Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
624/23.8T8AVV.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: INSPECÇÃO JUDICIAL
AUTO
NULIDADE
DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- A falta de elaboração do auto de inspeção é nulidade secundária (e por maioria de razão, o mesmo ocorre com omissões do mesmo), dependente de arguição, no prazo de 10 dias a contar da sua cognoscibilidade, sob pena de se considerar sanada, nos termos dos artigos 195.º e 199.º do Código de Processo Civil.
.2- Questão diversa de se saber se foram vertidos no auto todas as observações efetuadas no local (se ocorreu ou não uma nulidade, de natureza formal) é apreciar se há dúvidas sobre a prova realizada, determinando novos meios de prova ou se a decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória ou se é necessário ampliar a matéria de facto. Não está então em causa uma nulidade secundária, um erro no registo ou procedimento da prova, mas uma deficiência no ato jurisdicional: na decisão e fundamentação da matéria de facto a ser apreciado em sede de modificabilidade da decisão de facto pelo Tribunal da Relação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - Relatório

Os Autores na sua petição inicial pediram que fosse declarada extinta a servidão de passagem que alegam que onera o seu prédio, por se mostrar desnecessária ao prédio dos réus, obrigando-se os Autores a suportar os custos das obras.
Os Réus, na contestação, alegaram, também em súmula, a ineptidão da petição inicial, porquanto em lado nenhum se prevê a faculdade de peticionar a desnecessidade de uma servidão, mediante a contrapartida, oferecida pelo peticionante, de custear uma alternativa de acesso. Invocaram que para acederem ao seu prédio, os réus passam ainda pelo leito do caminho público, que não é solo do prédio dos autores, contíguo à porta da garagem da sua casa e esclareceram que o seu prédio é urbano.
Concluíram, pedindo em primeiro lugar a absolvição dos réus do pedido, com base em inconcludência jurídica do pedido, subsidiariamente a absolvição dos Réus da instância por ineptidão da petição inicial e subsidiariamente, novamente, a absolvição do pedido por ausência de prova e de mérito.
Formularam pedido reconvencional.
Os Autores reconvintes foram, no despacho saneador, absolvidos da instância quanto ao pedido formulado em primeiro lugar, a saber: Declarar-se extinta, por não uso durante mais de vinte anos e/ou por desnecessidade, a servidão de passagem a pé que onera a parte do prédio dos reconvintes correspondente à zona das escadas de acesso à metade do espigueiro dos reconvindos, que estabelecida foi por usucapião a favor do prédio urbano descrito no artigo 1.º da p.i., ao qual pertence a metade do espigueiro supradito, de que são comproprietários os reconvindos.

Foram admitidos os seguintes pedidos reconvencionais:
-- Condenar-se os reconvindos a absterem-se de praticar quaisquer atos que impeçam ou diminuam o acesso dos reconvintes pela cancela sita no vértice norte/poente do seu prédio urbano, o qual confina a sul com o prédio urbano aludido no artigo 1.º da petição inicial;
-- Condenar-se os reconvindos, a pagar aos reconvintes, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor de € 100,00 (cem euros), por cada dia em que impeçam, diminuam, ou por qualquer forma comprimam ou constrinjam o acesso aludido no número anterior.

Realizou-se julgamento, com inspeção ao local e foi proferida sentença que julgou a ação bem como a reconvenção totalmente improcedentes, absolvendo dos pedidos os Réus e os Reconvindos.

