Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2287/23.1T8BCL.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
FALTA DE CITAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Em regra o meio processual adequado à invocação de nulidades processuais não é a interposição de recurso, mas sim a arguição do vício do ato perante o tribunal onde corre o processo.
2 – Caso o ato afetado de nulidade esteja coberto por uma decisão judicial – por admitir a prática do ato proibido ou a omissão do ato obrigatório – ou quando a nulidade se revele por efeito de uma decisão recorrível ou esta pressuponha o ato viciado, então o meio próprio é a impugnação da decisão através de recurso.
3 – O processo é nulo a partir da petição inicial quando o réu não tenha sido citado.
4 – Se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.
5 – O ónus da prova do desconhecimento não culposo da citação incumbe ao citando.
6 – Tendo a primeira carta registada para citação da Ré sido devolvida com a menção de “desconhecido”, como o distribuidor postal não conseguiu entregar a segunda carta enviada em repetição da citação, é regular o procedimento de depósito da carta no recetáculo postal da efetiva sede da citanda e de certificação do ato.
7 – A circunstância de a carta registada, dois dias depois de depositada, ter sido devolvida aos serviços postais, com a menção “mudou-se”, não constitui motivo atendível para não se considerar efetuada a citação da Ré.
8 – A devolução da carta só podia ser realizada por uma pessoa física com acesso ao recetáculo postal da sede da sociedade Ré e nenhum facto foi alegado no sentido de demonstrar que tal circunstância lhe é completamente alheia ou sequer que é desculpável, pelo que o desconhecimento da citação pessoal não pode ser considerado como resultante de facto que não lhe é imputável.
9 – É exigível às pessoas coletivas que tenham a adequada organização interna para prevenir o desconhecimento de qualquer comunicação que lhes seja dirigida; pelo que o desconhecimento da citação só é desculpável quando o mesmo tenha ficado a dever-se a um funcionamento anómalo de uma boa organização.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. EMP01..., Lda., intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP02..., Lda., indicando que esta tem «sede na Rua ..., ... ...» e pedindo que a Ré seja «condenada no pagamento da quantia de € 20.295,00 (vinte mil duzentos e noventa e cinco euros) à Autora a título de remuneração no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado, quantia esta acrescida de juros de mora à taxa legal desde 1 de Março de 2023, data em que se recusou a celebrar o contrato promessa de compra e venda, até efetivo e integral pagamento.»
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1.2. Em 13.09.2023, a Secretaria do Tribunal procedeu à consulta das bases de dados do ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas e obteve informação de que a sede da Ré era na Rua ..., em ... (...), concelho ..., distrito ..., código postal ... ....
Em 15.09.2023, sob a referência ...66, o Tribunal, para citação da Ré, procedeu ao envio de carta registada com aviso de receção com o endereço «Rua ..., ... ...».
Em 19.09.2023, tal carta foi devolvida ao Tribunal com a menção de «desconhecido» em «18/9/23».
Em 20.09.2023, sob a referência ...60, igualmente para citação da Ré e referindo-se no envelope que se tratava de «citação postal, 2ª tentativa», procedeu-se ao envio de nova carta registada com aviso de receção para a «Rua ..., ... ...», mencionando-se, além do mais, que «Nos termos do disposto no nº. 4 do art.º 246.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª citado para, no prazo de 30 dias, contestar, querendo, a ação acima identificada com a advertência de que a falta de contestação importa a confissão dos factos articulados pelo(s) autor(es).
Com a contestação, deverá o citando, apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova, de acordo com o artº 572º do Código de Processo Civil.
A citação considera-se efetuada:
1. No dia de assinatura do aviso de receção*;
2. Se a carta tiver sido depositada na sua caixa postal, no dia do depósito;
Ou, se não for possível o depósito na caixa do correio, sendo deixado aviso para levantamento no estabelecimento postal devidamente identificado, nos termos previstos no nº 5 do Art.º 228.º do CPC, o citando a não for levantar, no 8º dia posterior à data constante do aviso.
Ao prazo indicado acresce uma dilação de:
a) 0 dias, (por o processo correr em comarca diferente daquela onde foi efetuada a notificação);
ou,
b) 30 dias, nos casos previstos no número 2.
O prazo é contínuo suspendendo-se, no entanto, nas férias judiciais.
Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte.
