Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1766/20.7T8VCT-AK.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: SENTENÇA
NULIDADES DE SENTENÇA
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
RETIFICAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, bem como uma proposta de graduação dos credores reconhecidos, que tenha por referência a previsível composição da massa insolvente
II - Nessa hipótese, não havendo impugnações por parte dos interessados, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que o juiz se limita a homologar a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e a graduar os créditos em atenção ao que consta dela, podendo ainda, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar esta.
III - Apenas assim não deve suceder se a lista e enfermar de erro manifesto, de natureza formal ou substantiva, o que constitui um afloramento do princípio do inquisitório justificado pela necessidade de salvaguardar a par conditio creditorum.
IV - O erro, para ser manifesto, deve resultar da mera análise da lista apresentada pelo administrador da insolvência e dos elementos objectivos disponíveis nos autos.
V - Se o juiz proferir sentença de homologação da lista e da proposta de graduação de créditos só pode voltar a pronunciar-se sobre a questão para retificar erros materiais, suprir nulidades ou reformar a sentença, devendo observar o disposto, a propósito de cada uma dessas situações, nos arts. 614.º a 617.º do CPC.
VI - O erro que permite a retificação nos termos referidos é o erro na declaração que se apresente manifesto de modo que quem lê o texto percebe claramente qual o seu efetivo sentido.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1). No dia 19 de junho de 2020, EMP01..., SA, apresentou-se à insolvência, a qual veio a ser declarada por sentença de 23 de junho de 2020.
Decorrido o prazo fixado para a reclamação de créditos, o administrador judicial nomeado apresentou, no dia 7 de setembro de 2020, por apenso, a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos.
Essa lista foi objeto de impugnação por parte de EMP02..., SARL, EMP03... & C.ª, SA, EMP04..., Lda., e Instituto de Segurança Social, IP, com fundamento na indevida exclusão dos créditos de que são titulares.
Após a resposta apresentada pelo administrador da insolvência, no sentido de aceitar as referidas impugnações, foi proferida, no dia 6 de outubro de 2020, decisão a julgar procedentes as impugnações e a determinar a reformulação da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos em conformidade.
No dia 9 de outubro de 2020, o administrador judicial apresentou nova lista, que retificou por requerimentos apresentados nos dias 12 e 23 de outubro de 2020.
No dia 7 de janeiro de 2022, foi proferido despacho a determinar que os autos ficassem a aguardar “as decisões a proferir (…) nos diversos apensos de verificação ulterior de créditos”, após o que deveria ser reformulada a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos.
No dia 26 de outubro de 2023, o administrador da insolvência apresentou nova lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, “considerando as decisões entretanto proferidas nos diversos apensos de verificação ulterior de créditos”, bem como proposta de graduação, dela fazendo constar, para além do mais, os seguintes créditos:
I. Créditos reclamados e/ou impugnados e reconhecidos

CredorNaturezaCapitalJurosObservações
AAPrivilegiado€ 22 083,26 Apenso O - Créditos laborais
BBPrivilegiado€ 14 471,15 Apenso AG – Créditos laborais
CCPrivilegiado€ 14 798,56 Apenso W – Créditos laborais
DDPrivilegiado€ 60 681,05 Apenso N – Créditos laborais
EMP05... STC, SAComum€ 643 996,76€ 135 900,17Créditos cedidos pelo Banco 1..., SA; diversas operações bancárias
Fundo de Garantia SalarialPrivilegiado€ 187 335,46 Despachos de 29.06.2022 e 2510.2022
EEPrivilegiado€ 17 749,49 Apenso AC – Créditos laborais
FFPrivilegiado€ 5 326,89 Apenso R – Créditos laborais
FFPrivilegiado€ 14 728,46 Apenso S – Créditos laborais
GGPrivilegiado€ 15 746,676 Apenso AA – Créditos laborais
HHPrivilegiado€ 58 854,17 Apenso M – Créditos laborais
IIPrivilegiado€ 10 479,61 Apenso Y – Créditos laborais
JJPrivilegiado€ 17 930,93 Apenso Q – Créditos laborais
KKPrivilegiado€ 14 895,15 Apenso T – Créditos laborais
LLPrivilegiado€ 6 257,32 Apenso AE – Créditos laborais
MMPrivilegiado€ 23 151,84 Apenso Z – Créditos laborais
NNPrivilegiado€ 22 519,71 Apenso V – Créditos laborais
OOPrivilegiado€ 36 7092,73 Apenso AD – Créditos laborais

Juntamente com a referida lista, o administrador da insolvência apresentou a seguinte proposta de graduação:
“(…)
A massa insolvente é constituída por bem imóvel, bens móveis e outros direitos. No entanto,
importa distinguir, para efeitos de graduação:
(…)
- bem imóvel (U 490)
(…)
ii) Dos privilégios dos trabalhadores e do Fundo de Garantia Salarial
Dispõe o art. 333 do Código do Trabalho que: (…)
Assim, os créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo de Garantia Salarial gozam do supra referido privilégio mobiliário geral e imobiliário especial.
Os créditos dos trabalhadores supra referenciados e o crédito do Fundo de Garantia Salarial serão graduados a par, ficando sujeitos a rateio, se necessário.
(…)
Por todo o supra exposto, deve ser homologada a lista de créditos reconhecidos elencados na tabela supra mencionada e graduar-se da seguinte forma os créditos reconhecidos:
- Pelo produto da venda das verbas 1 a 20 (bens móveis - material de escritório e industrial)
1. As dívidas da massa insolvente a que alude o art. 5l do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas;
2. Os créditos privilegiados dos trabalhadores e do Fundo Garantia Salarial, rateadamente;
3. Os créditos privilegiados do instituto da Segurança Social;
4. Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, de acordo com o disposto no art. 176 do CIRE;
5.Os créditos subordinados.
- Pelo produto da venda das verbas 21 a29 (bens moveis sujeitos a registo)
1. As dívidas da massa insolvente a que alude o art. 51 do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas;
2. Os créditos privilegiados dos trabalhadores e do Fundo Garantia Salarial, rateadamente;
3. Os créditos privilegiados do instituto da Segurança Social;
4. Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, de acordo com o disposto no art. 176 do CIRE;
5.Os créditos subordinados.
- Pelo produto da venda do bem imóvel (U 490)
1. As dívidas da massa insolvente a que alude o art. 51 do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas;
2. Os créditos privilegiados dos trabalhadores e do Fundo Garantia Salarial, rateadamente;
3. Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, de acordo com o disposto no art. 176.o do CIRE;
4. Os créditos subordinados.
- Pelas quantias apreendidas
1. As dívidas da massa insolvente a que alude o art.o.51o do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas;
2. Os créditos privilegiados dos trabalhadores e do Fundo Garantia Salarial, rateadamente;
3. Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, de acordo com o disposto no art. 176 do CIRE;
4. Os créditos subordinados.”

No dia 15 de janeiro de 2024, foi proferida sentença do seguinte teor:
“1. Nos autos principais foi, por sentença transitada em julgado, declarada a insolvência de EMP01..., Ld.ª, tendo sido fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.