É desta decisão que os apelantes recorrem, com as seguintes
conclusões:
“2. Do auto de inspecção, que consta da acta da audiência final, refere-se unicamente que passou a inspecionar o local, pedindo vários esclarecimentos às partes e sendo colhidas algumas fotografias que irão ser juntas aos presentes autos, em folha suporte.
3. Ora, no nosso modesto entendimento, caberia ao julgador, na presença do local da questão, responder à matéria alegada na petição e transcrita supra em d), e), f), g), h), i), j) e k).
4. Invocando os factos concretos presenciados e a percepção colhida no local.
5. Já que foi para tal fim requerida a inspecção judicial.
6. Pois, através da mesma inspeção, tornar-se-ia extremamente fácil responder a tal matéria.
7. E foi por esta mesma razão que os autores não requereram, para o mesmo fim, prova pericial, que entenderam totalmente desnecessária. 
8. Pelo que a inspecção judicial se encontra ferida de nulidade, por falta de pronuncia (infringindo o disposto no artigo 390º e 391º do C. Civil e 490º do C. P. Civil);
9. A sentença recorrida considerou não provados os factos alegados na petição inicial.
10. Da motivação apresentada mostra-se total e absolutamente arredada a apreciação que o Tribunal colheu da inspecção ao local.
11. E, assim, vedada se encontra a possibilidade de o Tribunal superior sindicar a justeza das respostas à matéria de facto considerada não provada.
12. O que torna nula, nesta parte, a douta sentença recorrida.
13. Da prova testemunhal e documental produzidas resulta que os factos descritos supra em d) a k) deveriam ser considerados provados e, em consequência, ser julgado provado e procedente o pedido formulado.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.”

A Recorrida não respondeu.

II- Definição do objeto do recurso (questões a apreciar)

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face às conclusões do recurso, importa apreciar, por ordem lógica:
- se a inspeção judicial se encontra ferida de nulidade, por falta de pronúncia (infringindo o disposto no artigo 390º e 391º do C. Civil e 490º do C. P. Civil) e em caso afirmativo as consequências dessa nulidade;
- se a sentença não respondeu a todos os factos que devia conhecer e em caso afirmativo as consequências dessa omissão;
- se ocorreu erro na decisão da matéria de facto e as suas consequências.
*
III- Fundamentação de Facto

Segue-se o elenco da matéria de facto provada e não provada a considerar, indicando-se os factos selecionados na sentença. Os factos que se mantêm são reproduzidos sem qualquer menção adicional; caso sejam alterados na decisão sobre a impugnação da matéria de facto, serão acrescentados ou modificados com a devida indicação.

Factos Provados
1 - Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...64.º, o prédio urbano, sito no ..., composto por casa de ... e ... andar, com logradouro, destinado a habitação, figurando como seu titular o Autor AA.
2 - Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...63.º, o prédio urbano, sito no ..., composto por uma casa de ... e ... andar, para habitação, com logradouro, figurando atualmente como sua titular a Ré BB.
3 - Os prédios mencionados em 1 e 2 confrontam, entre si, pelo lado sul no local onde existe uma cancela que dá acesso ao prédio referido em 2.
4 - Há mais de 30 (anos) que os Autores, por si e seus antecessores, habitam o prédio mencionado em 1, nele fazendo obras e melhoramentos, o que fazem à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta e na convicção de quem exerce poderes sobre coisa que lhes pertence por inteiro e de que não lesam direitos ou interesses de outrem.
5 - A atuação dos Autores mencionada em 4 abrange uma parcela de terreno que se mostra delimitada, a poente, pelo caminho público e a sul pelo prédio referido em 2 e até à confrontação mencionada em 3.
6 - É através da parcela de terreno referida em 5 que os Autores alcançam a parte construída do prédio mencionado em 1, a partir do caminho público, e, principalmente, o ..., onde se situa uma divisão destinada a arrumos e garagem.
7 - Há mais de 30 (trinta) anos que os Réus, por si e seus antecessores, acedem ao prédio mencionado em 2, a partir do caminho público, pela parcela de terreno descrita em 5, a pé, de carro de mão ou com cestos ou trator, através da cancela aí existente, o que fazem à vista e com o conhecimento de toda a gente, de forma ininterrupta, sem oposição de quem quer se que seja, na convicção de que não lesam direitos ou interesses de outrem e de que lhes assiste um direito próprio de passagem.
8 - O acesso descrito em 7 configura a única forma de aceder ao prédio mencionado em 2.

