Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOAQUIM BOAVIDA | ||
Descritores: | SERVIÇOS PÚBLICOS PREÇO FIDELIZAÇÃO PRAZO DE PRESCRIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/16/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | O prazo de prescrição de seis meses estabelecido pelo nº 1 do artigo 10º da Lei nº 23/96, de 26 de julho, abrange qualquer valor faturado ao utente no âmbito de um contrato relativo a serviços públicos essenciais, seja o preço do serviço prestado ou o crédito resultante do incumprimento da cláusula que estipula um período de fidelização. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório 1.1. EMP01..., SA, propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP02..., Lda., pedindo que seja «a Ré condenada ao pagamento à Autora: a. da quantia de 5.071,59€ (cinco mil, setenta e um euros e cinquenta e nove cêntimos), correspondente ao valor das faturas cujos montantes se encontram vencidos e não pagos; b. dos juros de mora, calculados à taxa legal em vigor, vencidos e vincendos, até integral e efetivo pagamento.» * A Ré contestou, por exceção, invocando a prescrição do direito invocado pelo Autor, e por impugnação.Quanto à prescrição, alegou que o crédito foi reclamado e a ação proposta decorridos mais de seis meses após a alegada prestação de serviços, pelo que se encontra prescrito o direito ao recebimento da quantia peticionada, nos termos do nº 1 do artigo 10º da Lei nº 23/96, de 26 de julho. * Em resposta, a Autora pugnou pela improcedência da exceção da prescrição, alegando que a fatura é relativa à indemnização por cessação antecipada do contrato celebrado entre as partes e que a cláusula penal não é acessória da obrigação de pagamento do preço, mas antes da obrigação de manutenção do vínculo contratual, não lhe sendo, por isso, aplicável o prazo de prescrição de 6 meses previsto no nº 1 do artigo 10º da Lei nº 23/96, de 26 de julho, mas o prazo geral de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil, em virtude de estar em causa uma indemnização por responsabilidade contratual.* 1.2. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferida a decisão recorrida – saneador-sentença –, a «julgar improcedente o pedido formulado pela autora EMP01..., S.A., contra a ré EMP02..., LDA., a qual se absolve em conformidade de tal pretensão».* 1.3. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:«1. O presente recurso tem por objeto a decisão prolatada pelo tribunal a quo em 10.09.2024, no âmbito do processo n.º 258/24...., a qual veio julgar improcedente o pedido formulado pela Autora, por considerar que o direito de crédito invocado se encontrava prescrito. 2. O montante peticionado reporta-se a indemnização por incumprimento contratual. 3. Sendo que entende o Tribunal a quo que, ainda que estejamos perante uma cláusula penal no âmbito de um contrato de fornecimento de energia elétrica, é aplicável o prazo prescricional estatuído no n.º 1 do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de julho. 4. A Recorrente entende que a sentença da qual se recorre, ao ter aplicado a mencionada norma legal e, consequentemente, ter julgado procedente a exceção perentória de prescrição, enferma de error in iudicando, devendo, pois, este Tribunal da Relação, em sede de Apelação, reapreciar e alterar o conteúdo da mesma em conformidade. 5. A cláusula penal não é acessória da obrigação de pagamento do preço, mas antes da obrigação de manutenção do vínculo contratual, em função do qual foram disponibilizados, em condições especiais e vantajosas para o cliente, 6. Não lhe sendo, por isso, aplicável o prazo de prescrição previsto no n.º 1, do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, mas o prazo geral de prescrição de vinte anos previsto no artigo 309.º, do Código Civil, uma vez que estamos perante uma indemnização por responsabilidade contratual. 7. Efetivamente, haverá que distinguir entre o crédito do preço pelo serviço de eletricidade prestado, e o crédito de indemnização pela quebra do vínculo de fidelização contratualmente estabelecido. 