. Aliás, do relatório de peritagem junto com a PI sob o nº 10, resulta o seguinte "na nossa segunda analise foi possível concluir que a fonte de ruído não se transmite até ao volante, nem através de vibrações nem de outro movimentos anómalos. - Parágrafo 5.° da página 2 do relatório sob o título "conclusão das intervenções técnicas",
25. Pelo que, não podia a sentença ora em crise ter dado como provado mais do que um ruído audível apenas em piso irregular ou acidentado, como se impõe da análise dos relatórios periciais, assim como do depoimento da testemunha S. S.. E L. S..
26. Quanto à 2.a parte do facto 9 - existência ou não de uma anomalia na caixa de direção, a ponderação da prova constitui um erro grosseiro de julgamento por parte do Tribunal a quo.
27. Importa salientar que é este facto constitutivo do direito do A. à reparação peticionada assim como do seu direito às indemnizações que acabou por ver atendidas, pelo que, à luz das regras basilares quanto ao ónus da prova, de harmonia com o prescrito no artº 342.° do Código Civil, cabia ao A. fazer prova desta avaria na caixa de direção.
28. Ora, o A. não fez essa prova.
29 Esmiuçando o relatório de peritagem feito por empresa independente da R. e juntos até pelo A. na sua petição inicial, sob o nº 10, não obtiveram por parte do Tribunal a valoração devida.
30 Das duas intervenções técnicas minuciosamente documentadas e cujas conclusões se transcreveram retirou a sentença recorrida apenas que “Das peritagens feitas pela R (e que constam dos documentos juntos na p.i.) resulta que não existe essa anomalia" cfr motivação deste facto; desvalorizando todas as diligências-, testes e conclusões levadas a cabo pelos técnicos peritos, apesar de até corroboradas pelo A. nas suas declarações.
31. Mais desvalorizou a sentença recorrida o depoimento da testemunha L. S., rotulando-o de inócuo, quando este deu conta da sua formação como mecânico, posta ao serviço da R. como técnico de sinistros há 20 anos e que suportou a fiabilidade técnica dos relatórios de peritagem e corroborou o depoimento da testemunha S. S..
32. Também quanto ao depoimento deste último, também a sentença recorrida não o valorou devidamente, já que este relatou de forma clara, pormenorizada e desinteressada os vários procedimentos que realizou no carro para despistar ar da existência da alegada avaria na caixa de direção, tendo sido perentório, ao afirmar repetidamente que a caixa de direção não apresentava avaria, negando essa existência com firmeza suportada, legitimada pelos testes que realizou e conclusões que dos mesmos tirou.
33. A oficina que suporta a tese do A., a M. C., ouvida na pessoa da testemunha A. G. também não procedeu á desmontagem da caixa de direção para suportar que a mesma apresenta avaria.
34. Cabia ao Tribunal a quo, terá de fazer recair a exigência de tal procedimento ao A., a quem compete provar a existência da avaria, em obediência o ao disposto no artº 342.° do Código Civil.,
35. Em reflexão sobre as declarações de parte do A., valoradas pelo Tribunal a quo, não só para suporte do juízo de mérito do facto nº 9, mas dos demais factos dados como provados, importa dizer que, com todo o respeito, um julgador minimamente atento, teria percebido que o A. falta à verdade quando inquirido em sede de audiência de julgamento.
36. Deixámos transcritos algumas passagens das quais esta conclusão resulta incontornável, pelo que não podem pois as declarações de parte do A. ser valoradas naquilo que as mesmas o possam beneficiar, já que é flagrante a falta de verdade emprestada às mesmas.
37. E quanto ao depoimento da testemunha A. G., que a sentença recorrida também elegeu para suportar a condenação da R. importa concluir que carece de consistência para esse efeito:
38. Resulta evidente do depoimento daquela testemunha que este não fez qualquer diligência ou que justifique a sua posição de que a caixa de direção padece de avaria, já que seu diagnóstico é suportado pelo próprio apenas nos seus anos de experiência
39. É elevado o grau de insegurança e incerteza que resulta do depoimento desta testemunha sendo esta a única, das arroladas pelo mesmo, a prestar depoimento de natureza técnica com vista a suportar a sua tese trazida a juízo.
40. Esta é voz dissonante em contraponto com a tese da R. suportada por dois relatórios técnicos e duas testemunhas com conhecimentos técnicos a validar a sua razão de ciência, todas com demonstrações de certeza e credibilidade bastante superiores àquela.
41. não pode ser isto que o Tribunal a quo valora como adequado ou suficiente para dar provimento ao pedido do A.
42. Não pode a sentença recorrida acolher e valorar esta "não prova."
43. E dos demais documentos juntos pelo A., nos quais a sentença recorrida também faz recair a motivação da sua decisão, (Docs. 11 a 14 da sua PI, mais não se retira do que versão do A., reiterada pelo próprio, a reiterar a opinião da oficina M. C., como se deixou dito, sem suporte técnico ou outro, adicional, para o efeito.
44. Destes documentos também não é possível retirar elemento que permita concluir no sentido da existência de avaria na caixa de direção.
45. Não podia a sentença recorrida ter feito tábua rasa de 2 relatórios feitos por empresa reputada no mercado, independente, assim como da opinião sustentada das testemunhas, técnicos, L. S. e S. S..
46. Isolando o depoimento da testemunha A. G., sem suporte, com interesse em reparar a viatura, como aliás já antes acontecera, a expensas da R., conforme declarado pelo A. nos primeiros minutos das suas declarações
47. O facto de a oficina onde trabalha a testemunha A. G. ter apresentado orçamento para a respetiva reparação, como motivação em abono da tese do A., no sentido da verificação da avaria, tem de relevar até para ilustrar o interesse daquela oficina em proceder à reparação, por ser este o objeto a que se dedica com fins lucrativos.
48. Não podendo o Tribunal ter como inócuo que a defesa da existência de avaria venha de quem interesse na decisão da causa - o A. por aqui ser parte e pretender a substituição de peça de desgaste ainda na vigência da em garantia, e a oficina que visa fazer a reparação a expensas da R.