Entretanto, nos termos do disposto no art.º 129.º do CIRE, o AI juntou aos autos a lista dos créditos reconhecidos, tendo posteriormente julgadas procedentes as impugnações apresentadas.
Posteriormente, e na sequência das decisões proferidas entretanto nos diversos apensos de verificação ulterior de créditos, veio o AI, a convite do Tribunal, a juntar aos autos nova lista de créditos reconhecidos que acautelasse tais decisões bem como, ainda, proposta de graduação, do que deu conhecimento aos credores.
Os autos de insolvência seguiram para liquidação do ativo.
2. A instância é válida e regular, não subsistindo nem sobrevindo nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
3. Atenta a previsão do art.º 130.º, n.º 3 do CIRE, dada a inexistência de erro manifesto, homologa-se a lista de credores reconhecidos elaborada pelo AI e, bem assim, a respetiva proposta de graduação, ordenando-se que se proceda ao pagamento dos créditos, na sequência da liquidação, em conformidade.”
A sentença foi notificada ao administrador da insolvência e aos credores por termo eletrónico elaborado na aplicação informática de apoio à atividade dos tribunais na data da sua prolação.
No dia 25 de janeiro de 2024, o administrador da insolvência apresentou requerimento do seguinte teor:
“Vem informar V. Exa que, no seguimento da prolação da sentença de graduação de créditos e da elaboração da proposta de rateio parcial, apercebeu-se após contacto com credor que o imóvel apreendido e vendido nestes autos (U 490) não estava afeto à atividade empresarial da insolvente. Aliás, resulta do registo fotográfico constante da avaliação realizada ao mesmo que o bem imóvel estava inabitável, coberto de vegetação de grande porte que impossibilita o acesso ao interior do mesmo e, muito possivelmente em ruína parcial (vd. requerimento de 14-09-2022 - apenso AH).
Em face do supra exposto, entende que os trabalhadores não podem beneficiar do privilégio imobiliário especial pelo que requerer a V. Exa. se digne admitir a junção aos autos da proposta de graduação devidamente retificada e, por conseguinte, a retificação da sentença
de graduação proferida no pretérito dia 15-01-2024.
Por uma questão de celeridade processual, requer ainda a V. Exa. se digne admitir a junção aos autos da proposta de rateio parcial retificada em conformidade com o supra exposto e no pressuposto de que retificação seja deferida.”
Os credores foram notificados para se pronunciarem, tendo os identificados HH, PP, CC, QQ, JJ, KK e NN emitido pronúncia no sentido do indeferimento da requerida retificação dizendo que: “[o] imóvel, à data da avaliação, passados 4 anos, estar coberto de vegetação e inabitável, não é fundamento para concluir que o mesmo não estava afeto à atividade da insolvente. / 4- Com efeito, o imóvel servia de armazém, onde existiam prateleiras onde eram guardadas e armazenadas peças e materiais necessários à atividade da insolvente. / 5- Bem como na área não construída existiam 2 contentores para guarda e armazenamento de peças já preparadas para serem aplicadas nas obras.”
No dia 12 de fevereiro de 2024, foi proferido despacho a indeferir a retificação, com a seguinte fundamentação:
“(…)
Desde logo entende-se que deveria o AI acautelar, antes de tudo, a auscultação de todos os credores antes de ter decidido, unilateralmente, proceder à retificação do mapa de rateio parcial e sugerir a retificação da sentença de verificação e graduação de créditos, baseando-se no insuficiente argumento de que um imóvel não é usado, no âmbito da atividade de uma empresa, pelo facto de estar coberto de mato ou vegetação, de acordo com um relatório de avaliação datado de setembro de 2022, quando resulta dos autos que a insolvente deixara de exercer a sua atividade desde, pelo menos, 2021, não podendo, por si só e sem mais, concluir-se que o imóvel não se encontrava afeto à respetiva atividade.
Pelo exposto, inexistindo razões que justifiquem o pedido de retificação da sentença de verificação e graduação de créditos e do subsequente mapa de rateio parcial apresentado nos autos principais aos 25.01.2024, vai tal o pedido indeferido.”
***
2) Inconformada com o despacho acabado de transcrever, a credora EMP05... STC, SA, interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

“A. A Recorrente não aceita o entendimento vertido no douto despacho recorrido na parte em que decide que se “inexistindo razões que justifiquem o pedido de retificação da sentença de verificação e graduação de créditos e do subsequente mapa de rateio parcial apresentado nos autos principais aos 25.01.2024, vai tal o pedido indeferido.”
B. Para tanto, declarando que não poderia o Sr. AI “unilateralmente, proceder à retificação do mapa de rateio parcial e sugerir a retificação da sentença de verificação e graduação de créditos, baseando-se no insuficiente argumento de que um imóvel não é usado, no âmbito da atividade de uma empresa, pelo facto de estar coberto de mato ou vegetação (…), quando resulta dos autos que a insolvente deixara de exercer a sua atividade desde, pelo menos, 2021”.
C. Terminando por entender de modo conclusivo “não podendo, por si só e sem mais, concluir-se que o imóvel não se encontrava afeto à respetiva atividade.”
D. A ora Recorrente insurge-se contra tal decisão na medida em que sendo nula por falta de fundamentação e por contradição entre essa escassa fundamentação e decisão, enferma de nulidade, impondo-se a substituição por outra que declare o prosseguimento dos autos para aferição da situação do imóvel apreendido, de modo a ser verificado se estava ou não afeto à atividade empresarial da Insolvente, situação que não chegou a ser apurada, ao contrário daquilo que foi objeto da decisão sub judice.
E. Ao proferir a decisão sub judice, o tribunal recorrido viola em especial as normas aplicáveis que definem o âmbito e limites dos poderes de cognição e conhecimento da matéria de facto pelo tribunal, desde logo nos artigos 5.º, n.º 2, 411.º e 413.º do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE e do artigo 11.º do CIRE, que demanda que sejam apurados todos os factos passíveis de investigação pelo tribunal, desde logo os que tenham pertinência para apreciação de direito da questão a decidir, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito.
F. Pelo que, no uso desses poderes de cognição e ao abrigo do princípio do inquisitório, necessariamente cumpria ter apreciado na tomada de decisão, todos os factos essenciais ou instrumentais carreados para os autos, entre eles os fundados em elementos de prova recolhidos no decurso do processo, nomeadamente no que concerne à avaliação realizada ao imóvel e ao seu notório estado de abandono prolongado, que necessariamente impunham a tomada de decisão em termos diversos.
G. Deste modo, a decisão recorrida é nula, por omissão nos fundamentos da decisão, ao não especificar, quais os fundamentos pelos quais não foi atendido o pedido de alteração da proposta de graduação apresentada e da consequente retificação da sentença de verificação e graduação de créditos.
