Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES | ||
Descritores: | HABILITAÇÃO DE HERDEIROS DECLARAÇÃO TÁCITA DE ACEITAÇÃO DA HERANÇA REPÚDIO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 05/29/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | I - A não apresentação de oposição ao requerimento de habilitação de herdeiros por parte do habilitando não pode ser interpretada como contendo uma declaração tácita de aceitação da herança. II - Por isso, a habilitação de herdeiros em ação pendente não preclude, per se, a possibilidade de o habilitado repudiar a herança em momento ulterior. III - O exercício do direito ao repúdio e a sua invocação no processo só serão abusivos se forem determinados pelo propósito de perturbar o processo, tendo então como consequência possível a condenação do habilitado como litigante de má-fé. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Banco 1..., SA, intentou, no dia 4 de outubro de 2005, ação executiva para pagamento de quantia certa contra EMP01..., Lda., AA, BB, CC e DD, com vista à cobrança da quantia de € 154 227,55, a título de capital, acrescida de juros vencidos e vincendos, até integral e efetivo pagamento, calculados à taxa legal de 4%, e do respetivo Imposto de Selo. Depois de citados os executados e de realizadas outras diligências executivas, foi penhorado, no dia 3 de setembro de 2020, o prédio urbano, composto por casa de dois pavimentos, anexos e logradouro, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art. ...57 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...12, cuja propriedade se encontrava inscrita, no registo predial, em nome do executado AA. No dia 20 de setembro de 2020, EE apresentou, por apenso (C) aos autos de execução, petição inicial de embargos de terceiro na qual alegou, em síntese, ter celebrado com o referido executado um contrato-promessa de compra e venda, dotado de eficácia real, através de escritura pública lavrada no dia 4 de outubro de 2010, pelo qual a prometeu comprar e o segundo prometeu vender, o identificado prédio, o que foi inscrito na CRP através da apresentação n.º ...74, de 23 de novembro de 2010. Acrescentou que procedeu ao pagamento do preço convencionado e que, desde a celebração daquele contrato, utiliza o prédio para sua habitação como se fosse já a sua proprietária. O contrato definitivo ainda não foi celebrado “por falta de oportunidade e questões de licenciamento e registos.” Concluiu pedindo o levantamento da penhora realizada e o cancelamento do correspondente registo. Por despacho de 12 de outubro de 2020, os embargos foram recebidos, determinando-se a notificação das partes na ação executiva para a contestarem e, bem assim, a suspensão dos termos da execução quanto ao identificado prédio. O exequente apresentou contestação, em que impugnou os factos alegados pela embargante, arguiu a nulidade, por simulação, do contrato-promessa e pugnou pela improcedência dos embargos. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho, datado de 13 de junho de 2021, a: afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; fixar o valor processual; delimitar o objeto do litígio; enunciar os temas da prova. No dia 6 de maio de 2022, foi junta aos autos de execução certidão do assento de óbito do executado AA e, na sequência, por despacho proferido na mesma data, foram suspensos os termos da execução “até à notificação da decisão que julgue habilitados os respetivos sucessores.” No dia ../../2022, a exequente requereu, por apenso (D) aos autos de execução, a habilitação da identificada EE como sucessora do executado AA alegando, em síntese, que ela é a única e universal herdeira deste. A referida EE foi notificada para contestar, na pessoa da ilustre advogada que constitui no apenso de embargos de terceiro, nada tendo dito. Por despacho de 20 de junho de 2022, EE foi habilitada “a prosseguir, ocupando a posição de AA, nos autos de execução.” Esse despacho foi notificado ao exequente e à habilitada, tendo transitado em julgado. Na sequência, no apenso de embargos de terceiro, foi proferido despacho, datado de 6 de fevereiro de 2023, a declarar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, “[u]ma vez que a ora embargante, de acordo com a sentença proferida no apenso de habilitação, foi julgada habilitada a prosseguir os autos de execução, ocupando a posição do então executado.” Esse despacho foi notificado ao exequente e à habilitada, tendo transitado em julgado. Nos autos de execução, a habilitada apresentou requerimento, no dia 4 de janeiro de 2024, em que, depois de alegar que “não é executada nem pode ser habilitada (…) porquanto repudiou à herança”, pediu a extinção da instância. Com o requerimento apresentou escritura pública de Repúdio de herança, lavrada no Cartório Notarial ... de FF, no dia 30 de novembro de 2023, através da qual declarou “repudiar a herança aberta por óbito de seu pai, AA”, e que “nunca aceitou expressamente” a referida herança “nem praticou qualquer ato que implicasse aceitação tácita da mesma.” O exequente opôs-se ao deferimento do requerido dizendo que tanto o despacho de 20 de junho de 2022, que julgou a requerente habilitada como sucessora do executado AA, como o de 6 de fevereiro de 2023, que com esse fundamento julgou extinta a instância dos embargos de terceiro, transitaram em julgado. No dia 1 de fevereiro de 2024, foi proferido despacho em que se decidiu que “na situação sub judice, em que a sucessora habilitada, EE, repudia a herança, conclui-se ocorrer quanto a ela, a impossibilidade superveniente da lide, em consequência se determinando a correspondente extinção parcial da instância, nos termos da al. e) do art. 277.º do CPC”, com a seguinte fundamentação: “O nosso ordenamento jurídico consagra o princípio da retroatividade de todo o fenómeno sucessório, estabelecendo o art.º 2062.º do CC, quanto ao repúdio, que os seus efeitos se retrotraem ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia. Nas palavras do Professor Oliveira Ascensão [Direito Civil, Sucessões, Coimbra Editora, pág. 394], “[q]uanto ao repúdio, a retroatividade significa apenas que o sucessível é riscado do mapa, e tudo se passa juridicamente como se nunca lá tivesse estado”. Quanto às consequências do repúdio da herança depois da habilitação, e no que ao caso nos interessa, equaciona-se o problema nestes termos: Quid juris se, depois da habilitados certos sucessores, estes (todos ou alguns), repudiarem a herança? Ora, o repúdio da herança, dada a imperatividade legal da retroatividade dos seus efeitos, tem consequências no processo, ainda que o herdeiro repudiante tenha sido declarado habilitado com trânsito em julgado. E não pode deixar de ter. Nos termos do art.º 30.º do CPC, a legitimidade afere-se pelo interesse direto em demandar e em contradizer, exprimindo-se tal interesse, respetivamente, pela utilidade derivada da procedência da ação (autor), e pelo prejuízo que dessa procedência advenha (réu), prevendo a lei um critério subsidiário formal na determinação da legitimidade: apura-se pela relação controvertida nos termos em que o autor a configura na petição. A legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa, não se traduzindo numa qualidade pessoal, mas numa qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que nela se dirime [Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 69]. Assistindo legitimidade processual a alguém, decorrente apenas da sua condição de herdeiro, no momento em que deixa de ter essa condição, com efeitos imperativamente reportados à data da abertura da sucessão (art.º 2062.º do CC), não vemos como possa manter-se a causa relativamente a essa pessoa. A lei consagra o princípio da estabilidade da instância (art.ºs 260.º e ss. do CPC), prevendo modificações subjetivas (art.ºs 262.º e 263.º do CPC), nas quais não se refere o repúdio da herança. No entanto, o repúdio da herança tem, necessariamente, efeitos processuais. Para além da modificação subjetiva da instância pela intervenção de novas partes (art.