49. A D., responsável pelas duas peritagens feitas à viatura é entidade independente, assim como o é a oficina C., representada pela testemunha S. S. que, se interesse tivesse, seria o de pugnar pela existência de avaria para que pudesse repara-Ia, já que é também esta a sua atividade.
50 A viatura em causa não foi reparada até aos dias de hoje.
51. E continua a circular, tendo já percorrido mais de desde 26.000 desde que foi peritada pela primeira vez.
52. E esta "nuance" é demonstrativa de que o tribunal a quo valorou mal prova carreada para os autos.
53. Se a viatura padecesse da alegada avaria, nao poderia ter continuar a circular, percorrendo 26.000Kms, sem que a situação se tivesse agravado de forma que ainda permitisse a sua circulação com a segurança necessária par o A. aí transportar a sua família.
54. Tudo o que se deixou evidenciado, impõe que o facto dado como provado sob o nº 9 seja dado como não provado.
55. Quanto ao facto 11 - O custo da reparação da anomalia, incluindo mão-de-obra, é de 1.724,73€. E considerando a inexistência da alegada anomalia, não podia a sentença recorrida ter apurado valor para a sua reparação.
56. Quanto ao Facto 13 -, não pode deixar de ter-se como não provado que resultou apurado por confissão do A. que entre a data da peritagem de janeiro de 2017, em que o carro marcava 144.000Kms e a data de audiência de julgamento em que tinha já 170.000Kms percorridos., não podendo ter-se como verdadeiro que o A. teve o carro imobilizado durante cerca de 5 meses.
57. As declarações de parte e o depoimento da sogra do A, também não suportam a prova do referido facto, as daquele já sobejamente inquinadas, contêm expressões exagerada, não credíveis também quanto a este ponto.
58. Reitera se pois que a viatura em questão não esteve parada pelo tempo alegado pelo A. e considerado pela sentença recorrida.
59. E, se o tivesse estado, o que sói por hipótese de raciocínio se equaciona, sempre o seria por vontade do A. e não por causa imputável á R. de harmonia com tudo o que se deixou demonstrado, já que a carrinha estava em perfeitas condições de funcionamento,
60. E o mesmo se impõe concluir quanto ao facto 14 da matéria dada como assente: - Conduzir o veículo (sem reparar o defeito) é um risco para a segurança do A. e do seu agregado familiar.
61. A carrinha sub judice não padecia de avaria na caixa de direção, nunca se verificou qualquer risco para a segurança do A. e do seu agregado familiar.
62. Se a carrinha neste momento se encontra a circular, 2 anos depois de se ter verificado o ruído, conforme resulta aceite, e até à data nenhum problema relacionado com a segurança do A. e do seu agregado familiar se verifica não pode deixar de conclui-se que durante os alegados 5 ou de alegada imobilização, o mesmo perigo nunca existiu
63. Quanto ao facto 15 - Não se pode aceitar que o Tribunal tenha considerado de "inércia" a atitude da R. quando resulta assente nos autos que a R., em face das reclamações do A. mandou realizar 3 perícias à viatura em causa, assim como, sempre respondeu a todas comunicações do A, cfr resulta inequívoco dos documentos juntos com a Petição Inicial.
64. Diga-se ainda que se o A. teve de recorrer a serviços de advogado, mais uma vez, tem de concluir-se que o não foi por facto imputável à R. por tudo o que se já deixou demostrado.
65. Por fim me quanto ao Facto 16 da matéria assente importa referir que se o A. acompanhou as duas peritagens, perdeu dias de trabalho para acompanhar o veículo às peritagens, tendo sempre de arranjar alternativas para conseguir transportar 3 crianças, a sua esposa e a sua sogra, quando, de facto, havia comprado o veículo em causa com a finalidade de facilitar o dia-a-dia da sua numerosa família.
66. Conforme se deixou sobejamente alegado e demonstrado, não podia o Tribunal a quo ter dado comprovado este facto com a motivação que deixou indicada atenta a falta de credibilidade que merecem as declarações prestadas pelo A., bem como a falta de conhecimento e de isenção demostrados pela sua sogra, a testemunha M. R..
67. Na verdade, não estava sequer o A. obrigado a comparecer às peritagens; o veículo encontrava-se nas oficinas que participaram a avaria à R., pelo que, se o A. aí se deslocou foi porque assim entendeu.
68. Aliás, a realização das peritagens não é de forma alguma é imputável à R. a título de dano por qualquer incumprimento contratual.
69. E não o poderiam ser a qualquer outro título conforme decorre do disposto no clausulado do contrato garantia, reconhecido pela sentença recorrida.
70. Pelo que, nesta medida o Tribunal recorrido não fez só errada apreciação da prova como também falhou na respetiva subsunção ao Direito.
71. E o mesmo se diga quanto à necessidade do A. encontrar alternativas para o transporte do seu agregado familiar, -Ficou demonstrado por assumido pela testemunha M. R. e pelo próprio que estes tinham outro carro, com capacidade para transportar 5 pessoas, sendo a falta da carrinha a mera impossibilidade prática de transportar em conjunto, num único carro, os 6 elementos da família, designadamente a sogra do A.
72. mais uma vez e se assim não se entendesse, sempre estes alegados "danos" não seriam imputáveis à R. por ter esta cumprido todas as suas obrigações contratuais e porque como resultado supra alegado, a imobilização do veiculo não foi nunca necessária.
73. Esta conclusão decorre, naturalmente da questão fulcral do presente pleito, a falta de prova do facto considerado provado sob o nº 9.
74. Na verdade não podia o Tribunal a quo ter desconsiderado ter dado como provados noa factos supra elencados, impondo-se que os mesmos recebam decisão no sentido da sua não prova.
75. Por fim, a sentença recorrida fez incorrecta subsunção dos factos ao Direito, mostrando-se atacável também a respetiva fundamentação, já que condenou a R. no pagamento de indemnizações por privação de uso de viatura e danos morais, sem concretizar os danos alegadamente sofridos pelo A., bastando se com a sua invocação genérica.
76 E, por conseguinte, sem estabelecer o nexo de causalidade entre a alegada ilicitude e os alegados danos.

Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente Recurso, revogando-se a sentença de fls. substituindo-se a mesma por decisão que absolva a R. recorrente do Pedido…”.
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O recorrido veio apresentar contra-alegações nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- a de saber se ocorre a nulidade processual por deficiência da gravação dos depoimentos prestados em audiência;
- se é de alterar a matéria de facto no sentido pretendido pela recorrente;
- se perante a matéria de facto alterada, deve ser alterada a decisão em conformidade, com a absolvição da R do pedido.
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Foram dados como provados na 1ª Instância, os seguintes factos:

1 - O Autor é dono e legítimo proprietário do veículo da marca VOLKWAGEN modelo SHARAN, com a matrícula ZZ, tendo adquirido o mesmo no dia 24 de Março de 2016 à Y Unipessoal, Lda.
2 - A sociedade unipessoal por quotas Y Unipessoal Lda. dedica-se, com intuito lucrativo, ao comércio de veículos automóveis ligeiros.
3 - Foi celebrado um contrato de garantia n.º ..., cujas condições constam do doc. n.º 3 junto aos autos com a P.I., cujo teor se dá por reproduzido, em que são outorgantes Y Unipessoal Lda. na qualidade de entidade vendedora, o A. na qualidade de beneficiário e a R..
4 - Dispõe a cláusula primeira do referido contrato de garantia que: “O presente contrato tem por objecto as eventuais reparações (peças e mão de obra) causadas por uma avaria mecânica ou eléctrica de origem fortuita e que se tornem necessárias à reposição de um veículo no estado anterior à avaria, sem prejuízo do desgaste inerente à sua utilização e nos termos, com os limites e condições previstas neste contrato.”
5 - A cláusula segunda: “Entende-se por avaria mecânica ou eléctrica, a incapacidade de uma peça garantida de funcionar conforme as especificações do construtor, resultante de uma falha mecânica ou eléctrica. Não é considerada avaria a redução gradual do rendimento de uma peça devida à idade, uso e quilometragem do veículo. O presente contrato não cobre quaisquer danos e prejuízos directos ou indirectos, mesmo que sejam causados por uma avaria coberta pela garantia.”
6 – E na cláusula quinta consta “Estão cobertas pela presente garantia as peças dos seguintes órgãos do veículo (…) sistema de direcção: caixa de direcção”.
7 - O veículo adquirido encontrava-se em perfeitas condições de aparência e de funcionamento.
8 - Foi principal motivo a compra do veículo o facto de o agregado familiar do Autor ter crescido para 6 (seis) pessoas, entre as quais 3 (três) menores, visando suprir as necessidade familiares de uma família composta por 6 (seis) pessoas. O veículo foi adquirido para uso pessoal e familiar.
9 – Na altura do Natal de 2016 o veículo começou a produzir um ruído em andamento e a trepidar o volante que tem a sua origem numa anomalia/avaria na caixa de direcção.
10 – O A. denunciou a situação à R. em Dezembro de 2016, que não autorizou a reparação do veículo por entender que a caixa de direcção não padece de qualquer anomalia, o que comunicou ao A. em 12 de Janeiro de 2017.
11 - O custo da reparação da anomalia, incluindo mão-de-obra, é de 1. 724,73€.
12 – O A. voltou a insistir em Janeiro e Maio de 2017 pela reparação. 13 – O A. teve o veículo parado em virtude do aludido defeito pelo receio da segurança da família, desde Janeiro de 2017 e durante cerca de cinco meses.
14 – Conduzir o veículo (sem reparar o defeito) é um risco para a segurança do A. e do seu agregado familiar.
15 - Em face da inércia da Ré o Autor teve de recorrer à contratação dos serviços de um Advogado que interpelou formalmente a Ré no dia 7 de Junho de 2017 conforme, sendo que, na verdade, não obteve qualquer resposta por parte da mesma.
16 - O A. acompanhou as duas peritagens, perdeu dias de trabalho para acompanhar o veículo às peritagens, tendo sempre de arranjar alternativas para conseguir transportar 3 crianças, a sua esposa e a sua sogra, quando, de facto, havia comprado o veículo em causa com a finalidade de facilitar o dia-a-dia da sua numerosa família”.