H. Não sendo possível conhecer a motivação, diante da ausência de qualquer factualidade que a suporte, para que fosse extraída a asserção acolhida na decisão recorrida de que “não podendo, por si só e sem mais, concluir-se que o imóvel não se encontrava afeto à respetiva atividade”.
I. Igualmente incorre a decisão recorrida em contradição entre os fundamentos e a decisão, sendo nula, na medida em que não cuidou de estabelecer a necessária verificação da integração do imóvel na estrutura produtiva da Insolvente nem do nexo funcional entre o mesmo e a atividade desenvolvida pelos trabalhadores.
J. Cabendo, nessa sede, aos interessados o ónus da prova que o imóvel em causa integrava a “estrutura estável da organização produtiva” da empresa insolvente e que se verifica o nexo funcional necessário entre o mesmo e a respetiva atividade.
K. Pelo que, posta à apreciação do tribunal a questão sub judice, e sendo a mesma carecida de demonstração, restaria tão somente ao tribunal a quo ordenar as diligências tidas por convenientes, segundo o seu prudente critério, a fim de determinar se o imóvel apreendido e vendido nos autos estava ou não afeto à atividade da Insolvente.
L. Face ao exposto, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outra que ao invés do decidido, declare o prosseguimento dos autos, desde logo para ser apreciada e decidida a questão da afetação do imóvel à atividade empresarial da Insolvente, nos termos e com os efeitos legais.”
***
3) Não foi apresentada resposta.
***
4) O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
***
5) Foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
***
II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tento isto presente, as questões que se colocam neste recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª Saber se a decisão recorrida é nula “por falta de fundamentação e por contradição entre essa escassa fundamentação e [a] decisão” (sic);
2.ª Saber se a decisão recorrida enferma de error in judicando por ter indeferido a retificação da sentença de verificação e graduação dos créditos em lugar de determinar oficiosamente a realização de diligências destinadas a apurar se a insolvente exercia a sua atividade no prédio identificado e apreendido para a massa insolvente com vista à retificação da sentença de verificação e graduação de créditos.
***
III.
1) Na resposta às questões enunciadas há que considerar os factos descritos no ponto 1) do relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
Há que considerar também os seguintes factos que estão provados documentalmente, nos termos indicados:
a) No dia 3 de julho de 2020, o administrador da insolvência procedeu à apreensão para a massa insolvente do prédio urbano, destinado à habitação, que corresponde a uma casa de dois andares, com a área bruta privativa de 79,500 m2, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP sob o n.º ...72 e inscrito na matriz sob o art. ...90, cf. auto de apreensão junto ao apenso D, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
b) Através de ações de verificação ulterior de créditos, reclamaram créditos laborais sobre a insolvente as pessoas indicadas no quadro infra, alegando que os mesmos beneficiam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário especial sobre o prédio apreendido.
c) Essas ações foram julgadas procedentes, através de sentenças proferidas nas datas indicadas, que reconheceram os referidos créditos como privilegiados, tendo transitado em julgado:

CredorApensoData da sentença
AAO 9.11.2021
BBAG14.03.2022
CCW 14.12.2021
DDN 9.11.2021
EEAC 7.03.2022
FFR 3.02.2021
FFS 3.12.2022
GGAA 28.02.2022
HHM 28.10.2021
IIY 28.02.2022
JJQ 16.11.2021
KKT 3.12.2021
LLAE 2.03.2022
MMZ 25.02.2022
NNV 6.12.2021
OOAD 6.12.2021

d) No dia 14 de setembro de 2022, o administrador da insolvência apresentou, no apenso de liquidação (AH), um relatório de avaliação do prédio apreendido, no qual está esrito que este se encontrava, por ocasião do seu exame, realizado no dia 25 de agosto do mesmo ano, coberto de vegetação de grande porte, a qual o envolvia e impedia o anexo ao edifício nele construído, cf. ref. Citius 43259292, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
***
2).1. Passamos a dar resposta à primeira das questões enunciadas.
A sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).
Diz o n.º 1 do art. 615 do CPC, na parte que releva, que “[é] nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos esteja em oposição com a decisão (…)”
***
2).1.1. Sobre a primeira causa de nulidade convocada pela Recorrente, importa dizer que as regras a observar pelo juiz na elaboração da sentença estão enunciadas nos números 2 e 3 do art. 607 do CPC, nos termos dos quais a “sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos de facto”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.
O n.º 4 do mesmo preceito acrescenta que, na “fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; e “tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
Finalmente, o n.º 5 diz que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Reafirma-se, assim, em sede de sentença cível, a obrigação imposta pelo art. 154 do CPC, que é concretização do mandamento consagrado no art. 205/1 da Constituição da República, do juiz fundamentar as suas decisões, apenas o podendo fazer por simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Conforme se pondera em RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), relatado por Maria João Matos, “visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, do CPC), a paz social só será efetivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação.”
No mesmo aresto escreve-se que, “[e]m termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respetiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objeto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respetiva decisão (“o que” decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram (“o porquê” de ter decidido assim).”
O art. 607/ 3, do CPC, impõe ao juiz que proceda à indicação dos fundamentos de direito em que alicerça a sua decisão, nomeadamente identificando as normas e os institutos jurídicos de que se socorra, bem como a interpretação deles feita, concluindo com a subsunção do caso concreto aos mesmos.
Segundo Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 666, “[é] na segunda parte da sentença, através da determinação, interpretação e aplicação das normas aos factos apurados, que reside a verdadeira motivação (fundamentação) da sentença. A importância capital desta parte da sentença reflete-se claramente no facto de o art. 668/1, b) [correspondente, no CPC de 1961, ao atual art. 615/1, b)] incluir entre as causas de nulidade da sentença a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”
Por outro lado, vem sendo pacificamente defendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito é geradora da nulidade em causa e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação. Na doutrina, Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 687; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa: Lex, 1997, p. 221, Lebre de Freitas, A Ação declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 332, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra: Almedina, 2018, p. 737, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 179. Na jurisprudência, STJ 2.06.2016 (781/11.6TBMTJ.L1.S1) e 3.03.2021 (3157/17.8T8VFX.L1.S1), RP 5.06.2015 (1644/11.0TMPRT-A.P1), RG 2.11.2017 (42/14.9TBMDB.G1) e RC 13.12.2022 (98/17.2T8SRT.C1). Na clássica lição de José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 140), “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”; e, por “falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto (…).”A concreta medida da fundamentação é, portanto, “aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto” (RC 29.04.2014, 772/11.7TBVNO-A.C1).