º 261.º do CPC), a lei processual prevê ainda a modificação subjetiva em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por ato entre vivos, na relação substantiva em litígio e em virtude dos incidentes da intervenção de terceiros (art.º 262.º do CPC). Assim, atendendo que a declaração de repúdio se reporta ao momento da abertura da sucessão, não ocorrerá a modificação subjetiva da instância, verificando-se, no entanto, a impossibilidade superveniente da lide relativamente ao sucessor habilitado que repudiou a condição (de herdeiro) que justificava tal habilitação.” *** 2) Inconformado com o despacho acabado de transcrever, o exequente (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor:“1. O presente recurso vem interposto da Douta Sentença que julgou parcialmente extinta a instância quanto à sucessora habilitada, EE, por impossibilidade superveniente da lide, com fundamento no respetivo repúdio da herança aberta por óbito do executado AA. 2. A execução a 4 de outubro de 2005 contra AA e outros para a cobrança da quantia exequenda de € 155 844,70, onde foi localizado o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...89, em nome do Executado, e penhorado através das Ap. ...90 de 2018/02/28 e Ap. ...58 de 2020/09/03. 3. A 29 de setembro de 2020, EE deduziu embargos de terceiro, alegando que o bem imóvel penhorado lhe pertence em virtude da outorga de um contrato promessa de compra e venda em 4 de outubro de 2010 com o Executado AA, estando registada a seu favor promessa de alienação, provisória por dúvidas, através da Ap. ...74 de 2010/11/23. 4. A 9 de novembro de 2020, o Banco Exequente contestou os referidos embargos, invocando a nulidade do alegado contrato promessa de compra e venda por simulação. 5. Na pendência dos referidos embargos de terceiro, a ../../2022, faleceu o Executado AA e, a ../../2022, o Banco Exequente deduziu incidente de habilitação de herdeiros contra EE, filha do executado falecido. 6. A 22 de junho de 2022, não tendo sido deduzida qualquer oposição ao incidente de habilitação de herdeiros, foi proferida sentença que julgou habilitada a Requerida EE a prosseguir, ocupando a posição de AA, nos au tos de execução. 7. Na sequência do óbito do executado AA, a 6 de fevereiro de 2023, foi proferida sentença que julgou extintos os embargos de terceiro, por inutilidade superveniente da lide, considerando que a ali Embargante EE havia sido julgada habilitada a prosseguir os autos de execução. 8. EE não recorreu de nenhuma das sentenças proferidas nos apensos de habilitação de herdeiros e de embargos de terceiro. 9. A 4 de janeiro de 2024, veio a executada EE requerer a extinção da instância com fundamento de que não é executada nem pode ser habilitada nos presentes autos porquanto repudiou à herança a 30 de novembro de 2023, não tendo recebido qualquer bem do executado que possa responder pela dívida exequenda. 10. O Banco Exequente pronunciou-se contra o pedido de extinção da ação executiva uma vez que, por um lado, a requerente EE já havia sido habilitada nos autos como executada e, por outro, que o bem imóvel penhorado nos autos responde pela dívida exequenda. 11. O Tribunal a quo julgou parcialmente extinta a instância executiva contra EE com fundamento no repúdio da herança aberta por óbito do executado AA face ao principio da retroatividade de todo o fenómeno sucessório, nomeadamente do repúdio ao momento da abertura da sucessão. 12. O ordenamento jurídico consagra o princípio da retroatividade de todo o fenómeno sucessório, estabelecendo o artigo 2062.º do Código Civil, quanto ao repúdio, que os seus efeitos se retrotraem ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia. 13. Nos termos do artigo 30.º do Código de Processo Civil, a legitimidade afere-se pelo interesse direto em demandar e em contradizer, atendendo à utilidade derivada da procedência da ação e pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 14. No caso do repúdio, não há uma transmissão da posição do herdeiro repudiante, dado que a declaração de repúdio reporta-se ao momento da abertura da sucessão e, como tal, pode entender-se que ocorre uma impossibilidade superveniente da lide relativamente ao sucessor habilitado que repudiou a condição de herdeiro. 15. Contudo, importa aferir se o herdeiro habilitado e, posteriormente, repudiante, praticou algum ato que se consubstancia numa declaração expressa ou tácita de aceitação da herança, o que não foi feito pelo Tribunal a quo. 16. A aceitação expressa pressupõe que o sucessível declare em documento escrito que aceita a herança, ou que assuma expressamente o título de herdeiro, com a intenção de adquirir a herança [artigo 2056.º, n.º 2 do CC]. 17. A aceitação tácita 217.º, n.º 1, in fine do CC], sendo certo que os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança [art.º 2056, n.º 3 do CC]. 18. A aceitação tácita resulta, normalmente, do facto de o sucessível chamado à herança, se comportar como herdeiro, por exemplo: pagando as dívidas da herança; recebendo os rendimentos dos bens da herança; partilhando (sendo vários os sucessíveis), os bens da herança; cumprindo as obrigações fiscais; etc.[5]. 19. Tendo um sucessor habilitado repudiado a herança, sem que tenha em momento anterior praticado qualquer ato que se consubstancie em declaração expressa ou tácita de aceitação, ocorre, relativamente a ele, a impossibilidade superveniente da lide, devendo em consequência extinguir-se a instância (apenas quanto a ele), nos termos da alínea e) do artigo 277.º do CPC. 20. Nos presentes autos, são vários os atos praticados pela Executada habilitada EE que demonstram uma aceitação da herança aberta por óbito do executado falecido AA. 21. Encontra-se penhorado o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...89/..., o qual se encontra registado a favor do executado falecido AA através da Ap....38 de 2011/06/13 e sobre o qual se encontra ainda registada uma promessa de alienação a favor de EE através da .... 1774 de 2010/11/23. 22. A Requerida EE deduziu embargos de terceiro, no apenso C, invocando que o bem imóvel penhorado lhe pertence, tendo sido ainda notificada da habilitação de herdeiros, no Apenso D, e não contestou, tal como foi notificada da sentença de habilitação de herdeiros e não recorreu. 23. Os Embargos de terceiro deduzidos por EE foram extintos, por inutilidade superveniente da lide, uma vez que a Embargante já se encontrava nos autos como executada face à sentença de habitação de herdeiros e também não recorreu. 24. Figurando nos autos como executada, a Requerida EE repudiou a herança aberta por óbito de AA, requereu a extinção da instância e, com tais atos, impossibilitou que o bem imóvel penhorado nos autos seja vendido. 25. Os atos processuais constantes dos presentes autos demonstram, por um lado, que a Executada EE se arroga na posse do bem imóvel registado em nome do executado falecido e, por outro lado, que toda a sua conduta processual configura o instituto do abuso do direito cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26.05.2009. 26. Toda a conduta processual de EE é claramente reveladora de uma aceitação tácita da herança aberta pelo óbito do executado AA. 27. Na pendência dos embargos de terceiro, EE foi citada da habilitação de herdeiros, foi habilitada como executada e foi notificada da extinção dos embargos de terceiro (por já se considerar parte na execução) e nunca expressou o repúdio à herança. 28. Nos embargos de terceiros, EE invocou que o bem imóvel registado em nome do executado falecido AA lhe pertence. 29. Caso tal conduta processual não configure uma aceitação tácita da herança, certamente que demonstra um comportamento manifestamente contraditório e que configura um abuso de direito. 30. A Executada EE nunca se opôs à sua habilitação como herdeiro, nem tão pouco à extinção dos embargos de terceiro (por já figurar como executada nos autos) e, agora, vem requerer a extinção da instância pelo repúdio da herança, o que configura o instituto do abuso de direito e que retira validade ao repúdio da herança.” Pediu que, na procedência do recurso, seja revogada a decisão recorrida. *** 3) A identificada EE (Recorrida) não apresentou resposta.