Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1286/18.0T8VCT-A.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: CRIME SEMI-PÚBLICO
INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL NA ACÇÃO PENAL
CASO JULGADO FORMAL
ADMISSIBILIDADE DE POSTERIOR DEDUÇÃO DO MESMO PEDIDO NA JURISDIÇÃO CÍVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (do relator):

I - O artº 71º, do Código de Processo Penal (CPP), consagra o princípio da adesão.

II - Este consiste em o pedido de indemnização civil decorrente da prática de um crime dever ser deduzido no processo penal.

III - Tal normativo, conjugado com o artº 72º seguinte, prevê excepções a esse princípio da adesão, entre as quais as situações comtempladas nas alíneas c) e g), do seu nº1: o procedimento depender de queixa ou de acusação particular [al. c)]; o valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular [al. g)].

IV - Quanto a este último, inexistindo agora a intervenção do tribunal colectivo no julgamento no âmbito do CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06, esvaziou-se o conteúdo da citada alínea g), ante o disposto nos artºs 546º, 548º e 599º.

V - E não prevê nesta situação, do citado artº 72º, qualquer impossibilidade de dedução em separado quando não tenha sido conhecido o mérito de tal pedido na acção penal, nomeadamente com base em indeferimento por razões de extemporaneidade.

VI - A interpretação deste preceito tem de se confinar aos estritos termos que dele defluem, sendo formalmente permitido, em sede de tramitação processual, quanto nele não esteja proibido.

VII - O que resulta da apontada alínea c) é que é facultada a dedução em separado do pedido de indemnização civil perante o tribunal civil, sem quaisquer entraves, quando o procedimento depender de queixa, como ocorre com o ilícito penal subsumível em ofensa à integridade física simples.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório;

Nos presentes autos, J. M. veio propor a presente acção sob a forma de processo comum contra A. C., formulando o seguinte:

Pedido:
- Que se condene o demandado no pagamento ao demandante das quantias de € 610,70 e € 30.000,00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais respectivamente, por via de ofensa à sua integridade física.

Contestou o réu, invocando além do mais a excepção nominada de incompetência material do tribunal e a inominada de violação do princípio de adesão, porquanto, tendo corrido termos o processo-crime nº 237/15.8GAMNC, no qual o autor, aí na qualidade de assistente, deduziu pedido de indemnização que foi indeferido pelo tribunal, por extemporaneidade, não podia fazê-lo nos presentes autos, já que “o tribunal civil carece de competência para o seu conhecimento, devendo o réu ser absolvido da instância”.

Mais articulou que, a fim de o pedido poder ser deduzido em separado, teria de se encontrar preenchida alguma das alíneas do art. 72º do CPP, o que não ocorreu no caso concreto; e que o autor alterou o valor do pedido para que fosse integrado na alínea g) do art. 72º.

Na audiência prévia foi decidido julgar improcedentes tais excepções.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o réu A. C., em cujas alegações suscita, em suma, as seguintes questões:

1. As normas jurídicas que consideramos violadas é o disposto no artigo 71º do CPP.
2. Entende-se, ainda, ter havido uma incorrecta aplicação da alínea c) do nº1 do artigo 72º do CPP, o que configura um verdadeiro abuso de direito por parte do autor/apelado, nos termos do artigo 334º do CC.
3. O Autor/apelado não pode apresentar tal pedido em separado, uma vez que tal é violador do disposto no artigo 71º do CPP, e não se enquadra em nenhuma das excepções previstas no artigo 72º do CPP.
4. O autor/apelado, a final, na sua petição inicial, diz que a acção se fundamenta no disposto no nº1, alínea g) do artigo 72º do CPP, sem que, no entanto, tenha alegado e feito prova do porquê de se socorrer de tal exceção.
5. O Tribunal, no uso dos poderes de cognição previstos no artigo 5º do CPC, decidiu alterar a exceção apresentada pelo Autor (alínea g)), pela exceção prevista na alínea c), entendendo ter havido lapso do autor.
6. Não houve lapso algum por parte do Autor que, por causa da exceção invocada alterou o valor do pedido apresentado no crime, aumentando-o para se “enquadrar”, na sua perspectiva, na exceção invocada.
7. Os poderes de cognição previstos no mencionado art.º5º do CPC não permitem ao Tribunal substituir-se ao autor, alegando por ele.
8. No processo-crime que correu termos sob o nº237/15.8GAMNC, deste mesmo Juízo de Competência Genérica, cuja sentença o autor juntou aos autos, consta o seguinte: “o assistente veio deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido, por requerimento de fls.267 e ss., não tendo o mesmo sido admitido por ser extemporâneo (vide despacho de fls.296 e ss.)” – Cfr. Sentença junto com a P.I.
9. Ora, a inclusão fora de prazo do pedido de indemnização civil nos autos crime não constitui exceção à regra consagrada no artigo 71º do CPP, pelo que o Tribunal Civil carece de competência para o seu conhecimento, devendo o Réu ser absolvido da instância.
10. O pedido de indemnização civil deduzido pelo autor, tanto em sede criminal como em sede civil, havia de ser julgado pelo Tribunal Singular – in casu pelo Juízo de Competência Genérica de Monção, da Comarca de Viana do Castelo, ou seja, pelo mesmo Tribunal (Juízo).
11. Não se enquadra o presente PIC na exceção previstas da alínea g) do citado artigo, não pode o mesmo ser admitido.
12. O aqui autor/apelado, naqueles autos o ofendido, manifestou, nos autos crime, o propósito de deduzir PIC e foi notificado, em 15/05/2017, para deduzir PIC e, constituiu-se até assistente nos autos e apresentou o seu PIC (só que extemporaneamente por culpa única e exclusivamente sua).
13. A regra é a da obrigatoriedade de dedução do pedido cível no processo penal, desrespeitando-se este princípio, há uma preclusão do direito à indemnização, pois fica-se impossibilitado, no futuro, de se recorrer aos meios civis para obtenção do ressarcimento dos prejuízos sofridos.
14. É certo que o artigo 72º prevê algumas excepções, uma delas o facto de o procedimento depender de queixa que é o caso do tipo de crime dos autos (natureza semi-pública), todavia, esta exceção tem como objetivo evitar o recurso obrigatório ao processo criminal, por parte do ofendido de crimes particulares ou semipúblicos.
15. Tal norma (exceção) deve ser interpretada restritivamente, de maneira a que dela não resulte a possibilidade de o ofendido que tenha exercido o direito de queixa ou de acusação (in casu direito de queixa), poder deduzir, em separado, o pedido cível ao mesmo tempo que faz prosseguir o processo criminal.
16. In casu, o ofendido fez prosseguir o processo criminal e até apresentou PIC nesses autos crime, mas fê-lo, por culpa sua única e exclusiva, fora de prazo.
Pede que seja revogado o despacho recorrido e se substitua por outro que absolva o réu/recorrente da instância.

Houve contra alegações, suscitando-se a questão prévia da inadmissibilidade do recurso e pugnando-se pela confirmação do julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante CPC).

A questão principal suscitada pelo recorrente é a de saber se a decisão recorrida deve ser alterada, no sentido de se julgar procedentes as excepções de incompetência em razão da matéria do tribunal civil e da violação do princípio da adesão na acção penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade relevante é a que consta do Relatório supra e ainda a seguinte:

1. No processo-crime que correu termos sob o nº 237/15.8GAMNC, no Juízo de Competência Genérica de Monção, Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, foi formulado pedido de indemnização civil pelo assistente, aqui autor, contra o arguido, aqui réu, o qual não foi admitido por extemporaneidade, sendo que na acção penal o arguido/demandado foi condenado por crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo artº 143º, nº 1, do Código Penal (CP).

*****

2. De direito;


a) Questão prévia da inadmissibilidade do recurso de apelação;

Suscita o recorrido a questão da inadmissibilidade da apelação, porquanto o recurso interposto não se enquadra na previsão normativa inserta no artº 644º, nº 1, al. b), do CPC.
Ou seja, o despacho saneador recorrido, além de não pôr termo ao processo, não decide do mérito da causa nem absolve da instância o réu, aqui recorrente, quanto ao pedido.
Em suma, estar-lhe-ia vedada a presente apelação autónoma, devendo a decisão recorrida ser impugnada no eventual recurso da sentença final.

Todavia, carece de razão.

Com efeito, apesar da bondade da premissa jurídica que serve de fundamento à alegação do recorrido, certo é que o nº 2, al. b), do supracitado preceito legal, possibilita o recurso autónomo, sem ter, portanto, que aguardar pela decisão final, à impugnação da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal.

E a essa admissibilidade da apelação é indiferente que o seja no sentido de afirmação ou negação da competência absoluta (aqui, em razão da matéria) do tribunal.