***
2).1.2. Sobre a segunda causa de nulidade, importa dizer que estão em causa as situações em que a fundamentação, de facto ou de direito, está em oposição lógica com a decisão: aquela não conduz a esta. A fundamentação aponta num sentido e a decisão vai para outro sentido. Neste sentido, STJ 6.05.2004 (04B1409), STJ 9.11.2017 (9526/10.7TBVNG.P1.S1), RG 14.05.2015 (414/13.6TBVVD.G1) e RG 18.01.2018 (75/16.0T8VRL.G1). Dito de outra forma, há um “vício lógico no próprio silogismo judiciário em que se estrutura a fundamentação da decisão, exigido pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º, porquanto a decisão não é a conclusão lógica daqueles fundamentos, sejam estes as normas aplicadas (premissa maior) ou os factos provados (premissa menor)” (Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, pp. 18-19).
Situação diversa verifica-se quando ocorre um erro no mérito do silogismo, por conter uma contradição com os factos ou com o Direito: trata-se de erro do julgamento de facto decorrente de o juiz “decid[ir] contrariamente aos factos apurados” ou do julgamento de direito decorrente de o juiz decidir “contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente” (RP 2.05.2016, 1556/14.6T8LOU-A.P1, relatado por Joaquim Correia Pinto) – seja por erro de subsunção dos factos à norma jurídica aplicável, seja por erro na determinação de tal norma ou por erro na sua interpretação. Em ambas as eventualidades não ocorre a nulidade do art. 615/1, c), mas, sim, um erro de julgamento da matéria de facto ou matéria de direito, respetivamente.
***
2).1.3. Verificada a nulidade, cabe ao Tribunal ad quem supri-la, salvo se não dispuser dos elementos necessários para esse efeito, por força do disposto no art. 665/1 do CPC, donde resulta que, ainda “que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1); e, se “o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2).
Deste modo, como escreve António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, julho de 2022, pp. 387-388), “ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das (…) nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, nº 2.” Logo, “a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários”, já que só “nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.”
Daqui não resulta qualquer preterição do contraditório do duplo grau de jurisdição: conforme escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Nulidade da sentença; regra da substituição – Jurisprudência 2019 (83)”, Blog do IPPC), “a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo. Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.” Acrescentamos que já no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12, se afirmava expressamente a opção do legislador pela supressão de um grau de jurisdição, a qual seria, no seu entendimento, largamente compensada pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal ad quem.
***
2).1.4. Aproximando estas considerações do caso vertente, facilmente se conclui que o despacho recorrido, apesar de estar longe de corresponder ao arquétipo legal, não enferma dos vícios que lhe foram apontados.
Com efeito, desde logo, esse despacho contém uma fundamentação mínima plasmada na afirmação de que o argumento aduzido pelo administrador da insolvência – a constatação de que o prédio apreendido para a massa insolvente se encontrava, no ano de 2022, coberto de mato e vegetação – é insuficiente para justificar a pretendida retificação da sentença e se explica a razão de semelhante juízo. Diga-se que a própria Recorrente acaba por reconhecer isto quando, contradizendo-se, defende que a fundamentação devia ter conduzido a uma decisão de sentido diverso.
Por outro lado, não se vislumbra qualquer contradição lógica entre a fundamentação e a decisão: a afirmação de que não foi invocado motivo suficiente para a retificação da sentença tem como corolário lógico a decisão de indeferimento. Contradição haveria se o julgador, depois de perentoriamente ter negado qualquer relevo ao motivo invocado, tivesse determinado, com base nele, a retificação da sentença ou a realização de diligências instrutórias destinadas à sua comprovação.
A resposta à primeira questão é, portanto, negativa.
***
2).2.1. Passamos para a resposta à segunda questão.
A Recorrente pretende que sejam desenvolvidas diligências destinadas a apurar se o prédio apreendido para a massa insolvente estava afeto ao exercício da atividade da insolvente para que, concluindo-se em sentido afirmativo, se determine a retificação da sentença de verificação e graduação de créditos.
É fácil perceber a importância da questão de facto que a Recorrente pretende ver esclarecida no contexto da verificação e graduação de créditos: no art. 333 do Código do Trabalho, o legislador excecionou os créditos laborais do princípio par conditio creditorum (do qual decorre o pagamento rateado pelos credores: 604 do Código Civil e art. 176 do CIRE), atribuindo-lhes um privilégio creditório mobiliário geral e imobiliário especial.

Na verdade, preceitua o preceito que:
“1. Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) Privilégio mobiliário geral; b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade.
2. A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte: a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do art. 747.º do Código Civil; b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.”
Simplesmente, como veremos, apesar da relevância da questão, o tribunal a quo não podia dela conhecer no despacho recorrido – o que, adiantamos desde já, tem como consequência necessária uma resposta negativa à pretensão recursiva.
***
2).2.2. Explicando a afirmação acabada de formular, começamos por lembrar que os credores da insolvência têm o ónus[1] de reclamar, dentro do prazo que para esse efeito for fixado na sentença declaratória da insolvência (cf. art. 36/1, j)), a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, a endereçar ao administrador da insolvência, no qual devem indicar: (i) a respetiva proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros; (ii) as condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas; (iii) a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável; (iv) a existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes; (v) a taxa de juros moratórios aplicável; (vi) o número de identificação bancária ou outro equivalente (art. 129/1 e 2).
O incumprimento do referido ónus pode, porém, não obstar ao reconhecimento – e consequente pagamento – de créditos sobre a insolvência, uma vez que podem ser reconhecidos os créditos que, apesar de não reclamados, constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam, por outra forma, do conhecimento do administrador da insolvência (art. 129/1, in fine).
Nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ordenadas por ordem alfabética (art. 129/1, 1.ª parte).
Da lista dos credores reconhecidos consta a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, as eventuais condições suspensivas ou resolutivas e o valor dos bens integrantes da massa insolvente sobre os quais incidem garantias reais de créditos pelos quais o devedor não responda pessoalmente (art. 129/2). A lista dos credores não reconhecidos indica os motivos justificativos do não reconhecimento (art. 129/3).
Nos 10 dias seguintes, qualquer interessado pode impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos (art. 130/1).
Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta (art. 130/3, na redação do DL n.º 57/2022, de 25.08). Conforme resulta do preâmbulo do DL n.º 57/2022, de 25.08, o legislador procurou assegurar a “simplificação da tramitação do incidente de verificação do passivo e graduação de créditos no processo de insolvência, atribuindo ao administrador da insolvência a responsabilidade de, conjuntamente com a lista de créditos reconhecidos, apresentar uma proposta de graduação destes, permitindo ao juiz, em caso de concordância e na falta de impugnações, limitar-se a homologar ambos os documentos – o que permite uma tramitação mais ágil deste incidente.”
Havendo impugnações, o administrador da insolvência ou qualquer interessado, incluindo o devedor, pode responder-lhes (art. 131/1).