8. Nesse contexto, perfilhamos a posição de que a cláusula penal, que tem em vista o estabelecimento de uma pena pelo incumprimento, se refere a indemnização pela quebra do vínculo de fidelização contratualmente assumido, e não ao crédito do pagamento do preço dos serviços prestados. 9. Assim sendo, a acessoriedade, que é característica da cláusula penal, é estabelecida em relação ao crédito de indemnização pela quebra do vínculo de fidelização. 10. Em suma, advogamos que é aplicável ao caso sub judice o prazo prescricional ordinário de 20 anos, pelo que deveria ter sido a exceção perentória de prescrição julgada improcedente.» * A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.O recurso foi admitido. * 1.4. Questão a decidirAtentas as conclusões do recurso interposto pela Autora, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, incumbe decidir se está ou não prescrito o direito exercitado pela Autora, indagando se é aplicável o prazo de prescrição de seis meses previsto no nº 1 do artigo 10º da Lei nº 23/96, de 26 de julho, ou o prazo geral de prescrição de vinte anos previsto no artigo 309º do Código Civil (CCiv). *** II – Fundamentos2.1. Fundamentação de facto Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos: «1. Autora e ré outorgaram um documento, datado de 21/07/2022 e com o n.º ...47, relativo ao fornecimento de electricidade pela autora à ré, referente ao CPE ...75..., vigorando até ../../2027, e nos demais termos que decorrem desse documento, constante da ref. n.º ...10, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 2. A autora emitiu a factura n.º ...03, datada de 30/12/2022 e com data limite de pagamento em 30/01/2023, no valor de € 5.071,59 (I.V.A. incluído), exigindo o pagamento pela ré dessa quantia a título de cessação antecipada do contrato, e nos demais termos que decorrem desse documento, constante da ref. n.º ...10, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 3. Mediante email, datado de 16/09/2022, a ré comunicou à autora que “(…) solicitava o cancelamento do contrato por motivos de incumprimento (…)”, e nos demais termos que decorrem desse documento, constante da ref. n.º ...63, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.» ** 2.2. Do objeto do recursoNa sentença considerou-se prescrito o direito que a Autora pretendia fazer valer contra a Ré, por ter decorrido o prazo de seis meses previsto no artigo 10º, nº 1, da Lei nº 23/96, de 26 de julho, que criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, onde se dispõe que «o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.» Por sua vez, o nº 4 do dito artigo estabelece que «o prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.» Segundo o disposto no artigo 323º, nºs 1 e 2, do CCiv, no que aqui releva, «a prescrição interrompe-se pela citação», sendo que «se a citação (…) se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias». Significa isto que o prazo prescricional interrompe-se decorridos que sejam cinco dias da propositura da ação, salvo se ocorrer anteriormente citação ou a falta desta não decorrer de culpa do requerente. A presente ação foi proposta em 17.05.2024 e a Ré foi citada no dia 22.05.2024, pelo que se tem por interrompido o prazo prescricional em 22.05.2024, que corresponde tanto à data da efetiva citação como ao quinto dia subsequente à instauração da ação. Como causa de pedir, foi invocado que as partes, em 03.08.2022, celebraram um contrato de fornecimento de energia elétrica, com duração até ../../2027, e que a Autora emitiu, em 30.12.2022, a fatura ...03, para pagamento até ../../2023, no valor de € 5.071,59, correspondente à indemnização devida à Autora pela cessação antecipada do contrato operada pela Ré em ../../2022, montante que esta não pagou apesar de interpelada para o efeito. É inequívoco que aquando da citação da Ré (22.05.2024) há muito que havia decorrido o prazo de seis meses, contado quer da data da interpelação para pagamento (30.12.2022) quer da data fixada pela Autora como limite para o pagamento da quantia titulada pela fatura (../../2023). Por isso, caso se considere aplicável o prazo de prescrição estabelecido no nº 1 do artigo 10º da Lei nº 23/96, de 26 de julho, o direito exercido encontrar-se-á prescrito, tal como decidiu o Tribunal recorrido[1]. A pretensão da Autora alicerça-se num