Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
26/22.3YRGMR
Relator: JOSÉ CRAVO
Descritores: VALOR DA CAUSA
CONTRATO DE DEPÓSITO A PRAZO DE POUPANÇA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Não pretendendo o demandante pela acção obter qualquer quantia certa em dinheiro, mas um benefício diverso (o demandante pretende obrigar o demandado a aceitar depósitos no total de € 74.000,00), nos termos do nº 2 do art. 297º do CPC, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
II – A esse mesmo resultado se chegaria atendendo ao nº 2 do art. 300º do CPC, que se pronuncia sobre o valor da acção no caso de prestações vincendas e periódicas, como é o caso.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1 RELATÓRIO

No Processo nº 2302/2020 (1), o demandante M. F. apresentou reclamação contra Banco ..., SA, nos termos da qual peticiona a reposição das condições contratuais indicadas nas Condições Gerais do produto, ou seja, que os reforços programados sejam executados, assim como os que forem solicitados até ao limite máximo e que o capital e os mesmos sejam remunerados às taxas contratadas e a contar das datas em que foram solicitados.

A demandada Banco ..., SA contestou, por excepção (incompetência do tribunal em razão do valor, por falta de convenção arbitral e não submissão à arbitragem necessária) e por impugnação.

No saneador, pronunciando-se sobre o valor da acção e a (in)competência do tribunal, concluiu-se que o presente litígio está submetido à arbitragem e é passível de decisão arbitral e o tribunal é competente em razão do valor da presente acção, fixado no montante de € 2.000. Tendo-se para tanto entendido que o benefício imediato do pedido pata o Demandante será o cumprimento das condições contratuais acordadas, designadamente a aceitação (cumprimento do contrato pelo Banco ...), do depósito de € 2.000, que lhe foi negado no dia 10 de Julho de 2020 – antes da entrada da reclamação no CNIACC, e atendendo a que nos termos do nº 1 do art. 6º do seu Regulamento, o CNIACC pode apreciar e decidir litígios de consumo, desde que de valor não superior à alçada dos tribunas da Relação, ou seja, até € 30.000 e a submissão do litígio a decisão do Tribunal Arbitral depende da convenção das partes, ou de estar sujeito a arbitragem necessária, podendo a convenção de arbitragem revestir a forma de compromisso arbitral ou cláusula compromissória, e os prestadores de serviço efetuar adesão plena ao Centro (art. 10º).

Inconformada com o despacho que fixou o valor à acção, apresentou recurso de apelação a demandada Banco ..., SA, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

