Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5391/23.2T8VNF-D.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
INSOLVÊNCIA FORTUITA
PRESUNÇÃO LEGAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Nos termos e para os efeitos da alínea g) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE exige-se que:
i) se verifique uma exploração deficitária nos três anos anteriores à declaração de insolvência, o que sucederá se as receitas forem inferiores aos custos, não relevando as razões da mesma, mas apenas a situação objectiva.
ii) essa exploração seja prosseguida pelos administradores, de direito ou de facto, no seu interesse pessoal ou de terceiro, ou seja, o prosseguimento da exploração deficitária traduz-se, objectivamente, no prosseguimento de um interesse pessoal ou de terceiro.
ii) não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, tendo-se em vista, por um lado, o conhecimento exigível a um administrador medianamente diligente e criterioso colocado naquela situação e, por outro, o normal fluir das coisas.
II – Numa situação em que duas sociedades (a que produz e a que comercializa) têm, em parte, os mesmos sócios e têm a mesma gerência, estando, portanto, subordinadas a uma direcção unitária, a qual tem o poder de determinar a politica e estratégia económicas de ambas e em que, portanto, não há verdadeira independência da sociedade que produz, a manutenção em actividade desta última, apesar de se encontrar há muito numa situação de exploração deficitária, só pode ser entendida, de acordo com as regras da lógica e normalidade, como sendo (objectivamente) no interesse da sociedade que comercializa, pois obtém os produtos que vende, sem ter os custos, encargos e os prejuízos da sociedade que produz, podendo proceder à revenda com lucro.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

A 11/09/2023 EMP01... – Unipessoal, Ldª apresentou-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença de 19/09/2023 transitada em julgado.

O Sr. AI apresentou Relatório nos termos do art.º 155º do CIRE, cujo ponto V tem o seguinte teor:
    
“V – Abertura do Incidente de Qualificação da Insolvência (nº 1 do artigo 188º do C.I.R.E.)
A sociedade insolvente está em incumprimento reiterado há já vários anos perante as entidades públicas, em especial junto do Instituto da Segurança Social, I.P., em que lhe é devido o pagamento de todas as contribuições dos meses de Julho e Dezembro de 2015, Fevereiro a Agosto de 2016 e de Outubro de 2016 a Agosto de 2023, ou seja, mais de sete anos de incumprimento reiterado junto desta entidade, perfazendo um total devido à data da declaração de insolvência (inclui juros, coimas e custas) de Euros 260.737,95.
Este incumprimento consubstancia, nos termos da alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE, na violação do dever de requerer a insolvência.
A isto acresce ainda o facto de, face a todo o exposto neste relatório, a sociedade ter:
a) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, uma actividade em proveito de terceiros e em prejuízo da empresa,
b) Prosseguido, no interesse de um terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, e
c) Incumprido a obrigação de manter uma contabilidade devidamente organizada.
d) Estas situações enquadram-se na alínea e), g) e h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.

Estas situações, por si só, são fundamento para que o incidente de qualificação da insolvência seja aberto, o que desde já se requer.”

Foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Perante o teor do relatório junto pelo sr administrador de insolvência, considero oportuna a abertura do incidente de qualificação de insolvência. Publicite.”

Com cópia do referido despacho (e apenas deste e não também do referido relatório), a 22/11/2023 foi aberto o presente apenso de qualificação da insolvência.

O Sr. AI apresentou Parecer em que entende estarem verificados os fundamentos de qualificação da insolvência como culposa previstos nas alíneas a) do n.º 3 e alínea g) do n.º 2, ambos do art.º 186º do CIRE, devendo tal qualificação afectar o gerente da sociedade, AA.

No que à alínea g) do n.º 2 diz respeito referiu que, de acordo com a informação constante do portal e-fatura, a insolvente, desde setembro de 2018, presta serviços, única e exclusivamente, para a sociedade EMP02..., Ldª , a qual foi constituída a 09 de Abril de 2018, tem como objecto social a confecção de artigos de vestuário em série e como sócia BB e sócio e gerente AA, acrescentando, em nota, que a primeira é sócia da insolvente e o segundo gerente da mesma.
           
Mais referiu que os preços praticados foram, quase sempre, bastante inferiores ao necessário para suportar os seus custos de funcionamento, ou seja, as receitas obtidas não foram suficientes para pagar, sequer, os gastos com o pessoal, apresentando prejuízos nos anos de 2019 a 2021, apresentando um quadro explicativo.

Referiu ainda que a insolvente cedia a totalidade da sua mão de obra à EMP02..., Ldª; era expectável que o valor facturado pela sociedade insolvente correspondesse, no mínimo, aos gastos inerentes a esse mesmo pessoal; ao não actuar dessa forma a insolvente estava a assumir custos que deveriam ter sido imputados à EMP02..., Ldª; a única sociedade a tirar proveito da actividade deficitária da insolvente nos anos de 2019 a 2023 foi a EMP02..., Ldª, uma vez que aquela tinha oito/nove trabalhadores, anualmente, a prestar serviços para a primeira, por um valor bastante inferior àquele que teria de suportar caso os tivesse contratado.

Concluiu que a insolvente cedia a sua mão de obra a uma empresa especialmente relacionada e, na maioria dos anos, por um preço bastante inferior ao custo que suportava com esses mesmos trabalhadores, acumulou um passivo superior a € 430.000,00 junto das entidades públicas e gerou prejuízos superiores a € 109.000,00 em nove anos de existência; desde pelo menos o exercício de 2018 que a insolvente prosseguiu uma actividade muito deficitária que a conduziu a uma situação de falência técnica (superioridade do passivo face ao activo); no final de 2022 o seu capital próprio era superior a € 100.000,00.

O Ministério Público pronunciou-se indicando a factualidade já indicada pelo Sr. AI e emitiu parecer no sentido de a insolvência da EMP01... – Unipessoal, Ldª ser considerada culposa à luz do disposto no art.º 186º, n.ºs 2, alíneas a) e h), 3, alínea a) e 4, do CIRE e ser afectado pela qualificação o gerente AA.

Foi ordenada a notificação da devedora e a citação do requerido AA, que apresentaram oposição.

A primeira invocou, no que respeita ao fundamento de qualificação previsto na alínea g) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, que a insolvente tinha um cariz meramente produtivo e que a EMP02..., Ldª, tinha um cariz exclusivamente comercial; sujeitando-se às regras do mercado quanto aos preços (oferta e procura), a insolvente recebia as encomendas da empresa EMP02..., Ldª, com preços à peça e produzia as peças de roupa contratualizadas, recebendo o preço acordado pelas mesmas; a EMP02..., Ldª, com a introdução de algum incremento no preço pelo qual ia vender aquelas peças às suas clientes, que desse resposta ao serviço de comercialização que desenvolveu, procedia à transacção final, a insolvente não desenvolvia qualquer actividade de cedência de mão de obra; nos anos de 2019 a 2021 as encomendas realizadas à insolvente e os valores pagos não foram suficientes para cobrir gastos que a mesma teve em termos produtivos.

O requerido AA também deduziu oposição dizendo, em síntese, que não foram alegados os factos integradores das alíneas invocadas para a qualificação da insolvência como culposa e, muito menos, a sua imputabilidade, a título de dolo ou culpa grave, ao opoente, o que implica a ineptidão ou nulidade do parecer do AI, o que deveria determinar o indeferimento do incidente.

E no que respeita ao fundamento de qualificação previsto na alínea g) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, invocou que a EMP01...- Unipessoal, Lda era uma empresa que se dedicava à confecção de peças de vestuário para revenda, as quais eram, depois, comercializadas pela EMP02..., Lda, que tinha um cariz exclusivamente comercial, apenas adquirindo para revenda; a insolvente produzia, unicamente, sob encomenda, sendo o preço fixado à peça, como é prática habitual no sector, e deste modo, sujeito ao preço normal de mercado decorrente da oferta e da procura; o facto de os fornecimentos, nos anos de 2019 a 2021, não terem sido suficientes para cobrir os custos, deve-se, apenas, à falta de ocupação da capacidade produtiva da insolvente.