contrato de fornecimento de energia elétrica e este é um serviço público essencial, abrangido pelo âmbito da Lei nº 23/96, tal como decorre do seu artigo 1º, nºs 1 e 2, al. b). E nenhuma dúvida existe de que o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. Sucede que nos autos não está em causa propriamente o “preço do serviço prestado”, mas, no expresso dizer da Autora, o direito a uma «indemnização pela cessação antecipada do contrato», na medida em que a Ré, por declaração unilateral emitida em ../../2022, deu por findo o contrato. A Autora alegou na petição que a «indemnização foi calculada em conformidade com o exposto nas Cláusulas 4.2., 8.1. e 8.2. das Condições Particulares do Contrato». A cláusula 4.2. do contrato estipulava: «Uma vez que as condições comerciais do presente contrato são definidas tendo em consideração a duração estimada do contrato, caso o Cliente opte por cessar o contrato antes de verificado o termo previsto no número anterior, será devido pelo cliente o pagamento de uma compensação à EMP01... por esta cessação antecipada, calculada nos termos da cláusula 8.ª.» Esta cláusula corresponde à pré-fixação do montante indemnizatório devido pelo incumprimento do utente dos serviços (o utente é, nos termos do nº 3 do art. 1º da Lei nº 23/96, a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo), emergente da cessação antecipada, ocorrida no período de fidelização. Na nossa interpretação, o período de fidelização é o período mínimo de vigência de um contrato de execução duradoura, durante o qual os contraentes se comprometem a cumprir pontualmente as condições que foram por si previamente definidas. Na cláusula de fidelização insere-se um elemento relativo ao tempo, através da definição do período de duração mínima do contrato, e um elemento relativo ao valor a pagar em caso de incumprimento desse período mínimo. Por conseguinte, de harmonia com o disposto no artigo 810º, nº 1, do CCiv, trata-se de uma cláusula penal, tipicamente destinada a fixar antecipadamente o valor da indemnização a pagar em caso de incumprimento[2]. A questão está em saber se é aplicável à cláusula penal o regime da obrigação principal quanto à prescrição, o que pressupõe a determinação da relação existente entre a obrigação principal e a cláusula penal. Como bem se acentua tanto na sentença e como nas alegações das partes, a jurisprudência não é unânime quanto à aludida questão da aplicabilidade à cláusula penal do prazo de prescrição previsto no nº 1 do artigo 10º da Lei 23/96. Uma corrente[3], porventura agora maioritária, entende que a cláusula penal é acessória relativamente à obrigação de pagamento do preço do serviço público essencial, pelo que lhe é aplicável o apontado prazo de prescrição; dada a acessoriedade da cláusula penal, esta não sobrevive à obrigação principal prescrita. Outra corrente[4] sufraga o entendimento de que uma coisa é o crédito do preço e outra o crédito de indemnização emergente do incumprimento do período de fidelização, considerando este acessório não da obrigação de pagamento do preço, mas do vínculo contratual, concluindo que não é aplicável à cláusula penal o prazo prescricional de 6 meses do artigo 10º, nº 1, da Lei 23/96, mas antes o prazo ordinário de 20 anos fixado no artigo 309º do CCiv. Nos termos do artigo 798º do CCiv, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação, torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, ou seja, é obrigado a indemnizar o credor e a tal obrigação são aplicáveis as disposições dos artigos 562º e seguintes do CCiv. Porém, as partes podem proceder à fixação contratual do montante da indemnização exigível no caso de incumprimento do contrato, através da estipulação de uma cláusula acessória – a cláusula penal. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[5], é «inexigível a pena convencionada, embora a lei não o diga expressamente, se for inexigível a obrigação principal. (…) O carácter acessório da cláusula não se reflete apenas no efeito da nulidade da obrigação principal. Também no caso de a prestação se tornar impossível por causa não imputável ao devedor e de a obrigação se extinguir, a cláusula fica sem efeito, ela só funciona (…) quando se não efetua a prestação que é devida. Se esta, por qualquer razão, deixa de ser devida, a cláusula caduca.» Por conseguinte, é inequívoco que a lei estabelece a acessoriedade da cláusula penal relativamente à obrigação principal, ou seja, a obrigação cujo inadimplemento sanciona. A acessoriedade daquela cláusula não se reporta genericamente ao contrato ou ao vínculo contratual, como defende a corrente que nega a aplicabilidade do prazo de prescrição de seis meses à cláusula penal, até porque a cláusula penal integra o contrato (tem fonte contratual e não legal, constituindo, em regra, uma cláusula contratual geral inserida nos contratos de prestação de serviços públicos essenciais), mas quanto à obrigação principal: é quanto a esta que existe a relação de dependência. A este propósito, explicita António Pinto Monteiro[6]: «A cláusula penal, como já vimos, pressupõe a existência de uma obrigação – provindo, em regra, de contrato -, que é costume designar por obrigação principal, a fim de acentuar melhor a acessoriedade da referida cláusula, a sua dependência relativamente à obrigação cujo inadimplemento sanciona. Compreende-se que seja assim: a cláusula penal, em qualquer das suas modalidades, é uma estipulação mediante a qual um dos contraentes se obriga a efectuar uma prestação, diferente da devida, no caso de não cumprir ou de não cumprir nos seus precisos termos a obrigação. Trata-se de simples promessa a cumprir no futuro, com carácter eventual, visto que o compromisso assumido só se efectivará – a pena só será exigível – se e na medida em que o devedor não realize, por culpa sua, a prestação a que está vinculado e a que a cláusula se reporta. A justificação da acessoriedade da cláusula penal não oferece, pois, dificuldades de maior. Esta não é um fim em si mesmo: ao estipular uma cláusula penal, visa-se incentivar o respeito devido à obrigação, de fonte negocial ou imposta por lei, estabelecendo, desde logo, para o efeito, a respectiva sanção, prevenindo a hipótese do seu incumprimento; ou pode ser escopo das partes, tão-só, o de fixar antecipadamente o quantum indemnizatório a que haverá lugar. Seja como for, a existência de uma obrigação surge, assim, via de regra, como pressuposto objectivo da cláusula penal. Daí que a sorte desta fique dependente do destino da primeira. Sabemos já que a cláusula penal é um meio de estabelecer uma pena. Evidentemente que o desaparecimento da obrigação principal – por nulidade v. g. – arrasta consigo a cláusula penal, implicando, de igual modo, o desaparecimento da pena, que era o seu objecto. Mas pode dar-se o caso de a obrigação ser válida, mantendo-se, consequentemente, a cláusula penal, sem que a pena, ainda assim, seja exigível. Solução que decorrerá ainda do princípio da acessoriedade: é que a pena só é exigível quando não se efectue (ou não se efectue em termos correctos) a prestação que é devida, mostrando-se também necessário que o credor possa, nos termos gerais, reagir contra o inadimplemento. Não sendo este o caso, designadamente porque o incumprimento ou o atraso não são imputáveis ao devedor, não será devida a pena. O credor só pode exigi-la, pois, nos mesmos termos em que poderia reagir contra o inadimplemento, a mora ou o cumprimento defeituoso da prestação: trata-se, ainda, de uma consequência da acessoriedade. A dependência da cláusula penal relativamente à obrigação cujo inadimplemento sanciona, manifesta-se, pois, em vários momentos, desde que esta se constitui até a sua extinção. Em primeiro lugar, a cláusula penal requer que a obrigação principal haja sido validamente constituída, pelo que, sendo esta inválida, igual sorte tem aquela cláusula. Por outro lado, as formalidades exigidas para a obrigação principal estendem-se à cláusula penal (art. 810º, nº 2). Por último, extinguindo-se, por qualquer motivo, a obrigação principal, caduca a cláusula penal. Numa palavra: desaparecendo a obrigação, seja porque é nula ou foi anulada, seja porque se extinguiu, desaparece o pressuposto de que a cláusula penal dependia, pelo que esta perde a sua razão de ser». O referido autor, em nota de rodapé, na pág. 89 da citada obra, exemplifica a caducidade da cláusula penal precisamente