Fica advertido da obrigatoriedade da constituição de mandatário judicial.
Juntam-se, para o efeito, um duplicado da petição inicial e as cópias dos documentos que se encontram nos autos.»
Em 02.10.2023 foi devolvido ao Tribunal o aviso de receção, onde o distribuidor postal mencionou que no dia 25.09.2023, às 12.50 horas, «Na impossibilidade de entrega depositei no Recetáculo Postal Domiciliário da morada indicada a CITAÇÃO a ela referente.»
Em 29.09.2023 foi devolvida ao Tribunal a carta para citação da Ré, tendo os serviços de distribuição postal mencionado, mediante aposição de carimbo a vermelho, que «Depois de devidamente entregue voltou aos Correios ... com a indicação» com menção manuscrita de «Mudou-se 27/9/23».
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1.3. Em 06.12.2023 foi proferida sentença, sendo que na parte relevante tem o seguinte teor:
«Considerando que a Ré, tendo sido citada regularmente (cfr. Refªs ...66 e ...08 a ...14), NÃO contestou a presente ação, julga-se confessados os factos articulados pela Autora na sua Petição inicial sob a Refª ...70 (artigo 574º/2 do CPC).
Atendendo a que os factos reconhecidos por falta de contestação determinam a procedência da ação, aderindo para o efeito aos fundamentos alegados pela Autora na petição inicial e nos termos do artigo 567º/3 do CPC, decide-se Condenar a Ré EMP02... – LDA no pedido final formulado, sob a Refª ...70, in fine (a seguir ao artigo 32.), cujo teor ora se reproduz:
“- Pagar à Autora a quantia de € 20.295,00 (vinte mil e duzentos e noventa e cinco euros) a título de remuneração no âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado, quantia esta acrescida de juros de mora à taxa legal desde 1 de Março de 2023 - data em que se recusou a celebrar o contrato-promessa de compra e venda - até efetivo e integral pagamento”.»
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1.4. A Ré interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«I. O Tribunal a quo, na sentença, condenou a R. no pagamento do pedido, alegando que se deram confessados os factos, atenta a falta de contestação.
II. Entendeu, ainda, o Tribunal que a R. se encontra regularmente citada.
III. O Tribunal remeteu à R. uma primeira carta, com aviso de recepção, a qual veio a ser devolvida por, alegadamente, a R. ser “desconhecida”.
IV. Assim sendo e devendo estranhar esta menção, deveria o Tribunal ter repetido a citação.
V. Deste modo, aquela primeira carta não pode valer como primeira tentativa, pois nenhum aviso foi deixado no recetáculo postal.
VI. Contrariamente ao que vem declarado no “aviso de recepção”, relativamente à 2ª tentativa de citação, o distribuidor postal não depositou a carta no recetáculo postal da R. Se assim fosse, a segunda carta não teria também sido devolvida ao Tribunal.
VII. A R. desconhecia por completo a tentativa de citação: na primeira carta não foi deixado qualquer aviso para levantamento, tendo a carta, simplesmente, sido devolvida por a R. ser, alegadamente “desconhecida”; na segunda carta, apesar de ter sido lavrado que foi depositada a carta (e não deixado aviso) é evidente que não o foi, sendo que não se encontra demonstrado que tivesse sido deixado qualquer aviso para levantamento.
VIII. Ou seja, está afastada a presunção, que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados, estabelecida na parte final do nº 2, do art. 230º do Código do Processo Civil.
IX. Assim, verifica-se a falta de citação, cfr. alínea e) do nº 1 do art. 188 do Código do Processo Civil – falta de conhecimento do acto pelo destinatário por facto que lhe não é imputável.
X. Num tal quadro não se pode deixar de considerar e dar por adquirido que na precedente acção declarativa de condenação, a R. não chegou a ter conhecimento do acto por facto que não lhe é imputável.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, deve este recurso ser julgado procedente e, consequentemente, deve ser considerada nula a citação, devendo o processo baixar ao Tribunal de primeira instância, ordenando-se a citação da R. para, querendo, contestar o pedido.»
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A Autora apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.5. Questão a decidir

Atentas as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa apurar se ocorreu o vício da falta de citação da Ré.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a apreciação da apontada questão são os descritos no relatório que antecede.