E foram dados como Não Provados os seguintes (excluindo-se factos inócuos, de direito e conclusivos):

A. Que pelo contrato junto como documento n.º 3 com a p.i. a vendedora do automóvel tenha transferido toda a responsabilidade contratual a nível da garantia do automóvel.
B. O custo da reparação é de 3.000€.
C. O A. teve o veículo parado até ao dia de hoje.
D. O que lhe causa e embaraço perante os seus amigos, familiares e colegas de trabalho”.
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Da questão da nulidade do ato da deficiente gravação da prova produzida em Audiência de Julgamento:

Tendo sido notificada da sentença proferida em 29/10/2018, e durante o prazo de interposição do recurso (também da matéria de facto), veio a recorrente arguir perante o tribunal recorrido, em 30.11.2018, a nulidade dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, alegando que os depoimentos das testemunhas indicadas pelo A, correspondentes aos depoimentos iniciais, apresentavam cortes e registos impercetíveis, problemas que afetavam a perceção dos mesmos e comprometiam, não só o direito de recurso da reclamante, mas também a possibilidade da sindicância desses depoimentos por este tribunal superior.

Requeria assim a anulação da prova produzida em audiência de julgamento, bem como dos demais actos processuais subsequentes à mesma, com a consequente repetição da prova testemunhal afetada.
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O A. veio responder ao requerimento apresentado, pugnando pelo seu indeferimento.
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Foi então proferida nos autos, em 06-02-2019 (já depois da interposição do recurso) a seguinte decisão:

“…É extemporânea a invocação da nulidade.
Na verdade, dispõe o n.º 3 do artigo 155.º do CPC que a gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, obrigatória nos termos do n.º 1, deve ser disponibilizada às partes no prazo de 2 dias a contar do respectivo acto. Dispõe o n.º 4 do mesmo artigo que a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

A “disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, consistindo na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma” (ac. RE, Rel. Des. João Nunes, 2.10.2018, consultado em www.dgsi.pt).

Estabeleceu-se assim um equilíbrio entre o direito a pedir a anulação de actos, com um dever de diligência das partes, no sentido de logo após o término do julgamento ouvirem as gravações para sindicarem eventuais deficiências.

Ora, logo no próprio dia do julgamento – vide acta de 24.10.2018 – a sra. funcionária procedeu “ao encerramento do registo de gravação dos depoimentos, das alegações e do despacho na aplicação informática “H@bilus Media Studio”, disponível nos tribunais”.

Significa que a partir dessa data as gravações estavam disponíveis não só para serem ouvidas na dita aplicação informática, mas estavam registadas em suporte digital, aptas a serem gravadas para um suporte físico a ser disponibilizado pelas partes.