Mas mais: tal normativo engloba os casos, como o presente, em que a excepção de incompetência seja restrita a uma parte do objecto do processo e que serve de suporte a um dos fundamentos invocados na impugnação por excepção por banda do réu/recorrente.
Logo, por força do citado artº 644º, nº 2, al. b), do CPC, é admissível o recurso interposto.

b) Das excepções de incompetência em razão da matéria do tribunal civil e da violação do princípio da adesão na acção penal;

Coloca-se à consideração deste tribunal a questão de saber se ocorrem as conexas excepções de incompetência em razão da matéria do tribunal civil e violação do princípio de adesão na acção penal, como defende o recorrente, ao invés do decidido pelo tribunal recorrido.

Mais concretamente, importa apreciar se o tribunal a quo – tribunal civil – por um lado, tem competência para apreciar o pedido de indemnização formulado na presente acção sob a forma de processo comum – uma vez que o autor já havia deduzido pedido civil na acção penal conexa, o qual foi rejeitado liminarmente por extemporaneidade e, por outro lado, a propositura da presente acção civil nesse contexto é não é admissível por violar o princípio da adesão inerente àquela acção penal.

Vejamos:

O artº 71º, do Código de Processo Penal (CPP), consagra o princípio da adesão.
Este consiste em o pedido de indemnização civil decorrente da prática de um crime dever ser deduzido no processo penal.
Este normativo, conjugado com o artº 72º seguinte, prevê excepções a esse princípio da adesão, entre as quais as situações comtempladas nas alíneas c) e g), do seu nº1: o procedimento depender de queixa ou de acusação particular [al. c)]; o valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular [al. g)].
Quanto a este último, inexistindo agora a intervenção do tribunal colectivo no julgamento no âmbito do CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06, esvaziou-se o conteúdo da citada alínea g), ante o disposto nos artºs 546º, 548º e 599º.
Ora, tendo o autor/recorrido apresentado pedido civil na acção penal, este veio a ser indeferido liminarmente por extemporaneidade.
Formou-se, assim, caso julgado formal na acção penal, isto é, dentro desse processo e apenas nesses limites e termos.
Ou seja, o tribunal não conheceu do fundo, do mérito do pedido de indemnização civil.
Inexistiu, pois, caso julgado material que pudesse ter reflexo na presente acção civil.
O artº 72º, enquanto norma excepcional, enumera os casos de dedução em separado do pedido de indemnização perante o tribunal civil.
Um deles é precisamente o de o procedimento depender de queixa, como sucede in casu, ou de acusação particular.
E não prevê nesta situação qualquer impossibilidade de dedução em separado quando não tenha sido conhecido tal pedido na acção penal, nomeadamente com base em indeferimento por razões de extemporaneidade.

Tudo se passa, então, como se não tivesse sido deduzido.

Logo, a interpretação deste preceito tem de se confinar aos estritos termos que dele defluem, sendo formalmente permitido, em sede de tramitação processual, quanto nele não esteja proibido.

E o que resulta da apontada alínea c) é que é facultada a dedução em separado do pedido de indemnização civil perante o tribunal civil, sem quaisquer entraves, quando o procedimento depender de queixa, como ocorre com o ilícito penal subsumível em ofensa à integridade física simples.

Acresce que o princípio da adesão alicerça-se em razões práticas como a economia e celeridade processuais, aliadas à promoção de uniformização de julgados e à protecção eficaz das vítimas de uma infracção penal.

Tal desiderato não fica beliscado no caso em apreço, já que o tribunal penal não apreciou sequer o mérito do pedido civil.
*
Também não obsta ao conhecimento do presente pedido em separado a circunstância de o tribunal recorrido enquadrar a sua admissibilidade nesta acção com base na dita alínea c), do nº 1, do aludido artº 72º, do CPP, ao invés da sua alínea g).

Com efeito, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artº 5º, nº 3, do CPC.

A saber a aplicação daquela mencionada alínea c), uma vez que, no caso em análise, a materialidade fáctica que lhe serve de suporte emerge expressamente dos autos, v.g. dos artigos 1 a 8, 9, 10 e 11 da petição, em conjugação com os documentos juntos, como seja a sentença proferida no processo-crime.

Não se configura, pois, qualquer ‘abuso de direito processual’ por parte do tribunal recorrido.

Do que se deixa aduzido decorre ainda o acerto do decidido quanto à improcedência da alegada excepção de incompetência do tribunal a quo, enquanto tribunal civil, para conhecer do pedido formulado na presente causa.

IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
*

Custas da apelação pelo recorrente.
Guimarães, 17.12.2018

ANTÓNIO SOBRINHO
JORGE TEIXEIRA
JOSÉ AMARAL (VOTOU VENCIDO CONFORME DECLARAÇÃO QUE SEGUE)

Voto de vencido

Sem prejuízo do máximo respeito pela bem defendida tese vencedora, dela divergi.
Em primeiro lugar, porque, em bom rigor, não me parece, como contrapôs o recorrido, que da decisão questionada coubesse apelação autónoma imediata (nesta fase) ao abrigo da alínea b), do nº 2, do artº 644º, CPC. Nela, a meu ver, não foi apreciada propriamente uma questão de competência absoluta (em razão da matéria) nos termos dos artºs 60º e 65º, CPC. Apurar, nas circunstâncias aqui em apreço, se é ou não admissível a dedução de pedido cível separado, em função do princípio-regra da adesão obrigatória consagrado no artº 71º, do CPP, e das excepções admitidas no artº 72º, não contende essencialmente com qualquer dos factores típicos de determinação da competência na ordem interna, tratando-se, antes, de uma excepção dilatória atípica.
Em segundo lugar, porque, na linha da tese do recorrente e dos fundamentos por ele esgrimidos, teria dado provimento ao recurso, revogado a decisão recorrida e julgado procedente a excepção dilatória inominada por ele invocada na contestação, absolvendo-o da instância civil.
Isto, por um lado, perspectivando a admissibilidade da apelação (na verdade, julgar violado, ou não, o referido princípio acaba por ter, como resultado, negar ou conceder à jurisdição civil competência para apreciar e decidir o pedido de indemnização por danos derivados de infracção criminal), bem assim que o autor, apesar de tudo, não age em abuso de direito e que pretendeu (embora sem tal alegar) valer-se da al c), do nº 1, do artº 72º, do CPP.
E, por outro, em resultado de, à questão de saber se, com fundamento nesta norma, pode ele, como lesado – depois de ter apresentado queixa por crime de natureza semi-pública, de se ter constituído assistente no processo penal, de neste e no âmbito do regime inerente ter deduzido idêntico pedido de indemnização por danos que foi indeferido por extemporâneo e uma vez, após sentença condenatória do arguido lesante, já findos os autos – instaurar, em separado, no foro civil, acção declarativa comum destinada a efectivar a mesma pretensão ali inviabilizada, entender que deve responder-se negativamente.
Com efeito, já no Código de Processo Penal de 1929 se estabelecia, como princípio obrigatório, que a indemnização por danos resultantes de infracção criminal devia fazer-se no processo-crime e conjuntamente com a respectiva acção. Tal regra constava do artº 29º. No artº 30º, estabeleciam-se duas grandes excepções.
Uma primeira, relativa aos crimes públicos. Fundamentando-se a pretensão indemnizatória em tal tipo de infracções e se a respectiva acção penal não fosse exercida pelo Ministério Público no prazo de seis meses ou se o processo estivesse parado durante esse lapso de tempo ou fosse arquivado ou, ainda, o arguido acabasse nele absolvido, podia a acção civil ser proposta em separado, no tribunal civil. Tais vicissitudes, então, apenas permitiam o desvio à regra da adesão obrigatória.
Uma segunda excepção, relativa aos crimes particulares ou semi-públicos. Neste caso, a acção civil podia ser intentada em separado. Porém, esta faculdade de optar implicava, como reverso, uma consequência: ficaria extinta a acção penal – artº 29º, § 1º. Assim se prevenia, em qualquer caso, a violação do princípio-regra: optando pela penal, nela tinha forçosamente de ser deduzido o pedido cível, respeitando aquele; optando pela civil, o princípio deixava de operar e o respeito por ele perdia razão de ser porque, simplesmente, uma vez extinta a acção penal, jamais existiria o respectivo procedimento concorrente. Nesta hipótese excepcional, só não havia lugar a tal consequência e, portanto, a opção passava a ser completamente livre e não condicionada, podendo a vítima-lesado promover os dois procedimentos e estes correr em paralelo, se o penal estivesse parado por seis meses ou mais, fosse arquivado ou o réu nele acabasse absolvido – artº 29º, § 2º.
No regime adjectivo pretérito, portanto, relativamente aos crimes de natureza particular e semi-pública, só poderiam concorrer a acção penal e a acção civil, isto é, só deixava de ser obrigatória a adesão (sem qualquer consequência) nas hipóteses do § 2º. Nas demais, a vítima-lesado tinha de optar entre fazer a queixa-crime e obrigatoriamente deduzir o pedido cível na acção penal ou abdicar desta e deduzir aquele no tribunal civil (conformando-se com a concomitante extinção daquela ipso facto).
Como então escrevia o Prof. Figueiredo Dias (Sobre a Reparação de Perdas e Danos Arbitrada em Processo Penal, BFDUC, 1996, página 95), no § 1º, do artº 30º, estabelecia-se uma “verdadeira excepção ao princípio geral” da adesão obrigatória, na medida em que nessa norma se consagrava o “princípio da opção”, possibilitando “a promoção directa e independente do pedido de indemnização civil, sem haver necessidade de se aguardar um certo estádio ou efeito da acção penal, como acontece no § 2º”. Aí, “a natureza da acção penal […] decide do destino do pedido de indemnização civil”, dado tratar-se de crime não públicos.
O referido Professor, cujo papel relevante é bem conhecido na reforma penal empreendida na década de oitenta do século passado, face a tal regime e perspectivando o direito a constituir, proclamou como desígnio a “preocupação de preservar, até onde seja possível sem claros inconvenientes político-processuais, a traça do sistema vigente”, sublinhando que a “ideia-mestra do processo de adesão deve, com bom fundamento, ser mantida no futuro”, admitindo, contudo, uma “maior maleabilidade” para sugeridas excepções em “maior número” ou “mais extensas” desde que não se verificasse a perda das vantagens visadas com o princípio da adesão. Significativamente, nenhuma das preconizadas contempla a possibilidade de, em tal tipo de crimes, se admitir a concorrência das duas espécies de acção em situações diferentes das já antes contempladas, mormente as que, por via da interpretação e aplicação literal da alínea c), do novo artº 72º, como esta a qui em apreço, se pretendem ver nela abrangidas (Direito Processual Penal, 1984, páginas 559 e sgs).
Foi assim que o novo Código de Processo Penal, de 1987, como opção político-legislativa, manteve o princípio da adesão obrigatória, no artº 71º, e continuou a admitir, no artº 72º, nº 1, excepções, dele mitigadoras, que possibilitam a dedução do pedido cível em separado, algumas novas, conservando o sistema que foi inspirado no CPP de 1929 (M. L. Maia Gonçalves, CPP Anotado, 1990, páginas 142 e 143), que se deste se apartam na sua estrutura literal (caso da alínea c), do nº 1, daquele último artigo, que, por isso mesmo, veio a gerar controvérsia) dele se aproximam no seu sentido normativo mais profundo.
Assim, independentemente da natureza (pública, semi-pública ou privada) dos crimes, contemplaram-se, em diversas alíneas, certas vicissitudes ligadas à demora, ao desfecho ou resultado do processo, à orgânica judiciária, etc., de modo a não retardar nem dificultar o exercício do direito de acção (civil).
Na alínea c), previu-se o caso de “O procedimento depender de queixa ou de acusação particular”. Porém, o nº 2 dispôs que, naquele tipo de crimes, “a dedução do pedido cível”, no foro e em acção civil, “vale como renúncia” ao direito de queixa.
Olhando a tais normas, extrai-se que, afinal de contas, se transpôs para o novo Código a solução que já antes constava no § 1º, do artº 30º, admitindo a opção pelo foro civil, mas com a consequente renúncia ao penal, tanto mais que, v.g., nas alíneas a) e b), do nº 1, do artº 71º, tal como outrora, continuaram previstas circunstâncias atinentes ao processo-crime que atenuam tal efeito e, semelhantemente, permitem, aí sim, a subsistência simultânea excepcional dos dois tipos de procedimento.
Gerou-se, porém, controvérsia na jurisprudência, designadamente quanto a saber se aquele nº 2 apenas operava no caso de ainda não ter sido exercido o direito de queixa e de, portanto, não ter sido promovido o procedimento criminal, ou se produzia o dito efeito (a dedução do pedido cível no foro civil valer como renúncia àquele direito) também depois, indistintamente, até mesmo sem curar do reflexo das circunstâncias previstas nas demais alíneas do nº 1.
Deste estado de coisas se dá conta o relatório do Assento do STJ nº 5/2000, de 19 de Janeiro (publicado no DR, 1ª, nº 52, de 2-3-2000).
Pressupondo-se nele que, outrora, não se distinguia o regime para os casos de, estando pendente o processo penal, ser formulado o pedido cível em separado porque “quando tivesse sido intentada acção penal e independentemente da natureza do crime, a dedução em separado do pedido cível, no Código de 1929, só era possível nos casos em que o processo penal tivesse sido arquivado ou estivesse sem andamento e o réu tivesse sido absolvido” e ressaltando que os conceitos de “renúncia” e de “desistência” não se confundem, acabou por firmar jurisprudência no sentido de que:
“A dedução, perante jurisdição civil, do pedido de indemnização, fundado nos mesmos factos que constituem objecto da acusação, não determina a extinção do procedimento quando o referido pedido cível tiver sido apresentado depois de exercido o direito de queixa se o processo estiver sem andamento há mais de oito meses após a formulação da acusação”.
Para as demais hipóteses, como se sugeriu na fundamentação, querendo o lesado, depois de ter apresentado queixa e estar em curso o procedimento criminal, deduzir pedido cível, fora dos casos não contemplados nas demais alíneas do nº 2, do artº 72º, resta-lhe a possibilidade de desistência da mesma (se verificados os respectivos pressupostos), uma vez que a “renúncia” referida no artº 72º pressupõe que o direito de queixa ainda não tenha sido exercido.
Apesar de tal alvitre e como o âmbito do Assento apenas contemplou o caso de o processo estar parado sem andamento (alínea a), do nº 1, do artº 72º), ficaram fora de tal orientação jurisprudencial as hipóteses de, não se verificando nem essa nem qualquer outra das demais circunstâncias, o lesado pretender, depois de apresentar queixa e de desencadeado o procedimento penal, deduzir pedido cível em separado, havendo quem defendesse que, em face da alínea c), e referindo-se o nº 2 a extinção do direito de queixa, tal efeito extintivo não operava se este o fosse já na pendência do processo penal.
Assim, neste tipo de crimes, parece ter-se admitido a possibilidade de ser deduzido pedido cível em separado – de excepção, portanto, ao princípio da adesão obrigatória – já depois de exercido o direito de queixa e na pendência do procedimento criminal sem risco de consequente extinção deste, interpretando-se, portanto, como reduzido o campo de eficácia do nº 2, do artº 72º, apenas ao caso de dedução do pedido previamente à queixa.
Mantendo-se, assim, o princípio regra da adesão obrigatória, tal representaria um alargamento do âmbito de aplicação do excepcional “princípio da opção” que a alteração entretanto introduzida na redacção do nº 2, do artº 72º, do Código, pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, não esclareceu e, por isso, não afastou.
Com efeito, “vale como renúncia” ao direito de queixa a “prévia dedução do pedido cível”, acrescentou-se.
Se só em tal caso (“prévia dedução”) a opção pelo recurso ao foro civil possibilitada na alínea c), do nº 1, afasta, pela renúncia, a possibilidade do procedimento criminal, parece resultar da letra da lei a sugestão de que, uma vez exercido o direito de queixa e desencadeado o procedimento criminal, o pedido cível pode, ainda assim, ser livremente deduzido em separado em qualquer circunstância e, portanto, independentemente da ocorrência de qualquer das demais previstas nas outras alíneas do nº 1, do artº 72º, uma vez que, então, nenhum reflexo no processo penal consta previsto.
Decorrentemente, mesmo que, como no caso aqui em apreço, o arguido-lesante já tenha sido condenado no processo penal por sentença transitada e mesmo que, antes, naquele, se tenha já apresentado a deduzi-lo mas o tenha visto indeferido por extemporaneidade, parece que, como se defendeu na decisão recorrida e defende o apelado, não há obstáculo à acção cível separada.
Isto significaria que, numa vasta área da justiça penal, o princípio da adesão teria cedido e dado lugar ao da opção, alterando-se ou até invertendo-se o sentido da política legislativa original.
Ora, não creio que tal tenha estado, de verdade, na mente do legislador.
Sabendo-se, pelas regras da experiência comum no foro, que por certo as da estatística não deixarão de confirmar, que, na jurisdição penal, predominam ou pelo menos abundam, os crimes de natureza privada ou semi-pública, não é crível que, apesar de tudo, se tenha querido romper com a tradição do Código de 1929, deixando de vigorar a adesão obrigatória e admitir-se a livre e irrestrita opção naqueles casos, nem que, portanto, no novo Código de Processo Penal, se quis modificar, tão ampla e substancialmente, tal regime e, desse modo, praticamente apagar, quanto aos crimes não públicos, o vigor e prevalência do princípio da adesão.
A história do preceito mostra que, nos crimes desta natureza, em homenagem a tal princípio, a opção, antes da queixa, pela acção civil separada arredava (extinguia) a acção penal.
E, bem assim, que a opção pela acção penal obrigava à dedução do pedido cível nesta e afastava a civil separada, salvo as hipóteses contadas referidas na parte final do § 2º, do artº 30º, do CPP de 1929.