Factos não provados
A - A parcela de terreno mencionada em 5, tem, concretamente, 6,80 metros de comprimento e 2,90 metros de largura.
B - Os Réus só ocasionalmente utilizam o prédio mencionado em 2 e já não o destinam à agricultura ou recolha e abrigo de animais.
C – É possível criar uma passagem alternativa à referida em 6, limitada à demolição de parte do muro existente no prédio mencionado em 2, criando uma abertura com a largura de 2,50 metros, colocação de ombreiras de ambos os lados da abertura e uma cancela semelhante à referida em 3.
D – A demolição a que se alude em C proporcionaria aos Réus melhores condições de utilidade e comodidade de acesso ao prédio mencionado em 2.
E – A demolição a que se alude em C terá um custo previsível de 1.500,00 EUR.
F – Por vezes o Autor estaciona o veículo de que é proprietário na parcela referida em 5, impossibilitando, assim, a passagem dos Réus ao prédio mencionado em 2.

III- Apreciação do objeto do recurso (Fundamentação de Direito e da impugnação da matéria de facto)

1- Da nulidade da inspeção ao local

Da inspeção judicial
Por este meio de prova pretende-se o contacto direto do julgador com o objeto da prova (artigo 390.º do Código Civil), por serquem realiza o exame. A inspeção permite ao julgador observar e aceder sem mediação aos factos que importa definir, objetivar diretamente as características das coisas que estão à sua disponibilidade e a que pode aceder através da simples observação ou por operações que não exijam especiais técnicas fora do alcance de um leigo na matéria.
O juiz pode fazer-se acompanhar de um assessor técnico, o qual tem apenas como função auxiliá-lo a melhor apreender o que é percetível.
A finalidade principal da inspeção judicial é esclarecer o juiz sobre os factos que interessam à decisão da causa e que sejam apreensíveis pela observação ou simples operações não técnicas (vg empurrar ou puxar a porta para perceber se abre com a utilização da força que é usualmente exigida para o efeito, definir, admitindo uma margem de erro razoável, o comprimento de uma sala).
Quando realizada em sede de julgamento, tem em vista colher elementos que lhe permitam proferir decisão sobre a matéria de facto relevantes para a decisão da causa.
As partes no seu requerimento podem indicar os factos sobre que a diligência deve recair e essa omissão não as impede de os apontarem no ato de inspeção, mas na maioria dos casos resulta da natureza dos factos a apreender o que é possível demonstrar com essa diligência.
O tribunal no ato da inspeção deve procurar e obter todos os elementos percecionáveis que tenham relevo para a decisão da causa. Depois, deve registá-los no auto, como tudo resulta patente do disposto no artigo 493.º do Código de Processo Civil.
Esse registo, que pode ser ditado na presença das partes, permite que se compreenda o que o julgador conseguiu constatar, permitindo às partes que nesse momento chamem a atenção para o que não foi verificado e também de suporte para efeitos de elaboração da sentença e discussão da decisão em caso de recurso.
Porque o resultado da inspeção é livremente apreciado pelo Tribunal (artigo 391.º do Código Civil), o julgador para decidir que factos se demonstraram e não demonstraram tem que conjugar o que observou com todos os demais elementos de prova produzidos ou a produzir, não se podendo vincular apenas ao que viu, fazendo tábua rasa de todo o demais apresentado. Se factos há, que observados, parece que não podem ser alterados pelo depoimento testemunhal, basta que atentemos à alterabilidade do meio físico para se poder ter que adaptar o que se vê àquilo que já foi ou se mostra de alguma forma escondido ou escamoteado.
O Código de Processo Civil nas normas que regulam este modo de produção de prova (artigos 490.º a 494.º) salienta que a realização da inspeção está sujeita ao justo arbítrio, visto que deve ter lugar quando o tribunal o entenda adequado para o esclarecimento de factos com relevo para a decisão da causa.