Ou seja, logo no fim do julgamento, caso a Ilustre Mandatária o tivesse pedido, e consigo tivesse um suporte físico para gravação (destarte um CD), poderia ter ficado na posse dos registos da gravação.

Estando os registos gravados e no media studio e susceptíveis de serem disponibilizados a quem o pedisse, o prazo de 10 dias a que alude o art. 155.º/4 CPC terminou em 3.11.2018.

Ora, a R. apenas em 6.11.2018, após a notificação da sentença, veio requerer uma cópia da gravação, que lhe foi enviado no dia 8.11.2018.

Mas como se referiu, não é a partir do envio de uma cópia da gravação em CD que se conta o prazo. Mas sim a partir do momento a partir do qual os registos estavam aptos a serem disponibilizados.

E mesmo entendendo-se que o prazo se conta a partir do envio da gravação pela secretaria constata-se que o mesmo ocorreu em 8.11.2018, presumindo a notificação realizada em 12.11.2018, pelo que o término do prazo ocorreria em 22.11.2018, sendo que o requerimento a reportar a alegada deficiência ocorreu em 30.11.2018.

Aliás, sem prejuízo, diga-se do que o tribunal ouviu, apesar de por vezes existir um ruído de fundo, com algum esforço é possível percepcionar o que foi relatado (principalmente o que foi usado pelo tribunal na sua motivação), como também se conclui pelo facto do recurso também ter incidido sobre a matéria de facto (sindicância também feita nas contra-alegações)

Indefere-se assim o requerimento, pela que a prova deve considerar-se validamente produzida…”.
*
A recorrente reitera, nas Alegações e Conclusões de recurso, o que já havia alegado no seu requerimento dirigido ao tribunal recorrido, pugnando pela tempestividade da arguição da nulidade do ato – do registo da gravação dos depoimentos prestados -, pela deficiência da gravação dos mesmos.

Diz que o prazo para apresentar as suas alegações de recurso terminava no dia 12 de Dezembro, uma vez que o mesmo, tendo por objeto a reapreciação da prova gravada, atento o disposto nos nºs 1 e 7 do artº 638.° do CP, é de 40 dias, mostrando-se assim o requerimento apresentado, tempestivo.

Mas não acompanhamos a recorrente nesta parte.

É certo que as audiências finais (quer de acções, quer de incidentes e procedimentos cautelares), assim como os depoimentos nelas prestados, devem ser sempre gravados, sendo a gravação efetuada, em regra, por sistema sonoro, nos termos do nº1 e 2 do artº 155º do CPC.

Tratando-se de um ato que a lei prevê, a sua falta (falta da gravação ou gravação deficiente), constitui a omissão de um ato prescrito na lei que é suscetível de ter influência no exame e na decisão da causa, o que importa a nulidade do ato e dos atos subsequentes que dele dependam absolutamente (artºs 195º e 196º do CPCivil).

Trata-se no entanto de uma nulidade que, quando arguida pela parte, deve ser feita no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada às partes (artº 155º nº 4 do CPC).
Nesta sede acompanhamos o despacho recorrido, no sentido de que a arguição da nulidade pela parte foi intempestiva.

Dispõe efectivamente o n.º 3 do artigo 155.º do CPC que a gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, obrigatória nos termos do n.º 1, deve ser disponibilizada às partes no prazo de 2 dias a contar do respectivo acto. Dispõe por sua vez o n.º 4 do mesmo artigo que a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

Ora, como bem se fez notar no Ac RE de 2.10.2018 (disponível em www.dgsi.pt. e também citado na decisão proferida), a “disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, consistindo na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma”.

Estabeleceu-se assim, como bem se assinala na decisão proferida nos autos, um equilíbrio entre o direito a pedir a anulação de actos, com um dever de diligência das partes, no sentido de logo após o término do julgamento ouvirem as gravações para sindicarem eventuais deficiências.

Assim, sendo certo que logo no próprio dia do julgamento (conforme decorre da ata de julgamento de 24.10.2018) a sra. funcionária judicial procedeu “ao encerramento do registo de gravação dos depoimentos, das alegações e do despacho na aplicação informática “H@bilus Media Studio”, disponível nos tribunais”, a partir dessa data as gravações dos depoimentos prestados na audiência encerrada estavam disponíveis, não só para serem ouvidas na dita aplicação informática, mas estavam registadas em suporte digital, aptas a serem gravadas para um suporte físico a ser disponibilizado pelas partes.

Ou seja, logo no final do julgamento – em 24.10.2018 -, estavam ao alcance da recorrente os registos da gravação efectuada, pelo que o prazo de 10 dias a que alude o art. 155.º nº4 do CPC terminou em 3.11.2018.