Admitir o contrário significaria que o legislador, nessa área, em que talvez mais se justifiquem as razões da adopção de tal princípio (responsabilização penal e civil conjuntas do arguido lesante, protecção da vítima-lesado, uniformização de decisões pelo julgamento único e não duplicado, economia de meios, celeridade), optou por ignorá-las injustificadamente e, assim, que consagrou uma solução que ele próprio não tem assumido como a mais acertada.
Apesar da redacção actualizada dos preceitos no novo Código (artºs 71º e 72º) e da sua nova estrutura, inevitável pela inclusão de circunstâncias que antes o não estavam e clarificação de outras, é bem possível que, neste campo dos crimes de natureza privada ou semi-pública, não se tenha querido uma verdadeira ruptura e, pelo contrário, apesar da letra por que se optou, o sentido e alcance tenha sido o de manter, no essencial, o regime de 1929.
Sendo assim, como parece que pode e deve ser, facultando-se embora, a opção pela acção separada antes de exercido o direito de queixa com a correspectiva renúncia deste, nos termos das disposições conjugadas da alínea c), do nº 1, com o nº 2, do artº 72º, bem como nas demais circunstâncias previstas nas restantes alíneas, uma vez que a vítima-lesada não exerça tal opção e, portanto, acolha o princípio da adesão ao decidir optar e enveredar pelo procedimento criminal e sujeitando-se a aí ter de deduzir o pedido cível e ao inerente regime adjectivo que o regulamenta, jamais pode, sem que alguma daquelas circunstâncias tal autorize, lançar mão do pedido separado.
Menos ainda, quando o procedimento criminal terminou pelo julgamento e com sentença condenatória, o que implicaria, sem justificação legal ou outra, ressuscitar o evento lesivo, reacender o litígio na sua vertente civil e voltar a chamar o lesado a responder, quando para tal teve o lesante a oportunidade que a lei lhe facultou de o fazer no processo penal, sujeitando-se, claro, às regras deste e às consequências decorrentes da sua inobservância, e que considera ser a mais adequada sob diversas perspectivas.
Feita, portanto, a opção pela acção penal e exercida esta com a consequente afirmação e observância do princípio-regra da interdependêdncia ou da adesão, deixa de ser alternativa e de ter lugar a possibilidade excepcional de recurso à acção civil separada.
Essa será a solução – restritiva em face da letra da lei – sistematicamente mais coerente, uma vez que não se encontra razão lógica nem justificação de qualquer natureza para, no quadro legal em que prepondera o princípio da adesão, se extinguir o procedimento criminal caso a vítima-lesado opte pela dedução do pedido cível antes da queixa e voltar a dar-lhe o benefício das duas acções se reservar a apresentação daquele para depois.
É a solução mais conforme ao pensamento legislativo e presumidamente mais acertada e capaz de evitar distorções à aplicação dos citados princípios como aquela a que, aqui, neste caso, pode dar-se lugar e que, afinal de contas, redunda numa enviesada forma de colmatar a falha pelo lesado cometida de ter agido extemporaneamente no processo penal, resultado este que, por certo, não se acomoda nem realiza o espírito da lei, mesmo que aquele, para disfarçar, aumente o valor do pedido mas não alegue novos danos.
A excepção da alínea c), do nº 1, do artº 72º, tem como objectivo, nos crimes de natureza particular ou semi-pública, evitar o recurso obrigatório ao processo criminal para o lesado obter o ressarcimento dos danos consequentes à infracção penal e optar pelo recurso ao processo civil. Não deve, por isso, interpretar-se no sentido de que esse mesmo desígnio subsiste uma vez apresentada a queixa e instaurado aquele procedimento. Pelo contrário, deve sê-lo restritivamente, de modo a excluir-se do seu âmbito normativo a possibilidade de, em tal situação, o lesado poder deduzir, em separado e em paralelo, pedido cível, duplicando as acções, os processos e as instâncias.
Parece nesse sentido se terem orientado Germano Marques da Silva e Manuel Simas Santos e Leal Henriques, citados em “A responsabilidade civil conexa com a responsabilidade criminal: o pedido de indemnização civil”, de Marisa Carlos Vieira Lopes, Universidade Lusíada de Lisboa, 2014, página 83, acessível na Internet).
É a interpretação restritiva que evita a “subversão prática do princípio da adesão” (ob. cit., página 19) e assegura que ele não é contornado nem inutilizado pelo artº 72º mais do que o legislador previu.
Tal interpretação é a que parece extrair-se do Acórdão da Relação de Coimbra, de 02-03-2010, processo nº 143/08.2TBOBR.C1, embora num caso de crime público, mas em que se julgou que “a não inclusão (por esquecimento) do pedido de indemnização pelo dano morte na acção cível processada nos autos crime, não constitui excepção à regra consagrada no artº 71º do CPP, pelo que o tribunal civil carece de competência para o seu conhecimento, devendo o réu ser absolvido da instância.”, bem assim do da Relação de Évora, de 13-03-2008, processo 3204/07-3: “O decurso do prazo para a formulação do pedido cível na acção penal, sem que se verifiquem as excepções que permitem a sua dedução em separado configura uma situação de preclusão do direito respectivo…” que, para tal se fundamentou na prevalência do princípio da adesão, na sua razão de ser (citando-se aí Figueiredo Dias e Cavaleiro de Ferreira) “tendencialmente absorvente do facto que dá causa às duas acções, em atenção aos efeitos úteis que, do ponto de vista pessoal, se ligam à indemnização civil” e que justificam a “unidade formal do processo penal, a conjunção e coordenação da acção penal e da acção civil”, enfatizando a não alegação sequer de factos na petição inicial que justificassem tal opção tardia (no caso aqui em apreço, invocou-se a da alínea g), do nº 1, do artº 72º, obviamente, na organização judiciária actual, desprovida de sentido e conteúdo útil).
Na verdade, conquanto entre as razões da adopção do princípio da adesão obrigatória também estejam as vantagens no julgamento unitário para o lesado, a sua falha (dedução extemporânea do pedido na acção penal) não legitima a concessão de uma segunda oportunidade, já que não apenas os interesses dele estão em causa no regime legal.
É ainda aquela interpretação que parece estar subjacente ao Acórdão desta Relação de Guimarães, de 29-06-2017 (processo 2299/16.1T8BRG.G1), que, em face de caso similar (acção cível separada posterior à condenação do lesante no processo penal pelo crime de ofensa à integridade física simples apenas com o alegado fundamento, julgado não verificado, das alíneas d) e g), do nº 1, do artº 72º, não acolheu o pedido e, para tal, não enveredou pela aplicação oficiosa da alínea c), tal como defendeu neste caso o tribunal a quo e defende o apelado).
Depois de apresentada a queixa, restaria ao lesado desistir dela para, então, extinto por isso o procedimento criminal poder deduzir o pedido cível separado, É o que se intui do que refere Cristina Dá Mesquita (Prova na acção de responsabilidade civil …, Julgar Online, Janeiro de 2018, página 6), estribando-se, aliás, no Acórdão da Relação do Porto, de 26-05-2003, processo nº 0250567: “Daí que nos casos de crime semipúblicos ou particulares: (1) não exista a obrigatoriedade de adesão (…); (2) deduzida acção civil antes da queixa fica impedido futuro processo penal (…); (3) e tendo havido lugar a queixa o lesado pode este posteriormente desistir da mesma e instaurar acção de responsabilidade nos tribunais civis”.
Em terceiro e último lugar, acrescenta-se, é na preclusão que radica um outro motivo por que, mesmo a não se entender o regime do artº 72º, do CPP, como se fez acima, sempre o pedido cível separado, nas circunstâncias aqui em apreço, não deveria ser admitido.
É que, uma vez feita a opção pela acção penal e pela consequente apresentação nela do pedido de indemnização por danos, o regime legal respectivo, quanto a pressupostos, prazos e consequências da respectiva inobservância, não deixa de estar enformado e informado pelo do processo civil.
Assim, subsistem aí os princípios da necessidade do pedido e da disponibilidade objectiva do processo e os ónus correspondentes, pelo que se o lesado, na acção penal pelo facto de que se queixou, que desencadeou e correu seus trâmites, devidamente informado ou notificado, não formula o pedido ou – o que é o mesmo – o deduz extemporaneamente, não deixa de sofrer a cominação em geral prevista par a sua inércia ou retardamento: não mais pode exercer tal direito de acção (qualifica-se o facto como caducidade da acção ou como preclusão do direito).
Nesse sentido “Pedido de Indemnização Civil, O princípio do pedido”, de Daniel Duarte Trigo Vargues da Conceição, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, 2011, página 26, acessível na Internet) e, ainda, o Acórdão da Relação do Porto, de 12-12-1990 (CJ, Tomo V, Ano XV, página 224), segundo o qual a dedução extemporânea do pedido no processo penal faz caducar tal direito.
Não se pode considerar que tudo se passa como se nada ali tivesse acontecido nem é do regime do caso julgado formal ali formado, mas dos princípios, que decorre tal impossibilidade.
Daí que, no presente caso, tendo o autor deduzido, mas extemporaneamente, o pedido indemnizatório no processo penal, por isso aí indeferido, jamais pode fazê-lo em acção cível separada daquele.