I. A sentença enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. C) do Código de Processo Civil, porque é contraditória nos seus próprios termos – contraditio in terminis – o que constitui nulidade naquilo em que, ao decidir do valor da ação limitou o pedido a uma apenas das prestações mensais de reforço do depósito, no valor de €2.000, e ao decidir sobre o pedido, o alargou a todas as prestações previstas no texto contratual, no valor de €72.000. Na verdade, esta contradição envolve uma incoerência insanável que torna a sentença incompreensível: o Recorrente é condenado a ter de aceitar um (apenas) reforço mensal do depósito, no valor de €2.000, ou é condenado a aceitar todos os reforços pedidos pelo Recorrido, no valor de €72.000; não pode ser decidido que o pedido do Recorrido é de €2.000 numa página, e de €72.000 noutra.
II. A sentença viola o arts. 300º e 301º do Código de Processo Civil, ao fixar o valor da ação atendendo apenas à primeira das prestações de reforço de depósito pretendidas pelo Recorrido, no valor de €2.000, fazendo errada aplicação do “nº 1 do artº 296º e nº 1 (2ª. parte) do artº 297º” e desaplicando ilegalmente os preceitos dos arts. 300º e 301º do Código de Processo Civil que deveriam ser aplicados, dado que na ação o Recorrido pede a condenação do Recorrente a aceitar a prestação já vencida de €2.000 acrescida das prestações vincendas no valor de €70.000 (art. 300º, nº 1) e dado que a ação tem por objeto a apreciação da existência, cumprimento e modificação do contrato de depósito, o qual tem o valor total de €240.000 euros (art. 301º, nº 1 do Código de Processo Civil), pelo que deve ser anulada a decisão sobre o valor da causa e corrigido para €72.000, ou, no máximo, €240.000 euros.
III. A sentença incorre na nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. C) do Código de Processo Civil, naquilo em que padece de ambiguidade ou obscuridade insanáveis no que respeita à natureza do processo – de arbitragem necessária de conflitos de consumo de reduzido valor económico (art. 14º da Lei nº 24/94, de 31 de julho – LDC) ou de arbitragem voluntária de conflitos de consumo por entidades de resolução alternativa de litígios (Lei nº 144/2015, de 8 de setembro – Lei RAL), sendo incompreensível qual dos procedimentos está a seguir no processo.
IV. A sentença viola o art. 14º da citada Lei nº 24/94, ao desrespeitar o limite de competência em razão do valor, que é de €5.000 euros nos litígios de reduzido valor económico, e o art. 6º, nº 1 do Regulamento do CNIAC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo, que limita a competência do Tribunal Arbitral a €30.000 euros o que tem como consequência a incompetência do tribunal em razão do valor.
V. A sentença viola o art. 10º, nº 5 da Lei nº 144/2015 de 8 de setembro – Lei RAL, ao decidir após esgotado largamente o prazo máximo de 90 dias para a decisão do tribunal, quando está já esgotado, por caducidade, o seu poder jurisdicional.
VI. A sentença viola o art. 607º, nºs 3, 4 e 5 do Código de Processo Civil, naquilo em que omite a discriminação dos factos relevantes, segundo as diversas soluções jurídicas em questão, omitindo a maioria dos factos alegados pela Recorrente (na qualidade de Reclamada), omite também a análise crítica das provas, a indicação das ilações tiradas dos factos instrumentais e a especificação dos demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, e omite ainda o modo como procedeu à compatibilização de toda a matéria de facto adquirida e a explicitação de como a sua convicção decorre de uma prudente apreciação, como a lei obriga, o que tem como consequência a nulidade da sentença. Não basta, como efeito, declarar uns factos como provados, outros como não provados e omitir ainda muitos outros factos como se não tivessem sido alegados, sem dizer nem justificar como nem porquê.
VII. A sentença viola os arts. 437º e 769, nº 2 do Código Civil, naquilo em que desconsidera o dever proceder de boa fé no cumprimento e no exercício do direito emergente do contrato de depósito celebrado entre Recorrente e Recorrido (art. 762, nº 2), e desconsidera também os critérios do art. Os preceitos do nº 2 do art. 762º, nº 2 e do art. 347º do Código Civil não contêm uma “cláusula vazia” e devem ser respeitados sob pena de ilegalidade. Em consequência, deve a sentença ser anulada no seu todo, por ilegalidade insanável do seu conteúdo.
VIII. É materialmente inconstitucional a interpretação normativa extraída do artigo 8.º da LRAL, segundo a qual a independência e imparcialidade dos árbitros encontra-se garantida sem a existência de um sistema de controlo externo das Entidade de RAL. A interpretação normativa delineada fere, por inconstitucionalidade material, o princípio constitucional do direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo (Artigo 20.º, n.º 4, da CRP).
IX. É materialmente inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 8.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1, da LRAL segundo a qual o processo arbitral pode prescindir da notificação às partes do ato de designação do árbitro para o processo de acordo, fundamento dessa designação, respectiva aceitação e da consequente declaração de independência e imparcialidade e de qualidades do próprio árbitro. A norma exposta viola o direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo julgado por um órgão independente e imparcial, em especial na vertente do princípio do contraditório e da proibição de indefesa (cf. artigo 20.º, n.º 4, da CRP).