*** 4) O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.*** 5) Foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.*** II.As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC). Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação. Tento isto presente, a questão que se coloca neste recurso consiste em saber se a decisão recorrida enferma de error in judicando por ter considerado processualmente relevante a declaração de repúdio da herança aberta por óbito do executado AA emitida pela Recorrida uma vez que: (i)) esta não deduziu oposição ao prévio pedido de habilitação nem impugnou a decisão que o deferiu, tendo assim aceitado tacitamente a herança; (ii)) aquele repúdio configura um ato praticado em abuso do direito. *** III.1) Na resposta à questão enunciada há que considerar os factos descritos no relatório que constitui o ponto 1) da Parte I. deste Acórdão, os quais são revelados pelo iter processual. *** 2).1. Diz o art. 269/1, a), do CPC[1], na parte que releva para a resposta à questão enunciada, que a instância suspende-se quando, durante a pendência da ação, falecer uma pessoa física que nela seja parte. Apenas assim não sucede quando a morte tornar a ação impossível ou inútil (n.º 3) por o direito que constitui seu objeto ser intransmissível. É exemplo paradigmático a ação de acompanhamento de maior (art. 904/1). Nestes casos, a instância extingue-se por impossibilidade ou por inutilidade superveniente.A instância suspensa em virtude da morte de quem nela seja parte cessa, ipso facto (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, CPC: art. 130.º a 361.º, Versão de 2024/01, p. 166), com a notificação da decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida (art. 276/1). A habilitação processa-se, em tais casos, através do incidente previsto nos arts. 351 a 357.[2] Este é o meio de operar a substituição da parte cuja personalidade judiciária se extinguiu pela morte por quem lhe sucedeu na “titularidade das relações patrimoniais” (art. 2024 do Código Civil), levando a uma modificação subjetiva da instância. Daqui decorre que, em caso de morte de uma das partes, com a consequente extinção da sua personalidade judiciária, a lei não permite que o processo continue nem finde sem que se dê a habilitação, assim configurada como uma condição do levantamento da suspensão e da continuação da instância, ao contrário do que acontece nos casos de transmissão ou cedência da coisa ou do direito em litígio entre vivos, em que a habilitação é apenas uma possibilidade, prosseguindo o processo se ela não se não fizer e assumindo o transmitente ou cedente a qualidade de substituto processual do transmissário ou cessionário (art. 263/1). Compreende-se assim que João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 381) afirmem que “existe uma diferença profunda entre a habilitação por sucessão por morte e a habilitação por transmissão entre vivos: a primeira é obrigatória, a segunda facultativa.” *** 2).2. O art. 2024 do Código Civil, disposição que abre o Livro V, dedicado ao Direito das sucessões, diz que a sucessão consiste no “chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas de natureza patrimonial de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.”Esta definição condensa o fenómeno sucessório por morte que Pereira Coelho (Direito das Sucessões, lições policopiadas ao curto de 1973-1974, Coimbra, 1992, p. 4) explica nos seguintes termos: “[e]xtinguindo a personalidade jurídica do falecido (…), a morte abre uma crise nas relações jurídicas de que ele era titular e que devem sobreviver-lhe. Essas relações desligam-se do seu primitivo sujeito, à morte deste, e até que se liguem a novo sujeito é necessário que ocorra – ou há a possibilidade de que ocorra – uma série de atos ou factos, comumente designados por fenómeno sucessório que se encadeiam num processo mais ou menos longo.” O primeiro de tais atos é o chamamento que pode ter a sua fonte na lei, no testamento ou em contrato (art. 2026 do Código Civil). O seu objeto pode ser universal ou singular, consoante abranja a totalidade ou uma quota do património ou, pelo contrário, bens ou valores determinados deste (art. 2030/2). Na primeira situação, o sucessor diz-se herdeiro; na segunda legatário. Este último sucede em bens determinados, no sentido de que apenas sucede em certos bens, com exclusão dos restantes bens do de cuius. Pelo contrário, o herdeiro não é chamado a suceder em bens determinados e o seu direito estende-se, real ou virtualmente, à totalidade da herança ou a uma quota-parte dela. Por esta razão, afirma-se que “o herdeiro é um sucessor a título universal ao passo que o legatário é um sucessor a título singular” (Cristina Araújo Dias, Lições de Direito das Sucessões, 6.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 62). É isto que explica que a habilitação-incidental possa levar à substituição da parte falecida quer pelos seus herdeiros, quer pelos seus legatários (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil cit., p. 274; Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 15.ª ed., Coimbra: Almedina, 2024, p. 198), tudo dependendo do destino que tiver sido dado ao direito objeto do litígio por morte do seu titular. Nota-se, porém, para que não haja equívocos, que a finalidade da habilitação fica exaurida com a substituição de uma parte primitiva pelo seu sucessor na situação jurídica litigiosa em causa sem implicar a transmissão de direitos ou obrigações que eram da titularidade da primeira. Dito de outra forma, esta habilitação “visa permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus herdeiros, não a transferir a título sucessório o objeto do processo para eles, permanecendo no resto a mesma instância” (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil cit., p. Salvador da Costa, Os Incidentes cit., p. 198). É isto que explica que, conforme foi entendido em STJ 2.06.1964 (BMJ, 138, p. 298), falecida a autora de ação intentada contra dois dos seus filhos, a instância prossiga contra estes – que não podem ser habilitados como seus sucessores, por a tal obstar o princípio da dualidade das partes –, apenas havendo que habilitar os demais filhos daquela. No mesmo sentido, RL 21.09.2017 (2467-13.8TBCSC.L1-8), relatado por António Valente. *** 2).3. Como resulta do que antecede, a morte é o facto que espoleta o fenómeno sucessório. A sucessão aberta por efeito dela (art. 2031 do Código Civil) tem como primeira etapa o chamamento dos sujeitos (sucessíveis) designados para sucederem na totalidade das relações jurídicas que não se extingam por morte do seu titular, tratando-se de herdeiros, ou em certas e determinadas relações jurídicas, tratando-se de legatários.Com o chamamento, os bens da herança ficam à disposição dos sucessíveis, que os podem adquirir mediante a aceitaçãoda herança. Só então ocorre a devolução sucessória e o sucessível para a ser sucessor. Como ensina Pereira Coelho (Lições cit., pp. 154-155), existem, a este propósito, “duas grandes orientações, a que correspondem a doutrina da aquisição ipso iure e a doutrina da aquisição mediante aceitação.” Pela primeira, o chamado, por força da própria vocação, adquire a titularidade dos direitos hereditários, ingressa na titularidade das relações jurídicas transmissíveis do falecido. A aquisição sucessória resulta automaticamente da vocação sucessória. Basta ser chamado à sucessão para que as relações jurídicas do falecido adquiram um novo titular, não sendo necessário qualquer ato adicional ao chamamento. Não será, assim, necessária a aceitação para que se verifique a aquisição sucessória. O chamado tem, na mesma, de aceitar, mas esta aceitação não tem o efeito de permitir a aquisição dos bens pelo chamado, mas apenas o de “confirmar ou consolidar uma aquisição sucessória que já se verificara.” Dito