Tendo o seu requerimento, a arguir a aludida nulidade, dado entrada em juízo apenas em 30.11.2018, o mesmo mostra-se extemporâneo e não podia ser admitido.
*
Ainda assim, resta-nos apreciar se essa nulidade não pode ser conhecida oficiosamente por este tribunal.

Isto porque, tendo a recorrente impugnado a decisão da matéria de facto, e fazendo apelo na mesma ao depoimento das testemunhas do A, era dever desta Relação auditar os depoimentos prestados, para reapreciar a matéria de facto dada como provada, em ordem a aferir se ela foi ou não bem apreciada (artº 662º nº1 do CPC).

Ora, o que constatamos pela audição do CD que acompanhou o processo físico vindo da 1ª instância, é que, de facto, os depoimentos das testemunhas indicadas pelo A., correspondentes aos depoimentos iniciais, apresentam cortes e registos impercetíveis, problemas que afetam efetivamente a sua perceção.

Ou seja, os depoimentos das testemunhas A. G., L. S., S. S. e M. R. estão, de facto, bastante impercetíveis, situação que compromete a possibilidade da sindicância daqueles depoimentos por este tribunal de recurso. Embora se note a existência de um discurso oral, o seu teor é indecifrável, pela existência de um ruído de fundo permanente que impede a perfeita compreensão do que foi dito e gravado.

Ora, porque estamos perante factualidade cuja apreciação se mostra questionada, configura-se uma situação em que não pode este tribunal aceder, com toda a segurança exigível, ao que foi afirmado, para poder exercer plenamente a sua função de reapreciação da prova.

Estamos, de facto, perante a omissão de um ato prescrito por lei (já que a deficiência da gravação equivale, na prática, à sua omissão) suscetível de influir no exame e na decisão da causa, o que importa a nulidade do ato e dos subsequentes que dele dependam absolutamente (arts. 195.º e 196.º do CPC).

A questão que se coloca então é a de saber se, não tendo essa nulidade sido arguida tempestivamente pela recorrente, fica vedado a este tribunal de recurso o seu conhecimento oficioso.

Isto porque, como se disse, a deficiência da gravação dos depoimentos prestados (das testemunhas indicadas pelo A. convocadas pela recorrente para apreciação do recurso da matéria de facto), influencia o exame e a decisão da causa, nomeadamente a apreciação conveniente desses depoimentos para aferir se eles foram ou não devidamente apreciados pelo tribunal recorrido para fixar a matéria de facto (ora impugnada pela parte recorrente).

E a resposta tem de ser afirmativa.

Consideramos desde logo, como se fez no Ac RCoimbra de 19-12-2017 (disponível em www.dgsi.pt), que há enquadramento legal para tal conhecimento oficioso (artº 9º do DL n.º 39/95, de 15-02 e 156º, in fine, do CPC).

Consta efectivamente do art. 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, que “Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”

Ora, como se decidiu no citado acórdão da Relação de Coimbra, o art.º 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, não se encontra revogado, nem de forma expressa, pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou o NCPC, nem de forma tácita, pelo preceituado no art.º 155.º do mesmo diploma legal, constituindo, ao invés, um “caso especial em que a lei permite o conhecimento oficioso” da nulidade processual, a que alude o art.º 196.º, in fine, do NCPC.

De facto, o art.º 4.º daquela Lei n.º 41/2013, de 26.6 (norma revogatória), revogando embora vários diplomas avulsos, não revogou o DL n.º 39/95, nem nenhum dos seus artigos.

Ora, se o legislador quisesse revogá-lo, tê-lo-ia dito de forma clara, tanto mais que introduziu um novo art.º 155.º (com maior amplitude que o anterior art.º 159.º), onde são reguladas matérias inerentes à gravação da audiência final, sendo os n.ºs 1 a 6 do atual art.º 155.º preceitos novos.

Por outro lado, também não cremos que o art.º 155.º, n.º 4 do actual CPC tenha revogado, tacitamente, o referido artº 9º do DL nº 39/95, pois ele refere-se a uma realidade bem diferente da que vimos a abordar; ele refere-se ao prazo de reclamação concedido às partes quanto aos vícios da gravação.

Já o art.º 196.º, na sua parte final, ressalva, quanto ao conhecimento oficioso das denominadas nulidades secundárias, “os casos especiais em que a lei permite” esse conhecimento.

E é precisamente neste último preceito legal que encontra acolhimento o preceituado no art.º 9.º do citado DL 39/95, em conjugação com o art.º 662.º, n.º 2, al. c) do actual CPC, sendo assim sustentável a tese de que a preclusão do direito das partes, de arguirem a nulidade da deficiência da gravação, não impede o conhecimento oficioso dessa mesma nulidade pelo tribunal de recurso, à luz da parte final do art.º 196.º do CPC.