Da nulidade por vícios no auto de inspeção
O Recorrente entende que ocorreu uma nulidade consistente no facto de não ter sido devidamente elaborado o auto de inspeção, ao qual faltariam elementos.
O artigo 195º do Código de Processo Civil que estabelece as regras gerais sobre as nulidades dos atos, aqui aplicável porquanto nenhuma norma existe que preveja esta omissão, determina que a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Por seu turno, nos termos do artigo 199.º do Código de Processo Civil, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência. A falta de arguição nesse prazo determina a sua sanação.
Assim, é jurisprudência assente que a falta de elaboração do auto é nulidade secundária (e por maioria de razão, o mesmo ocorre com omissões do mesmo), dependente de arguição, o prazo respetivo é de 10 dias, sob pena de se considerar sanada, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil (cfr acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no processo n.º 5547/16.4/8CBR.C1, de 11-09-2018 e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães no processo 2207/20.5T8BCL.G1 de  11-07-2024, citando António dos Santos Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, In Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, pág. 593).
Quando a inspeção peque por não ter sido efetuada uma completa análise do que era percetível e esta omissão releve para a decisão da matéria de facto há que enquadrar a situação no âmbito do artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Questão diversa de se saber se foram vertidos no auto todas as observações efetuadas no local (se ocorreu ou não uma nulidade, de natureza formal) é apreciar se há dúvidas sobre a prova realizada, determinando novos meios de prova ou se a decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória ou se é necessário ampliar a matéria de facto. Não está então em causa uma nulidade secundária, um erro no registo ou procedimento da prova, mas uma deficiência no ato jurisdicional: na decisão e fundamentação da matéria de facto a ser apreciado em sede de modificabilidade da decisão de facto pelo Tribunal da Relação.
Assim, se o tribunal da Relação concluir, em sede de apreciação da matéria de facto (oficiosamente ou por ter sido objeto de impugnação),  que apesar de realizada a inspeção ao local o tribunal a quo não averiguou in loco aspetos ou elementos necessários para a decisão sobre a matéria de facto que devia conhecer ou que a decisão que proferiu é deficiente, obscura ou contraditória, terá que recorrer às normas especiais, especificamente construídas para os casos em que se discute a modificabilidade da decisão de facto vertidas no artigo 662.º do Código de Processo Civil.

Concretização
Postas estas considerações, que relevam para a apreciação da invocada nulidade, quer para, depois, a análise da prova e decisão sobre a impugnação de facto, passemos em primeiro lugar à apreciação instanciada da primeira questão.
Os Recorrentes pretendem que a perícia é nula, porquanto: “Do auto de inspecção, que consta da acta da audiência final, refere-se unicamente que passou a inspecionar o local, pedindo vários esclarecimentos às partes e sendo colhidas algumas fotografias que irão ser juntas aos presentes autos, em folha suporte. Ora, no nosso modesto entendimento, caberia ao julgador, na presença do local da questão, responder à matéria alegada na petição e transcrita supra em d), e), f), g), h), i), j) e k).”
Importa para a apreciação da questão fixar os seguintes factos de natureza processual que resultam dos autos: a sentença foi notificada por ato de 2-4-2025 e só nas alegações de 15-5-2025 foi arguida a nulidade.
Do que expusemos resulta desde já patente que a arguição se mostra intempestiva, porquanto desde pelo menos a notificação da sentença que o Recorrente, agindo com uma usual diligência, tinha a possibilidade de conhecer a espartaneidade do auto e arguir a sua nulidade. Assim, contando-se o prazo de dez dias desse momento, a sua invocação no recurso é tardia, por se considerar sanada.
Por outro lado, há que atentar que o auto de perícia não deve responder aos factos alegados na petição inicial ou transpostos para os temas da prova, por a fixação da matéria de facto provada dever ter em conta toda a prova produzida, mesmo quanto a factos que parece que podem facilmente ser apreendidos pela simples observação. Deve, sim, apontar de forma concretizada o que é percetível a quem se encontre a analisar o local.
Tal resulta desde logo do disposto no artigo 391.º do Código Civil, que exige que mesmo que o que foi percecionado seja confrontado com toda a demais prova produzida, que pode trazer novas perspetivas sobre o que se viu, mediu e apreendeu. É também patenteado pela própria estrutura do processo que relega, por essa razão, para a sentença, num capítulo próprio, a definição de todos os factos provados e não provados relevantes para a decisão da causa (artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil).
Uma coisa é a produção de meios de prova e a concretização em auto do que foi percecionado, outra a definição dos factos provados ou não provados objeto do processo, sujeitos a ponderação e conjugação de todos os meios de prova produzidos e sua motivação.
Desta forma, é patente que não ocorreu nenhuma nulidade por não ter sido definido no auto da inspeção a resposta a dar a (parte) dos factos provados e não provados. Nada obsta que que o auto da inspeção seja inserido na ata de audiência.
Apesar do auto de perícia ser omisso na descrição do que foi observado e percecionado, descreveu-se no mesmo o ato de registo fotográfico do ocorrido, visando-se com isso substituir tal descrição. Apesar de não ser a técnica mais rigorosa, certo é que foi elaborado auto, não ocorrendo por isso qualquer nulidade formal no mesmo.
De todo o exposto, resulta que este tribunal não deve conhecer da invocada nulidade do auto de perícia, por estar sanada, a qual, no entanto, sempre seria improcedente.
Há, pois, que passar de imediato a conhecer do mérito da decisão de facto.

