Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
882/23.8T8BRG.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO LABORAL
RECURSO EXCEPCIONAL
MELHORIA NA APLICAÇÃO DO DIREITO
INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
ACORDOS DE COOPERAÇÃO CELEBRADOS COM O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL
I. P.
LEGISLAÇÃO APLICÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
O recurso é manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito, nos termos do art. 49.º, n.º 2 do RPCOLSS, quando esteja em causa uma questão de direito autónoma, controversa e com relevante aplicação prática.
Quanto à “promoção da uniformidade da jurisprudência” pressupõe-se uma inequívoca divisão na jurisprudência sobre uma questão essencial, visando-se a coerência e segurança do sistema jurídico.
Não constitui erro grosseiro, antes se afigurando interpretação de acordo com os princípios fundamentais do direito, designadamente constitucionais; a interpretação do artigo 38.º do DL 64/2007, no sentido de que as instituições que hajam celebrado acordos de cooperação nos termos da portaria 196-A/2015 de 1 de julho, devem cumprir as normas relativas às condições e regras de funcionamento, designadamente cumprindo a legislação em vigor para a resposta social objeto do acordo.
Decisão Texto Integral:
Santa Casa da Misericórdia de ..., pessoa coletiva n.º ...50, com sede na Rua ..., em ..., interpôs recurso ao abrigo do artigo 49º, 2 da L. 107/209, da decisão proferida pelo Juízo do Trabalho ..., que a condenou na coima única de 2.500 €, pela prática de:

- pelo facto praticado a 10.04.2018, na resposta social de ERPI, p. e p. pelo art. 39.º-B al, f) do D.L n.º 64/2007, de 14.03, alterado e republicado pelo D.L n.º 33/2014, de 4.03, conjugado com a al. b) do art. 39.º-E, a coima de 2.500,00 Eur. em face da redução operada por força do disposto no n.º 1 do art. 39.º-G;
- pelo facto praticado a 19.04.2018, na resposta social de creche 2, p. e p. pelo art. 39.º-B al, c) do D.L n.º 64/2007, de 14.03, alterado e republicado pelo D.L n.º 33/2014, de 4.03, conjugado com a al. b) do art. 39.º-E, a coima de 2.500,00 Eur. em face da redução operada por força do disposto no n.º 1 do art. 39.º-G.
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- Apresentou as seguintes conclusões:
1. No âmbito do Processo supra referenciado, foi a arguida/requerente notificada da douta sentença proferida que julgou o recurso de impugnação judicial parcialmente procedente e, em
consequência, fixou a coima única a pagar em 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros).
2. Contudo, entende a Requerente que a douta Sentença proferida se encontra viciada de erro
jurídico grosseiro, notório e incomum, sendo o presente recurso necessário para a melhoria da
aplicação do direito.

VEJAMOS,
- Do erro jurídico notório, grosseiro e incomum
3. A Requerente, no âmbito das respostas sociais a que se dedica, nomeadamente, nas Valências ERPI (Estrutura Residencial para Pessoas Idosas) e Creche, possui Acordos de Cooperação celebrados com o Instituto de Segurança Social IP (ISS), Centro Distrital de Segurança Social de ...,
4. Acordos estes que definem as linhas gerais e direitos e deveres transversais aplicáveis às partes subscritoras, obrigadas na sua execução, inclusive a afetação da Direção Técnica e a afetação do Pessoal, neste incluindo Ajudantes de Ação Direta /Ajudantes de Lar e Enfermeiros.
5. Ora, o Recurso agora interposto incide sobre a interpretação e análise jurídica do artigo 38.º do DL 64/2007.
6. Prescreve esta disposição legal, na redação anexa ao DL 33/2014, que “os estabelecimentos das IPSS e de outras Instituições sem fins lucrativos abrangidos por Acordos de Cooperação celebrados com o ISS, IP., estão sujeitos às condições de funcionamento, às obrigações e regime sancionatório estabelecidos no presente decreto-lei, bem como nos respetivos diplomas específicos, não lhes sendo, porém, aplicáveis, enquanto os acordos vigorarem, as disposições de licenciamento da atividade constantes do capitulo III”,
7. Ou seja, havendo Acordos de Cooperação em vigor, são estes que prevalecem e regulam as condições de licenciamento daquele capítulo III do próprio DL 64/2007 e, especificamente para as ERPI, as condições de licenciamento da Portaria 67/2012, nomeadamente, a afetação da Direção Técnica e, além do mais, a afetação de Ajudantes de Ação Direta /Ajudantes de Lar e Enfermeiros.