X. É materialmente inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 8.º, n.º 1 e 9.º, n.º 1, alínea i) da LRAL e 14.º, n.º 3.º, do Regulamento do CNIACC, segundo a qual o Tribunal Arbitral pode definir livre e discricionariamente o regime da prova num sentido que impeça ou dificulte o direito ao recurso das suas decisões que afetem/restrinjam direitos, liberdades e garantias ou direitos fundamentais de natureza análoga. A interpretação normativa descrita atenta contra o direito de acesso aos tribunais a uma tutela jurisdicional efetiva, nas vertentes do princípio da igualdade e do direito ao recurso de decisões que afetem/restrinjam direitos, liberdades e garantias ou direitos fundamentais de natureza análoga (cf. artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, da CRP).
XI. É materialmente inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 9.º, n.º 1, alínea i) e 8.º, n.º 1, da LRAL e 14.º, n.º 3.º, do Regulamento do CNIACC, segundo a qual compete às Entidades de RAL definir, inovatoriamente, as competências dos tribunais arbitrais, estabelecer disposições organizativas e processuais fundamentais, proceder à definição da força jurídica das suas decisões, regular o regime de recurso das decisões arbitrais ou estabelecer uma qualquer forma de conexão entre a instância arbitral e os tribunais comuns. A norma descrita atenta, ostensivamente, contra o princípio constitucional da tipicidade da lei e da consequente proibição de reenvios normativas nas matérias da reserva de lei (cf. artigo 112.º, n.º 5, 2.ª parte) e do princípio da reserva de lei (cf. artigo 165.º, n.º 1, alínea p)).
XII. Por sua vez, é organicamente inconstitucional o artigo 14.º, n.º 3, do Regulamento do CNIACC, na medida em que dispõe sobre matéria da reserva relativa da Assembleia da República, em ostensiva violação da reserva de lei (cf. artigo 165.º, n.º 1, alínea p). Pelo exposto, é materialmente inconstitucional a interpretação normativa extraída do artigo 14º, números 4 e 5 da LDC, segundo a qual o regime de citação é exclusivo do consumidor e não é extensível ao profissional. A norma referida viola o direito fundamental a um processo equitativo e o princípio da igualdade (cf. artigos 20.º, n.º 4 r 13.º, n.º 1, da CRP).
Nestes termos, e nos mais de Direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, sendo:
- revogada a decisão de primeira instância que fixa o valor da causa, sendo o valor fixado em €74.000,00.
- sendo declarada a incompetência do Tribunal como Tribunal Arbitral Voluntário, por falta de convenção arbitral, com a consequente nulidade da convenção arbitral, sendo revogada a sentença e sendo o Recorrente absolvido da instância.
- sendo declarada a incompetência do Tribunal como Tribunal Arbitral Necessário nos termos do art. 14º da Lei de Defesa do Consumidor, e da Lei RAL, sendo revogada a sentença, e absolvida o Recorrente da instância.
- Ser declarada a caducidade do poder jurisdicional do Tribunal Arbitral como Tribunal Arbitral Necessário, com a nulidade de todo o processado desde a data da caducidade, incluindo a nulidade da sentença, sendo proferido Acórdão que absolva o recorrente da instância.
- Ser declarada a nulidade da sentença na parte da matéria de facto, com a consequente nulidade derivada da totalidade sentença, sendo absolvido o Recorrente da instância.
- Subsidiariamente, ser revogada a sentença na parte que aprecia o fundo da causa, sendo julgado improcedente o pedido, absolvendo-se o Recorrente do mesmo.
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Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Por despacho prolatado nos autos pela Exmª Juiz Árbitro do CNIACC e datado de 9-11-2021, não foi admitido o recurso, o que se ficou a dever à falta de requisitos formais, mais concretamente pela falta de valor, atento que o valor da causa fora fixado pela sentença recorrida em € 2.000.
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A demandada Banco ..., SA apresentou reclamação contra a não admissão do recurso.
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Por decisão deste Tribunal da Relação de 17-12-2021, foi deferida a reclamação e admitido o recurso interposto pela reclamante, tendo-se requisitado o processo principal ao tribunal recorrido, nos termos do nº 6 do art. 643º do CPC.
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Em cumprimento do determinado, foi remetido o processo.
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Facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex. vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pela apelante, esta pretende que se revogue a decisão recorrida e seja substituída por outra nos termos pedidos, e desde logo no que respeita à fixação do valor da causa, sendo o valor fixado em €74.000,00, com a consequente declaração de incompetência do Tribunal em razão do valor.
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3 – OS FACTOS