com a prescrição da obrigação principal. Assente que a cláusula contratual que estabelece a obrigação de pagamento de uma quantia estipulada pelas partes, para efeitos de eventual incumprimento da obrigação principal por uma delas, reveste a natureza de obrigação acessória da obrigação principal, importa agora transpor tal enquadramento para a situação dos autos. O contrato de fornecimento de energia elétrica celebrado entre as partes tinha por objeto a prestação do referido serviço pela Autora à Ré, o que constituía a obrigação principal. Como contraprestação, também a título principal, à Ré incumbia pagar o respetivo preço. A cláusula de fidelização foi inserida no concreto contrato dos autos para vincular a Ré a respeitar o período de vigência do contrato, mantendo o contrato e pagando todas as mensalidades devidas até ao termo desse período, sob pena de pagar a indemnização tabelar fixada se fizesse cessar o contrato antecipadamente. No fundo, a cláusula penal insere-se no sinalagma inerente à relação contratual, pelo que não tem autonomia relativamente à obrigação principal, cujo inadimplemento sanciona. É, se quisermos assim qualificar, um preço indireto, desde o início indissociado do preço direto do serviço de fornecimento de energia elétrica, pois é, ao fim e ao cabo, uma indemnização ao prestador do serviço fundada na expetativa de ganhos gerados pelo contrato. O crédito da Autora resultante do incumprimento da cláusula relativa ao período de fidelização é ainda, de certa forma, uma prestação exigida em função do serviço prestado e do inerente preço. Esse crédito é determinado precisamente com base no período temporal de duração mínima do contrato e no preço que seria devido até ao termo do contrato. Como se salienta no acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2016 (Eurico Reis), proferido no processo 140866/14.9YIPRT.L1-1, «[a] denominada “cláusula de fidelização”, a cujo incumprimento as partes associaram uma indemnização tabelar, por cláusula penal, em caso de incumprimento, é uma cláusula acessória daquele núcleo do contrato, que se pode classificar como um preço indirecto do serviço, ou, pelo menos, como um auxiliar do bom cumprimento da obrigação de pagamento do preço do serviço mas, em qualquer caso, como obrigação acessória da obrigação principal, porque fora do núcleo do contrato. Na economia do contrato, a “cláusula de fidelização” em caso de incumprimento só existe em função da prestação do serviço e da entrega do respectivo preço, fazendo parte deste sinalagma. Não tem autonomia por si própria, não lhe correspondendo uma contraprestação directa a ela dirigida.» Sabemos que o legislador ao estabelecer um prazo de seis meses para a prescrição do direito ao recebimento do preço pelo prestador do serviço, tal como se refere no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2010, publicado no Diário da República nº 14, Série I, de 21.01.2010, pretendeu proteger o utente do serviço, concebendo um regime que visa evitar a acumulação de dívidas de fácil contração e obrigar os prestadores de serviços a manter uma organização que permita a cobrança em momento próximo do correspondente consumo. Portanto, pretendeu-se incentivar uma reação célere quanto ao exercício do direito à remuneração do prestador do serviço pela prestação efetuada, protegendo a posição do utente dos serviços públicos essenciais. Sendo assim, se a lei procura proteger a posição do utente dos serviços quando o prestador os tenha efetivamente prestado, não faz sentido recusar-lhe essa proteção quando o prestador dos serviços nem sequer os chega a prestar, como sucede quando aciona o utente por via do incumprimento da cláusula de fidelização. Se decorridos seis meses após a prestação do serviço se torna inexigível o direito ao cumprimento da obrigação principal, então, por maioria de razão, se tornará inexigível o direito ao cumprimento da obrigação acessória daquela. É isso que decorre do regime da acessoriedade, dependência e falta de autonomia da cláusula penal relativamente à obrigação principal: a inexigibilidade da obrigação principal arrasta consigo a cláusula penal, implicando, de igual modo, a inexigibilidade da pena, que