Foi proferido despacho saneador que julgou tabelarmente verificados os pressupostos processuais, consignou o objecto do litígio e os temas da prova e pronunciou-se quanto às provas requeridas.

Realizado o julgamento foi proferida sentença com o seguinte decisório:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido:
a) Qualificar como culposa a insolvência de EMP01...- Unipessoal, Lda, declarando AA, afetado pela mesma.
b) Fixar em 3 (três) anos o período da inibição de AA para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e condená-lo na restituição de eventuais bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
d) Condenar, ainda, o requerido AA a pagar aos credores o montante de € 2.000,00 de indemnização aos credores dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo Administrador da Insolvência nos termos do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Fixo o valor do incidente em €30.000,01.
Custas pelo afetado AA (…)”

O afectado interpôs recurso, pedindo a alteração da sentença quanto à decisão de facto e a sua revogação e substituição por outra que julgue não preenchidos os pressupostos da alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e qualifique como fortuita a insolvência, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

A – Ao decidir qualificar a insolvência como culposa, declarando o Requerido afectado pela mesma, o Tribunal a quo incorreu em erro de facto e de direito – pelo que o presente Recurso abrange, para além da reformulação e reapreciação do direito aplicável, também a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com fundamento em erro de julgamento.

QUANTO AO ERRO DE JULGAMENTO DE FACTO:

B – Na modesta opinião do ora Recorrente, foi incorrectamente julgado, pelo menos, o ponto C- dos “Factos Não Provados” – o que expressamente se impugna pelo presente recurso, pois está em total desconformidade com a prova testemunhal produzida em julgamento e aquela que consta dos demais elementos dos autos;
C – Com efeito, neste ponto o Tribunal a quo não apreciou em concreto as declarações de parte prestadas pelo Requerido, numa perspetiva crítica, com vista à descoberta da verdade material, de acordo com as regras da experiência e numa análise conjunta das demais provas produzidas, considerando que a prova por declarações de parte deverá merecer a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis;
D – Para além disso, o Tribunal a quo incorre em manifesto erro ao considerar que tais declarações de parte não foram “corroboradas por qualquer outra prova produzida", o que não corresponde à verdade;
E – As declarações de parte foram corroboradas, desde logo, pelas faturas-documentos n.º 11 a 59 - juntas com a sua oposição aos autos, mas também pelo depoimento da testemunha BB, contabilista da insolvente, depoimento que relativamente a esta matéria pura e simplesmente foi ignorado;
F – No seu depoimento, a testemunha confirmou que a insolvente era uma empresa produtiva, que se dedicava a confecção de peças de vestuário para por encomenda, e que a “EMP02..., Lda.” tinha um cariz exclusivamente comercial, adquirindo, para revenda, ao preço normal de mercado, fixado “à peça”, sem que qualquer inconveniente daí resultasse, seja para quem fosse;
G – Perante toda a prova produzida nos presentes autos, nomeadamente nas
declarações de parte e no depoimento da contabilista da insolvente, BB, em especial nas passagens supra transcritas, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para efeitos de Conclusões (Ficheiro: Diligencia_5391-23.2T8VNF-D_2024-09-12_15-07-37.mp3: passagem com início em 00:10:20 e fim em 00:14:40; passagem com início em 00:31:11 e fim em 00:33:05; passagem com início em 00:35:08 e fim em 00:37:15; Ficheiro: Diligencia_5391-23.2T8VNFD_ 2024-10-01_14-39-13: passagem com início em 00:11:27 e fim em 00:13:44; passagem com início em 00:25:37 e fim em 00:27:35), conjugados com os demais elementos dos autos (nomeadamente, pelas facturas- documentos n.ºs 11 a 59 juntas com a oposição) e pelas presunções judiciais decorrentes das regras da experiência comum e do normal acontecer, bem como em coerência com os demais factos dados como provados e face à inexistência de contraprova, a decisão que recaiu sobre este ponto, que ora se impugna, deve ser alterada, e, em consequência, substituída por outra que, eliminando o ponto C- dos “Factos Não Provados”, passe a considerar como facto provado o seguinte:
25º- A insolvente era uma entidade de cariz meramente produtivo e a sociedade EMP02..., Lda, tinha um cariz exclusivamente comercial.

QUANTO AO ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO:
H – Tendo em conta os factos dados como provados e a prova produzida em sede de audiência de julgamento, entendemos que, contrariamente ao que foi considerado pelo Tribunal a quo, a factualidade em causa não pode subsumir-se ao disposto na alínea g) do n.º do artigo 186.º do CIRE, antes exige a qualificação da insolvência como fortuita;
I – É que, ao decidir do modo como fez, a douta Sentença recorrida incorre, salvo o mais elevado respeito, em vários erros de julgamento;
J – O primeiro erro foi o de considerar, sem mais, que a exploração da insolvente foi no período em causa (note-se, que o período que o Tribunal a quo considerou relevante para efeitos de qualificação foi de Janeiro a finais de Agosto de 2023) deficitária – quando não há elementos objectivos e verificáveis nos autos que permitam retirar tal conclusão;
K – Face ao que resultou provado no ponto 23.º dos “Factos Provados” no pressuposto de que a insolvente não suportou, durante o período de Janeiro a Agosto de 2023, os seus próprios custos de funcionamento, parece-nos que a conclusão a que o Tribunal chega quanto a uma suposta exploração deficitária, não só está incorrecta como se nos afigura em contradição com o referido ponto 23.º dos “Factos Provados”, estando ainda desapoiada de qualquer outra prova.
L – Mesmo sem qualquer receita, não havendo custos de funcionamento, não podemos referir-nos, com o rigor que se exige de uma decisão judicial, a uma “exploração deficitária”, na acepção da alínea g) do n.º do artigo 186.º do CIRE
M – O segundo erro foi o de considerar que o ora Recorrente, a partir de Janeiro de 2023, e na prossecução de uma exploração que supostamente já seria deficitária, passou a agir com a específica intenção de satisfazer o interesse pessoal de uma terceira sociedade, a “EMP02..., Lda.”
N – Na perspectiva do Tribunal, o Recorrente permitiu a laboração da insolvente nos anos de 2020, 2021 (e até ao final de 2022, em que já foi possível obter resultados positivos) – anos em que aquela já prestava os seus serviços única e exclusivamente para a sociedade “EMP02..., Lda” – sem qualquer censura, ou seja, sem qualquer dolo ou intenção específica de satisfazer unicamente o eventual interesse dessa terceira sociedade, uma vez que, acreditava que a situação iria melhorar e que as vendas/encomendas da empresa iriam aumentar e que, por conseguinte, a insolvente voltaria a ter estabilidade económica e a capacidade para cumprir todas as suas obrigações.
O – Sucede que, a mesma conduta – que nenhuma censura mereceu do Tribunal a quo até ao final de 2022 – de um momento para o outro passou ser considerada “no interesse pessoal ou de terceiro”, por referência à mesma sociedade “EMP02..., Lda.” com quem a insolvente já se relacionava desde 2018; aparentemente, apenas pelo facto de a empresa ter laborado, entre Janeiro e Agosto de 2023, e não ter sido emitida nenhuma factura de venda de produto da insolvente; mas sem que o Tribunal tenha indagado, e por isso não resulta dos “Factos Provados”, qual o volume de produção que supostamente foi desenvolvido pela insolvente nesse período e qual o motivo pelo qual a mesma terá sido eventualmente facturada.
P – Haveria, certamente, explicações para tal, que não foram investigadas pelo Tribunal, por não terem sido consideradas necessárias ao apuramento da verdade; mas não existe prova suficiente nos autos para que se possa concluir que, a partir de Janeiro de 2023, só pelo simples facto de não ter sido emitida nenhuma factura de venda de produto da insolvente, o Recorrente tenha passado a agir com a intenção específica de prossecução da actividade da insolvente, já em situação de exploração deficitária, no interesse da “EMP02...”.
Q – O terceiro erro foi o de considerar que a actividade foi prosseguida no interesse da sociedade “EMP02..., Lda.”, quando não há qualquer elemento de prova nos autos que aponte nesse sentido.
R – Desde logo porque, não resulta sequer indiciado nos “Factos Provados”, qual o volume de vendas da referida “EMP02..., Lda.”, efectuadas com recurso à eventual produção da insolvente no período de Janeiro a Agosto de 2023,
S – Pelo que, o Tribunal pressupõe o interesse da dita “EMP02..., Lda.” apenas pela circunstância de se tratar de uma empresa “especialmente relacionada” com a insolvente e “criada pelo requerido para comercializar a produção da insolvente” - olvidando que, conforme não deixará de resultar provado na procedência da impugnação sobre a matéria de facto, a insolvente era uma entidade de cariz meramente produtivo e a sociedade “EMP02..., Lda.” tinha um cariz exclusivamente comercial, bem como, contrariando mesmo o que se considerou provado no ponto 13.º dos “Factos Provados”;
T – O que está em causa na alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE é uma actividade, deficitária é certo, que é exercida em nome do devedor e que faz reflectir no seu património os prejuízos inerentes, mas sem que para ele exista qualquer benefício, porquanto tal actividade não é exercida no seu interesse, mas sim no interesse pessoal dos respectivos administradores ou de terceira pessoa.
U – Tal não é o caso dos presentes autos, em que, conforme resulta dos factos provados, a presença da “EMP02..., Lda.” veio permitir que a manutenção da actividade da insolvente, na esperança de mais e melhores encomendas no futuro, tendo, assim, sido prosseguida no interesse da própria insolvente.
V – Não se verifica, assim, que tenha sido prosseguida uma exploração deficitária da sociedade Insolvente por parte do Recorrente, no seu interesse pessoal ou de terceiro, e nesses termos não está verificada a presunção constante da alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE;
W – A douta Sentença ora recorrida violou, entre outras, as disposições dos artigos 186.º n.ºs 1 e n.º 2 alínea g) do CIRE, do artigo 64.º n.º 1 alíneas a) e b) do CSC, e dos artigos 5.º n.º 2, 411.º, 466.º n.º 3, 607.º n.ºs 4 e 5 do CPC.