2- Da impugnação da matéria de facto
Os Recorrentes pretendem que sejam aditados à matéria de facto provada factos que não tiveram resposta na sentença, pretendendo, portanto, a ampliação da decisão de facto.
Se se concluir que existem factos que o tribunal devia ter conhecido e não conheceu, que foram alegados e que eram indispensáveis para a decisão da causa segundo as várias soluções jurídicas plausíveis, o tribunal de recurso deve proceder à ampliação da matéria de facto, diz-nos o artigo 662.º, n.º 2 alínea c) do Código de Processo Civil.
Se constarem do processo todos os elementos que permitam essa ampliação esta deve ser efetuada pela Relação e não se tem que se repetir o julgamento, nos termos da alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo: tal resulta de uma leitura abrangente da alínea c) do n.º 2 deste preceito, à luz dos poderes de decisão relativos à matéria de facto atribuídos à Relação (neste sentido cf António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, p.295,  e acórdão do Tribunal da Relação do Porto no processo n.º 1004/20.2T8PNF.P1 de 26 Junho 2025; contra acórdão  do Tribunal da Relação de Coimbra de 05-03-2024, no processo 2941/20.0T8VIS.C1).
No caso contrário, deve anular-se a decisão proferida na 1ª instância e determinar a repetição do julgamento na parte que não está viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições.
Importante é que os factos em causa, que não obtiveram resposta na sentença, sejam indispensáveis á decisão da causa, por importarem para apurar se se verificam os factos que integram a causa de pedir ou alguma das exceções invocadas, e tenham sido alegados e sujeitos ao contraditório, sejam eles essenciais ou complementares. Com efeito, não se justifica a repetição do julgamento se os factos não respondidos não forem imprescindíveis para a decisão da causa e há que ter em conta o ónus de alegação das partes e as limitações do poder de cognição do tribunal expressas no artigo 5.º do Código de Processo Civil.