Autuada a lista, as impugnações e as respostas, a comissão de credores, caso exista, emite parecer (art. 135) e, após, o juiz declara verificados com valor de sentença os créditos incluídos na respetiva lista e não impugnados, salvo o caso de erro manifesto, e pode designar dia e hora para uma tentativa de conciliação a realizar dentro dos 10 dias seguintes, para a qual são notificados, a fim de comparecerem pessoalmente ou de se fazerem representar por procuradores com poderes especiais para transigir, todos os que tenham apresentado impugnações e respostas, a comissão de credores e o administrador da insolvência (art. 136/1 e 2).
Concluída a tentativa de conciliação, o processo é imediatamente concluso ao juiz, para que seja proferido despacho saneador, no qual deve reconhecer os créditos que possam sê-lo face aos elementos de prova contidos nos autos (art. 136/3 e 5).
Os créditos cuja verificação ou graduação necessite de produção de prova são provisoriamente verificados e graduados (art. 136/7), observando-se, quando ao seu pagamento, as cautelas de prevenção previstas no art. 180.
Seguem-se, quanto a estes, as diligências de prova a que haja lugar antes da audiência de discussão e julgamento (art. 137). Realizada esta, é proferida sentença de verificação e graduação de créditos (art. 140/1). A graduação é geral para os bens da massa insolvente e é especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e privilégios creditórios (art. 140/2).
***
2).2.3. Como vimos, a falta de impugnação das listas de credores reconhecidos e não reconhecidos não importa a produção de um efeito cominatório pleno, na medida em que o juiz deve verificar se existe algum erro manifesto, de natureza formal ou substantiva, que inviabilize a homologação das listas, pelo menos nos moldes em que as mesmas lhe foram apresentadas. Há aqui um afloramento do princípio do inquisitório, a que faremos referência no ponto seguinte.
Neste sentido, STJ de 15.05.2013 (3057/11.5TBGDM-A.P1.S1), com o seguinte sumário: “I. O relevo que no processo de insolvência deve ser dado ao princípio par conditio creditorum justifica a intervenção oficiosa do juiz na verificação dos créditos, ainda que a lista apresentada pelo administrador da insolvência – que frequentemente nem é jurista – não sofra qualquer impugnação, devendo ser recusada a sua homologação quando verifique que está afectada por erro manifesto (art. 129 do CIRE). II. Neste sentido, deve o juiz recusar a homologação da lista apresentada pelo administrador que apresenta como créditos reconhecidos créditos reclamados exclusivamente com fundamento em avales prestados pela insolvente em livranças subscritas em branco e que ainda não foram preenchidas. III. Tais créditos apenas podem ser reconhecidos como créditos sob condição suspensiva.” Também STJ de 25.11.2008 (08A3102), no qual se entendeu que “I. Perante a lista de credores apresentada pelo administrador da insolvência, e mesmo que dela não haja impugnações, o Juiz não pode abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes dessa lista, nem dos documentos e demais elementos de que disponha, com a inclusão, montante, ou qualificação desses créditos, a fim de evitar violação da lei substantiva. II. Detectando a existência, nessa lista, de erro manifesto, se este for de natureza meramente formal, sendo a sua rectificação insusceptível de influir nos direitos das partes, nada se vê que obste a que desde logo proceda a tal rectificação e a que elabore logo de seguida sentença de homologação e graduação.” ainda STJ 21.04.2015 (793/ 10.7T2AVR-A.C1.S1), no qual se consignou que “I. A recusa de homologação da lista de créditos reconhecidos elaborada pelo administrador da massa insolvente pode ter lugar por erro manifesto, nos termos do art. 130/3, do CIRE. II. Este erro manifesto permite e impõe ao julgador que afira da bondade formal e substancial dos créditos constantes da lista, não se limitando aos meros erros formais, podendo e devendo abranger razões ligadas à substância dos créditos em apreço que podem ser objecto de censura pelo julgador, mesmo na ausência de qualquer impugnação.” Finalmente, STJ de 10.12.2015 (836/12.0TBSTS-A.P1.S1), onde se escreveu que “I. Do art. 130/3, do CIRE colhe-se que a ausência de impugnação de créditos constantes da lista apresentada pelo Administrador da Insolvência, nos termos do art. 129 do CIRE, não impede o Juiz de exercer um controle sobre a respectiva legalidade, não apenas formal mas substantiva: os requisitos da elaboração da lista pelo AI contêm normas procedimentais e juízos de qualificação jurídica (por exemplo, quanto se considera que o crédito X ou Y dispõe de garantia real ou é um crédito privilegiado). Se pensarmos que muitas vezes o AI não é jurista, a possibilidade desculpável de erro existe. II. O conceito indeterminado “erro manifesto” tem latitude e elasticidade para conferir ao juiz, o poder-dever de analisar a lista elaborada em cumprimento do art. 129/1 a 3, e não a homologar ao abrigo do n.º 3 do art. 130 do CIRE. O conceito deve ser interpretado de forma ampla.”
Na jurisprudência das Relações, RL 7.07.2016 (10163-14.2T2SNT-A.L1-8), no qual se decidiu que “[a] recusa de homologação da lista de créditos reconhecidos elaborada pelo administrador da massa insolvente pode ter lugar por erro manifesto, nos termos do art. 130/3, do CIRE. Este erro manifesto permite e impõe ao julgador que afira da bondade formal e substancial dos créditos constantes da lista, não se limitando aos meros erros formais, podendo e devendo abranger razões ligadas à substância dos créditos em apreço que podem ser objecto de censura pelo julgador, mesmo na ausência de qualquer impugnação. Constando daquela lista de créditos não impugnada créditos de trabalhadores da insolvente, como beneficiando de privilégio imobiliário especial, mas sem especificar sobre que imóvel versa esse privilégio, não pode o julgador, sem mais, fazer incidir esse privilégio sobre os imóveis apreendidos para a massa insolvente. Também RC de 18.10.2016 (46/14.T8ACB-B.C1), no qual se decidiu que “[a] circunstância da lista de créditos apresentada pela A.I., não ter sido impugnada não impõe, sem mais, a decisão homologatória por parte do tribunal”, RG 7.12.2017 (8675/15.0T8VNF-I.G1), no qual se escreveu que “[o] erro manifesto da lista apresentada pelo Sr. A.I., em cumprimento do disposto no art. 129/1, do CIRE, pode ser arguido a todo o tempo, enquanto a sentença de verificação de créditos não transitar em julgado, pois, devendo ser conhecido ex officio, não está sujeito ao prazo das impugnações previsto no art. 130 do CIRE”, RP de 25.06.2019(2180/11.0T2AVR-C.P1), no qual se entendeu que “[n]o âmbito do artigo 130/3 do CIRE e para o preenchimento do conceito de “erro manifesto”, estará vedada uma interpretação que transforme a actividade do juiz no âmbito do processo de insolvência numa mera chancela formal por actos ou omissões praticados por terceiros. Uma intervenção do juiz meramente formal é impensável para a ecologia do sistema judicial que vive necessariamente de uma pulsão pela verdade material; justamente como reflexo destas preocupações sobre o papel do juiz deve interpretar-se em termos amplos o conceito de “erro manifesto”, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar. Assim, não está vedada ao juiz no âmbito da detecção de um eventual erro manifesto escrutinar sobre a indevida inclusão de um crédito na lista, do seu montante ou das suas invocadas qualidades.” Finalmente, RG 16.03.2023(77/22.8T8MDR-B.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria Eugénia Pedro, tendo como adjuntos os Juízes Desembargadores Pedro Maurício e José Carlos Pereira Duarte, também adjuntos nestes autos, no qual se considerou que “[a] ausência de impugnações da lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência, não dispensa o juiz de exercer o controle da respectiva legalidade, nomeadamente, no que concerne à qualificação os créditos.”