Aliás, da conjugação dos art.ºs 195.º e 196.º do atual CPC, sem mais, resultaria que a nulidade processual em análise nunca seria de conhecimento oficioso, pelo que, por regra, o tribunal só poderia conhecer dela mediante invocação ou reclamação dos interessados, solução que não pode ser aceite, nem se harmoniza com as normas e princípios que enformam o novo CPC.

Não pode ser aceite, desde logo, por ser incompreensível tal solução, à luz do sistema jurídico da gravação da prova e do seu desiderato.

Assim, se se considerasse que o art.º 9.º do DL 39/95 está (tacitamente) revogado pelo citado artº 155º do CPC, nunca seria possível o conhecimento oficioso da falta ou deficiência da gravação, nem que, por hipótese, o tribunal da 1.ª instância que procedeu ao julgamento, imediatamente, ou nos dez dias seguintes à gravação da prova, verificasse que ela estava inaudível ou imperceptível, o que não pode aceitar-se, já que são os serviços do tribunal que têm o domínio pleno da gravação, sendo a mesma efectuada com meios do tribunal e nas suas próprias instalações, devendo ser também da responsabilidade do tribunal o correto funcionamento da mesma.

Bastaria, assim, que nenhuma das partes reclamasse contra o vício, para que o tribunal ficasse impedido de o sanar, mesmo que fosse ele próprio a detetá-lo, e com todo o prejuízo que ele lhe pudesse acarretar, nomeadamente para ouvir a gravação da prova para dar resposta à matéria de facto.

Essa solução não tem qualquer apoio legal, constituindo também a mesma um impedimento para o tribunal de recurso poder reapreciar convenientemente a prova, quer em sede de impugnação da matéria de facto, quer no âmbito do poder oficioso que o actual artº 662º do CPC lhe confere.

Não foi, com certeza, esta solução a querida pelo legislador de 2013.

Assim se decidiu também no Ac. RL de 12/11/2013 (também disponível em www.dgsi.pt) no qual se considerou que “…as anomalias na gravação das provas se podem considerar como uma irregularidade especial a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência. A especialidade mais saliente deste regime legal traduz-se justamente na circunstância da Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade; no seu entendimento, sublinhe-se, que não no da parte apelante, necessário se mostrando que para formar a sua convicção, a Relação proceda à prévia audição da gravação…”.

Há, de facto, um claro interesse púbico nesta matéria (e não apenas interesses privados, das partes, na repetição dos depoimentos deficientemente gravados), ligado ao duplo grau de jurisdição, que visa a descoberta da verdade material, e que ficaria comprometida pela negligente gravação da prova, tarefa cuja realização não cabe às partes mas ao tribunal.

Ora, os interesses de ordem pública em questão exigem, em nosso entender, a possibilidade de conhecimento oficioso da nulidade em apreciação.

Por isso, cremos que foi de caso pensado que o legislador de 2013 manteve plenamente em vigor o art.º 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, o qual, lido conjugadamente com o citado artº 196º (parte final) do CPC, permite que a nulidade do ato de gravação deficiente seja de conhecimento oficioso pelo tribunal – quer na primeira, quer na segunda instância.

Assim sendo, à luz do disposto, conjugadamente, no artº 9.º do DL n.º 39/95, e nos artºs 195.º n.º 1, 196.º “in fine”, e 662.º n.º 2 al. c), todos do CPC, e vista a filosofia que subjaz a este novo Código - dando prevalência a soluções de justiça material em detrimento da mera justiça formal -, é de perfilhar o entendimento jurisprudencial no sentido de as anomalias na gravação da prova consubstanciarem uma irregularidade especial, com aplicação de um regime também especial, particularmente expedito e oficioso, justificado por um interesse de ordem pública, que visa alcançar-se com a gravação da audiência, permitindo a efetivação do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto.

Nesse âmbito, pode a Relação ordenar, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que tal se mostre, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção face à globalidade da prova relevante, no contexto da impugnação da decisão de facto.

Se o recurso assenta, desde logo, na impugnação da decisão de facto, com invocação de provas gravadas, e o tribunal de recurso não logra ter acesso a parte desses meios de prova, por inaudibilidade da gravação, impossibilitando uma decisão conscienciosa da impugnação e, por consequência, do recurso, deve este tribunal, oficiosamente, socorrendo-se dos dispositivos legais aludidos, anular o julgamento, na parte afetada, e a decisão recorrida, com vista ao suprimento do vício existente.

Continua a manter acuidade nesta matéria o decidido no Ac. STJ de 16/12/2010 (disponível em www.dgsi.pt), de que o “…art. 9.º do DL 39/95, de 15-02, aponta no sentido de se poder considerar as anomalias na gravação das provas como uma irregularidade especial, a que se aplica um regime de igual modo especial e particularmente expedito e oficioso, que de resto se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência (…).