de outra forma, “antes da aceitação, o chamado já adquirira os direitos hereditários, bastando apenas a consolidação dessa aquisição pela aceitação” (Cristina Araújo Dias, Lições cit., p. 100). Pela segunda orientação, a aquisição sucessória só se dá após a aceitação e por força dela. A aceitação não tem, portanto, uma função confirmatória, mas uma função verdadeiramente constitutiva. Por isso, o repúdio não é um “ato positivo de que resulta uma diminuição do património, mas uma renúncia a uma aquisição que ainda não se verificou” (Cristina Araújo Dias, Lições cit., pp. 100-101). Não há dúvida de que é esta última a orientação seguida pelo legislador português, atento o disposto no art. 2050/1 do Código Civil, onde se diz que “[o] domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material.” Pode, portanto, dizer-se que “o conteúdo da vocação é o seguinte: ela coloca aqueles bens ou direitos à disposição do chamado – ainda não dentro da sua casa, como na doutrina da aquisição ipso iure, mas por assim dizer à sua porta – em termos de a aquisição dos direitos hereditários depender apenas de um ato de sua vontade” (Pereira Coelho, Lições, p. 151). Tenha-se presente que, além do direito de aceitar ou repudiar a herança, a vocação confere ao chamado, pelo simples facto de o ser, a possibilidade de providenciar acerca da administração dos bens, se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos (art. 2047/1 do Código Civil), não obstante a possibilidade de nomeação de curador à herança (arts. 2047/3 e 2048 do Código Civil). Deste modo, o sucessível chamado à herança, se ainda não a tiver aceitado ou repudiado, goza de poderes de administração da herança – que, por não ter sido ainda aceita nem declarada vaga para o Estado, se encontra em estado de jacência (art. 2046 do Código Civil). Compreende-se, por isto, que se preveja (art. 2056/3 do Código Civil) que os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança. *** 2).4. Sendo atos distintos, a aceitação e o repúdio têm características semelhantes. Ambos são atos unilaterais não receptícios, aos quais se aplicam, portanto, as normas dos negócios jurídicos unilaterais relativas, por exemplo, aos vícios da vontade ou à capacidade das partes (art. 295 do Código Civil). São também atos individuais (art. 2051 do Código Civil) e pessoais, o que não invalidada, todavia, a possibilidade de representação voluntária, por esta não estar expressamente proibida e por tais atos terem um carácter marcadamente patrimonial (Cristina Araújo Dias, Lições cit., p. 152). É mesmo possível a aceitação da herança por parte dos credores do repudiante (arts. 606 e 2067 do Código Civil). São também atos livres, posto que não há qualquer obrigação para o chamado de aceitar ou repudiar, “embora de conteúdo puro e simples (ou seja, insuscetíveis de aposição de condição ou termo, de acordo com os arts. 2054/1 e 2064/1 do Código Civil) e indivisível (uma vez, conforme os arts. 2054/2, 2064 e 2249, a herança e o legado não podem ser aceites ou repudiados só em parte, sem prejuízo do disposto nos arts. 2055, para a herança, e 2250, para o legado)” (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 15). Além disso, com especial interesse para a resposta à questão enunciada, são atos irrevogáveis (arts. 2061 e 2066), cujos efeitos retroagem ao momento da abertura da sucessão (art. 2050/2 e 2062). Assim, a herança aceite, expressa ou tacitamente, não pode ser repudiada, da mesma forma que a herança repudiada não pode ser objeto de aceitação posterior (RP 15.12.2020, 3286/17.8T8MTS.P1, relatado por Márcia Portela). *** 2).5. Diz o art. 2056/1 do Código Civil que a aceitação pode ser expressa ou tácita.O n.º 2 acrescenta que “[a] aceitação expressa verifica-se quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir.” Como explica Rabindranath Capelo de Sousa (Lições cit., II, p. 22), esta norma contém uma mera exemplificação das mais usuais modalidades de aceitação expressa, devendo as noções de aceitação expressa ou tácita retirar-se das noções gerais constantes do art. 217 do Código Civil. Diz o art. 217/1 que “[a] declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.” A existência de uma declaração negocial, composta por um elemento interno – relativo à vontade, no qual se integram a vontade de ação, a vontade de declaração ou consciência da declaraçãoe a vontade do negócio, esta última relativa aos efeitos a produzir pelo negócio (cf. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., por António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, pp. 419 e ss.) – e por um elemento externo – a declaração propriamente dita, ao qual corresponde uma ação dirigida à produção de efeitos jurídicos –, seja ela expressa ou tácita, é determinada através das regras de interpretação consagradas nos arts. 236 e ss.. Como escreve Paulo Mota Pinto (Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Coimbra: Almedina, 1995, pp. 188-189), “[d]o ponto de vista do aspeto objetivo da declaração – e uma vez que concretamente só existem declarações negociais com um certo conteúdo –, há (…) que afirmar a continuidade de critérios entre a questão da existência e do conteúdo da declaração. A interpretação tem de investigar, não só o que constitui o conteúdo de uma declaração de vontade, mas também, se existe de todo uma declaração de vontade.” O mesmo autor acrescenta (Declaração cit., pp. 553-554) que “a nossa lei emprega o termo declaração com um sentido amplo. (…) é declaração negocial qualquer forma de comportamento que de acordo com os critérios interpretativos tenha um significado negocial, independentemente do escopo notificativo.” Compreende-se, assim, que já tenha sido decidido que “é questão de direito afirmar a existência de uma declaração tácita” (STJ 5.11.1997, BMJ 471, pp. 367 e ss., relatado por Nascimento Costa, e STJ 24.05.2007, 07A988, relatado por Alves Velho. Também RL 28.09.2017, 3006/11.0TCLRS.L1-2, relatado por Ondina Carmo Alves). No mesmo sentido, na doutrina, José Alberto Vieira, Negócio Jurídico. Anotação ao Regime do Código Civil (arts. 217.º a 295.º, reimpressão, Lisboa: AAFDL, 2019, p. 16). Da declaração negocial há que distinguir as tradicionalmente designadas declarações de ciência, que são aquelas através das quais as partes afirmam ou reconhecem a existência de uma situação de facto, não pretendendo com elas exteriorizar uma vontade jurídico-negocial (Heinrich Ewald Hörster / Eva Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, pp. 461-462). Por outro lado, a norma em apreço (art. 217/1) tem um duplo alcance: a um tempo, consagra o princípio da liberdade declarativa e a equivalência entre declaração expressa e declaração tácita; a outro, fornece o critério de delimitação entre estas duas modalidades de declaração (Paulo Mota Pinto, Declaração cit., pp. 456-457). O princípio da liberdade declarativa permite que o declarante opte livremente pela emissão de uma declaração expressa ou tácita, visto que a lei lhes atribui o mesmo valor declarativo. A equivalência apenas é quebrada por disposições legais específicas que impõem uma declaração expressa (v.g., arts. 413/1, 628/1 e 859). Sobre o critério de delimitação não existe um consenso na doutrina: alguns autores afirmam a consagração de um critério subjetivo, atinente à finalidade do agente, para a qual a declaração é expressa quando resulta de uma conduta destinada a manifestar uma vontade e tácita quando deriva de uma atuação com outros objetivos (é o caso Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral cit., p. 425); outros defendem que está consagrada uma posição objetiva, nos termos da qual a declaração expressa é atuada com meios cujo sentido declaratório está fixado pelos usos, pela lei ou por convenção e tácita quando os meios disponíveis só no contexto permitem apreender tal sentido (é o caso de António Menezes Cordeiro, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, p. 626, e José Alberto Vieira, Negócio Jurídico cit., p. 14); outros ainda