ASSIM,
8. Considerando que a Requerente possui Acordo de Cooperação celebrado com o Instituto de
Segurança IP aplicável à sua ERPI – a sentença julga esse facto provado –, em aplicação do estipulado no artigo 38.º do DL 64/2007, deveria o Tribunal a quo ter concedido prevalência aos
Acordos de Cooperação celebrados, em detrimento dos normativos específicos referidos no Capítulo III do próprio DL 64/2007 e na Portaria 67/2012, que fazem a regulamentação específica de cada resposta social.

ACRESCE AINDA,
9. Além de erro notório, grosseiro e incomum, não se concebe a incongruência e contradição na aplicação da direito verificada na douta Sentença proferida (interpretação e aplicação do artigo 38.º do DL 64/2007), pois, se relativamente à ERPI, a MM.ª Juiz a quo não concedeu a legal prevalência aos Acordos de Cooperação celebrados, já quanto à Creche 2 reconheceu “que a Instituição observou o estipulado no acordo de cooperação”.
– Da melhoria de aplicação do Direito
10. Além de erro jurídico notório, incomum e grosseiro, cuja revisão se figura essencial para a correta aplicação do Direito,
11. Sempre se colocará em causa o âmbito e alcance da Sentença proferida.
12. Com efeito, considera a Recorrente que a Sentença proferida, ao julgar parcialmente o recurso de impugnação judicial e fixar a coima única no montante de 2.500€ – reduzindo a coima impugnada em escassos 200€ – é manifestamente injusta, não apenas pelo efeito de apenas admitir o recurso excecional do artº 49º. 2 da Lei 107/2009,
13. mas ainda porque premeia o Instituto de Segurança Social IP com a punição da Recorrente, em favor do próprio ISS por esta cumprir o Acordo de Cooperação celebrado com o próprio Instituto, aliás, por “adesão” às cláusulas impostas pelo próprio ISS.

PELO EXPOSTO,
A Sentença proferida pelo Tribunal a quo não espelha uma mera discordância quanto à aplicação do direito, mas sim erro notório e também notoriamente injusto na aplicação de direito, impondo-se a necessidade da sua melhor aplicação