Não consta tenham sido apresentadas contra-alegações.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida, não estando o tribunal ad quem limitado pela iniciativa das partes quanto à qualificação jurídica dos factos (art.º 5º, n.º 3 do CPC) e, sendo esta diversa da decisão recorrida, seja respeitado o contraditório (cf. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 136).

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não sendo licito invocar, nos mesmos, questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida.

As questões que se impõe apreciar são:
- a decisão de facto é deficiente?
- o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento (de facto) quanto à matéria constante da alínea c) dos factos não provados, a qual deve ser considerada provada?
- o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento (de direito) ao julgar verificados os pressupostos da causa de qualificação de insolvência prevista na alínea g) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE?

3. Fundamentação de facto

3.1. O tribunal a quo considerou (transcrição):

Factos provados (relevantes para a decisão a proferir)
1 - Os autos de insolvência de EMP01...- Unipessoal, Lda, iniciaram-se a 11-9-2023, com a apresentação desta à insolvência.
2 - A 19-9-2023 foi proferida sentença, nos autos principais, transitada em julgado, a decretar a insolvência da aqui requerida EMP01...- Unipessoal, Lda.
3 - A situação de insolvência verificou-se desde o ano de 2019, data a partir da qual se verificou uma superioridade do seu passivo face ao ativo.
4 - Desde setembro de 2018 a sociedade insolvente prestou serviços única e exclusivamente para a sociedade “EMP02..., Lda”, sendo que as encomendas e os preços praticados foram, nos anos de 2020 a 2022, de 84.042,31, 120.137,23 e 131.106,76, respetivamente, e os seus gastos com pessoal nos mesmo anos foram de € 103.781,65, € 122.991,01 e €110.982,70.
5 - As receitas obtidas não foram suficientes para pagar os gastos com o pessoal, apresentando avultados prejuízos nos anos de 2020 e 2021: vendas e serviços prestados- 2020- € 84.042,31; 2021- € 120.137,23; gastos com pessoal- 2020- € 103.781,65; 2021- € 122.991, 01; resultado líquido- 2020- - € 32.444,86; 2021- - € 15.179,42.
6 - No final do exercício de 2022 o seu capital próprio negativo era de -€ 104.919,45.
7 - Nos períodos relativos aos exercícios de outubro de 2020 a 2022, a sociedade insolvente não entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira o montante devido a título de IRC no valor total de € 2.764,23.
8 - No período compreendido entre outubro de 2020 e novembro de 2022 a sociedade insolvente não entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira os montantes devidos a título de IVA no valor total de € 59.478,83 e o valor total de coimas, custas e OT.E.A. de € 27.942,63.
9 - No que respeita à Segurança Social a sociedade insolvente não entregou nos cofres da Segurança Social os montantes retidos a título de contribuições relativas aos meses de outubro de 2020 a agosto de 2023, no valor total de € 61.082,29, acrescido de juros no montante de € 6.371,49.
10 - No ano de 2023 a insolvente manteve o vínculo contratual das suas oito trabalhadoras e continuou a laborar normalmente até Agosto, mas sem ter emitido nenhuma fatura pelos serviços prestados.
11 - A EMP02... tem como sócios o gerente da insolvente e BB, contabilista da insolvente.
12 - No exercício de 2022, o último exercício antes da apresentação da insolvência, a insolvente teve resultados positivos.
13 - A insolvente sujeitou-se às regras de mercado da oferta e da procura quanto aos preços, recebendo as encomendas da EMP02..., Lda com preços à peça e produzia as peças de roupa contratualizadas, recebendo o preço acordado pelas mesmas.
14 - A insolvente dedicava-se à confeção de vestuário, sendo especializada na fabricação de t-shirts e sweatshirts.
15 - A empresa tinha uma capacidade instalada de produção de 500 unidades de t-shirts por dia e/ou de 370 unidades de sweatshirts por dia.
16 - Sendo capaz de gerar uma faturação anual entre os € 242.000,00 e os € 358.000,00.
17 - Apesar de ao longo dos últimos anos ter alcançado um progressivo crescimento das vendas, fruto da atividade comercial, as mesmas não foram suficientes para atingir o nível mínimo de produtividade por forma a preencher a sua capacidade instalada.
18 - As empresas do setor têxtil foram gradualmente perdendo a capacidade de competir com a China, a Tunísia e Marrocos.
19 - Nesses países a oferta da matéria prima e confeção dos produtos é, a larga escala, de menor custo, chegando a verificar-se diferenças de mais de 50% relativamente a Portugal.
20 - A insolvente negociou junto da AT e SS antes do período em causa nestes autos, o pagamento dos tributos em prestações de modo adequado à sua capacidade financeira à data.
21 - Tendo realizado inúmeros pedidos nesse sentido em datas anteriores a setembro de 2020.
22 - Pedidos que ou não chegavam a ser deferidos ou o eram sem dispensa ou isenção de garantia, não conseguindo a insolvente a suspensão dos processos.
23 - Entre Janeiro e Agosto de 2023 foi o requerido quem suportou os custos de funcionamento da insolvente, nomeadamente, o pagamento de alguns salários.
24 - A insolvente deve parte do salário de 2023 a uma sua trabalhadora.
*
Factos Não Provados

A - No período de 12-9-2020 a 12-9-2023 a insolvente não cumulou dívidas a outros credores, para além das dívidas fiscais.
B - Durante este período a insolvente não desenvolveu comportamentos que determinassem o agravamento da sua situação patrimonial.
C - A insolvente era uma entidade de cariz meramente produtivo e a sociedade EMP02..., Lda, tinha um cariz exclusivamente comercial.
D - A insolvente decidiu apostar em produtos de maior qualidade.
E – Devido a tendências do próprio mercado as marcas afastaram-se do clássico ciclo de encomendas, habitualmente de 4 coleções por ano.
F - Passando a adotar a chamada “fast fashion” ou moda rápida, na qual privilegiam os produtos mais baratos em detrimento dos de qualidade.
G - A Autoridade Tributária e a Segurança Social, nas reuniões que tiveram com a insolvente para estabelecerem planos de pagamento para as dívidas fiscais existentes perceberam que a insolvente tinha perspetivas de trabalho sólido e estava motivada para tentar dar a volta à situação.