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. A Recorrente pretende que se declare nula a citação. Invoca o vício da falta de citação, nos termos do disposto no artigo 188º, nº 1, al. e), do CPC.
Estando em causa uma nulidade processual, é de fazer notar que em regra o meio processual adequado à invocação de nulidades processuais não é a interposição de recurso, mas sim a arguição do vício do ato perante o tribunal onde corre o processo.
Porém, caso o ato afetado de nulidade esteja coberto por uma decisão judicial – por admitir a prática do ato proibido ou a omissão do ato obrigatório – ou quando a nulidade se revele por efeito de uma decisão recorrível ou esta pressuponha o ato viciado, então o meio próprio é a impugnação da decisão através de recurso[1].
Com efeito, segundo Miguel Teixeira de Sousa[2], no contexto das nulidades, «são possíveis três situações bastante distintas:
-- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
-- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
-- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso (…), o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. (…)
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões.»
No caso dos autos, o Tribunal a quo apreciou da regularidade da citação, pois considerou que a Ré foi «citada regularmente», aludindo-se expressamente aos atos com as «Refªs ...66 e ...08 a ...14». Mais, extraiu do ato de citação e da subsequente revelia a consequência jurídica prevista no artigo 567º, nº 1, do CPC, proferindo sentença em consonância com a mesma.
Por isso, o recurso é o meio próprio e adequado de impugnar a sentença com fundamento na nulidade da citação.
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2.2.2. Relativamente ao réu, nos termos do artigo 219º, nº 1, do CPC, a citação é o ato pelo qual se lhe dá conhecimento de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender.
É pela citação que se concretiza o princípio do contraditório, sendo, por isso, um ato fundamental do processo civil e que viabiliza o exercício do direito, com consagração constitucional[3], de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos. Tendo em conta a assinalada função e os efeitos – materiais e processuais – associados à citação, desde logo na esfera jurídica do réu[4], o Código de Processo Civil regula de forma pormenorizada o ato, designadamente quanto às consequências da sua falta ou nulidade.
Nos termos do disposto no artigo 187º, alínea a), do CPC, o processo é nulo a partir da petição inicial quando o réu não tenha sido citado.
Com relevo para a apreciação do objeto do recurso, verifica-se a falta de citação «quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável» - alínea e) do nº 1 do artigo 188º do CPC. Na referida alínea prevê-se uma inexistência jurídica e não uma inexistência ontológica.
A citação pessoal é aquela que é realizada por uma das formas estabelecidas no artigo 225º, nºs 2 e 4, do CPC, nomeadamente através de carta registada com aviso de receção.
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2.2.3. A Recorrente alega a falta de citação com dois fundamentos distintos:
a) Por a «primeira carta não pode[r] valer como primeira tentativa, pois nenhum aviso foi deixado no recetáculo postal», pelo que «deveria o Tribunal ter repetido a citação» - conclusões V e VI;
b) [R]elativamente à 2ª tentativa de citação, por «o distribuidor postal não [ter] deposit[ado] a carta no recetáculo postal da R.» - conclusão VII.

A Ré é uma sociedade e a citação de pessoas coletivas mostra-se regulada no artigo 246º do CPC, contendo o seu nº 1 uma norma remissiva, pois determina que lhes é aplicável o regime da citação de pessoas singulares (art. 225º e segs. do CPC), quer quanto às modalidades da citação (art. 225º, nº 1), quer no que se refere às formas da citação pessoal (art. 225º, nºs 2, 3 e 5), quer ainda no que concerne às formas sucedâneas da citação por via postal (arts. 225º, nº 2, al. c), 231º, nºs 1 e 9, 2ª parte, e 237º, nº 2).
O nº 2 regula a citação postal da pessoa coletiva, determinando que o endereço para o qual a carta deve ser enviada é o correspondente à «sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.»
No caso em apreciação a carta para citação da Ré foi enviada precisamente para a sede da citanda que constava das bases de dados do ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
A própria Recorrente não põe em causa que a sede é na morada que consta daquele ficheiro, sendo certo que esse endereço também foi referido na procuração forense junta aos autos como sendo a sede e até no contrato cuja cópia acompanhou a petição inicial. Há, por isso, uma coincidência total entre os diversos elementos dos autos: a sede da Ré é na Rua ..., ... .... Nenhuma referência há a outra morada, pelo que todas as diligências com vista à citação tinham de ser feitas por referência a esse local, como efetivamente foram.