O erro, para ser manifesto, deve resultar da mera análise da lista apresentada pelo administrador da insolvência e dos elementos objectivos disponíveis nos autos. Neste sentido pode ler-se em RG de 17.12.2018 (6661/17.4T8VNF.G1), que “[o] erro manifesto a que alude este último preceito do CIRE, que abrange o erro formal e o erro substancial, tem de ser um erro existente na relação de créditos apresentada pelo administrador da insolvência, e de que o juiz se aperceba nomeadamente pela análise das reclamações de créditos, o qual não se confunde com eventuais causas de exclusão do crédito não alegadas e comprovadas nos autos.” De igual modo, vide RC 11.12.2012 (1358/09.1FIG-D.C1), RC 13.10.2015 (178/ 13.3TBSPS-A.C1), RG 6.10.2016 (306/15.4T8PRG-B.G1), RP 18.12.2018 (152/10.1TYVNG-A.P1), RG 17.11.2022 (326/18.7T8MDL-C.G1).
***
2).2.4. Aqui importa salientar que ao invés do que se verifica no CPC, cujo art. 5.º preceitua que as partes têm o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, bem como aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, apenas podendo o juiz conhecer oficiosamente os factos instrumentais que tenham resultado da instrução da causa, os factos complementares ou concretizadores, desde que, sobre eles, as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar, bem como os factos notórios e aqueles de que o tribunal tenha tomado conhecimento, em virtude do exercício das suas funções, no processo de insolvência, nos embargos (arts. 40 e ss.) e no incidente de qualificação da insolvência (arts. 185 e ss.), o juiz pode, ao abrigo do princípio do inquisitório, fundar a sua decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
Este princípio contém implícita a faculdade do juiz, por sua própria iniciativa, investigar livremente os factos, bem como recolher as provas e informações que entender convenientes, conforme entendimento da jurisprudência e da doutrina. Assim, RE 05.05.2011 (318/10.4TBARL-A.E1), RC 24.01.2012 (205/08.6TBVGS-C.C1), RP 28.09.2015 (1826/12.8TBOAZ-C.P1). Na doutrina, Maria José Capelo, “A fase prévia à declaração de insolvência: algumas questões processuais”, Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2013, p. 188, e Marco Carvalho Gonçalves, Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra: Almedina, 2023, p. 169.
O reforço do princípio do inquisitório no âmbito do processo de insolvência encontra justificação na tutela dos interesses públicos e coletivos que estão subjacentes. São estes que justificam que a descoberta da verdade material se sobreponha à liberdade de disposição do processo pelas partes. Compreende-se assim que o juiz possa, nomeadamente, proceder à inquirição oficiosa das testemunhas arroladas pelas partes ou determinar a audição de testemunhas que não tenham sido por elas indicadas (RL 23.11.2007, 7634/2007-8), bem como convidar as partes a esclarecerem questões de facto ou a juntarem documentos para prova da matéria constante dos articulados (RE de 30.06.2016, 978/09.9TBCTX-J.E1). Em todo o caso, como se refere em STJ 06.11.2018 (66/16.1T8RGR-C. L1.S2), “[a] participação alargada de credores, do devedor e do administrador da insolvência (e, eventualmente, da comissão de credores) no processo especial de insolvência afasta a bilateralidade que caracteriza a acção declarativa e permite mitigar os efeitos usualmente associados ao incumprimento dos ónus de alegação e de prova, facultando-se ao tribunal a hipótese de adquirir factos na sequência da sua actividade e dos contributos trazidos pelos intervenientes (art. 11).”
O inquisitório não é, porém, ilimitado.
Em primeiro lugar, ele deve ser exercido numa perspetiva de complementaridade das diligências instrutórias que tenham sido requeridas pelas partes e já não enquanto forma de suprir a inércia das partes quanto à actividade probatória a que estão sujeitas. Neste sentido, RC 26.10.2010 (237/10.4TBFVN-B.C1), RL 15.12.2011 (2862/11.7TBFUN-A.L1-2), RG 5.02.2013 (7476/10.6TBBRG-E.G1) e RC 8.04.2014 (4135/ 12.9TBLRA-C.C1).
Em segundo lugar, o claro predomínio do princípio do inquisitório no processo de insolvência não dispensa o princípio da audiência contraditória (art. 415 do CPC), razão pela qual, sempre que o juiz pretenda fundar a sua decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes, este deve proceder à sua audição prévia. Só assim não terá de ser quando, no caso em concreto, o cumprimento do princípio do contraditório seja manifestamente desnecessário, atento o disposto no art. 3.º/3 do CPC (RL 11.07.2019, 29624/13.4T2SNT-W.L1-1).
Em terceiro lugar, sempre que, por imposição legal, a falta de oposição importe um efeito cominatório, o juiz não pode invocar o princípio do inquisitório para, por essa via, procurar conhecer outros factos que contrariem os adrede alegados. Assim sucede, no processo de insolvência, quando o devedor não deduza oposição à declaração de insolvência ou, tendo-a deduzido, não compareça à audiência final (arts. 30/5 e 35/2). Em tais casos, o juiz deve limitar-se a declarar a insolvência quando os factos alegados na petição inicial sejam suscetíveis de preencher alguma das hipóteses previstas no art. 20/1.
Em quarto lugar, o predomínio do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo só se verifica no processo de insolvência, nos embargos e no incidente de qualificação da insolvência. Consequentemente, este regime não é aplicável ao incidente de reclamação de créditos, com ressalva do aspeto referido no ponto anterior. Neste sentido, RP de 28.03.2012 (2384/08.3TBSTS-AG.P1). Na doutrina, Marco Carvalho Gonçalves, Insolvência cit., p. 171, Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 242, e Mariana França Gouveia, “Verificação do Passivo”, Themis – Revista da FDUNL, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 161. Compreende-se que assim seja: na reclamação de créditos estão em causa, essencialmente os interesses privados dos credores.
***
2).2.5. Decorrido o prazo fixado na sentença para a reclamação de créditos, é ainda possível o reconhecimento de outros créditos através de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, até ao limite temporal de seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência ou de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente (art. 146/1 e 2, b)).
Na petição inicial desta ação, cabe ao credor alegar, de forma substanciada, os mesmos elementos que lhe caberia alegar se tivesse reclamado o crédito na sua sede própria, mais concretamente, conforme escrevemos: (i) a fonte do seu crédito, a data de vencimento, montante de capital e de juros; as condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas; (iii) a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável; (iv) a existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes; (v) a taxa de juros moratórios aplicável; (vi) o número de identificação bancária ou outro equivalente (art. 129/1 e 2).
A ação corre por apenso ao processo de insolvência e segue os termos do processo comum, o que vale por dizer que a falta de contestação por parte de todos os demandados tem como consequência a admissão dos factos alegados, que é característica do efeito cominatório semi-pleno (art. 567/1 do CPC).
Julgada procedente a ação, o crédito reconhecido é graduado, juntamente com os demais, no lugar que lhe competir.
***
2).3. No caso vertente, constata-se que o administrador da insolvência apresentou a lista final de créditos reconhecidos e não reconhecidos, fazendo dela constar os créditos discriminados no quadro indicado no ponto 1), alínea c), bem como os créditos em que ficou sub-rogado o Fundo de Garantia Salarial. Propôs que esses créditos fossem graduados como privilegiados, designadamente no que tange ao pagamento pelo produto do prédio apreendido para a massa insolvente. Partiu, para tanto, do pressuposto de que era nesse prédio que os credores exerciam a sua atividade laboral por conta da insolvente.
Na falta de qualquer impugnação, foi proferida a sentença de 15 de janeiro de 2024, que homologou tanto a lista de créditos reconhecidos como a graduação proposta pelo administrador da insolvência.
Poder-se-ia colocar a questão de saber se o Tribunal a quo poderia ter recusado a homologação da lista com base em erro manifesto.
A resposta seria negativa: os autos não continham então qualquer elemento que permitisse, de forma evidente, colocar em causa a afirmação, feita pelo administrador da insolvência, de que a insolvente exercia a sua atividade no identificado prédio na data em que foi proferida a sentença declaratória da insolvência.
Não ignoramos que no relatório de avaliação apresentado no apenso de liquidação, no dia 14 de setembro de 2022, está escrito que o prédio se encontrava coberto de vegetação de grande porte, que o envolvia e impedia o acesso ao edifício nele construído. Simplesmente, esse facto foi constatado no dia 25 de agosto de 2022, mais de um ano depois da sentença declaratória da insolvência, afigurando-se, portanto, como demasiado pouco, para usarmos a conhecida expressão de Epicuro de Samos, para suportar uma conclusão contrária à que foi indicada pelo administrador da insolvência na lista de créditos reconhecidos e na proposta de graduação apresentadas.
***
2).4. Sem prejuízo, sempre se dirá que o conhecimento da questão sobre que recaiu o despacho recorrido estava vedado pelo caso julgado material, pelo menos no que tange aos credores indicados no quadro do ponto 1), que viram os seus créditos reconhecidos através das sentenças proferidas através de ações de verificação ulterior de créditos.
Com efeito, em todas essas sentenças já havia sido decidido, com trânsito em julgado, que os créditos em questão têm natureza privilegiada.
Como é sabido, com o trânsito da sentença em julgado, produz-se o caso julgado. É o que resulta do disposto no n.º 1 do art. 619 do CPC, onde está plasmada a noção de caso julgado material. Aí se diz que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580 e 582...”
Através deste instituto pretende-se evitar que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obstando a que sobre uma mesma situação recaiam decisões contraditórias. Trata-se, no fundo, de um meio de garantir a boa administração da justiça, funcionalidade dos tribunais e salvaguarda da paz social, o que só é possível alcançar se sobre os litígios recaírem decisões definitivas. Sem esta proteção, a função jurisdicional seria meramente consultiva; as opiniões – resoluções, na verdade – dos juízes e dos tribunais, não seriam obrigatórias, já que podiam ser provocadas e repetidas de acordo com a vontade dos interessados. Em especial as sentenças, produto mais relevante do poder judicial, deixariam de sujeitar as partes; a sua execução seria sempre provisória; enfim, a segurança do tráfico entre os homens ficaria terrivelmente ameaçada. Não está, portanto, em causa a ideia de que a decisão transitada em julgado é expressão da verdade dos factos, mas a segurança jurídica.
A referida força obrigatória da sentença desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado, prevista e regulada em especial nos arts. 577, i), 580 e 581 do CPC, que pode ser sintetizada através do brocardo non bis in idem; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, a que corresponde o brocardo judicata pro veritate habetur. No caso, releva aquele primeiro.
***
2).5. Ainda que se admitisse que não havia o obstáculo acabado de apontar ao conhecimento da questão relativamente aos créditos enumerados no quadro do ponto 1), sempre se teria de afirmar, sem margem para tergiversações, que uma vez proferida a sentença de 14 de janeiro de 2024 não era permitido ao Tribunal a quo rever o que nela decidiu, respondendo afirmativamente à pretensão do administrador da insolvência, feita sob a capa de um pedido de retificação, ora replicada pela Recorrente. Esta afirmação vale para justificar a proibição de rever o decidido quanto aos créditos do Fundo de Garantia Salarial que, ao contrário daqueles, ainda não tinha sido reconhecido como privilegiado.
Expliquemos.
Com a sentença, o juiz deixa de poder pronunciar-se sobre o objeto da causa. É o que se designa por “esgotamento do poder jurisdicional” (art. 613/1 do CPC).
A sentença atinge, assim, o primeiro nível de estabilidade. Trata-se de uma estabilidade interna, restrita ao órgão que a proferiu (Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 174). O segundo nível, já alargado, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (art. 620), ou mesmo, fora dele, outros tribunais (art. 619), apenas será atingido quando a sentença transitar em julgado, nos termos do art. 628/1.
Aquele primeiro nível de estabilidade significa que, prolatada a sentença, o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais, fundada nos princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz. Como explica Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 127, “[q]ue o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.”
***
2).5.1. Sabemos que a regra comporta ressalvas, conforme resulta, claramente, do n.º 2 do art. 613, onde se diz que “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.”
Estão em causa, portanto, as situações em que o juiz pode retificar erros materiais (art. 614), suprir nulidades (art. 615) e reformar a sentença (art. 616). Este regime, previsto para as sentenças, é aplicável aos despachos (art. 613/3 do CPC).
Sobre as primeiras (retificação de erros materiais) diz o art. 614/1 que “[s]e a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do art. 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.”
Deixando de lado a omissão de custas ou da indicação da proporção a que se refere o n.º 6 do art. 607 do CPC, constatamos que a lei inclui no perímetro possível de rectificações: o suprimento da omissão de indicação do nome das partes; a correcção de erros de escrita ou de cálculo ou de quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
O erro material é habitualmente caracterizado como uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada do juiz, o que o aproxima, em termos conceptuais, da figura do erro-obstáculo própria do direito civil (STJ 12.02.2009, 08A2680; RP 2.06.2014, 3953/12.2TBVNG-B-P1). Ocorre assim quando “o juiz escreveu uma coisa diversa daquela que queria escrever” (RC 10.03.2015, 490/11.6TBOHP-D.C2). Distingue-se do erro de julgamento que ocorre quando há uma divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão. Nestes, o erro reside na própria vontade do juiz, sendo o remédio o recurso destinado a uma modificação ou alteração substancial da decisão (art. 627/1) ou, quando este não seja admissível, a reforma (cf. art. 616/2).
Reconhecendo a dificuldade em apurar a vontade real do juiz, a lei impõe um requisito para que o erro material releve qua tale: a sua natureza manifesta. Erro manifesto é aquele que facilmente se deteta e evidencia por si próprio e no contexto em que a declaração é exarada, à semelhança do que sucede com os erros de cálculo ou de escrita dos atos das partes (art. 146/1). Neste sentido, STJ 26.11.2015 (706/05.6TBOER.L1.S1), onde se conclui que “[n]ão pode ser qualificada como retificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorreção material se não detetava da leitura do respetivo texto.” E evidencia-se não apenas para o juiz que proferiu na decisão, mas também para quem a lê (RC 10.03.2015, 490/11.6TBOHP-D.C2).
Isto transmite claramente a ideia de que, não obstante o erro, quem lê a decisão percebe claramente qual o seu sentido, de modo que as alterações introduzidas não podem por definição, assumir natureza inovatória (RG 30.11.2022, 2273/07.9TBBCL-N.G1). Só assim se compreende, de resto, que a retificação possa ter lugar a qualquer momento, oficiosamente ou a requerimento das partes, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão (RG 22.11.2018, 56/18.0T8BRG.G1).
Na segunda ressalva à regra do esgotamento do poder jurisdicional (supressão de nulidades) estão em causa os vícios formais da sentença, a que aludimos na resposta à 1.ª questão, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).

A este propósito, diz o art. 615/1 que “[é] nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
As nulidades têm, porém, um regime próprio de arguição, previsto no n.º 4 do art. 615. De acordo com este, (a)) se a sentença admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida como fundamento autónomo deste, perante o tribunal ad quem; (b)) se a sentença não admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença, através de reclamação.
Na primeira hipótese, interposto o recurso em que é arguida a nulidade, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso (art. 617/1, 1.ª parte).
Nesta sequência, se o juiz indeferir a arguição não cabe recurso dessa decisão, prosseguindo o recurso para apreciação da questão (art. 617/1, 2.ª parte). Se o juiz suprir a nulidade, considera-se o despacho proferido como complemento ou parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão (art. 617/2). Neste caso, o recorrente pode, em dez dias, desistir do recurso, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração introduzida, permitindo-se que o recorrido responda a tal alteração, em igual prazo (art. 617/3). Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade pretendida (art. 617/4). Como referem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado cit., p. 746), o termo admissibilidade é incorreto: “o tribunal superior pronunciar-se-á, sim, sobre o conteúdo da alteração, isto é, sobre o novo conteúdo da sentença (que a alteração integra) e não sobre se era admissível alterar a sentença.”
Na segunda hipótese, arguida a nulidade perante o juiz que proferiu a sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; no entanto, se a alterar, a parte prejudicada com a alteração pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença (art. 617/6, 1.ª parte).
Na terceira ressalva à regra do esgotamento do poder jurisdicional (reforma) estão em causa situações em que o juiz incorreu em lapso manifesto: na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos [(al. a)]; na não consideração de documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, implicassem decisão diversa da proferida [al. b)].
Como ensinam António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra, 2018, p. 729, o lapso manifesto a que se reporta esta norma tem de ser “evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido.”
No mesmo sentido tem decidido a jurisprudência do STJ, como se pode ver no Acórdão de 18.03.2021 (1012/15.5T8VRL-AU.G1-A.S1), relatado pelo Juiz conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, do qual respigamos a seguinte passagem: “É pressuposto desta reforma a existência de “lapso manifesto”, ou na determinação da norma aplicável, ou na qualificação jurídica dos factos (alíneas a) e b)), ou, finalmente, (alínea b)) na desconsideração de elementos de prova (documental ou outra) constantes dos autos e que, se atendidos, implicariam necessariamente decisão diversa da proferida.
(…)
A reforma da decisão não é um recurso – nem na modalidade de reapreciação ou reponderação, nem da de reexame (aqueles, ao contrário destes, sem possibilidade de “jus novarum”) –, pelo que não pode servir para mera manifestação de discordância do julgado, mas apenas, e sempre perante o juízo decisor – tentar suprir uma deficiência notória.”
Com efeito, importa não esquecer aqui que a possibilidade de reforma de decisão judicial, ao abrigo do preceituado nos arts. 613/2 e 616/2 do CPC constitui um limite ao princípio estruturante consagrado no art. 613/1 do mesmo Código, que impõe a extinção do poder jurisdicional do juiz depois de proferida a decisão.
Como exemplo de erros revelados por recurso a elementos exteriores à decisão, para efeitos de possibilidade da sua reforma à luz do art. 616/2, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 742, apresentam os casos em que o juiz aplica uma norma revogada, omite a aplicação de um norma existente, qualifica os factos com ofensa de conceitos ou princípios elementares de direito ou não repara que está feita a prova documental, por confissão ou por admissão de certo facto, incorrendo assim em erro grosseiro.
***
2).5.2. Como é bom de ver, no caso não se verifica nenhuma situação enquadrável nas apontadas ressalvas ao princípio do esgotamento do poder jurisdicional pelo que, também por aqui, se impõe a conclusão de que ao Tribunal a quo não restava outra alternativa que não fosse a de indeferir, como indeferiu, o pedido de modificação da sentença de verificação e graduação de créditos que lhe foi apresentado pelo administrador da insolvência através do requerimento de 25 de janeiro de 2024.
Se não era possível modificar a sentença, as diligências instrutórias destinadas a apurar da bondade do motivo invocado para esse efeito sempre seria inócuas, estando, assim, proibida a sua realização ut art. 130 do CPC.
A resposta à segunda questão é, portanto, negativa.
***
3) Na improcedência total do recurso, a Recorrente deve suportar as custas respetivas: art. 527/1 e 2 do CPC.
***
IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- Julgar o presente recurso de apelação improcedente;
- Manter a decisão recorrida;
- Condenar a Recorrente no pagamento das custas.
Notifique.
*
Guimarães, 29 de maio de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
2.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício


[1] Afirma-se que a reclamação é um ónus com base no disposto no art. 128/56 do CIRE, onde de diz que “mesmo que o credor tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.” Neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 267.