3.2. Patologias da decisão de facto

A decisão de facto pode apresentar as seguintes patologias:
i) - conter asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito;
ii) - revelar-se excessiva;
iii) - ser deficiente, obscura ou contraditória;
iv) - carecer de ampliação;
v) - não estar devidamente fundamentada;
vi) - haver erro de apreciação da prova, isto é, pode o tribunal a quo ter dado como provados factos que face à prova produzida deviam ter sido considerados não provados ou vice-versa.

As patologias referidas nos pontos i) a v) são de conhecimento oficioso, na medida em que constituem aplicação do direito processual; a patologia referida no ponto vi) carece de ser invocada, mediante impugnação da decisão de facto, referida no art.º 640º do CPC.

3.3. Decisão de facto deficiente
3.3.1. Enquadramento jurídico
O n.º 2 do art.º 662º do CPC dispõe que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
(…)
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
(…)”

Quanto à deficiência da decisão de facto, impõe-se distingui-la da ampliação.

No Ac. do STJ de 12/05/2016, proc. 2325/12.3TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj considerou-se que é deficiente o enunciado linguístico que expresse um sentido incompleto do respetivo juízo probatório, nos seus próprios termos, não abrangendo naquele a factualidade ali relevante ou não cobrindo, de forma positiva ou negativa, todo o facto enunciado como provado.

Actualmente poderá afirmar-se que haverá deficiência quando o tribunal não se pronuncie sobre algum facto integrante dos temas da prova; será caso de ampliação da matéria de facto, quando tiver sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 357).

Quer a deficiência, quer a ampliação convoca o tema da seleção dos factos a enunciar, podendo afirmar-se que a mesma tem por objecto os factos relevantes para a boa decisão da causa.

Destarte, a decisão de facto será deficiente se não contemplar um juízo probatório de provado ou não provado sobre toda a realidade alegada relevante.

3.3.2. Em concreto
Por relevante para a decisão da causa e por constarem dos autos os pertinentes elementos probatórios, impõe-se aditar aos factos provados a seguinte factualidade:
           
4 A) A insolvente foi matriculada a 2014/09/08, tendo como objecto social “Confeção, comercialização e exportação de vestuário em série”, sócio único BB e gerente único AA, situação que se mantinha à data da inscrição no registo da declaração de insolvência (cfr. certidão da CRC junta 09/02/2024 na sequência do requerido pelo Ministério Público).
 
11 A) A EMP02..., Ldª foi constituída a 09 de Abril de 2018, tem como objecto social a confeção de artigos de vestuário em série e como gerente AA (cfr. anexo H junto com o Parecer do Sr. AI).

Finalmente o ponto 12 não esclarece o montante do resultado positivo.

Destarte, como consta do Parecer do Sr. AI e não foi impugnado pela devedora, altera-se o referido ponto (expurgando do que é irrelevante), o qual passa a ter a seguinte redacção:
12 – O resultado liquido do exercício de 2022 foi de € 2.118,26

3.4. Impugnação da decisão de facto
3.4.1. Enquadramento jurídico - Requisitos
Dispõe o art.º 640º do CPC, cuja epígrafe é “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
 (…)”

As exigências legais visam uma clara e inequívoca delimitação do objecto do recurso em matéria de facto e conferir efectividade ao princípio do contraditório, pois só na medida em que se sabe o que é que é objecto de impugnação, quais os meios de prova convocados e as razões porque se entende que tais meios de prova permitem uma alteração da decisão de facto, é que será possível à parte contrária exercer o contraditório.

Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 197-199, procede a uma análise das exigências legais da impugnação da decisão de facto, nomeadamente quanto ao “lugar” (alegações ou conclusões) em que as mesmas devem ser observadas e que são:
a) o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do n.º 1 do art.º 640º), com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões, dizendo em nota (335) que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, conforme dispõe o art.º 635º, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões;
b) deve ainda especificar, na motivação, os concretos meios de prova (alínea b) do n.º 1 do art.º 640º), constantes do processo (documentos ou confissões reduzidas a escrito) ou de registo (depoimentos que não foi possível gravar, mas que foram reduzidos a escrito, como sucede com cartas rogatórias) ou gravação nele realizada (depoimentos orais prestados em audiência que ficaram gravados em áudio ou vídeo), que no seu entender determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos objecto de impugnação;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação tenha por base, no todo ou em parte, a prova gravada, cumpre ainda ao recorrente indicar (alínea a) do n.º 2 do art.º 640º) com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere pertinentes, sob pena de imediata rejeição do recurso;
d) o recorrente deixará, expresso, na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do n.º 1 do art.º 640º), tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos (cfr. o AUJ n.º 12/2023, proferido no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 220, de 14 de novembro de 2023 e objecto de Declaração de retificação n.º 25/2023, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 230, de 28 de novembro de 2023, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
“Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”. ).

3.4.2. Em concreto
O recorrente:
i) indicou nas conclusões a pretensão de impugnação da factualidade enunciada na alínea c) dos factos não provados;
ii) indicou nas conclusões que a factualidade enunciada na alínea c) dos factos não provados devia ser considerada provada;
iii) indicou nas alegações os meios de prova com base nos quais entende que a solução deveria ter sido outra (declarações de parte do requerido e da testemunha BB);
iv) procedeu nas alegações, minimamente, à respetiva análise crítica;
v) e indicou, nas alegações, as passagens da gravação relevantes.

Destarte, a recorrente cumpriu de modo suficiente os requisitos da impugnação da decisão de facto.

3.5. Da modificabilidade da decisão de facto
3.5.1. Enquadramento jurídico
O art.º 662º do CPC, com a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, dispõe (sublinhado nosso):
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
(…)”

Está em causa saber como deve a Relação mover-se no domínio da modificabilidade da decisão de facto motivada pela impugnação da decisão de facto.

A apreciação, pela Relação, da decisão de facto impugnada não visa um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão (cfr. o Ac. do STJ de 01/07/2021, processo 4899/16.0T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).

O sentido deste normativo é o de impor à Relação o dever de modificar a matéria de facto, sempre que, havendo impugnação da mesma e no respeito do princípio do dispositivo quanto ao objecto do recurso, os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, entendendo-se que:
i) incumbe ao Tribunal da Relação formar o seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objecto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [cfr. nº 2, als. a) e b) do citado  art.º 662º],  à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC (cfr. o Ac. do STJ de 01/07/2021, processo 4899/16.0T8PRT.P1.S1 e em sentido semelhante os Ac.s do STJ de 14/09/2021, proc. 60/19.0T8ETZ.E1.S1, e de 13/04/2021, proc. 2395/11.1TBFAF.G2.S1 todos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj) assumindo-se o mesmo como tribunal de instância (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 334);
ii) no processo de formação de uma convicção autónoma, a Relação não está adstrita “aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido” (o Ac. do STJ, de 20.12.2017, proc. 3018/14.2TBVFX.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj), tendo plena aplicação o disposto no art.º 413º do CPC.