Ora, o facto de tal carta ter sido devolvida ao Tribunal com a menção de «desconhecido» não constitui fundamento para, na tese da Recorrente, desconsiderar essa primeira tentativa de citação. Como o distribuidor postal foi ali informado de que a Ré era desconhecida no local que constitui a sua sede, o que tinha que fazer era devolver a carta e lavrar nota da ocorrência e nada mais do que isso. Perante a informação prestada, o que se impunha era a devolução do expediente e não propriamente deixar aviso no recetáculo postal, como defende a Recorrente. Não se verificava nem a recusa do recebimento da carta nem a recusa da assinatura do aviso de receção e, por outro lado, havia sido prestada a informação sobre a Ré ser ali desconhecida.

Posto isto, suscita-se a questão de saber como deveria o Tribunal recorrido ter procedido perante a devolução do expediente enviado para citação da Ré na morada que constitui a sua sede.
A resposta é dada pelo nº 4 do artigo 246º do CPC: «Nos restantes casos de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-a da cominação constante do nº 2 do artigo 230º, observando-se o disposto no nº 5 do artigo 229º.»
Portanto, estando-se perante um caso de frustração da citação por via postal, devia repetir-se a citação, o que implicava o novo envio de uma carta com aviso de receção à citanda, advertindo-a da cominação constante do nº 2 do artigo 230º do CPC, ou seja, que «a citação considera-se efetuada na data certificada pelo distribuidor do serviço postal ou, no caso de ter sido deixado o aviso, no 8º dia posterior a essa data, presumindo-se que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados.»
Conforme se pode ver no ato com a referência ...60, elaborado em 20.09.2023, esse procedimento foi cumprido.
Subsequentemente, frustrada a entrega da carta registada com aviso de receção, aplicava-se o disposto no nº 5 do artigo 229º do CPC, onde se regula o procedimento a adotar em caso de frustração da repetição da citação postal: «No caso previsto no número anterior, é deixada a própria carta, de modelo oficial, contendo cópia de todos os elementos referidos no artigo 227º, bem como a advertência referida na parte final do número anterior, devendo o distribuidor do serviço postal certificar a data e o local exato em que depositou o expediente e remeter de imediato a certidão ao tribunal; não sendo possível o depósito da carta na caixa do correio do citando, o distribuidor deixa um aviso nos termos do nº 5 do artigo 228º.»
Também este procedimento foi observado.
Argumenta a Recorrente que o distribuidor postal não depositou «a carta no recetáculo postal da R.», mas isso não corresponde à realidade.
Na verdade, conforme se observa no ato com a referência ...14, consistente no aviso de receção devolvido ao Tribunal recorrido, o distribuidor postal, por não ter conseguido entregar a carta na sede da Ré, no dia 25.09.2023, às 12.50 horas, depositou a carta registada para citação da Ré no recetáculo postal da sede da citanda e lavrou nota precisamente disso: «Na impossibilidade de entrega depositei no Recetáculo Postal Domiciliário da morada indicada a CITAÇÃO a ela referente.»
Aliás, secunda a aludida constatação o facto de, passados dois dias, em 27.09.2023, a carta ter sido devolvida aos Correios ... (que em 29.09.2023, por sua vez, a devolveram ao Tribunal), tendo os serviços postais lavrado nota a referir que «Depois de devidamente entregue voltou aos Correios ... com a indicação» manuscrita de «Mudou-se 27/9/23». É isso que resulta do ato com a referência ...36.
Sendo assim, improcede o argumento da Recorrente relativo à falta de depósito da carta no recetáculo postal da Ré, depósito esse que foi efetuado em 25.09.2023, às 12.50 horas.
A circunstância de a carta posteriormente, em 27.09.2023, ter sido devolvida, não deixa de produzir efeitos relativos à citação da Ré, enquanto pessoa coletiva em cuja sede foi depositada a carta registada no respetivo recetáculo postal.

A devolução da carta só podia ser realizada por uma pessoa física que tinha acesso ao recetáculo postal da sede da sociedade Ré e nenhum facto foi alegado no sentido de demonstrar que tal circunstância lhe é completamente alheia ou sequer que é desculpável.
Daí que o desconhecimento da citação pessoal não pode ser considerado como resultante de facto que não lhe é imputável.
Como bem assinalada Miguel Teixeira de Sousa[5], a alínea e) do nº 1 do artigo 188º refere-se «situações em que o réu alega o desconhecimento da citação pessoal por facto que não lhe é imputável. (…) Quanto às pessoas colectivas, deve exigir-se que estas mantenham actualizado o seu registo no RNPC (art. 246.º, n.º 2) e que tenham a adequada organização interna para prevenir o desconhecimento de qualquer comunicação que lhes seja dirigida. Isto é: o desconhecimento da citação só é desculpável quando o mesmo tenha ficado a dever-se a um funcionamento anómalo de uma boa organização (e não ao funcionamento exigível a uma má organização). (e) O ónus da prova do desconhecimento não culposo da citação incumbe ao citando, nomeadamente pq se trata de ilidir a presunção estabelecida no art. 225.º, n.º 4.»
No caso apreço, a Ré não alegou quaisquer factos que consubstanciem «o desconhecimento da citação pessoal por facto que não lhe é imputável». Limitou-se a alegar que a carta não foi depositada no seu recetáculo postal e isso não corresponde à verdade. Não alegou nem requereu a prova de quaisquer outros factos que demonstrem que não recebeu a carta em questão por motivo que não lhe é imputável, não tendo juntado qualquer documento ou arrolado qualquer testemunha.
Pelo exposto, não se verifica a falta de citação. A citação foi regularmente efetuada, tal como bem concluiu o Tribunal recorrido.
Termos em que improcede a apelação.
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2.2.4. A mero título subsidiário, quod abundat non nocet, mesmo que em 2.2.3. se tivesse concluído pela falta de citação, sempre a apelação teria de ser julgada improcedente.
Dispõe o artigo 189º do CPC: «Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.»
Por conseguinte, a falta de citação fica sanada se o réu intervier no processo e não arguir logo essa falta.
Como adverte Miguel Teixeira de Sousa[6], a «sanação opera com eficácia ex tunc. O regime compreende-se: se o réu ou o MP intervém no processo é pq, qualquer que tenha sido a anomalia que tenha ocorrido no acto da citação, tem conhecimento do processo. Note-se que não é a intervenção no processo que cessa o vício; o que cessa o vício é a intervenção no processo e a não arguição imediata da falta de citação.»
Acrescenta o aludido autor, em inteira consonância com a interpretação prevalecente que se faz daquela norma legal, que «[o] acto praticado pode ser a junção pelo réu de procuração a advogado (RE 6/10/2016 (455/13)). Esta junção é suficiente para onerar a parte com a arguição da falta de citação (dif. RP 9/1/2020 (2087/17); RG 15/12/2022 (469/20)), dado que seria estranho que o réu que sabe que houve falta de citação e que, ainda assim, escolhe praticar um acto no processo não tivesse o ónus de invocar "logo" essa falta de citação
A situação dos autos preenche precisamente a previsão do artigo 189º do CPC.
Com efeito, em 16.01.2024, a Ré apresentou o requerimento com a referência ...08, pelo qual juntou aos autos procuração forense, e só em 17.01.2024, através do ato com a referência ...64, invocou a falta de citação.
Portanto, a Ré interveio no processo no dia 16.01.2024 e não procedeu à arguição imediata da falta de citação.
Por isso, sempre se verificaria a sanação do vício agora alegado.

Decaindo totalmente no recurso, a Recorrente é responsável pelas custas (artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Recorrente.
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Guimarães, 23.05.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
Maria dos Anjos Melo Nogueira


[1] Neste sentido, Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 183: «se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo». Com posição idêntica, Antunes Varela e outros, no Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 393: «se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão». Do mesmo modo, Anselmo de Castro, em Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, pág. 134: «Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora o meio idóneo para atacar impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso».
[2] Blog do IPPC, entrada de 28.01.2019, com o título Jurisprudência 2018 (163), disponível em https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html.
[3] Art.  20º, nº 1, da CRP.
[4] A citação tem variadas repercussões materiais e processuais, como a interrupção da prescrição e a sujeição aos deveres e direitos que a lei estabelece.
[5] CPC Online, acessível em Blog do IPC, versão de abril de 2024, em anotação ao art. 188º do CPC.
[6] Ob. cit., em anotação ao art. 189º do CPC.