Os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede.
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Estando também em causa no recurso a questão do valor da acção, se € 2.000 como entendeu a decisão recorrida, se € 74.000 como propõe a recorrente, atendendo a que estamos perante uma decisão do Tribunal Arbitral, das duas uma:

- ou o tribunal ad quem conclui que o valor da causa não excede a alçada do tribunal a quo, e nesse caso o recurso deve ser imediatamente julgado improcedente, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela recorrente (por falta de alçada, a decisão não admite recurso);
- ou o tribunal ad quem conclui que o valor da causa excede a alçada do tribunal a quo e nesse caso resulta existir incompetência desse tribunal em razão do valor/falta de convenção arbitral, devendo o recurso julgar imediatamente revogada a sentença e sendo a Recorrente absolvida da instância, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela recorrente (por falta de alçada, existe incompetência absoluta do Tribunal Arbitral em razão da matéria, sendo então competente o Tribunal Judicial).
Mas vejamos a concreta questão a analisar: pretende a apelante que se revogue a decisão recorrida no que respeita à fixação do valor da acção em € 2.000, valor esse que já havia sido proposto na petição inicial pelo demandante. É que estando em causa (no âmbito do contrato), as entregas desde 16-06-2020 até ao termo do contrato (30-07-2023), quatro anos contratuais, e a aceitação do valor máximo de depósitos de € 74.000, - acto jurídico que o demandante pretende ver salvaguardado, sendo este o valor do pedido (art. 301º do CPC), entende a apelante que o valor da acção é o correspondente ao valor do acto jurídico – contrato de depósito, com o valor máximo de € 240.000, parcialmente já executado, sendo o valor máximo actual de € 74.000, também por via do art. 300º do CPC (no caso das prestações vencidas e vincendas), coincide com este valor, propondo a fixação do valor em € 74.000. Do que sempre resulta a incompetência do tribunal em razão do valor/falta de convenção arbitral, uma vez que, seja pelo valor do contrato (€ 240.000) ou pelo valor das quantias de reforço do depósito até ao final do contrato (€ 74.000), tudo acrescido de juros vincendos, em montante que ainda não está liquidado, é excedido o valor de € 30.000, que constitui o máximo da competência do tribunal arbitral.
Quid iuris?

Como bem refere a recorrente nas suas alegações, «nem a LRAL, nem a LDC, nem a LAV, nem o Regulamento CNIACC regulam o modo de determinação do valor da acção, sendo aplicável o CPC (arts. 296º a 310º).
Nos termos do art. 297º do CPC, se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício. No caso dos autos, não se pretende obter uma quantia em dinheiro, mas antes entregar uma quantia em dinheiro.
O pedido consiste no efeito jurídico que se pede ao Tribunal que determine (art. 581º, nº 3 do CPC). Na sua reclamação, o Reclamante declara, no local próprio relativo ao PEDIDO:
Pretendo que sejam repostas as condições contratuais indicadas nas Condições Gerais do produto, ou seja, que os reforços programados sejam executados, assim como os que forem solicitados por mim, até ao limite máximo e que o capital e os mesmos reforços sejam remunerados às taxas contratadas e a contar das datas em que foram solicitados. (cfr. página 3 da Reclamação)
Em consequência, o efeito jurídico que se pretende obter – a que corresponde o pedido (art. 581º, nº 3 do CPC) – consiste em condenar o Recorrente a aceitar todos os depósitos (programados e extraordinários) até ao seu valor contratual máximo (€2.000,00 por mês, no máximo anual de €24.000,00, e um máximo contratual por executar de €74.000,00), acrescida da remuneração destas quantias à taxa contratual.
Ou seja, com este pedido o Reclamante pretende que o contrato de depósito a prazo de poupança que celebrou com o Recorrente seja executado de acordo com a sua letra, não obstante a alteração de circunstâncias invocada pelo Recorrente.
O contrato foi celebrado em 31 de julho de 2013, terminando em 30 de julho de 2023. Na sua letra, o contrato permite a realização de entregas máximas anuais no total de €240.000,00 ao longo de 10 anos, com um máximo por cada ano contratual de €24.000,00 (€ 2.000,00 por mês). Em Junho de 2020 o Recorrente passou a impedir novos reforços de depósitos, com fundamento em alteração de circunstâncias mantendo, contudo, a remuneração das quantias até então depositadas à taxa contratada (incluindo as bonificações de taxa contratadas). Em 10 de julho de 2020 o Reclamante pretendeu efetuar um depósito de €2.000,00 não tendo o Recorrente aceite esse depósito.
Contudo, a pretensão do Reclamante não é limitada aos referidos €2.000,00.
Por um lado, o pedido formulado consiste na condenação do Recorrente a aceitar depósitos até ao valor máximo de €74.000,00.
Por outro lado, a questão em litígio consiste na interpretação e concretização do contrato como um todo, porquanto a questão da invocada alteração de circunstâncias, afeta o contrato como um todo, e não apenas a prestação de entrega de €2.000,00. Não é possível decidir esta questão em relação à prestação dos €2.000,00 sem que essa decisão afete todas as prestações em causa, no valor de €74.000,00.
O Reclamante pretende que o ato jurídico – contrato de depósito irregular – seja interpretado e concretizado com um determinado sentido juridicamente relevante, e que o Recorrente seja condenado a cumprir as vinculações decorrentes desse sentido, que consiste em ter o direito a efetuar depósitos mensais no valor máximo de €2.000,00 até ao final do contrato, ou seja, desde 16 de junho de 2020 até ao termo final do contrato (30 de julho de 2023), período este que abrange quatro anos contratuais:
- 31/07/2019 a 30/07/2020;
- 31/07/2020 a 30/07/2021;
- 31/07/2021 a 30/07/2022;
- 31/07/2022 a 30/07/2023;
Em relação a estes anos contratuais, o Reclamante pretendia obter sentença que condenasse o Recorrente a aceitar o valor máximo de depósitos em cada ano contratual, que é o seguinte:
- 31/07/2019 a 30/07/2020: €2.000,00; (2)
- 31/07/2020 a 30/07/2021: €24.000,00;
- 31/07/2021 a 30/07/2022: €24.000,00;
- 31/07/2022 a 30/07/2023: €24.000,00.
No total, a pretensão do Reclamante consistia em obrigar o Recorrente a aceitar depósitos no total de €74.000,00. E foi esta a condenação que resultou da sentença, que obriga o Recorrente a aceitar depósitos do Reclamante no valor máximo de €74.000,00.
Como tal, o específico ato jurídico que o Reclamante pretende ver salvaguardado consiste no direito a efetuar entregas a título de depósito, ou de reforço de depósito, no valor máximo de €74.000,00 (setenta e quatro mil euros), sendo este o valor do pedido formulado.
A utilidade imediata para o Reclamante é claramente pecuniária: poder efetuar depósitos de dinheiro na conta aberta junto do Recorrente. Sucede apenas que a prestação surge neste caso com uma direção inversa relativamente ao caso típico regulado na Lei. Em lugar de estar em causa o pedido de condenar alguém a pagar dinheiro, está em causa o pedido de condenar alguém a receber dinheiro. Contudo, não podem existir dúvidas que a prestação é pecuniária, porquanto tem como objeto uma quantia em dinheiro, e uma vinculação passiva (em lugar de ativa, como é típico) à entrega desse dinheiro.
A pretensão do Reclamante é de fácil quantificação, porquanto sendo pecuniária, o valor da ação corresponde ao valor pecuniário do pedido: €74.000,00.
Este valor corresponde não só ao benefício económico para o Reclamante, como corresponde também ao valor (por executar) estipulado pelas partes no (e para o) contrato.
Contudo, surpreendentemente, o Tribunal não fixou o valor em €74.000,00, valor este que determinaria a incompetência do Tribunal (art. 6º, nº 1 do Regulamento do CNIACC).
Fixou-o em €2.000,00.
O Tribunal considerou que, como o Recorrente tinha tentado proceder a um depósito no valor de €2.000,00, e o Recorrente não o tinha permitido, o benefício imediato consistia apenas nos €2.000,00, sendo este o valor da ação. Fazendo com que o valor da ação ficasse dentro dos limites da competência do Tribunal em razão do valor.
Salvo o devido respeito, não tem razão o Tribunal, não existe qualquer modo de fundamentar esta decisão. Para melhor compreensão da questão em apreciação, transcreve-se a parte relevante da decisão:
No dia 10 de Julho de 2020, alega o Demandante que solicitou um reforço da conta no montante de €2.000,00, o que lhe foi negado pela gestora de conta informando que Banco ... mantem o pagamento dos juros sobre o atual capital em depósito, mas deixa de aceitar novas entregas programadas e/ou pontuais, neste Depósito a Prazo, desde 16 de Junho de 2020 – cfr. mail remetido em 15.06.2020;
Assim sendo, o benefício imediato do pedido para o Demandante será o cumprimento das condições contratuais acordadas, designadamente a aceitação (cumprimento do contrato pelo Banco ...), do depósito de €2.000,00, que lhe foi negado no dia 10 de Julho de 2020 – antes da entrada da reclamação no CNIACC.
[…]
Termos em que, facilmente, se conclui que o presente litígio está submetido à arbitragem e é passível de decisão arbitral e o tribunal é competente em razão do valor da presente ação, fixado no montante de €2.000,00…

Ora, não podíamos estar mais de acordo com a recorrente, pois, atendendo à pretensão do demandante e ao seu concreto pedido - condenar o Recorrente a aceitar todos os depósitos (programados e extraordinários) até ao seu valor contratual máximo (€ 2.000,00 por mês, no máximo anual de € 24.000,00, e um máximo contratual por executar de € 74.000,00), acrescida da remuneração destas quantias à taxa contratual -, não pretendendo pela acção obter qualquer quantia certa em dinheiro, mas um benefício diverso, nos termos do nº 2 do art. 297º do CPC, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício. Sendo, pois, de fácil quantificação a pretensão do demandante, porquanto sendo pecuniária, o valor da acção corresponde ao valor pecuniário do pedido: € 74.000,00 (este valor corresponde não só ao benefício económico para o Reclamante, como corresponde também ao valor por executar estipulado pelas partes no contrato). Lembrando-se que a questão em litígio consiste na interpretação e concretização do contrato como um todo, porquanto a questão da invocada alteração de circunstâncias, afeta o contrato como um todo, e não apenas a prestação de entrega de € 2.000,00. Não é possível decidir esta questão em relação à prestação dos € 2.000,00 sem que essa decisão afecte todas as prestações em causa, no valor de € 74.000,00. A essa mesma conclusão se chegando atendendo ao nº 2 do art. 300º do CPC, que se pronuncia sobre o valor da acção no caso de prestações vincendas e periódicas como é o caso, que refere que nos processos cuja decisão envolva uma prestação periódica, (…) tem-se em consideração o valor das prestações relativas a um ano multiplicado por 20 ou pelo número de anos que a decisão abranger, se for inferior. Ou seja, € 74.000,00 (valor das prestações relativas ao número de anos que a decisão abranger) é inferior a € 480.000 (valor das prestações relativas a um ano multiplicado por 20: € 24.000/ano x 20).
Como assim, e sem necessidade de mais considerações, fixa-se o valor à acção em € 74.000,00.
Ora, atendendo a este valor ora fixado à acção pelo tribunal ad quem , e como já supra expresso, temos que, o valor da causa excede agora a alçada do tribunal a quo e neste caso resulta existir incompetência desse tribunal em razão do valor/falta de convenção arbitral, pois é excedido o valor de € 30.000, que constitui o máximo da competência do tribunal arbitral, devendo o recurso julgar imediatamente revogada a sentença e sendo a Recorrente absolvida da instância, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela recorrente (por falta de alçada, existe incompetência absoluta do Tribunal Arbitral em razão da matéria, sendo então competente o Tribunal Judicial).
O que se passa a fazer sem mais, atendendo ao concreto valor ora fixado à acção em € 74.000,00, pelo que se julga revogada a sentença proferida pelo tribunal a quo e se absolve a Recorrente da instância.
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (art. 663º/7 CPC)

I – Não pretendendo o demandante pela acção obter qualquer quantia certa em dinheiro, mas um benefício diverso (o demandante pretende obrigar o demandado a aceitar depósitos no total de € 74.000,00), nos termos do nº 2 do art. 297º do CPC, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
II – A esse mesmo resultado se chegaria atendendo ao nº 2 do art. 300º do CPC, que se pronuncia sobre o valor da acção no caso de prestações vincendas e periódicas, como é o caso.
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6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar procedente o recurso de apelação interposto e, em consequência do valor fixado à acção em € 74.000,00, julgar revogada a sentença proferida pelo tribunal a quo por falta de alçada (existe incompetência absoluta do Tribunal Arbitral em razão da matéria) e absolver a Recorrente da instância.
Sem custas.
Notifique.
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Guimarães, 24-02-2022

(José Cravo)
(António Figueiredo de Almeida)
(Maria Cristina Cerdeira)


1. Tribunal de origem: Tribunal Arbitral organizado pelo Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo (vulgo CNIACC), com sede na Rua ….
2. Considerando os demais depósitos já efetuados durante este ano contratual.