De referir, ainda, que, na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, caso a Relação proceda à alteração da mesma e se verifique ser necessário, em função da reapreciação conjunta e global dos factos, alterar algum facto não impugnado, pode a Relação fazê-lo a bem da coerência daquela decisão (cfr. Ac. do STJ de 29/04/2021, proc. 684/17.0T8ABT.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).
           
Importa, ainda, neste âmbito, ponderar o princípio da livre apreciação da prova e que também se aplica à Relação na reapreciação da prova.

O n.º 4 do art.º 607º do CPC dispõe que “ Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”

A análise crítica das provas a que se refere o n.º 4 citado, significa, em primeiro, uma análise conjugada de toda a prova produzida e, em segundo, uma análise segundo os critérios de valoração racional e lógica do julgador e da experiência, dispondo, a este respeito, o n.º 5 do art.º 607º que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, o que tem em vista a prova por declarações de parte, salvo na parte em que constituam confissão, a prova documental escrita a que falte algum dos requisitos exigidos na lei, a prova pericial, a prova por inspecção e a prova testemunhal, provas relativamente às quais a lei dispõe, expressamente (cfr.  artºs 466º n.º 3 do CPC e art.ºs. 366º, 389º, 391º e 396º do CC, respectivamente), que estão sujeitas à livre apreciação do tribunal.

O n.º 4, ao determinar que o juiz especifique os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, impõe que o juiz explique como se convenceu com as provas que se produziram, que motive a decisão de facto.

Assim, a motivação consiste em exarar o raciocínio do tribunal para uma dada decisão de facto e deve conter, para além da indicação dos concretos elementos probatórios que lograram aceitação por parte do tribunal, as razões ou motivos dessa aceitação.

São estes dois factores - o convencimento e a dificuldade de apurar a verdade - que se misturam e impõem que o juiz explique como se convenceu com as provas que à sua frente se produziram.

A este respeito refere Manuel Tomé Soares Gomes in Da Sentença Cível, CEJ, 2014, https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 29:
A motivação do julgamento de facto tem como matriz um discurso argumentativo problemático, parcelado na órbita de cada juízo probatório, sem prejuízo da sua compatibilização no universo da trama factual, e rege-se por razões práticas firmadas na análise dos resultados probatórios, à luz das regras da experiência comum ou qualificada e dos padrões de valoração (prova bastante e prova de verosimilhança) estabelecidos na lei.”

Por outro lado, e no que tange à formulação dos juízos probatórios, importa não esquecer que a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)… a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta,… A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436).

Ou seja: a prova judicial não tem que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca dos factos a provar; a prova judicial nunca é a realidade naturalística das coisas; o que a prova judicial deve determinar é um grau de probabilidade (do facto) tão elevado que baste para as necessidades da vida.

Como refere Manuel Tomé Soares Gomes, in ob. cit. pág. 25, “… a valoração da prova, por parte do tribunal, consubstancia[-se] na formação de juízos de razoabilidade sobre os factos controvertidos relevantes para a resolução do litígio, em função do material probatório obtido através da atividade instrutória, à luz das regras da experiência e da coerência lógica dum raciocínio pragmático sobre as ocorrências da vida. “

E mais adiante, pág. 26: “prova judicial tem como objetivo lograr uma compreensão suficientemente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso.“

Importa atentar que o disposto no art.º 607º também é aplicável à Relação nos termos do disposto no art.º 663º n.º 2 do CPC, com as devidas adaptações, porquanto, muito embora na eventual reapreciação da decisão da matéria de facto caiba à Relação formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, tal reapreciação não visa um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão relativamente aos concretos pontos de facto impugnados

E bem assim refere-se no Ac. desta RG de 04/04/2019, processo 1012/15.5T8VRL-AV.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg: “a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.“

E no Ac. desta RG de 11/05/2023, proc. 2499/20.0T8GMR.G1, consultável no mesmo sítio do anterior em cujo sumário consta:       
I - A apreciação pelo Tribunal da Relação da decisão de facto impugnada não visa um novo julgamento da causa, mas sim uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância com vista a corrigir eventuais erros de julgamento.

É, aliás, a interpretação que se coaduna com o n.º 1 do art.º 662º quando dispõe que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (neste sentido o Ac. desta RG de 04/02/2021, proc. 184/19.4T8AMR.G2, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).

Uma vez que é perante si que toda a prova é produzida, o juiz da 1ª instância encontra-se numa posição privilegiada para proceder à sua valoração, já que, através da imediação, tem acesso ao comportamento das partes e das testemunhas, o que lhe permite aferir, de forma cabal, da respectiva espontaneidade e credibilidade.

Tal não sucede com a Relação, que apenas dispõe do registo de som e não também de imagem.

Mas essa é uma consequência das opções assumidas pelo legislador.

E, como tem vindo a ser sublinhado (nomeadamente Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 349 e jurisprudência citada na nota 552, pág. 350), não pode ser invocado como óbice a uma plena e efectiva reapreciação dos meios de prova.

Como afirma Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 350 “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão. E para isso tem de pôr em prática as regras ditadas acerca da impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto.”

Destarte e em síntese incumbe à Relação apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto e formar a sua própria convicção, com base nos elementos que lhe estão acessíveis e motivar a decisão de alterar ou não alterar a decisão da 1ª instância, expressando a análise critica das provas produzidas, com base nas regras da experiência e normalidade.

3.5.2. Em concreto
O recorrente pretende se considere provada a factualidade consta da alínea C) dos factos não provados e que tem o seguinte teor:
C - A insolvente era uma entidade de cariz meramente produtivo e a sociedade EMP02..., Lda, tinha um cariz exclusivamente comercial.

Procedeu-se à audição integral da prova gravada.

Resulta da factualidade provada que:
4 A) A insolvente foi matriculada a 2014/09/08, tendo como objecto social “Confeção, comercialização e exportação de vestuário em série”, sócio único BB e gerente único AA (cfr. certidão da CRC junta com a petição inicial de insolvência).

11 A) A EMP02..., Ldª foi constituída a 09 de Abril de 2018, tem como objecto social a confecção de artigos de vestuário em série e como gerente AA (cfr. anexo H junto com o Parecer do Sr. AI).

11 - A EMP02... tem como sócios o gerente da insolvente e BB, contabilista da insolvente.

Desta factualidade resulta que as duas sociedades – a insolvente e a EMP02..., Ldª – tinham, em parte os mesmos sócios e o mesmo gerente, pelo que se impõe afirmar que estavam subordinadas a uma direcção unitária, com a possibilidade de, portanto, determinar a politica e estratégia económicas de ambas.

Neste contexto, tem-se como expressão da realidade o que resulta do depoimento da testemunha BB e das declarações de parte do requerido AA: a relação entre as duas empresas traduzia-se em à insolvente ser atribuída uma função exclusivamente industrial/produtiva e à sociedade EMP02..., Lda. ser atribuída uma função exclusivamente comercial, sendo que a primeira chegou mesmo a afirmar que a última acrescentava uma percentagem do preço pago à insolvente e sempre teve lucro.

Em face do exposto:
- elimina-se a alínea C) dos factos não provados;
- adita-se um ponto 11 B) aos factos provados com o seguinte teor:
11 B) A relação entre a insolvente e a EMP02..., Lda traduzia-se em ser atribuída à primeira uma função exclusivamente industrial/produtiva e à sociedade ser atribuída uma função exclusivamente comercial.