A especialidade mais saliente deste regime legal traduz-se, justamente, na circunstância de a Relação poder ordenar por sua iniciativa a repetição das provas que se encontrem imperceptíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, essencial ao apuramento da verdade (…).

A inaudibilidade de um ou mais depoimentos – facto que sempre terá de ser constatado pela 2.ª instância – equivale praticamente, quando esteja em causa reapreciar as provas em sede de apelação, à inexistência da prova produzida; e se a inaudibilidade for influente no exame da causa, ela é impeditiva da real concretização do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto (que, no caso, foi precisamente o direito que os recorrentes pretenderam exercer na apelação levada à Relação) (…).

Sem ouvir os depoimentos e proceder à sua análise crítica, segundo o princípio da livre apreciação das provas fixado no art. 655º n.º 1 do CPC, a Relação não pode optar com inteira segurança por manter ou modificar o julgado em 1.ª instância…”.

No mesmo sentido se pronunciou também o citado Ac. RL de 12/11/2013, no qual se refere que “Em conformidade, cabe a este Tribunal proceder à reapreciação da prova, com a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, fazendo assim, de forma autónoma, o seu próprio juízo de valoração, que pode ser igual ou diferente do já produzido, procedendo à análise crítica das provas indicadas como fundamento da impugnação, quer testemunhal, quer documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível.

Configura-se, deste modo, que para tanto, deverá este tribunal ter acesso à prova produzida, na exata medida da sua produção, habilitando-o com todos os elementos probatórios que foram, ou podiam ter sido atendidos, por disponíveis, para a formulação da necessária convicção autónoma, sem prejuízo da maior ou menor abrangência da reapreciação a realizar…”.

Ora, na senda da jurisprudência citada, concordamos – à luz do disposto nos artºs 9.º do DL n.º 39/95, 195º nº 1, 196º parte final, e 662º, nº 2, al c), todos do actual CPC, e vista a filosofia que lhe está subjacente, dando prevalência a soluções de justiça material -, que as anomalias na gravação das provas produzidas consubstanciam uma irregularidade processual especial, a que se deve aplicar também um regime especial, que se impõe à luz do manifesto interesse de ordem pública que visa alcançar-se com a gravação da audiência.

Assim sendo, é nosso entendimento que pode a Relação ordenar, por sua iniciativa, ou seja, oficiosamente, a repetição de provas que se encontrem impercetíveis, sempre que isso se revele, no seu entendimento, após audição da gravação, essencial ao apuramento da verdade, de molde a poder formar a sua autónoma convicção, mesmo que se mostre já precludido para as partes o direito de arguirem o vício existente, nomeadamente por extemporaneidade (como aconteceu, no caso dos autos).

Reportando-nos agora novamente ao caso dos autos, como se referiu acima, não há dúvida de que a gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas se mostram imperceptíveis (dado o ruído de fundo existente na gravação), sendo a audição daqueles depoimentos essencial para apreciação do recurso da matéria de facto, de que a recorrente lançou mão.

Ou seja, temos como seguro que, dada a relevância daquelas provas (registadas em gravação inaudível), a sua reapreciação é essencial ao apuramento da verdade material, não podendo neste momento este tribunal de recurso aceder ao que foi afirmado, para poder exercer plenamente a sua função de reapreciação da prova.

Resta pois determinar, oficiosamente, a repetição daqueles depoimentos, de molde a suprir a impercetibilidade existente, anulando-se, em conformidade, o julgamento, bem como a sentença subsequentemente proferida.

Fica, consequentemente, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.
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DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se procedente a Apelação e em consequência decide-se anular o julgamento, com repetição do depoimento das testemunhas A. G., L. S., S. S. e M. R., cuja gravação se mostra deficiente, e a consequente anulação da sentença recorrida.
Custas (da Apelação) pela parte vencida a final.
Notifique.
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Sumário do acórdão:

1 - A deficiência da gravação dos depoimentos prestados em audiência constitui uma irregularidade que pode influir no exame e na decisão da causa, devendo tal nulidade ser arguida pela parte, no prazo de 10 dias a contar da disponibilidade dos registos pelo tribunal, nos termos do artº155º nº4 do CPC.
2 - O tribunal da Relação pode, no entanto, conhecer oficiosamente dessa nulidade, ao abrigo do artº 9º do DL nº 39/95, de 15.2 e do artº 156º, “in fine” do CPC.
3 - Isto porque o art.º 9.º do DL n.º 39/95, de 15-02, não se encontra revogado (expressamente) pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou o actual CPC, nem de forma tácita pelo preceituado no art.º 155º do mesmo código, constituindo, pelo contrário, aquele normativo um “caso especial em que a lei permite o conhecimento oficioso” (da nulidade processual) a que alude o art.º 196.º, in fine, do actual CPC.
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Guimarães, 28.3.2019