Neste tribunal o Exmº PGA pugna pela não admissão do recurso, por não verificação dos requisitos do artigo 49º 2 da L. 107/2009.
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Questão prévia:
Importa verificar da admissibilidade do recurso nos termos do artigo 50º nº 3 do RPACOLSS.
O artigo 49.º do RGCOLSS (aprovado pela L. 107/2009 de 14/9) refere:
Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39.º
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.
No caso presente dado o valor das coimas o recurso apenas nos termos do nº 2 pode eventualmente ser admitido.
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A recorrente refere que o recurso tem como objeto a melhoria da aplicação do direito, designadamente a incorreta interpretação e aplicação das normas legais, nomeadamente o artigo 38.º do DL 67/2009, na redação anexa ao DL 33/2014, em respeito pelo artigo 49.º, n.º 2 da Lei 107/2009.
Refere a aludida norma, constante do capitulo “Disposições especiais para os estabelecimentos desenvolvidos no âmbito da cooperação”:
Artigo 38.º
“Regime aplicável Os estabelecimentos das instituições particulares de solidariedade social e de outras instituições sem fins lucrativos abrangidos por acordos de cooperação celebrados com o Instituto da Segurança Social, I.P., estão sujeitos às condições de funcionamento, às obrigações e regime sancionatório estabelecidos no presente decreto-lei, bem como nos respetivos diplomas específicos, não lhes sendo, porém, aplicáveis, enquanto os acordos vigorarem, as disposições de licenciamento da atividade constantes do capítulo III.”
Sustenta a recorrente a errada aplicação da norma referindo que em aplicação do estipulado no artigo 38.º do DL 64/2007, deveria o Tribunal a quo ter concedido prevalência aos Acordos de Cooperação celebrados, em detrimento dos normativos específicos referidos no Capítulo III do próprio DL 64/2007 e na Portaria 67/2012, que fazem a regulamentação específica de cada resposta social.
Tem-se entendido que o recurso é manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito, quando esteja em causa uma questão de direito autónoma e amplamente controversa, com relevante aplicação prática. – Ac. RG de 19/5/2022, processo nº 1737/21.6T8VCT.G1. Refere-se no acórdão:
 “A lei exige para aceitação do recurso que o mesmo seja manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito (ou à promoção da uniformidade da jurisprudência), não bastando que seja conveniente ou sequer necessário.
Assim, julga-se que está pressuposto que esteja em causa uma questão de direito autónoma e que, por ser amplamente controversa na doutrina e na jurisprudência, com relevante aplicação prática, apresente uma dignidade ou importância que extravase o caso concreto, de tal forma que se imponha o seu melhor esclarecimento pela instância superior, com vista a propiciar um contributo qualificado no seu tratamento e aplicação a título imediato e em casos idênticos futuros”.
No Ac. RG de 27/4/2023, processo nº 3456/22.7T8GMR.G1, refere-se que tem de ter sido cometido um erro grosseiro incomum, ou uma errónea aplicação flagrante do direito, nele não se incluindo a mera discordância quanto à interpretação e aplicação do direito pelo tribunal recorrido; e no Ac. da RG de 29/2/2022, processo nº 6589/21.3T8GMR.G1, refere-se que “quanto à “promoção da uniformidade da jurisprudência” pressupõe uma inequívoca divisão na jurisprudência sobre uma questão essencial e visa a coerência e segurança do sistema jurídico. Não se abrange a mera discordância do sujeito processual relativamente à sentença ainda que esta não faça a interpretação do direito mais desejável, situação reservada ao recurso ordinário se a lei o permitir.  
É de aceitar o recurso quando “na decisão recorrida o erro avultar de forma categórica e, pela dignidade da questão, pelos importantes reflexos materiais que a solução desta comporte para os por ela visados e generalidade que importe na aplicação do direito, seja inexoravelmente preciso corrigir aquele” -   RG de 22-4-2020, processo nº 2480/19.1T8GMR.G1.
A propósito do RGCO no Ac. STA de 21-9-2022, processo nº 01940/19.9BEBJA, refere-se:
“Os dois fundamentos possíveis deste recurso são, nos termos da norma, a melhoria da aplicação do direito e/ou a promoção da uniformidade da jurisprudência. Portanto, o recurso previsto no artº.73, nº.2, do R.G.C.O., somente pode ter por fundamento questões de direito.
A "melhoria da aplicação do direito" está em causa quando se trate de uma questão jurídica que preencha os seguintes três requisitos:
1-Ser relevante para a decisão da causa;
2-Ser uma questão necessitada de esclarecimento e;
3-Ser passível de abstração, isto é, ser uma questão que permite o isolamento de uma ou mais regras gerais aplicáveis a outros casos práticos similares.
Por outras palavras, a citada expressão "melhoria da aplicação do direito" deve interpretar-se como abrangendo todas as situações em que existem erros claros na decisão judicial, situações essas em que, à face de entendimento jurisprudencial amplamente adotado, repugne manter na ordem jurídica a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito.
Já a "promoção da uniformidade da jurisprudência" está em causa quando a sentença recorrida consagra uma solução jurídica que introduza, mantenha ou agrave diferenças dificilmente suportáveis na jurisprudência. O simples erro de direito não é bastante, sendo necessário que o erro tenha inerente um perigo de repetição. Este perigo de repetição verifica-se, designadamente, quando se aplicam sanções muito diferenciadas a situações de facto similares ou quando se violam princípios elementares do direito processual (cfr. ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/09/2019, rec.1188/18.0BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/01/2020, rec.287/16.7BEMDL; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 14/10/2020, rec.765/16.8BELRS; ac.S.T.A.-2ª. Secção, 2/12/2020, rec.57/20.8BEPRT; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 7/04/2021, rec. 256/15.4BEBJA; Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, pág.303 e seg.; Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.538).”
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Indo ao caso, a Recorrente sustenta que o recurso é manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito, invocando erro grosseiro na aplicação/interpretação do artigo 38.º do DL 64/2007. Sustenta que da norma resulta a prevalência dos Acordos de Cooperação celebrados, em detrimento dos normativos específicos referidos no Capítulo III do próprio DL 64/2007 e na Portaria 67/2012, que fazem a regulamentação específica de cada resposta social.
Não se afigura, tendo em conta até normas e princípios constitucionais – relativos à igualdade e proibição do arbítrio – que ocorra o invocado erro grosseiro.
Da leitura da norma resulta que é dispensado o processo de licenciamento, não parecendo pretender-se criar a possibilidade de existência no “mercado” (social) de” diferentes regras”, estipuladas de forma casuística pela autoridade administrativa nas contratações no âmbito da cooperação, criando situações de desigualdade perante a lei.
Assim, a portaria n.º 196-A/2015 de 1 de julho, que define os critérios, regras e formas em que assenta o modelo específico da cooperação, refere no artigo 6º:
1.º São requisitos específicos para a concretização da cooperação:

b) Existência de instalações para o funcionamento dos serviços e equipamentos em conformidade com os diplomas em vigor e em instrumentos regulamentares aprovados pelos membros do Governo”
Sendo uma das obrigações do ISS, I.P., assegurar o cumprimento da legislação em vigor para a resposta social objeto do acordo – artigo 11º, al. f); e da instituição, cumprir essas normas – artigo 12º.
A norma do artigo 20º da portaria refere expressamente, a propósito do licenciamento:
1.º O funcionamento da resposta social fica legitimado com a celebração do acordo de cooperação.
2.º Durante a vigência do acordo de cooperação a instituição fica dispensada de observar o processo de instrução relativo à obtenção da licença de funcionamento necessária à prestação do serviço e estabelecimento de apoio social.
Assim, pode concluir-se que quanto ao  mais, a instituição, está sujeita às regras de funcionamento estipuladas na lei, como aliás resulta do referenciado artigo 48º, primeira parte - “Os estabelecimentos das instituições particulares de solidariedade social e de outras instituições sem fins lucrativos abrangidos por acordos de cooperação celebrados com o Instituto da Segurança Social, I.P., estão sujeitos às condições de funcionamento, às obrigações e regime sancionatório estabelecidos no presente decreto-lei, bem como nos respetivos diplomas específicos” -
Veja-se ainda o artigo 39º do Decreto lei referenciado:
1 - A celebração de acordos de cooperação com as instituições referidas no artigo anterior depende da verificação das condições de funcionamento dos estabelecimentos objeto dos acordos, nomeadamente das referidas no artigo 12.º, independentemente dos demais requisitos estabelecidos nos diplomas especialmente aplicáveis aos acordos de cooperação.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior é elaborado relatório pelos serviços competentes do Instituto da Segurança Social, I.P., que confirme a existência de condições legais de funcionamento.
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Assim, não se demonstra nem verifica qualquer erro grosseiro, nem qualquer controvérsia relevante sobre a interpretação da norma.
Em conclusão, não se verificam os requisitos exigidos pelo art. 49.º, n.º 2 do regime processual das contraordenações laborais e de segurança social, para admissão excecional do recurso nos termos desse normativo.

DECISÃO:

Nestes termos, acorda-se em não aceitar o recurso da arguida.
Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

19-12-2023

Antero Veiga
Leonor Barroso
Francisco Pereira