3.6. Tendo em consideração a análise anterior, a factualidade provada consolidada passa a ser:
1 - Os autos de insolvência de EMP01...- Unipessoal, Lda, iniciaram-se a 11-9-2023, com a apresentação desta à insolvência.
2 - A 19-9-2023 foi proferida sentença, nos autos principais, transitada em julgado, a decretar a insolvência da aqui requerida EMP01...- Unipessoal, Lda.
3 - A situação de insolvência verificou-se desde o ano de 2019, data a partir da qual se verificou uma superioridade do seu passivo face ao ativo.
4 A) - A insolvente foi matriculada a 2014/09/08, tendo como objecto social “Confeção, comercialização e exportação de vestuário em série”, sócio único BB e gerente único AA, situação que se mantinha à data da inscrição no registo da declaração de insolvência.
4 - Desde setembro de 2018 a sociedade insolvente prestou serviços única e exclusivamente para a sociedade “EMP02..., Lda”, sendo que as encomendas e os preços praticados foram, nos anos de 2020 a 2022, de 84.042,31, 120.137,23 e 131.106,76, respetivamente, e os seus gastos com pessoal nos mesmo anos foram de € 103.781,65, € 122.991,01 e €110.982,70.
5 - As receitas obtidas não foram suficientes para pagar os gastos com o pessoal, apresentando avultados prejuízos nos anos de 2020 e 2021: vendas e serviços prestados- 2020- € 84.042,31; 2021- € 120.137,23; gastos com pessoal- 2020- € 103.781,65; 2021- € 122.991, 01; resultado líquido- 2020- - € 32.444,86; 2021- - € 15.179,42.
6 - No final do exercício de 2022 o seu capital próprio negativo era de -€ 104.919,45.
7 - Nos períodos relativos aos exercícios de outubro de 2020 a 2022, a sociedade insolvente não entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira o montante devido a título de IRC no valor total de € 2.764,23.
8 - No período compreendido entre outubro de 2020 e novembro de 2022 a sociedade insolvente não entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira os montantes devidos a título de IVA no valor total de € 59.478,83 e o valor total de coimas, custas e OT.E.A. de € 27.942,63.
9 - No que respeita à Segurança Social a sociedade insolvente não entregou nos cofres da Segurança Social os montantes retidos a título de contribuições relativas aos meses de outubro de 2020 a agosto de 2023, no valor total de € 61.082,29, acrescido de juros no montante de € 6.371,49.
10 - No ano de 2023 a insolvente manteve o vínculo contratual das suas oito trabalhadoras e continuou a laborar normalmente até Agosto, mas sem ter emitido nenhuma fatura pelos serviços prestados.-
11 A) - A EMP02..., Ldª foi constituída a 09 de Abril de 2018, tem como objecto social a confecção de artigos de vestuário em série e como gerente AA.
11 - A EMP02... tem como sócios o gerente da insolvente e BB, contabilista da insolvente.
11 B) A relação entre a insolvente e a EMP02..., Lda traduzia-se em ser atribuída à primeira uma função exclusivamente industrial/produtiva e à sociedade ser atribuída uma função exclusivamente comercial.
12 – O resultado liquido do exercício de 2022 foi de € 2.118,26
13 - A insolvente sujeitou-se às regras de mercado da oferta e da procura quanto aos preços, recebendo as encomendas da EMP02..., Lda com preços à peça e produzia as peças de roupa contratualizadas, recebendo o preço acordado pelas mesmas.
14 - A insolvente dedicava-se à confeção de vestuário, sendo especializada na fabricação de t-shirts e sweatshirts.
15 - A empresa tinha uma capacidade instalada de produção de 500 unidades de t-shirts por dia e/ou de 370 unidades de sweatshirts por dia.
16 - Sendo capaz de gerar uma faturação anual entre os € 242.000,00 e os € 358.000,00.
17 - Apesar de ao longo dos últimos anos ter alcançado um progressivo crescimento das vendas, fruto da atividade comercial, as mesmas não foram suficientes para atingir o nível mínimo de produtividade por forma a preencher a sua capacidade instalada.
18 - As empresas do setor têxtil foram gradualmente perdendo a capacidade de competir com a China, a Tunísia e Marrocos.
19 - Nesses países a oferta da matéria prima e confeção dos produtos é, a larga escala, de menor custo, chegando a verificar-se diferenças de mais de 50% relativamente a Portugal.
20 - A insolvente negociou junto da AT e SS antes do período em causa nestes autos, o pagamento dos tributos em prestações de modo adequado à sua capacidade financeira à data.
21 - Tendo realizado inúmeros pedidos nesse sentido em datas anteriores a setembro de 2020.
22 - Pedidos que ou não chegavam a ser deferidos ou o eram sem dispensa ou isenção de garantia, não conseguindo a insolvente a suspensão dos processos.
23 - Entre Janeiro e Agosto de 2023 foi o requerido quem suportou os custos de funcionamento da insolvente, nomeadamente, o pagamento de alguns salários.
24 - A insolvente deve parte do salário de 2023 a uma sua trabalhadora.

4. Direito
4.1. Do incidente de qualificação de insolvência – enquadramento jurídico
O incidente de qualificação da insolvência foi introduzido no ordenamento jurídico português pelo CIRE, aprovado pelo DL 53/2004 de 18/03, tendo sido objecto de alterações relevantes pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.

Consta do ponto 40 do Preambulo do DL 53/2004:
“Um objectivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas. É essa a finalidade do novo “incidente de qualificação da insolvência”.
As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações.”

Destarte, o incidente de qualificação de insolvência destina-se a averiguar se e em que medida as razões que conduziram à insolvência correspondem a uma actuação censurável.

O art.º 185º do CIRE dispõe que a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.

A lei não define o que seja insolvência fortuita, pelo que esta se define por exclusão: será fortuita a insolvência que não seja qualificada como culposa.

O n.º 1 do art.º 186º dispõe que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

À luz do n.º 1 e em termos gerais, os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa são “um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo (nos três anos anteriores  ao início do processo de insolvência…)” (Soveral Martins, Um Curso de direito da Insolvência, Volume I, 3ª edição, pág. 548 e em sentido semelhante Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, pág. 577).

De notar, como refere o Ac. desta RG de 12/10/2023, proc. 1412/22.4T8VCT-E.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg que os referidos pressupostos são cumulativos.

O n.º 1 do art.º 186º só atribui relevância a uma “…actuação, dolosa ou com culpa grave,…”, excluindo, portanto, a culpa simples.

O CIRE não contém qualquer definição de culpa grave ou dolo, pelo que a este respeito há que ter em consideração as noções gerais de direito civil (Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680).

E ainda no que respeita ao n.º 1 do art.º 186º e à sua referência aos administradores, para efeitos do CIRE, o n.º 1 do art.º 6º do CIRE considera como tais:
a) Não sendo o devedor uma pessoa singular, aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente;
b) Sendo o devedor uma pessoa singular, os seus representantes legais e mandatários com poderes gerais de administração.
           
A locução do n.º 1 do art.º 186º do CIRE “… em consequência da…” remete-nos, em termos gerais, para a necessidade de verificação de um nexo de causalidade entre a “ …actuação, dolosa ou com culpa grave,…”  e a criação ou agravamento da insolvência.
           
No entanto, o regime de qualificação da insolvência compõe-se ainda de um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis), que facilitam aquela (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, pág. 300).

Do n.º 2 constam presunções inilidíveis e do n.º 3 presunções ilidíveis.

O n.º 2 do art.º 186º do CIRE dispõe:
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º

As diversas alíneas do n.º 2 podem ser agrupadas em três categorias que ajudam à sua compreensão:
i) actos que afectam, no todo ou em parte considerável o património do devedor – alíneas a) e c);
 ii) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros – alíneas b), d), e), f) e g);
iii) incumprimento de certas obrigações legais – alíneas h) e i) (cfr. Carvalho Fernandes, in A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor, in Themis, Edição Especial, 2005, pág. 95, nota 23 e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 152).