Concretização
Os Recorrentes pretendem que sejam vertidos na matéria de facto provada factos invocados na petição inicial, por serem relevantes para a decisão da causa, a saber:
-1- A dividir os prédios existe um muro, em pedra sobre pedra, que dispõe de uma cancela, com a largura de 1,80 m, que dá diretamente acesso da parcela de terreno do prédio dos autores ao dito prédio dos réus e pela qual tal trânsito se processava; (artigo 17º da petição inicial);
-2- O prédio dos réus confronta com o caminho público, a poente, numa extensão de 12,00 m (artigo 21.º fala-se em 11 metros);
-3- Situando-se a cota deste prédio à mesma cota do caminho público (artigo 22.º da petição inicial);
-4- Sendo, por isso, extremamente fácil e com um investimento irrisório (limitado à demolição de parte do muro do prédio dos réus, criando uma abertura com a largura de 2,50 m, colocação de ombreiras de ambos os lados da abertura, colocação de cancela de características semelhantes à já existente e encerramento em pedra da abertura existente) fazer o acesso directamente do caminho público (artigo 23º da petição inicial, com aditamento à dimensão da  abertura e à colocação de ombreiras e encerramento da abertura existente);
-5- Esta demolição seria realizada junto à estrema norte do muro dos autores que confronta directamente com o caminho público a poente (ora aditado);
-6- O que proporcionará aos réus melhores condições de utilidade e comodidade de acesso ao seu prédio (artigo 25.º da petição inicial);
-7- O caminho público encontra-se atualmente empedrado e permite o folgado trânsito de veículos automóveis e tractor (artigo 26.º da petição inicial);
-8- que trataria também evidentes benefícios para o prédio dos autores que, assim, poderiam utilizar livremente a parcela de terreno, designadamente para depositar quaisquer materiais e estacionar quaisquer veículos (artigo 28.º da petição inicial).
Destes, só os factos referidos em 4 e 6 foram parcialmente vertidos na sentença, nas alíneas C) e D) da matéria de facto não provada, aliás com expressões conclusivas e não instanciadas.  
Está em causa a declaração da extinção de uma servidão de passagem, constituídas por usucapião caso se mostre desnecessárias ao prédio dominante, prevista no artigo 1569.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Os factos omitidos têm relevo para a decisão do pleito, considerando as várias soluções possíveis de Direito: como muito bem dá conta a própria sentença, é aceite (embora não por todos, dizemos nós) que há casos em que a desnecessidade depende da realização de obras (citando o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-03-2020, processo n.º 732/18.7T8PBL.C1, a que se pode somar os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra no processo 81/16.5T8MBR.C1, de  10-12-2019 e no processo 459/06.2TBPCV.C1 de 02-06-2009, bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de Lisboa no processo 463/2002.L2-1, de 06-3-2012 e ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 Maio 1999 no Processo 99B394, que cita ainda o antigo Código de Processo Civil, na versão anterior à revisão de 94, que previa ação de arbitramento para o efeito, ao artigo 1057º).
A desnecessidade como causa da extinção da servidão é um conceito de direito cujo ónus de concretização cabe a quem a alega, mediante a invocação de factos concretos, como fizeram os Autores com os factos que invocaram (embora com algumas expressões conclusivas que cabe ao tribunal concretizar) e aos quais o tribunal não respondeu.
Traduz-se na conclusão que o prédio dominante pode alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que por meio dela conseguia, havendo, portanto que confrontar, no caso de servidão de passagem, se o acesso ao prédio se faz com a mesma facilidade ou qualidade pelo outro meio alternativo. Por se estar a discutir o preenchimento de um conceito de direito, para averiguar se a nova passagem não apresenta menores utilidades que a anterior, há que recorrer a um conjunto de factos atuais que podem ser objeto de complementarização nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil.
O tribunal para justificar a falta de resposta a estes factos, na motivação, questiona se existem “condicionantes técnicas e/ou de ordem urbanística/administrativa” que impedem a abertura de outro acesso, embora tal não tenha sido indiciado ou aflorado por qualquer outro meio de prova, sequer testemunhal. No entanto, essas questões não contendem em nada com a fixação da matéria de facto alegada na petição inicial para fundar o pedido, respeitantes ás características da passagem existente e da que passaria a existir.
Entendendo o juiz que deve conhecer oficiosamente da eventual existência de limitações técnicas ou administrativas à colocação de um novo portão para poder condicionar a eficácia da extinção da servidão a um facto exequível de facto e direito (cf no sentido da conclusão das obras ser condição de eficácia da extinção da servidão, o último acórdão que citámos disponível in https://jurisprudencia.pt/acordao/146858/), pode oficiosamente exercer o poder inerente ao princípio do inquisitório. Não pode é coibir-se de se pronunciar sobre os demais factos invocados, que se encontravam percetíveis na inspeção que realizou, com base no desconhecimento de outros condicionalismos para a alteração da entrada no prédio dos Réus.
Os Recorrentes, por seu turno, entendem que a inspeção ao local, conjugada com o depoimento das testemunhas demostra todos os factos que alegaram.
Como vimos, na inspeção o juiz deve esclarecer-se sobre todos os factos que interessam à decisão da causa e que sejam apreensíveis no local, pela simples observações ou operações que não exijam técnicas complexas, indisponíveis para pessoas com uma cultura comum, não especialistas, embora possa fazer-se acompanhar por técnico que colmate as normais dificuldades que possa ter no âmbito da matéria.
A maioria das questões abordadas nestes pontos factuais são facilmente percetíveis a olho nu e a medição, que não exige no caso particular exatidão, também podia ser realizada no local com facilidade.
Assim, era expetável que com a realização da inspeção o juiz se pudesse pronunciar sobre se o muro que separa os dois é de pedra sobre pedra, se dispõe de uma cancela, a sua largura (de simples medição), se dá acesso direto da parcela de terreno do prédio dos autores ao prédio dos réus, se o prédio dos réus confronta com o caminho público, a poente, numa extensão de cerca de 11 metros; se está à mesma cota do caminho público; se com a demolição de parte do muro do prédio dos réus (nomeadamente na estrema norte), criando uma abertura com a largura de 2,50 m, colocação de ombreiras de ambos os lados da abertura, colocação de cancela de características semelhantes à já existente e encerramento em pedra da abertura existente se poderia fazer o acesso diretamente do caminho público; se esse acesso se faria sem aumentar a distâncias a percorrer, nem diminuir o espaço de manobra, sem impor maiores inclinação da estrada, mantendo-se a visibilidade para  a entrada e saída (e qualquer outro elementos relevante que se evidenciasse na inspeção);  se essa entrada permitiria um acesso mais autónomo e direto ao prédio dos Réus; se o caminho público se encontra atualmente empedrado e permite o com folga  ta passagem de veículos automóveis e trator;  se os Autores ficariam com essa alteração livres para utilizar a parcela do terreno para o depósito de materiais e estacionamento.
No entanto, o tribunal recorrido não respondeu a estas questões, sendo que se mostram factos essenciais ou complementares imprescindíveis para a análise jurídica do caso.
Este tribunal não tem elementos para suprir essas omissões: não pode, com um mínimo de rigor, só com base nas fotografias, responder a todos estes factos.
Quanto ás alíneas C) e D), como vimos, a mesma tiveram uma fundamentação obscura, baseada num desconhecimento de facto que não foi alegado, fundado na possível existência de legislação urbanística que impede a alteração da abertura e numa possível inviabilidade técnica de alterar o muro:desconhecendo, pois, o Tribunal, se as características do local, do muro a demolir e eventuais condicionantes técnicas e/ou de ordem urbanística/administrativa permitiriam implementar a singela alternativa aventada pelos Autores e se esta, sendo exequível, cumpriria, para quem dela beneficiasse, os mesmos requisitos de utilidade e comodidade.”
Desta forma, há que ampliar a resposta à matéria de facto (provada ou não provada), que deve englobar os factos supra mencionados em 1 a 8: A dividir os prédios existe um muro, em pedra sobre pedra, que dispõe de uma cancela, com a largura de 1,80 m, que dá diretamente acesso da parcela de terreno do prédio dos autores ao dito prédio dos réus e pela qual tal trânsito se processava; O prédio dos réus confronta com o caminho público, a poente, numa extensão de 11,00 m; Situando-se a cota deste prédio à mesma cota do caminho público; A demolição de parte do muro do prédio dos réus, junto à estrema norte do muro dos autores que confronta diretamente com o caminho público a poente, criando uma abertura com a largura de 2,50 m, com a colocação de ombreiras de ambos os lados da abertura, colocação de cancela de características semelhantes à já existente e encerramento em pedra da abertura existente permitirá o acesso direto ao caminho público;  o caminho público encontra-se atualmente empedrado e permite o folgado trânsito de veículos automóveis e trator; com esta passagem os aos réus terão o acesso ao seu prédio alargado e mais direto, sem maior inclinação ou distância; com esta passagem os Autores passam a poder utilizar a parcela do terreno para o depósito de materiais e estacionamento) e anular a resposta ás alíneas C) e D) da matéria de facto não provada.
Deverá o tribunal a quo, face à prova produzida nos autos ou a outra que entenda pertinente, repetindo se o entender necessário a inspeção ao local acompanhado de técnico que nomeará, fixar como provados ou não provados tais factos, com a competente fundamentação.

V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, julga-se parcialmente procedente o recurso e em consequência procede-se à ampliação da matéria de facto e anula-se a decisão de facto na parte em que deu como não provado as alíneas c) e d), determinando-se a repetição do julgamento para apreciação dessas alíneas e questões indicadas supra, sob os pontos 1) a 8), sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições.
Custas pela parte vencida a final (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Guimarães,

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Margarida Pinto Gomes