era o seu objeto. Não há, por isso, que distinguir entre o preço do serviço e a indemnização por incumprimento contratual: ambas as dívidas se inserem no âmbito do contrato de prestação de serviço público essencial e não há contraprestação de pagamento, a qualquer título, que o não seja do serviço recebido. Mais, os valores da certeza e da segurança do direito que o legislador pretendeu acautelar, tanto valem para o preço dos serviços como para a cláusula de fidelização. Por conseguinte, o crédito do prestador de serviço público essencial resultante do incumprimento pelo utente da cláusula relativa ao período de fidelização também prescreve no prazo de seis meses previsto no artigo 10º da Lei nº 23/96. Neste sentido, esclarece Jorge Morais de Carvalho[7] que «este preceito abrange qualquer valor faturado ao consumidor no âmbito de um contrato relativo a serviços públicos essenciais, não relevando se está em causa uma verba respeitante a um mês ou a vários meses. Embora a lei se refira a “serviço prestado” (nº 1) e determine que os seis meses são “contados após a prestação do serviço” (nº 4), o espírito do regime inclui, na nossa perspetiva, a verba relativa a serviços não prestados eventualmente exigível antes do prazo por via do incumprimento da cláusula de fidelização. (…) Esse valor, relativo a vários meses, passa a ser exigível no momento em que a cláusula de fidelização deve ser considerada definitivamente incumprida pelo consumidor, pelo que o prazo do art. 10º deve ser contado a partir desse momento. Se o consumidor tiver denunciado o contrato antes do prazo, a prescrição conta-se a partir da data em que a denúncia produz efeitos. Se o consumidor tiver incumprido as suas obrigações, a prescrição conta-se a partir da data em que o prestador de serviço resolve o contrato. Evita-se, assim, que o consumidor fique por muito tempo numa situação indefinida, acumulando dívidas, prevenindo-se por esta via o sobreendividamento. A circunstância de se tratar de uma cláusula penal não altera esta conclusão. (…) Sendo a cláusula penal uma cláusula acessória, não faz sentido que o prazo de prescrição do direito a exigi-la seja mais alargado do que o das cláusulas principais do contrato, relativas ao preço, enquanto contraprestação do serviço.» Em suma, o crédito que a Autora exigiu nestes autos encontra-se prescrito, pelo que o Tribunal a quo decidiu bem. Termos em que improcede a apelação. ** III – DecisãoAssim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a suportar pela Recorrente. * * Guimarães, 16.01.2025 (Acórdão assinado digitalmente) Joaquim Boavida António Beça Pereira Maria Luísa Duarte Ramos [1] Não vamos abordar autonomamente a questão de saber se a prescrição em causa é extintiva ou presuntiva. As partes dão por adquirido que se trata de uma prescrição extintiva e isso, no nosso entender, corresponde à sua natureza. [2] Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 5ª edição, Almedina, pág. 161. [3] V. os acórdãos da Relação de Lisboa de 25.02.2010 (Márcia Portela), proferido no processo nº 1591/08.3TVLSB.L1-6, de 16.06.2011 (Aguiar Pereira) – processo n.º 28934/03.3YXLSB.L1-6, de 24.04.2012 (Orlando Nascimento) – processo 1584/05.2YXLSB.L1-7, de 04.06.2015 (Ilídio Sacarrão Martins) – processo143342/14.6YIPRT.L1-8, de 20.12.2016 (Eurico Reis) – processo 140866/14.9YIPRT.L1-1, de 29.04.2021 (Orlando Nascimento) – 46188/20.5YIPRT-A.L1-2, de 07.04.2022 (Vera Antunes) – processo 9996/21.8YIPRT.L1-6, e o acórdão da Relação do Porto (Henrique Araújo) de 21.10.2014 – processo 83857/13.8YIPRT.P1. [4] V. os acórdãos da Relação de Lisboa de 12.01.2010 (Ana Grácio), proferido no processo nº 39069/03.9YXLSB.L1-1, de 16.03.2010 (Maria José Simões) – processo 1405/08.4TJLSB.L1-1, de 15.2.2011 Gouveia Barros) – processo n.º 3084/08.0YXLSB-A.L2-7, de 07.06.2011 (Luís Lameira) – processo 2360/06.0YXLSB.L1-7, de 21.6.2011 (Luís Espírito Santo) – processo 264/06.6YXLSB.L1.7 e o acórdão da Relação do Porto de 11.10.2018 (Freitas Vieira) – processo 99372/17.8YIPRT.P1. [5] Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, pág. 74. [6] Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, págs. 87 e 88. [7] Ob. cit., págs. 374-376. |