Dada a utilização as expressões “…considera-se sempre…” pelo n.º 2, estamos perante presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário (cfr. art.ºs 349º e parte final do n.º 2 do art.º 350.º, ambos do CC) (neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680, Carneiro da Frada, in A Responsabilidade dos Administradores na insolvência, in ROA, Ano 66, II, Lisboa, Setembro de 2006, pág. 653-702, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 151(.
Na jurisprudência e a título meramente exemplificativo, já que a jurisprudência sobre a questão é vasta, o Ac. do STJ de 6/10/2011, 46/07.8TBSVC-O.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj, sumariado da seguinte forma:
2. O nº 2 do art. 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa.

Daqui decorre que no âmbito do n.º 2 não só não é necessária, como é contra legem, qualquer concreta indagação quanto à existência de dolo ou culpa grave do devedor.

O elenco do n.º 2 é taxativo (Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680).

Por outro lado, o n.º 2, ao dispor que “Considera-se sempre culposa a insolvência…”, dá por preenchida a previsão normativa do nº 1, o que abarca o nexo de causalidade, ou seja, verificada alguma das previsões do n.º 2, não há lugar a discussão quanto à verificação do nexo de causalidade (cfr. nomeadamente José Manuel Branco, Responsabilidade patrimonial e insolvência culposa (Da falência punitiva à insolvência reconstitutiva), Almedina, 2015, pág. 13 e 32 e Menezes Leitão, Direito da insolvência, Almedina, 10ª edição, pág. 288).

Destarte, alegados e provados os factos base de alguma das condutas previstas no n.º 2, presume-se inilidivelmente a culpa grave e o nexo de causalidade de tal conduta para a criação ou o agravamento da situação de insolvência (cf. Ac. do STJ de 15/02/2018, proc.  7353/15.4T8VNG-A.P1.S1 consultável in www.dgsi.pt/jstj e o Ac. desta RG de 12/10/2023, proc. 1412/22.4T8VCT-E.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).

Relativamente ao n.º 3 do art.º 186º e depois de divergências doutrinais e jurisprudenciais, hoje a questão está resolvida na medida em que a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, alterou o citado n.º 3, passando o mesmo a dispor (negrito nosso): “Presume-se unicamente a existência de culpa grave…”
Com a introdução do inciso “unicamente” não pode, hoje, haver dúvidas, que o citado normativo estabelece, apenas, uma presunção ilidível de culpa grave e não, também, uma presunção de causalidade.

Em virtude do n.º 4, o n.º 2 também se aplica à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.

Resta referirmo-nos ao último pressuposto: que o comportamento determinante da qualificação tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo: “ …nos três anos anteriores  ao início do processo de insolvência…).”

O início do processo de insolvência verifica-se com a recepção do requerimento inicial pela secretaria judicial, como decorre do n.º 1 do art.º 259º do CPC, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE (cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 95 e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, pág. 300, nota (571)).

Mas importa ter em consideração o disposto no n.º 2 do art.º 4º do CIRE: todos os prazos que no CIRE têm como termo final o início do processo de insolvência, abrangem igualmente o período compreendido entre esta data e a da declaração de insolvência.

A este respeito referem Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 95:
“A sentença de insolvência (…) só ocorre em momento posterior, mais ou menos afastado no tempo (…).
Ora, o que o n.º 2 do preceito [em referência] intenta é desvalorizar este período  intermédio, equiparando a data da sentença declaratória da insolvência à data da abertura da instância, quando, no Código, se considerem prazos cujo termo final é fixado neste momento.
Isto significa que, quando a relevância de certo ato ou evento, para determinados efeitos, dependa da sua prática ou ocorrência até à data do início do processo, esse prazo é estendido até à prolação da sentença.
Não se segue daqui (…) que o momento da prolação da sentença substitui o do início do processo, nomeadamente para efeitos de alterar prazos de contagem.
O pensamento legislativo é claramente outro: o de conferir aos atos praticados e aos eventos ocorridos no período intermédio um tratamento tendencialmente idêntico àquele de que desfrutam no caso de se terem verificado até à propositura da acção.”

Assim o n.º 1 do art.º 186º, de per si, atribui relevância a uma “…actuação, dolosa ou com culpa grave,…”  que tenha ocorrido “….nos três anos anteriores” à data da entrada do requerimento inicial e, conjugado com o n.º 2 do art.º 4º, atribuiu ainda relevância a uma “…actuação, dolosa ou com culpa grave,…”  que tenha ocorrido entre a data de início do processo e a data da insolvência.

Por outro lado, muito embora nem o corpo do n.º 2, nem as alíneas a) a h) estabeleçam um limite temporal para a relevância dos factos nelas previstos (a única que tem um limite temporal é a alínea i) – “…até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º”), impõe-se a sua articulação com o n.º 1 e, assim, há-de atender-se ao prazo nele estatuído (cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 681).
Importa finalmente ter em consideração que “[n]ão está em jogo um prazo de prescrição ou de caducidade de determinado direito. Há é uma modelação temporal da situação de responsabilidade relevante. Ela não carece de ser invocada, sendo, como todo o direito objectivo, de conhecimento oficioso.” (negrito nosso) (cf. Carneiro da Frada in A responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA, Ano 66, II, Setembro 2006, pág. 690-691).

4.2. Alínea g) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE
Apenas releva analisar a hipótese normativa contemplada nesta alínea na medida em que foi a aplicada na sentença recorrida.

Dispõe esta alínea:
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

O que se exige é que:
i) se verifique uma exploração deficitária nos três anos anteriores à declaração de insolvência.
A exploração será deficitária se as receitas forem inferiores aos custos.
Não relevam as razões da exploração deficitária. Interessa a situação objectiva.
ii) que essa exploração seja prosseguida pelos administradores, de direito ou de facto, no seu interesse pessoal ou de terceiro;
Subjacente a uma decisão de cariz económico há uma determinada racionalidade.
Tratando-se de uma sociedade comercial, em princípio a racionalidade subjacente a cada decisão será o prosseguimento do interesse da sociedade
Na hipótese normativa isso não sucede: o racional subjacente à decisão é o prosseguimento de um interesse pessoal ou de terceiro.
Destarte, o que releva é verificar se o prosseguimento da exploração deficitária se traduz, objectivamente, no prosseguimento de um interesse pessoal ou de terceiro.
Não é necessário que o benefício, a utilidade, tenha de ter uma expressão económica concreta, já que os interesses do administrador ou de um terceiro, podem ser os mais variados – tantos quantos a criatividade no âmbito da vida económica e a utilização dos instrumentos jurídicos permitam –, bem podendo ser um interesse imaterial.
iii) não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
Tem-se em vista, por um lado, o conhecimento exigível a um administrador medianamente diligente e criterioso colocado naquela situação e, por outro, o normal fluir das coisas.

4.3. Em concreto
No caso é evidente a exploração da insolvente era deficitária tendo ficado provado que:
4 - Desde setembro de 2018 a sociedade insolvente prestou serviços única e exclusivamente para a sociedade “EMP02..., Lda”, sendo que as encomendas e os preços praticados foram, nos anos de 2020 a 2022, de 84.042,31, 120.137,23 e 131.106,76, respetivamente, e os seus gastos com pessoal nos mesmo anos foram de € 103.781,65, € 122.991,01 e €110.982,70.
5 - As receitas obtidas não foram suficientes para pagar os gastos com o pessoal, apresentando avultados prejuízos nos anos de 2020 e 2021: vendas e serviços prestados- 2020- € 84.042,31; 2021- € 120.137,23; gastos com pessoal- 2020- € 103.781,65; 2021- € 122.991, 01; resultado líquido- 2020- - € 32.444,86; 2021- - € 15.179,42.
6 - No final do exercício de 2022 o seu capital próprio negativo era de -€ 104.919,45.
7 - Nos períodos relativos aos exercícios de outubro de 2020 a 2022, a sociedade insolvente não entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira o montante devido a título de IRC no valor total de € 2.764,23.
8 - No período compreendido entre outubro de 2020 e novembro de 2022 a sociedade insolvente não entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira os montantes devidos a título de IVA no valor total de € 59.478,83 e o valor total de coimas, custas e OT.E.A. de € 27.942,63.