seguem uma orientação intermédia (é o caso de Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Coimbra: Almedina, 1992, pp. 711 e ss.). A nosso ver, a redação do preceito indica um desprendimento da classificação em relação à intenção ou escopo do declarante, a que não é feita qualquer referência, dando destaque aos meios de exteriorização da declaração. Nesta perspetiva, está consagrada a doutrina objetivista. O texto da norma levanta algumas dificuldades interpretativas. Desde logo, ao qualificar como expressa toda a declaração efetuada por um “meio direto de manifestação da vontade”, nomeadamente por palavras ou por escrito, o critério legal parece remeter a declaração tácita para o campo dos comportamentos concludentes. Esta leitura, se levada às últimas consequências, implicará a negação da possibilidade de uma declaração tácita ser revelada por escrito ou por palavras, uma vez que estas “constituem um meio direto de manifestação da vontade.” Entende-se, todavia, tal como escreve Paulo Mota Pinto (Declaração cit., p. 461), que “nos meios de expressão da vontade, considerados objetivamente e em si, não parece que possa descortinar-se uma destinação a um fim.” Uma declaração tácita também pode resultar de palavras ou de um escrito. Assim, pode afirmar-se, com Evaristo Mendes / Fernando Oliveira e Sá (“Art. 217.º”, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 589), que “[n]as declarações expressas, o sentido objetivo do comportamento corresponde a uma intenção declarativa direta; nas tácitas, não se demonstra objetivamente tal intenção, existindo apenas factos concludentes a partir dos quais se poderá deduzir a existência de uma declaração negocial.” Deste modo, de uma declaração cujo sentido é dirigido diretamente à produção de determinados efeitos jurídicos – em relação aos quais é, por isso, expressa – podem retirar-se, através da sua exegese, outros efeitos jurídicos, aos quais ela se reporta indiretamente, surgindo, nesta parte, como tácita. Neste sentido, na doutrina, além dos autores acabados de citar, José Alberto Vieira (Negócio cit., p. 15-16) e Carlos Ferreira de Almeida (Texto e Enunciado cit., pp. 721 e ss.). *** 2).6. Para as declarações tácitas, a lei impõe que os factos ou condutas concludentes revelem, com toda a probabilidade, a manifestação de uma declaração negocial. Dito de outra forma, que permitam concluir pela existência desta com base num juízo de inferência. Como vimos, uns e outros podem revestir as mais variadas formas. Podem mesmo estar incluídos em declarações negociais expressas. Na base está, como sempre, um problema de interpretação da declaração (Paulo Mota Pinto, Declaração cit., p. 747), porventura de solução mais complexa por estar em causa uma declaração tácita. Essa tarefa não implica, porém, qualquer desvio quanto aos cânones que devem ser observados na sua execução que estão, como já escrevemos, plasmados nos arts. 236 e ss. do Código Civil. Não existem princípios interpretativos especiais para o conteúdo das declarações tácitas. Na verdade, como ensina Paulo Mota Pinto (Declaração cit., p. 748), “do ponto de vista objetivo, também aqui se verifica uma continuidade de critérios entre a averiguação do se e do quê da declaração negocial. Um ponto de vista normativo e exterior é, aliás, imprescindível como limite às inferências, para se determinar a existência e os termos do significado negocial na declaração tácita.” E acrescenta (Declaração cit., pp. 748-749): “[q]uanto ao problema a partir do qual se há-de obter o critério para a concludência do comportamento, supomos que se deve, também aqui, apelar antes de mais para os princípios gerais em matéria de interpretação. A ilação é – nas declarações receptícias – de fazer de acordo com o padrão da impressão do destinatário – ou seja, depende do juízo sobre se um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário” a efetuaria. O critério para a obtenção de uma declaração tácita (pelo menos das receptícias) há-de ser, aqui também, o da impressão do destinatário (…). É que (…) estamos em face do que se pode chamar um comportamento de concludência individual (ou individualmente concludente), cujo significado é de apreciar em face do caso concreto, tomando em conta todas as circunstâncias no emprego dos critérios interpretativos aplicáveis. (…) a diferença entre as duas formas de manifestação (tácita e expressa) depende unicamente da diversa estrutura da relação de significação, já não de um critério de valoração ao qual se submeta o facto manifestativo – a sua apreciação deve, portanto, ser conduzida pelos critérios gerais.” Esta é a orientação da jurisprudência, podendo citar-se, inter alia, STJ 24.05.2007 (07A988), relatado por Alves Velho, STJ 19.05.2011 (5326/09.5TVLSB.S1), relatado por Tavares de Paiva, STJ 9.07.2014 (299709/11.0YIPRT.L1S1), relatado por Pinto de Almeida, STJ 1.03.2018 (3555/15.1T8GMR-A.G1.S1), relatado por Fernanda Isabel Pereira, RG 12.04.2018 (174/16.9T8MDL-A.G1), relatado por Fernando Fernandes Freitas, RL 5.02.2019 (6889/17.7T8ALM.L1-7), relatado por Higina Castelo, RG 11.02.2021 (24255/18.5YIPRT.G1), relatado por Joaquim Boavida, RP 23.03.2023 (18512/21.0T8PRT.P1), relatado por Isoleta de Almeida Costa, RG 18.01.2024 (81/21.3T8MTR.G1), relatado por Rosália Cunha. Ponto assente é que, na falta de previsão, o silêncio não tem valor declarativo, seja no sentido da aceitação, seja no do repúdio (art. 218 do Código Civil). Ressalva-se apenas a hipótese de ocorrer no âmbito do processo cominatório de aceitação ou repúdio previsto no art. 2049 do Código Civil e nos arts. 1039 a 1041 do CPC. Assim, se o sucessível chamado à herança a não aceitar nem repudiar dentro dos quinze dias seguintes, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, mandá-lo notificar para, no prazo que for fixado, declarar se aceita ou repudia. Permite-se que se provoque uma resposta do chamado, obrigando-o a declarar se aceita ou repudia a herança. Na falta de declaração de aceitação, ou não sendo apresentado documento legal de repúdio dentro do prazo fixado, a herança tem-se por aceite. A lei estabelece a presunção inilidível de que o silêncio do sucessível face à solene interpelação do tribunal para declarar se aceita ou não a herança constitui manifestação de aceitação da herança. Como se refere em RL 2.12.2021 (1872/18.8T8LRS-B.L1-2), relatado por Jorge Leal, “tal presunção só poderá verdadeiramente assentar num manifesto sentido normal da atitude do interpelado se ele tiver sido notificado com a indicação da cominação legal do seu silêncio. Que assim é indicia-o a solução contrária (à solução prevista no n.º 2 do art.º 2049.º do Código Civil português) prevista no Codice Civile italiano: Segundo o respetivo art.º 481.º, quem nisso tiver interesse pode fazer notificar judicialmente o chamado para este declarar, num determinado prazo, se aceita ou renuncia à herança. Se, decorrido o prazo, nada disser, il chiamato perde il diritto di accettare.” *** 2).7. É neste contexto que se enquadra a alegação do Recorrente segundo a qual a não dedução de oposição ao requerimento de habilitação e, bem assim, a não impugnação da decisão final do incidente equivalem à aceitação tácita da herança aberta por óbito do executado AA. Quid inde? Encontramos, na jurisprudência, alguns arestos em que foi considerado que atos do tipo dos descritos contêm indiretamente a declaração de aceitação da herança. Assim, em RL 6.12.2005 (9068/2005-6), relatado por Fernanda Isabel Pereira, entendeu-se que “[n]a habilitação incidental a sentença limita-se a verificar se os habilitandos têm a qualidade de herdeiros, colocando-os no lugar do falecido em processo pendente, a fim de que a causa prossiga com aqueles ou contra aqueles. Essa sentença produz efeitos limitados ao respetivo processo e apenas perante o opositor da parte falecida no litígio judicial pendente. Neste contexto, cabia ao embargante quando foi citado para contestar a habilitação, nos termos do disposto no artigo 372º nº 1 do Código de Processo Civil, impugnar a sua qualidade de herdeiro com fundamento na não aceitação ou no repúdio da herança. Não o tendo feito, aceitou tacitamente nos autos o chamamento à herança, adquirindo a sentença que o julgou habilitado como herdeiro da parte falecida, transitada em julgado, força obrigatória dentro do processo por virtude do caso julgado formal (artigo 672º do Código de Processo Civil).” Em RL 13.03.2007 (933/2007-1), relatado por Rijo Ferreira, escreveu-se que “[a]ceita tacitamente a herança aquele que não contesta o incidente de habilitação de herdeiros, não recorre da sentença que o julga habilitado e intervém nessa qualidade na audiência de discussão e julgamento. A declaração de repúdio da herança posterior às referidas circunstâncias é ineficaz.” Em RP 26.05.2009 (4593/03.2TBSTS-C.P1), relatado por Mário Serrano, citado pelo Recorrente, depois de se ter escrito que, “em tese geral, (…) a habilitação, tomada isoladamente, não é índice, por si só, seguro de aceitação tácita da herança”, acrescentou que não pode, contudo, “deixar de relevar, no caso concreto, a circunstância de o habilitado não ter contestado o requerimento de habilitação, permitindo que se produzisse o respetivo efeito cominatório (confissão do facto da qualidade de herdeiro), e de, posteriormente, ter intervindo no processo de execução como herdeiro e executado, durante mais de 3 anos desde a decisão de habilitação (de 27/5/2004), sem expressar qualquer repúdio da herança (cujo documento, datado de 31/10/2007, só foi apresentado em 5/11/2007.” Finalmente, em RG 4.10.2017 (1336/15.1T8VRL.G1), relatado por Alda Martins, afirmou-se que “[p]endente ação contra o falecido e sendo os seus herdeiros sucessíveis citados para com eles prosseguirem os termos da demanda, em incidente de habilitação deduzido, pelo comparte ou pela parte contrária, é de entender que, na falta de contestação ou apresentação de documento legal de repúdio, dentro do prazo fixado, a herança se tem por aceite, sendo aqueles habilitados como sucessores, não relevando a apresentação de documento de repúdio em momento posterior, ainda que dele conste data anterior.” Como se constata, a resposta dada por estes arestos à questão não é unívoca. Assim, enquanto no primeiro se atribuiu à não oposição ao requerimento de habilitação, ainda que desacompanhada de outros comportamentos, o sentido de uma aceitação tácita, no segundo e no terceiro exigiu-se algo mais – mais concretamente, a intervenção no processo na qualidade de herdeiro, o que pressupõe já comportamentos ativos, que vão para além do simples silêncio. No último, fez-se equivaler a notificação para os termos do incidente de habilitação a uma notificação para declaração de aceitação ou de repúdio da herança, apesar de não estar nela presente o elemento cominatório que é característico deste processo especial conforma acima referimos. A nosso ver, a afirmação de que a não oposição ao requerimento de habilitação e, bem assim, a não impugnação da decisão de deferimento deste importam a aceitação da herança confunde os termos da discussão e confere efeitos declarativos ao silêncio sem que, para esse efeito, tenha havido uma prévia notificação com efeito cominatório, do que nunca se poderia prescindir, até por identidade com o processo especial previsto nos arts. 1039 a 1041 a que já fizemos referência. Com efeito, conforme se pondera no já citado RP 15.12.2020 (3286/17.8T8MTS.P1), relatado por Márcia Portela, “a habilitação incidental prevista nos arts. 351 e ss. do CPC, tem carácter obrigatório, destinando-se a providenciar o andamento do processo após a sua suspensão por óbito da parte (arts. 269/1, a), e 276/1, a)). O que está em causa é, pois, a substituição da parte falecida através de um mecanismo célere e simplificado para o processo poder prosseguir os seus termos, e não saber se o habilitado aceitou ou não a herança.” É por isto que se entende, nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa (Código do Processo Civil cit., p. 373), que a expressão “sucessores”, utilizada no n.º 1 do art. 351, “abrange não apenas aqueles que tenham aceitado a herança, mas também os sucessíveis que ainda a não tenham aceitado, nem repudiado. A contraposição entre o disposto no art. 353 e o estabelecido no art. 354 demonstra que a qualidade de sucessor pode ainda não estar determinada.” Deste modo, como se pode ler em RC 11.05.2010 (2431/07.6TBVIS-B.C1), relatado por Manuel Capelo, “enquanto a herança não tiver sido aceite, o sucessível pode ser habilitado através de incidente, mantendo incólumes as suas faculdades de aceitação ou repúdio da herança, atendendo o limitado interesse da habilitação.” Deste modo, a habilitação incidental, sem oposição pelos habilitados, não tem per se relevância demonstrativa de aceitação da herança. Neste sentido, para além dos arestos acabados de citar, STJ 19.03.2019 (384/17.1T8GMR-A.G1.S1), relatado por Graça Amaral, RP 19.12.2012 (9386/07.5TBMAI-C.P1), relatado por Henrique Araújo, RP 22.2015 (102048/12.7YIPRT.P1), relatado por Manuel Domingos Fernandes, e RC 24.02.2015 (176/07.6TBVLF.C1), relatado por Alexandre Reis. Neste último pode ler-se que “a habilitação judicial, só por si, significa apenas que o indivíduo é investido na qualidade de herdeiro, assegurando a sua legitimidade processual, mas não define a sua posição relativamente à herança, porque a finalidade do procedimento de habilitação não tem esse alcance mas apenas o de permitir a continuação da ação, até porque as consequências patrimoniais desta habilitação para o habilitando não existem” e que “se é verdade que no seguimento daquela habilitação o chamado F…, após notificação para o efeito, juntou procuração forense e todos os habilitados, para além de praticarem o indicado ato no processo, compareceram nas audiências acima enunciadas, o certo é que daí se não retira qualquer facto ou circunstância seguramente concludente, de modo a fazer presumir a aceitação tácita da herança pelos recorrentes. Realmente, salvo o devido respeito, tal atividade processual carece de significativa positividade, para o efeito.” Ainda no mesmo sentido, RG 1.03.2018 (384/17.1.T8GMR-A.G1), relatado por Sandra Melo, e RL 2.12.2021 (1872/18.8T8LRS-B.L1-2), relatado por Jorge Leal. A mesma orientação está subjacente a RP 5.07.2006 (0633036), relatado por Amaral Ferreira, onde se admitiu que a não oposição ao requerimento de declaração pode expressar aceitação da herança, mas apenas se a notificação para esse efeito tiver sido feita com a advertência de que, na falta de declaração de aceitação, ou não sendo apresentado documento de repúdio, se tinha a herança por aceite. Na doutrina, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 385) escrevem que “[s]e, depois de habilitados certos sucessores, estes (todos ou alguns) repudiarem a herança, este repúdio tem de ter reflexo na legitimidade da parte. O repúdio da herança representa o desaparecimento – não físico, mas jurídico – dos sucessores habilitados. O habilitado tem o ónus de comunicar esse repúdio no processo, seguindo-se a suspensão da instância e nova habilitação.” Também Salvador da Costa, na mais recente edição da sua obra (Os Incidentes cit., p. 220), escreve que “[n]ada obsta a que, depois de proferida a sentença de habilitação dos herdeiros da falecida ré, aqueles habilitados repudiem a herança, comprovando o repúdio por via da junção aos autos da ação, antes da sentença final, da respetiva escritura pública.” Neste conspecto, consideramos que os atos destacados pelo Recorrente – em rigor, omissões – se apresentam como insuficientes para que deles se possa retirar uma declaração tácita de aceitação da herança, permitindo assim que prevaleça o ato de repúdio subsequentemente levado a cabo e demonstrado nos autos. Apenas acrescentamos que é de afastar perentoriamente a atribuição de semelhante sentido à única ação da Recorrida mencionada pelo Recorrente – a dedução de embargos de terceiro. Em primeiro lugar, porque a oposição da Recorrida à penhora foi, pelo menos formalmente, deduzida contra o autor da sucessão; em segundo lugar, porque tal pretensão foi deduzida ainda em vida do de cuius, pelo que não podia nunca expressar a aceitação da herança que apenas depois foi aberta. *** 2).8. Mas será que se pode afirmar que o ato de repúdio constituiu um abuso do correspondente direito, enquadrável na previsão do art. 334 do Código Civil, como também defende o Recorrente?Na base da argumentação do Recorrente está a tese de que a Recorrida, ao repudiar, contrariou os seus comportamentos anteriores donde resultava a aceitação, assim incorrendo num venire contra factum proprium. Esta é uma falsa questão: se tais comportamentos tivessem existido – e, como vimos, não existiram – não havia que convocar o abuso do direito. A herança estaria aceite em termos irrevogáveis e o ulterior repudio seria ineficaz. Não tendo existido tais atos, falta o factum proprium que é pressuposto do abuso do direito na modalidade referida pelo Recorrente. A questão poderia ser colocada a jusante, já no plano processual. Nesta perspetiva, a Recorrida teria atuado em abuso do direito quando deu conhecimento do ato de repúdio na ação executiva e pediu a extinção desta em relação a si. Este comportamento seria contrário à atitude passiva anteriormente assumida de não apresentar oposição ao requerimento de habilitação e não recorrer da decisão que recaiu sobre este. Em tese geral, é configurável a hipótese de paralisação do direito à prática de um ato processual quando, em concreto, este se apresente como ilegítimo por a parte, tendo embora o correspondente direito, estar a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económica desse direito. Neste sentido, pode ler-se em RG 4.04.2024 (4427/22.9T8OAZ-A.G1), do mesmo Relator, em que também foi Adjunta a Juíza Desembargadora Maria Gorete Morais: “De acordo com a lição de Castanheira Neves (Questão De Facto-Questão De Direito, I, Coimbra: Almedina, 1967, p. 523), o direito subjetivo é uma intenção normativa cuja validade jurídica apenas subsiste enquanto cumpre concretamente o fundamento axiológico-normativo que o constitui e justifica. Assim, numa sociedade organizada, os direitos subjetivos só se justificam enquanto direitos-função, pelo que o ato abusivo será o ato contrário ao espírito e finalidade de cada um dos direitos em exercício. Podemos, assim, dizer que, enquanto direito subjetivo a uma prestação do Estado, o direito à ação apenas é merecedor de tutela enquanto o seu titular perseguir, no respetivo exercício, o interesse ou fim socialmente relevante que o justifica. Quando assim não suceda, haverá um exercício enquadrável na cláusula geral do abuso do direito do art. 334 do Código Civil, a qual concretiza a ideia de que cada direito subjetivo deve ser exercido com correção, equilíbrio, e de acordo com as exigências do Direito, bem como de harmonia com a finalidade que justifica a sua atribuição ou reconhecimento, constituindo, em suma, uma síntese dos valores da justiça e da segurança. Na tentativa de densificação destes conceitos, a doutrina e a jurisprudência têm encontrado manifestações típicas de comportamentos abusivos. Numas estão em causa hipóteses de não preenchimento dos requisitos materiais do direito – o tu quoque –; noutras o desrespeito pela confiança alheia – o venire contra factum proprium, a surrectio e a suppressio; noutras ainda a violação da boa-fé – exceptio doli –; noutras, finalmente, a ofensa ao princípio da proporcionalidade, como sucede no exercício em desequilíbrio. Também o direito à ação pode ser exercido de uma forma que configure, em concreto, um desvio excessivo, da sua finalidade. Assim sucederá quando a intenção oculta do autor ao propor a ação não é fazer valer o direito subjetivo a cuja titularidade se arroga na petição inicial, mas apenas provocar dano à parte contrária, levando-a a ter despesas e encargos e mesmo desequilíbrios psicológicos com a preparação da sua defesa. O art. 334 do Código Civil qualifica como ilegítimo o exercício de um direito que exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. A expressão literal não é clara quanto às consequências do abuso do direito. De uma maneira geral, estando em causa uma forma de antijuridicidade ou ilicitude, as consequências serão as mesmas de qualquer ato ilícito, designadamente a responsabilidade civil e a respetiva obrigação de indemnizar, desde que verificados os restantes pressupostos do art. 483 do Código Civil. As consequências podem, no entanto, ser outras. Assim, dependendo dos termos em que se manifesta o exercício abusivo, podem estar em causa limitações ao exercício do direito, a sua extinção, a preclusão do exercício stricto sensu de uma faculdade ou poder integrante do direito, a constituição de um direito diverso na esfera jurídica de outrem ou a nulidade de um ato (a propósito, Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra: Almedina, 2004, p. 840). No caso concreto do direito à ação, a consequência mais evidente do exercício abusivo é a litigância de má-fé que decorre dos comportamentos tipificados no art. 542/2 do CPC e pressupõe que a parte tenha agido conscientemente, com dolo ou negligência grave. A consequência é a condenação da parte em multa ou em indemnização (art. 542/1 do CPC), esta com o conteúdo definido no art. 543 do CPC, o que evidencia bem a sua finalidade meramente sancionatória e compensatória e não ressarcitória, como sucede com a responsabilidade civil, o que se compreende: em causa está – e está apenas – uma ilicitude que tem na sua base a violação de deveres processuais, genericamente previstos no art. 8.º do CPC. Neste âmbito, distingue-se entre litigância de má-fé material (ou substancial) e litigância de má-fé instrumental. Enquanto a primeira está diretamente relacionada com o mérito da causa, a segunda abstrai-se da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Se a parte formular uma pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar ou alterar a verdade dos factos ou omitir factos que se tenham como relevantes para a descoberta da verdade, a má-fé será material. Já se a parte omitir, com gravidade, o dever de cooperação, ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, a má-fé será instrumental (Paula Costa e Silva, A Litigância de Má-Fé, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, pp. 387 e ss.). Como se constata, este instituto não dá resposta suficiente a todas as situações de exercício abusivo do direito à ação. Como realça Menezes Cordeiro (Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa in Agendo, Coimbra: Almedina, 2006, 146), a coincidência que existe entre as situações abrangidas pelo escopo da litigância de má-fé e do abuso do direito não é total. Existem condutas que, não obstante o seu carácter abusivo, não encontram no instituto da litigância de má-fé, resposta adequada e satisfatória, quer pela ausência do elemento subjetivo, quer por não se encontrarem descritas no elenco taxativo do art. 542/2 do CPC. O instituto também não dá resposta suficiente a todas as consequências possíveis do exercício abusivo. De fora fica a componente ressarcitória dos danos causados pela parte. O enquadramento para aquelas condutas deve ser encontrado noutros institutos, como seja o da taxa sancionatória excecional (art. 531 do CPC). O ressarcimento dos danos deve ser obtido no quadro geral da responsabilidade civil. Consequência que não parece fazer sentido é a da paralisação do direito à ação, seja a título cautelar, seja a título definitivo. Na primeira situação, haverá um patente conflito entre o direito subjetivo do requerente da providência e o direito à ação do requerido, devendo prevalecer este atenta a sua natureza de direito fundamental. Na segunda, o conhecimento do mérito da causa em termos favoráveis ao lesado assegura (rectius, concretiza) o mesmo efeito a que conduziria a paralisação do direito.” No mesmo aresto acrescenta-se, citando Menezes Cordeiro (Litigância de Má-Fé cit., p. 92), que “também no plano puramente técnico a matéria do abuso pode surgir. Tal sucederá sempre que as atuações puramente processuais defrontem (…) o princípio da boa-fé.” Vale isto por dizer que o litigante, no exercício do seu direito à ação, tem um dever de agir com respeito pelos ditames da boa-fé, o que se desdobra, designadamente na obrigação de não sustentar teses absolutamente inconsistentes, na obrigação de não afirmar, conscientemente, factos contrários à verdade, e na obrigação de comportar-se, em relação ao juiz e ao adversário, com lealdade e correção. Daqui podemos retirar que o abuso do direito à ação ocorre quando um meio processual é usado de forma abusiva ou para fins diversos dos previstos, o que significa que pode verificar-se quer no acesso ao tribunal propriamente dito, com a interposição de uma ação ou de uma providência cautelar, quer na própria defesa, no âmbito da contestação, invocação de exceções, pedidos de reconvenção e, claro, no recurso. Impõe-se, porém, bastante prudência neste domínio, por duas razões: falar sobre o abuso de situações jurídico-processuais implica, necessariamente, uma limitação dos direitos processuais – que, como vimos, têm expressão constitucional; os direitos processuais são revestidos de abstração e autonomia, o que significa que a sua aferição não deve ser determinada pela subsistência, no plano material, dos direitos e das posições substantivas das partes. A consideração destas duas razões leva Michelle Taruffo, “Elementi per una definizione di abuso del processo: AAVV, Diritto Privato, III,, Abuso del Diritto, Padova: Cedam, 1998, pp. 440-441, a escrever que "[n]ão parece completamente infundado o temor de limitar indevidamente o pleno desenvolvimento das garantias, que ainda não expressaram todo o seu potencial, na tentação de determinar em que casos a sua atuação excessiva produz efeitos inaceitáveis” e a acrescentar que “[c]oloca-se, em outros termos, o problema de estabelecer se, ou até que ponto, a atividade processual que envolve a atuação das garantias constitucionais pode ser considerada abusiva, ou seja, se a atuação dessas garantias encontra algum limite externo marcado pelo uso abusivo dos instrumentos processuais que são a manifestação específica dessas garantias.” Mais concretamente, o abuso do direito de recorrer tem sido tratado sobretudo em quatro situações: recursos meramente dilatórios, com o objetivo de evitar o trânsito em julgado de uma decisão; multiplicidade de recursos, de forma sucessiva e desnecessária, com a finalidade de protelar o andamento da causa; recursos temerários, em que a parte sabe que não tem chance razoável de sucesso, mas pratica o ato unicamente para criar transtornos à parte contrária; e interposição de recursos irrelevantes, por versarem sobre questões laterias, que não contendem com as posições das partes face ao objeto do processo nem com a regular tramitação deste. Como referem João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 119-120, estas situações encontram tratamento no âmbito de dois institutos: o da litigância de má fé (art. 670 do CPC) e o da taxa sancionatória especial (art. 542-1). A estas podemos acrescentar aquela em que a parte, através do recurso, pretende reverter uma decisão para cuja prolação e conteúdo contribuiu através de comportamentos processuais anteriores. Foi o que sucedeu no caso apreciado em STJ 3.06.2004 (04B882), em que foi paralisado o direito ao recurso à parte que, depois de ter confirmado a qualidade de sucessor de determinada pessoa, recorreu da decisão que a considerou habilitada. Em todas essas situações estão em causa atos lícitos, porque correspondentes ao exercício do direito de recorrer, mas abusivos, porque contrários à boa-fé. Em geral, nas quatro situações típicas de abuso do direito ao recurso elencadas, a consequência é encontrada num dos dois referidos institutos, ambos de natureza sancionatória. Na última situação referida, a solução do STJ foi a de considerar o recurso inadmissível, o que equivale à supressão do correspondente direito, solução que encontra apoio no art. 334 do Código Civil. Simplesmente, notando que a lei não estabelece prazo para o exercício do direito de aceitar ou repudiar a herança, mas tão só um prazo de caducidade, a solução da paralisação do direito processual não é viável na situação dos autos: pelas razões expostas, teria como única consequência a prossecução da instância executiva contra a Recorrida, não obstante esta, por ter repudiado a herança aberta por óbito do seu pai, não ter sucedido na titularidade passiva do direito de crédito exequendo, carecendo, por isso, de legitimidade. Como também não seria representante dos verdadeiros sucessores do executado falecido, toda a execução decorreria sem que estes fossem habilitados, adquirindo a qualidade de partes, donde resultaria a ineficácia em relação a eles de todos os atos praticados após o óbito. Por isto, o repúdio ulterior à habilitação e a sua invocação no processo apenas pode ter como consequência a litigância de má-fé, sanção, aliás, que é proposta por João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 385) para situações deste tipo, quando se conclua que “a demora no repúdio” foi determinada pelo “desejo de perturbar ou demorar o processo.” Acresce que, conforme se pode ler em RP 15.12.2020, já citado, “[o] mero decurso do tempo após o falecimento parte, desacompanhado de qualquer outro elemento, que não legitima, por si só, a ilação de que houve aceitação tácita da herança, igualmente impede um juízo de censura ética quanto à não tomada de posição por parte da habilitada. Seja como for, a apelante dispunha de um mecanismo legal para pôr termo à situação de indefinição acerca da titularidade da herança no caso de não haver aceitação expressa: o processo cominatório de aceitação ou repúdio (actio interrogatoria) prevista no artigo 2049.º CC, adjetivado nos artigos 1039.º e ss. CPC.” *** 2).9. Resulta do que antecede que ocorreu um ato superveniente que extinguiu, com efeitos ex tunc, a qualidade da Recorrida enquanto sucessível da parte falecida. Tal implica a extinção da instância quanto a ela, por impossibilidade superveniente da lide (art. 277, e)), como acertadamente concluiu o Tribunal a quo. Neste sentido, os citados RP 23.3.2020 e RL 2.12.2021. O Recorrente deverá pedir a habilitação daqueles que se seguem à recorrida na titularidade da vocação sucessória da parte falecida, para assim pôr termo à suspensão da instância. Improcedem, in totum, as alegações do recurso. *** 3) Vencido, o Recorrente deve suportar as custas do recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.*** IV.Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em: - Julgar o presente recurso de apelação improcedente; - Confirmar a decisão recorrida; - Condenar o Recorrente no pagamento das custas. Notifique. * Guimarães, 29 de maio de 2024 Os Juízes Desembargadores, Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães 1.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício 2.ª Adjunta: Maria Gorete Morais [1] Pertencem ao Código de Processo Civil vigente as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. [2] Trata-se da denominada habilitação-incidente. A par desta, costuma falar-se de uma habilitação-ação (ou habilitação-principal) e de uma habilitação-legitimidade. Designa-se por habilitação-ação a ação em que um interessado procura ser reconhecido como sucessor de uma pessoa falecida. A habilitação-ação esteve consagrada, como processo especial, no art. 1117.º CPC/39 e no art. 1115.º CPC/61, sempre que fosse instaurada contra incertos. A habilitação-legitimidade ocorre quando, numa petição inicial, num requerimento ou num requerimento executivo, se alega que o autor, o requerente ou o exequente ou que o réu, o requerido ou o executado é sucessor do anterior titular da situação subjetiva. A propósito, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 381); na jurisprudência, RG 13.01.2022 (1818/20.3T8VNF-A.G1), relatado por Eva Almeida. |