É certo que em 2022 a diferença entre os custos com pessoal e as receitas é positiva em € 2.118,26 (cfr. ponto 5 dos factos provados).

No entanto tal valor é insignificante perante os prejuízos acumulados, de tal modo que, como provado no ponto 6, no final do exercício de 2022 o capital próprio da insolvente era de - € 104.919,45.

Ou seja: a exploração da insolvente era de tal modo deficitária que não só não pagava a totalidade dos custos com pessoal, como não pagava os impostos nem as contribuições para a segurança social.

Como já se deixou dito, é irrelevante saber porque é que era deficitária. O que releva é, única e exclusivamente, saber se era objectivamente deficitária.

E apesar de ter deixado de cumprir com as suas obrigações para com a segurança social, com a Autoridade Tributária e haver a evidência, a partir de 2020, de que os custos com pessoal eram superiores às receitas, o gerente da sociedade prosseguiu com essa exploração até 2023.

Cabe agora verificar se a prossecução dessa actividade foi feita no interesse da EMP02..., Ldª.

Verifica-se, em primeiro lugar que:
4 A) A insolvente foi matriculada a 2014/09/08, tendo como objecto social “Confeção, comercialização e exportação de vestuário em série”, sócio único BB e gerente único AA (cfr. certidão da CRC junta com a petição inicial de insolvência).

11 A) A EMP02..., Ldª foi constituída a 09 de Abril de 2018, tem como objecto social a confecção de artigos de vestuário em série e como gerente AA (cfr. anexo H junto com o Parecer do Sr. AI).

11 - A EMP02... tem como sócios o gerente da insolvente e BB….

Resulta desta factualidade que a única sócia da insolvente é, também sócia da EMP02... e o único gerente da insolvente (que não é sócio da mesma) é sócio da EMP02... e também seu único gerente.

Por outro lado, ficou provado que:
11 B) A relação entre a insolvente e a EMP02..., Lda traduzia-se em ser atribuída à primeira uma função exclusivamente industrial/produtiva e à sociedade ser atribuída uma função exclusivamente comercial.

Neste contexto, muito embora estejamos perante duas sociedades com personalidade jurídica própria – a insolvente e a EMP02... –, as mesmas estavam subordinadas a uma direcção unitária, com o poder de determinar a politica e estratégia económicas de ambas, de tal forma que a uma foi atribuída a função industrial e a outra a função comercial.

Além disso a insolvente ficou numa situação de dependência económica em relação à EMP02... pois ficou provado que:
4 - Desde setembro de 2018 a sociedade insolvente prestou serviços única e exclusivamente para a sociedade “EMP02..., Lda”…

Mas, mais do que uma situação de dependência, há uma verdadeira manipulação da insolvente pela EMP02...
10 - No ano de 2023 a insolvente …. continuou a laborar normalmente até Agosto, mas sem ter emitido nenhuma fatura pelos serviços prestados.

Tendo ficado provado que desde 2018 a insolvente trabalhava exclusivamente para a EMP02..., há-de entender-se que em 2023 a situação não foi diferente.

Prosseguindo.

Em resultado de estarmos perante duas sociedades com personalidade jurídica (própria), todos os custos inerentes à sua actividade produtiva - com trabalhadores – e todos os encargos resultantes da mesma – com impostos e segurança social - bem como todo o risco de ter prejuízos, estavam exclusivamente na esfera jurídica da insolvente.

A EMP02... não tinha nem aqueles custos, nem os inerentes encargos com a Segurança Social, nem corria o risco de ter prejuízos, pois em virtude da personalidade jurídica, não tinha qualquer responsabilidade sobre uns e outros (custos e encargos).

Sucede que, como já vimos, a exploração da insolvente era de tal modo deficitária que não só não pagava a totalidade dos custos com pessoal, como não pagava de forma regular os impostos nem as contribuições para a segurança social.

Como se referiu no Ac. desta RG de 29/02/2024, proc. 6214/22.5T8VNF-C.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg (acórdão em que foi Relatora a aqui Exma Desembargadora 2ª Adjunta):
A sociedade existe para gerar lucro, integrando o tecido empresarial e económico de que também faz parte o próprio Estado.
O que não será legítimo é a manutenção de uma atividade empresarial com base no incumprimento das obrigações fiscais e contributivas e perante a Segurança Social, situação violadora do princípio da igualdade tributária, e dos deveres de todos os contribuintes/cidadãos perante o Estado.

Numa situação normal, se a partir de determinada altura e de forma sistemática as receitas de uma sociedade não cobrem as despesas, acumulando prejuízos, carece de qualquer lógica ou racionalidade económica manter a empresa em actividade e continuar a acumular prejuízos e dívidas, nomeadamente em impostos e segurança social, afectando, desse modo, a comunidade em geral.

E isto é tanto mais assim quanto ficou provado que:
15 - A empresa tinha uma capacidade instalada de produção de 500 unidades de t-shirts por dia e/ou de 370 unidades de sweatshirts por dia.
16 - Sendo capaz de gerar uma faturação anual entre os € 242.000,00 e os € 358.000,00.

Porém, também ficou provado que:
17 – Apesar de ao longo dos últimos anos ter alcançado um progressivo crescimento das vendas, fruto da atividade comercial, as mesmas não foram suficientes para atingir o nível mínimo de produtividade por forma a preencher a sua capacidade instalada.

Ou seja: não só em virtude da acumulação de prejuízos, mas também em face da impossibilidade de preencher a capacidade produtiva, a manutenção da insolvente numa situação de exploração deficitária carecia de qualquer lógica ou racionalidade económica.

A menos que a manutenção desse estado de coisas importasse benefício para alguém.

Uma vez que as duas sociedades (a que produz e a que comercializa) têm, em parte, os mesmos sócios e têm a mesma gerência, estando, portanto, subordinadas a uma direcção unitária, a qual tem o poder de determinar a politica e estratégia económicas de ambas e em que, portanto, não há verdadeira independência da sociedade que produz, a manutenção em actividade desta última, apesar de se encontrar há muito numa situação de exploração deficitária, só pode ser entendida, de acordo com as regras da lógica e normalidade, como sendo (objectivamente) no interesse da sociedade que comercializa, pois obtêm os produtos que vende, sem ter os encargos e os prejuízos da sociedade que produz, podendo proceder à revenda com lucro.

Ainda no sentido de que a manutenção do referido estado de coisas só podia ser no interesse da EMP02..., militam dois factos:
- a manutenção do vínculo contratual com as oito trabalhadoras em 2023 (ponto 10 dos factos provados);
- o pagamento, pelo próprio gerente, dos salários no ano de 2023 (ponto 23 dos factos provados).

É que, se a insolvente deixasse de pagar às suas trabalhadoras, as mesmas tinham a possibilidade que resolver os contratos e, dessa forma, aquela deixaria de produzir e a EMP02... ficava sem produção para vender.

E tal compreensão surge mais nítida quando compaginado com o facto de a insolvente não pagar de forma regular os impostos nem as contribuições para a segurança social.

Finalmente, o afectado AA não podia deixar de saber que a manutenção da situação deficitária da ora insolvente, tal como acima retratada, mais tarde ou mais cedo, conduziria, como conduziu, à insolvência.

Em face de tudo o exposto o recurso deve ser julgado improcedente.

6. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem a 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação.
*
Custas pelo recorrente – art.º 527º n.º 1 do CPC
*
Notifique-se
*
Guimarães, 24/04/2025
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
           
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Alexandra Maria Viana Parente Lopes
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade