Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
10/15.3T9BGC-A.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DESPACHO NÃO PRONÚNCIA
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, consubstancia um acto decisório do juiz e, como tal, tem necessariamente de ser fundamentada, com especificação das razões de facto e de direito da respectiva decisão.
II - Padece de falta de fundamentação o despacho de não pronúncia que seja omisso quanto à enunciação dos factos que o tribunal considera suficientemente indiciados e não indiciados.
III - Tal vício reconduz-se a uma mera irregularidade, a qual, porém, por poder afectar o valor do acto praticado, é de conhecimento oficioso, podendo e devendo ordenar-se a sua reparação no momento em que dela se tomar conhecimento, conforme prevê o nº 2 do Artº 123º do C.P.Penal
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 10/15.3T9BGC, que correu termos pela Procuradoria do Juízo de Competência Genérica de ..., da Procuradoria da República da Comarca de Bragança, o Ministério Público, no momento processual a que alude o Artº 276º do C.P.Penal (1), proferiu despacho de arquivamento relativamente a factos participados por N. M. e L. M., por si e em representação de G. A., menor filho de ambos, e C. F., contra S. M., S. P., J. J. e desconhecidos, e por factos participados (na queixa incorporada nos autos) por G. F., por si e em representação de V. A., menor sua filha, contra S. M., “UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DO ..., E.P.E.” e desconhecidos.

Tais factos, de acordo com tal despacho, seriam susceptíveis de configurar, em abstracto, a prática:

- Pelos denunciados S. P. e J. J., em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de quatro crimes de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nºs. 1 e 2, al. b), e de quatro crimes de violação do dever de sigilo agravado, p. e p. pelo Artº 47º, nºs. 1 e 2, al. a), ambos da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (da Lei da Protecção de Dados);
- Pela denunciada S. M., em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de seis crimes de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nºs. 1 e 2, al. b), e de quatro crimes de violação do dever de sigilo agravado, p. e p. pelo Artº 47º, nºs. 1 e 2, al. a), ambos da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (da Lei da Protecção de Dados); e
- Pela denunciada “Unidade Local de Saúde do ..., E.P.E.”, por omissão, em autoria material, na forma consumada, de seis crimes de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artºs. 10º, do Código Penal, e 44º, nºs. 1 e 2, al. b), da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (da Lei da Protecção de Dados).
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2. Inconformados com aquele despacho de arquivamento, vieram os assistentes L. M. e marido, N. M., por si e em representação do menor G. A., C. F., e G. F., por si e em representação da menor V. A., requerer abertura da instrução, nos termos contantes da peça processual cuja cópia consta de fls. 131 Vº/162 Vº, defendendo, a final:

a) Ter a arguida S. M. incorrido:
- Na prática, como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 106 (cento e seis) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente G. A.;
- Na prática, como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 7 (sete) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), da Lei da Protecção de Dados, e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente N. M.;
- Na prática, como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 24 (vinte e quatro) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente L. M.;
- Na prática, como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 6 (seis) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente C. F.;
- Na prática, como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 4 (quatro) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente G. F.; e
- Na prática, como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 2 (dois) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente V. A..
b) Ter a arguida S. P. incorrido na prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, alínea b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente G. A..
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3. Declarada aberta a fase de instrução, após a pertinente tramitação processual, em 30/06/2020 foi proferida a decisão instrutória cuja cópia consta de fls. 178 Vº/205, com o teor que a seguir se transcreve, na parte que ora interessa considerar (2):

“(...)
Vem os assistentes L. M., N. M., por si e em representação da criança G. A., C. F. e G. F., por si e em representação da criança V. A., requerer a abertura de instrução em virtude de não concordar com o despacho de arquivamento proferido nos autos, pugnando pela pronúncia das arguidas S. M. pela prática de 106 crimes de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6.º n.º 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44.º n.º 2 alínea b)) e 14.º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente G. A.; pela prática de 7 crimes de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6.º n.º 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44.º n.º 2 alínea b)) da Lei da Protecção de Dados, e 14.º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente N. M.; pela prática de 24 crimes de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6.º n.º 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44.º n.º 2 alínea b)) e 14.º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente L. M.; pela prática de 6 crimes de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6.º n.º 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44.º n.º 2 alínea b)) e 14.º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente C. F.; pela prática de 4 crimes de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6.º n.º 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44.º n.º 2 alínea b)) e 14.º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente G. F.; e pela prática de 2 crimes de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6.º n.º 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44.º n.º 2 alínea b)) e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente V. A..
e S. P. pela prática de um crime de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6º nº 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44.º n.º 2 alínea b)) e 14.º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente G. A..

Em síntese, alegam os assistentes que conforme consta de fls. 322, as arguidas, sendo enfermeiras, estavam autorizadas a aceder à Plataforma Dados da Saúde/Portal Profissional, podendo nesse âmbito, fazer o acesso em contexto clínico necessitando, cumulativamente, que o utente não se oponha através do portal do utente.

Daí resultando que o acesso autorizado por parte das arguidas à PDS se encontra finalisticamente delimitado ao contexto clínico, isto é, em ambiente de consulta médica, ou da prestação de um cuidado de saúde ao utente, que se encontre na instituição de saúde para esse efeito.
Os enfermeiros, autorizados a aceder a dados de saúde por meios informáticos, ou outros, só podiam, no entanto, aceder-lhes ou consultá-los, por esses meios, quando tivessem permissão legal para tanto, isto é, dentro dos limites que lhes eram impostos pela lei e no estrito respeito pelos seus deveres deontológicos.
Contudo, as arguidas consultaram o processo clínico e a informação médica dos assistentes, sem ser em contexto clínico e sem supervisão de quem quer que fosse, inclusive de médico.
Os assistentes descriminaram os acessos realizados pela arguida S. M. aos processos clínicos daqueles, bem como a forma como tais acessos se encontram nos autos.
Alegam, por sua vez, que as consultas (e respectivas datas de acesso) desta arguida aos processos clínicos dos assistentes ocorreram fora do contexto clínico de consulta, sem intermédio de médico e da prestação de cuidados de saúde pelas arguidas. Sendo que, as assistentes G. F. e V. A. não se encontravam, sequer, inscritas no Centro de Saúde ....
Mais alegam os assistentes que a utilização de dados informatizados na PDS para a prestação de cuidados de enfermagem, deve apenas ocorrer, unicamente, quando o utente necessitado de cuidados estiver presencialmente perante o enfermeiro.
Concluem que a consulta da informação através da PDS (actualmente, RSE – Registo de Saúde Electrónico) devia ser necessária em concreto, restringida ao contexto clínico do utente em causa, sendo necessário que o utente não se opusesse ao acesso e houvesse um episódio activo na instituição de saúde.
As arguidas consultaram as bases de dados disponíveis unicamente para os médicos, como o processo clínico electrónico, via PDS e Via CLÍNICO.../SAM.
Alegam também que, considerando que as arguidas só podiam aceder e consultar o processo clínico e à informação ligada à saúde em contexto clínico de prestação de cuidados de saúde concretos e com os assistentes presentes no Centro de Saúde, nada justifica que tenham usado o sistema informático do Centro de Saúde ... para consultar a informação médica dos assistentes, incluindo do assistente G. A..
Acrescentam que o consentimento dado pelos pais no domínio da Intervenção Precoce (fls. 488) não implica o consentimento para a tomada de conhecimento dos dados de saúde do menor.
O menor G. A. no âmbito da intervenção precoce estava apenas enquadrado na área da educação, não beneficiando de apoios sociais ou de cuidados de saúde por parte da ELI (Equipa Local de Intervenção precoce) ou equipa que a esta estivesse associada, designadamente a EA de ....
Os técnicos que faziam parte da intervenção precoce actuavam individualmente e apenas a Educadora P. D., dentro da equipa, executava medidas com o menor G. A. no âmbito da ELI.
Da leitura das actas das reuniões da EA decorre que a arguida S. P. não teve qualquer intervenção na execução das medidas que estão consagradas no PIIP do menor G. A..
A arguida S. P. integrava a Equipa de Acolhimento, que não tendo base jurídica, era integrada por vários membros das entidades concelhias de diversa natureza de ..., provenientes das três áreas de intervenção referidas e nem era a única profissional da área da saúde.
Nunca existiu, à data da prática dos factos, qualquer relação funcional entre as arguidas, nem a arguida S. P. tinha, sequer, como se viu, qualquer tarefa a delegar na co-arguida, por total ausência de justificação para o efeito, nem o assistente G. A. esteve ao seu cuidado de qualquer uma delas, em qualquer âmbito.
A actuação das arguidas não coincidiu, nem resultou de episódios de consulta realizados pelo assistente G. A., bem sabendo estas que só dentro deste contexto podem pedir a outro colega para aceder a informação de saúde na estrita medida necessária à tarefa que se lhe imponha realizar.
A arguida S. M. não é nem nunca foi enfermeira de família, ou trabalhou com o médico de família dos assistentes N. M., L. M., G. A. e C. F., tendo-o sido, apenas, enfermeira de família das assistentes G. F. e V. A. num período fora das datas de acesso e consulta dos seus dados de saúde.
Alegam ainda que, a arguida S. M. declarou que tomando conhecimento do facto de os pais do assistente G. A. não terem realizado uma consulta de psicologia naquele Centro de Saúde, decidiu fazer um estudo sobre a saúde do assistente G. A. e a família destes, aqui cingida aos demais assistentes.
Concluem que as arguidas acederam e tomaram conhecimento de informação de saúde dos assistentes, fora de contexto clínico, extravasando, portanto, a autorização de que dispunham na qualidade de enfermeiras para entrarem na base de dados existentes em sistema informático e tomarem conhecimento de dados que são considerados confidenciais.
Neste contexto, as assistentes alegam que as arguidas actuaram fora da permissão legal que lhes permite consultar dados de saúde em contexto clínico, uma vez que não actuaram ao abrigo da necessidade de aceder a informação, estando os assistentes no Centro de Saúde para receber cuidados ou em consulta médica.
As arguidas agiram motivadas apenas por interesses e gáudio pessoal, saciando a sua curiosidade, atingindo o íntimo da vida privada dos assistentes, a sua saúde e tal não é permitido por lei. Não está abrangida pela autorização.
As arguidas agiram em manifesto abuso dos termos da autorização concedida aos enfermeiros para acederem ou conhecerem as informações de saúde dos assistentes, registadas no sistema informático referido, extravasando os limites dessa autorização, pelo que os acessos e consultas que fizeram, no sistema informático, às plataformas PDS e CLÍNICO.../SAM daqueles, foram ilegítimos.
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Realizaram-se as diligências instrutórias requeridas que se consideraram relevantes para a descoberta da verdade.

Realizou-se o debate instrutório com observância do legal formalismo.
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O Tribunal é competente.
Não há nulidades, ilegitimidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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Cumpre apreciar e decidir.
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Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por sua vez, determina o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.

Assim, a função da presente instrução é a de apreciar se nos autos existem indícios da prática pelas arguidas do crime de acesso ilegítimo agravado que sejam suficientes para as submeter a julgamento.

Face ao disposto nos artigos 283º, nº 2 e 308º, nº 2 do Código de Processo Penal, consideram-se indícios suficientes “sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.
Haverá indícios suficientes quando está em causa um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.

Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;
- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou
- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura.

Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infracção, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
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Pugnam os assistentes pela pronúncia da arguida S. M. pela prática de 106 crimes de acesso ilegítimo agravado, perpetrados na pessoa do assistente G. A.; pela prática de 7 crimes de acesso ilegítimo agravado, perpetrados na pessoa do assistente N. M.; pela prática de 24 crimes de acesso ilegítimo agravado, perpetrados na pessoa da assistente L. M.; pela prática de 6 crimes de acesso ilegítimo agravado, perpetrados na pessoa da assistente C. F.; pela prática de 4 crimes de acesso ilegítimo agravado, perpetrados na pessoa da assistente G. F., e pela prática de 2 crimes de acesso ilegítimo agravado, perpetrados na pessoa da assistente V. A., todos previstos e puníveis pelo artigo 6º nº 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44º nº 2 alínea b)) e 14º do Código Penal;

E pela pronúncia da S. P. pela prática de um crime de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6.º n.º 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44.º n.º 2 alínea b)) e 14.º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente G. A..

Estabelece o artigo 6º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro – Lei do Cibercrime, que “1 - Quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem ilegitimamente produzir, vender, distribuir ou por qualquer outra forma disseminar ou introduzir num ou mais sistemas informáticos dispositivos, programas, um conjunto executável de instruções, um código ou outros dados informáticos destinados a produzir as acções não autorizadas descritas no número anterior.
3 - A pena é de prisão até 3 anos ou multa se o acesso for conseguido através de violação de regras de segurança.
4 - A pena é de prisão de 1 a 5 anos quando:
a) Através do acesso, o agente tiver tomado conhecimento de segredo comercial ou industrial ou de dados confidenciais, protegidos por lei; ou
b) O benefício ou vantagem patrimonial obtidos forem de valor consideravelmente elevado.
5 - A tentativa é punível, salvo nos casos previstos no n.º 2.
6 - Nos casos previstos nos n.os 1, 3 e 5 o procedimento penal depende de queixa.”

Por sua vez, o artigo 44º da Lei da Protecção de Dados previa:

1 - Quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a dados pessoais cujo acesso lhe está vedado é punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias.
2 - A pena é agravada para o dobro dos seus limites quando o acesso:
a) For conseguido através de violação de regras técnicas de segurança;
b) Tiver possibilitado ao agente ou a terceiros o conhecimento de dados pessoais;
c) Tiver proporcionado ao agente ou a terceiros benefício ou vantagem patrimonial.
3 - No caso do nº 1 o procedimento criminal depende de queixa.”

Contudo, este artigo foi revogado com a entrada em vigor da Lei nº 58/2019, de 08 de Agosto, Lei da Protecção de Dados Pessoais, que passou a prever o acesso indevido no seu artigo 47º:

Acesso indevido
1 - Quem, sem a devida autorização ou justificação, aceder, por qualquer modo, a dados pessoais é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - A pena é agravada para o dobro nos seus limites quando se tratar dos dados pessoais a que se referem os artigos 9º e 10º do RGPD.
3 - A pena é também agravada para o dobro nos seus limites quando o acesso:
a) For conseguido através de violação de regras técnicas de segurança; ou
b) Tiver proporcionado ao agente ou a terceiros benefício ou vantagem patrimonial.”

O bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime, previsto no artigo 6º da Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro – Lei do Cibercrime, é segurança do sistema informático ou aquilo a que se tem chamado a inviolabilidade do domicílio informático.

A infracção tem por fim impedir qualquer penetração nos sistemas ou redes informáticas, ou seja, equivale a uma protecção antecipada e indirecta contra riscos de danos e até da espionagem informática.

Em resumo o tipo incriminador tem por finalidade reprimir qualquer penetração abusiva em sistemas ou redes informáticas. É o chamado furtum usus dado que o agente beneficia pelo facto de estar dentro do sistema ou rede informática, uma vez que basta que a vantagem seja tão só a própria utilização do sistema informático, havendo quem considere isto uma forma especial de furto de serviços.

Como elementos típicos temos assim:

- não estar autorizado
- a acção consiste em aceder, de qualquer modo, a um sistema ou rede informáticos.

Assim é um crime de execução não vinculada, dado que o agente pode aceder ao sistema ou rede informáticos mediante qualquer forma, ou seja, e a titulo de exemplo, mediante ou não o uso de password.

Quanto ao elemento subjectivo este não exige qualquer intenção específica (como seja o prejuízo ou a obtenção de benefício ilegítimo), ficando preenchido com o dolo genérico de intenção de aceder a sistema.
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Importa ainda considerar o disposto:

No artigo 29º, relativo a “Tratamento de dados de saúde e dados genéticos” da Lei nº 58/2019, de 08 de Agosto – Lei da Protecção de Dados Pessoais, o qual refere que “1 - Nos tratamentos de dados de saúde e de dados genéticos, o acesso a dados pessoais rege-se pelo princípio da necessidade de conhecer a informação.
2 - Nos casos previstos nas alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 9.º do RGPD, o tratamento dos dados previstos no n.º 1 do mesmo artigo deve ser efetuado por um profissional obrigado a sigilo ou por outra pessoa sujeita a dever de confidencialidade, devendo ser garantidas medidas adequadas de segurança da informação.
3 - O acesso aos dados a que alude o número anterior é feito exclusivamente de forma eletrónica, salvo impossibilidade técnica ou expressa indicação em contrário do titular dos dados, sendo vedada a sua divulgação ou transmissão posterior.
4 - Os titulares de órgãos, trabalhadores e prestadores de serviços do responsável pelo tratamento de dados de saúde e de dados genéticos, o encarregado de proteção de dados, os estudantes e investigadores na área da saúde e da genética e todos os profissionais de saúde que tenham acesso a dados relativos à saúde estão obrigados a um dever de sigilo.
5 - O dever de sigilo referido no número anterior é também aplicável a todos os titulares de órgãos e trabalhadores que, no contexto do acompanhamento, financiamento ou fiscalização da atividade de prestação de cuidados de saúde, tenham acesso a dados relativos à saúde.
6 - O titular dos dados deve ser notificado de qualquer acesso realizado aos seus dados pessoais, cabendo ao responsável pelo tratamento assegurar a disponibilização desse mecanismo de rastreabilidade e notificação.
7 - As medidas e os requisitos técnicos mínimos de segurança inerentes ao tratamento de dados a que alude o nº 1 são aprovados por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da saúde e da justiça, que deve regulamentar, nomeadamente, as seguintes matérias:
a) Estabelecimento de permissões de acesso aos dados pessoais diferenciados, em razão da necessidade de conhecer e da segregação de funções;
b) Requisitos de autenticação prévia de quem acede;
c) Registo eletrónico dos acessos e dos dados acedidos.”

Bem como o artigo 30º do mesmo diploma, o qual estabelece que

1 - Os dados relativos à saúde podem ser organizados em bases de dados ou registos centralizados assentes em plataformas únicas, quando tratados para efeitos das finalidades legalmente previstas no RGPD e na legislação nacional.
2 - As bases de dados de saúde ou registos centralizados assentes nas plataformas únicas referidas no número anterior devem preencher os requisitos de segurança e de inviolabilidade previstos no RGPD.
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Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos tanto em sede de inquérito como em sede de instrução:

O documento constante de fls. 27 descrimina o histórico de acessos na Plataforma de Dados da Saúde (de ora em diante designada de PDS), relativos ao utente C. F., na instituição ..., com o tipo de episódio enfermagem e com o profissional Enf. S. M.. Acessos descriminados com tendo ocorrido em 14-01-2013, 21-01-2013, 18-02- 2013, 11-03-2013, 24-05-2013, 11-06-2013 e 13-09-2013.
O documento constante de fls. 28 relata o mesmo tipo de acesso, relativamente ao utente N. M., nas seguintes datas: 21-01-2013, 24-05-2013, 28-10-2013, 05-11-2013, 09-12-2013 e 28-04-2013.
O mesmo sucede com o documento constante de fls. 29 e 30, desta feita, relativamente à utente L. M., em 14-01-2013, 21-01-2013, 18-02-2013, 22-02-2013, 11-03-2013, 25-03-2013, 09-05-2013, 24-05-2013, 27-05-2013, 30-05-2013, 03-06-2013, 11-06-2013, 18-06-2013, 10-07-2013, 01-10-2013, 08-10-2013, 25-10-2013, 05-11-2013, 30-12-2013, 09-01-2014, 27-01-2014, 24-02-2014 e 14-03-2014.
O documento de fls. 31 a 35 descreve idênticos acessos relativamente ao utente G. A., em 14-01-2013, 21-01-2013, 28-01-2013, 07-02-2013, 18-02-2013, 22-02-2013, 25-02-2013, 27-02-2013, 04-03-2013, 05-03-2013, 11-03-2013, 14-03-2013, 21-03-2013, 25-03-2013, 01-04-2013, 04-04-2013, 15-04-2013, 08-05-2013, 14-05-2013, 22-05-2013, 24-05-2013, 27-05-2013, 30-05-2013, 03-06-2013, 04-06-2013, 11-06-2013, 18-06-2013, 20-06-2013, 25-06-2013, 01-07-2013, 08-07-2013, 10-07-2013, 15-07-2013,22-07-2013, 25-07-2013, 29-07-2013, 31-07-2013, 02-08-2013, 05-08-2013, 09-09-2013, 01-201-2013, 08-10-2013, 17-10-2013, 23-10-2013, 25-10-2013, 05-11-2013, 07-11-2013, 26-11-2013, 03-12-2013, 05-12-2013, 30-12-2013, 06-01-2014, 09-01-2014, 20-01-2014, 22-01-2014, 27-01-2014, 29-01-2014,04-02-2014, 10-02-2014, 11-02-2014, 12-02-2014, 12-02-2014, 19-02-2014, 24-02-2014, 27-02-2014, 06-03-2014, 14-03-2014, 18-03-2014, 20-03-2014, 24-03-2014, 28-03-2014, 02-04-2014, 07-04-2014, 09-04-2014,10-04-2014, 11-04-2014, 12-05-2014, 19-05-2014, 21-05-2014, 28-05-2014, 03-06-2014, 11-06-2014, 12-06-2014, 17-06-2014, 25-06-2014, 26-06-2014, 30-06-2014, 02-07-2014 e 03-07-2014. Bem como, um acesso efectuado pelo profissional Enf. S. P., em 11-02-2014, relativamente ao utente G. A..
De acordo com o teor do documento constante de fls. 38, a Unidade Local de Saúde do ... (de ora em diante ULS...), na pessoa da vogal executivo do conselho de administração, Dra. A. P., esclarece que “Auscultada a Sr.ª Enfermeira Chefe do Centro de Saúde e respectiva equipa, sobre o caso em apreciação, foi-nos transmitido que a Sra. Enfermeira S. M. é o elemento de interligação entre a Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados e a Unidade de Cuidados na Comunidade, facilitando a circulação da informação e consequente continuidade de cuidados. Os registos clínicos foram solicitados pelos profissionais da Unidade de Cuidados na Comunidade, uma vez que um elemento da família de V.Ex.a integra um programa daquela Unidade. Foi-nos, ainda, referido pelos profissionais, a dificuldade de acesso à Plataforma (PDS), o que origina o registo de várias consultas.
A fls. 39, o conselho de administração da ULS..., em resposta à assistente L. M., esclarece que “Por forma a garantir a continuidade de cuidados ao seu filho foi necessário consultar os registos clínicos através da Plataforma de Dados da Saúde (PDS). Esta consulta foi efectuada pela Sr.ª Enfermeira S. M. por solicitação da Sr.ª Enfermeira S. P., Enfermeira responsável da Intervenção Precoce no Centro de Saúde ..., dado ter havido necessidade de aceder a informação clínica resultante de consultas fora do Centro de Saúde. O acesso aos dados clínicos dos restantes membros da família, nomeadamente da Sr.ª C. F., com recurso à PDS, ocorreu em contexto de intersubstituição da Enfermeira de Família, Enf.ª N. B., que se encontrava ausente por licença de maternidade (13.09.2013) e solicitação de ajuda por parte de outros profissionais dadas as dificuldades de acesso no início da utilização da PDS.”
Conforme consta de fls. 40, em resposta à assistente L. M., o conselho de administração da ULS... esclarece que “O acesso aos seus dados clínicos com recurso à PDS, ocorreu em contexto de intersubstituição da Enfermeira de Família, Enf.ª N. B., que se encontrava ausente por licença de maternidade (13.09.2013).”
De fls. 42 a 48 consta que os assistentes C. F., N. M., L. M. e G. A. têm em “os meus dados” na PDS a autorização concedida para que “Profissionais de saúde credenciados podem consultar a minha informação clínica registada no Serviço Nacional de Saúde”.
De fls. 78 consta que a Enf.ª N. B. gozou de licença de maternidade de 15-07-2013 a 11-12-2013.
De fls. 79 a 81 consta que a assistente C. F. teve consulta no Centro de Saúde ... em 15-07-2014, em 07-07-2014 e 13-09-2013.
De fls. 82 consta que no período de 01-01-2013 a 31-12-2014 a assistente C. F. tinha como enfermeira de família a Enf.ª N. B..
De fls. 83 a 94 consta que o assistente G. A. teve consulta no Centro de Saúde ... em 13-10-2013, 16-04-2014, 01-12-2013, 07-11-2013, 13-10-2013, 17-09-2013, 07-09-2013, 01-08-2013, 30-07-2013, 29-07-2013, 20-05-2013, 21-02-2013.
De fls. 95 consta que no período de 01-01-2013 a 31-12-2014 o assistente G. A. tinha como enfermeira de família a Enf.ª N. B.. Contudo, nos registos descritos em tal documento aparece mencionado um registo datado de 14-01-2013, referente a esse mesmo dia, no Centro de Saúde ..., pela Enf.ª S. M., relativo aos seguintes programas de saúde: saúde infantil e intervenção precoce; um registo datado de 28-01-2013, referente a esse mesmo dia, no Centro de Saúde ..., pela Enf.ª S. M.; e um registo datado de 22-02-2013, referente a esse mesmo dia, no Centro de Saúde ..., pela Enf.ª S. M., relativo aos seguintes programas de saúde: saúde infantil, tratamento de feridas/ulceras e intervenção precoce.
De fls. 98 a 104 consta que o assistente N. M. teve consulta no Centro de Saúde ... em 29-05-2014, 20-05-2014, 09-12-2013, 11-09-2013, 18-01-2013, 08-01-2013.
De fls. 105 consta que no período de 01-01-2013 a 31-12-2014 o assistente N. M. tinha como enfermeira de família a Enf.ª V..
De fls. 107 a 110 consta que a assistente L. M. teve consulta no Centro de Saúde ... em 08-05-2014, 03-12-2013, 19-04-2013 e 05-04-2013.
De fls. 111 consta que no período de 01-01-2013 a 31-12-2014 o assistente N. M. tinha como enfermeira de família a Enf.ª N. B..
De fls. 112 e seguintes consta o Plano Individual de Intervenção Precoce (de ora em diante PIIP) do assistente G. A., na Equipa de Macedo de Cavaleiros, com as coordenadoras D. P. e H. R., e com as responsáveis de caso D. F. e P. D., tendo como início 10-04-2011 e avaliações previstas em 10-10- 2011, 29-06-2012 e 12-07-2013. Sendo que, de fls. 113, se encontram identificados como elementos envolvidos no PIIP: L. M. (mãe), D. F. (terapeuta da fala), P. D. (educadora), S. P. (enfermeira) A. V. e C. C. (educadora do jardim de infância), M. J. (terapeuta da fala) e S. e A. I. (terapeutas ocupacionais).
Encontra-se ainda registado um encontro/reunião da família com os técnicos enfermeira e educadora para reavaliação, no Centro de Saúde ..., em 03-01-2012.
Bem como a fls. 120, se encontra também registado um encontro/reunião da família com os técnicos enfermeira e educadora para avaliação do PIIP, no Centro de Saúde, em 17-10-2012.
De fls. 133 consta que os assistentes L. M. e N. M., pais do assistente G. A., assinalaram as seguintes caixas de texto: “participamos na elaboração do PIIP”, “estamos de acordo com o PIIP”, “concordamos em fazer parte desta equipa e em colaborar na implementação do PIIP” e “temos em nosso poder um exemplar deste plano”, tendo aposto a sua assinatura em 03-01-2012.
Nessa mesma data, e conforme consta de fls. 133, assinaram ainda S. P. e P. D., na qualidade de outros elementos que intervêm no PIIP.
De fls. 134 consta documento idêntico, datado de 17-10-2012, assinado pela assistente L. M., e por A. V. e P. D., como elementos que intervêm no PIIP.
A fls. 158, os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E. (de ora em SPMS) esclareceram os autos que “Os profissionais de saúde, designadamente os enfermeiros colocados no Centro de Saúde ..., para além do acesso à Plataforma de Dados da Saúde (PDS), têm acesso à aplicação CLÍNICO.... Através da aplicação CLÍNICO... no Centro de Saúde ..., os enfermeiros podem aceder ao registo clínico local dos utentes, acesso que lhes permite visualizar a seguinte informação: - Dados do Utente: Alergias e alertas médicos; Alertas de enfermagem: Dados de vigilância inicial de enfermagem; Problemas pessoais e familiares; Focos de atenção/diagnósticos de enfermagem; Resultados de MCDT’s; Referenciação externa e interna; Processo familiar e Documentos emitidos; - Episódios de Consulta: Registo clinico (SOAP); Diagnósticos;
Prescrições receitas; mcts, CIT’s; Programas de saúde; Referenciações (externas, internas, programas de saúde, urgência).”
De fls. 159 a 162 verso, consta a lista dos acessos ao processo clínico electrónico via CLÍNICO.../SAM, através da fonte base de dados SINUS Centro de Saúde ..., extraídos em 23-04-2014, para o que por agora interessa, por parte das enfermeiras S. M. (com o número profissional ...) e S. P. (com o número profissional …), em relação aos assistentes L. M. (com o número do cartão do SNS ………), C. F. (com o número do cartão do SNS ………), G. A. (com o número do cartão do SNS ………) e N. M. (com o número do cartão do SNS ………).
De fls. 204 e seguintes consta um parecer elaborado por parte da Sra. Enf. Directora da ULS..., L. P., no qual se encontra descrito que “A consulta dos registos clínicos do filho da Sr.ª L. M., através da PDS, pela Enf.ª S. M., deve-se ao facto de, no Centro de Saúde ..., ser o elemento referenciador/interligação entre a Unidade de Saúde Personalizados (Saúde Familiar) e Unidade de Cuidados na Comunidade, facilitando a circulação da informação e consequente continuidade de cuidados (informação dada pela Sr.ª Enf.ª S. P., em anexo). O acesso aos registos clínicos dos restantes membros da família nomeadamente da Sr.ª C. F., com recurso à PDS, ocorreu em contexto de intersubstituíção do Enfermeiro de família “Enf.ª N. B.” que se encontrava ausente por Licença de Maternidade (13-09-2013) e as restantes consultas em colaboração com o enfermeiro de família (conforme demonstram os horários em anexo). Referir ainda que, na maioria das datas indicadas a Enf.ª S. M. acedeu de facto à PDS, para recolha de informação, sendo apenas tentativas, uma vez que, não visualizou os registos, ficando no entanto o acesso gravado. A utilidade da informação recolhida na PDS é de extrema importância não só para a continuidade de cuidados, tomada de decisão dos profissionais, como também para completar os registos no processo de enfermagem no âmbito da enfermagem familiar, facilitando o cumprimento de objectivos/indicadores quer da equipa de família quer da Unidade Funcional. (…) No caso em apreciação, parece não haver, por parte da Enf.ª S. M., falta de respeito pelo princípio da confidencialidade e pelo valor intrínseco do sigilo profissional, sendo respeitado o dever de sigilo plasmado no artigo 85º dos Estatutos da Ordem dos Enfermeiros (Decreto-lei 111/2009).
A fls. 208 e seguintes consta o depoimento prestado pela Enf.ª L. P., no qual a mesma volta a salientar, relativamente à arguida S. M., que esta terá acedido, através da PDS, aos dados clínicos dos assistentes em virtude de ser o elemento referenciador/interligação entre a Unidade de Saúde Personalizados (Saúde Familiar) e Unidade de Cuidados na Comunidade. Acrescentou ainda que a Enf. S. M. também poderá ter acedido aos dados clínicos em regime de substituição de outras enfermeiras porque o sistema de inter-substituição é permanente. Mais salientou que o sistema informático é recente (de Setembro de 2013), não sendo raras as vezes em que os enfermeiros têm dificuldades de acesso e pedem a outro colega para que tentem aceder por eles. Mais esclareceu que, por vezes, os utentes são assistidos pelo médico de família, sem passarem pelo serviço de enfermagem, o que não significa, ainda assim, que o enfermeiro que esteja de serviço não aceda aos dados clínicos, pois só assim podem conhecer a situação clínica do utente.
Para além disso, mencionou ainda no decorrer do seu depoimento que, os Centos de Saúde têm de cumprir determinados objectivos fixados pela tutela, como seja garantir a vacinação das crianças ou a realização de determinados exames e é natural, até porque é o seu dever, que os profissionais de saúde acedam às bases de dados disponíveis para saber se a situação dos utentes se encontra regularizada, sendo o papel dos profissionais de saúde um papel pro-activo e não meramente reactivo.
Acrescentou também, relativamente à Enf. S. P., que a mesma exercia as funções de enfermeira na Unidade de Cuidados na Comunidade, onde se encontra integrado o programa de intervenção precoce, no qual participava o assistente G. A..
Questionada sobre o motivo porque a Enf. S. P. apenas terá acedido numa única ocasião à plataforma informática para consultar os dados daquela criança, referiu ser provável que a mesma pedisse a outras enfermeiras para que acedessem por ela a essa informação, provavelmente por não ter o código de acesso.
A fls. 218 e seguintes consta o depoimento prestado pelo médico Dr. M. S,., no decorrer do qual referiu que existe um sistema de intersubstituição de enfermeiros no Centro de Saúde ... consistindo o mesmo na substituição dos referidos profissionais de saúde, nomeadamente enfermeiros, nas situações em que existe algum impedimento dos mesmos no exercício das suas funções (nos casos de férias, faltas, licenças ou qualquer ausência do serviço). Corroborou a informação de acordo com a qual os centros de saúde têm de cumprir determinados objectivos fixados pela tutela como sejam garantir a vacinação das crianças ou a realização de exames, tendo os mesmos um papel pro-activo. Acrescentando existir um programa próprio para aceder aos dados de vacinação. Acrescentou ainda que, não obstante, os pacientes serem assistidos pelo médico sem passarem pelo serviço de enfermagem, o enfermeiro de serviço deve conhecer a situação clínica do paciente e assim aceder aos seus dados para posterior fornecimento dos mesmos ao médico que irá realizar a consulta. Tal ocorre com frequência uma vez que os centros de saúde estão abertos aos fins de semana, existindo as correspondentes folgas dos profissionais de saúde no período semanal.
De fls. 228 e 229 consta o depoimento prestado por A. P., do qual consta que, o elemento de interligação entre a Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados e a Unidade de Cuidados na Comunidade é o enfermeiro de família e o médico de família, ou seja, a equipa de saúde do utente que é constituída por um médico, um enfermeiro e um administrativo. Acrescentou que a equipa da Unidade de Cuidados na Comunidade, que é composta apenas por um enfermeiro em permanência, podendo quando necessário recorrer a outros profissionais de saúde, trabalha em articulação com a equipa anterior. Assim, conclui que não existe apenas um elemento de interligação, mas sim uma equipa constituída por elementos que trabalham articuladamente.
Acrescenta ainda que a acedência à PDS só pode ser feita para fins de tratamentos terapêuticos e estudo clínico do utente na devida altura, isto é, num contexto de prestação de cuidados de saúde.
Esta testemunha confirmou ainda, por reporte aos documentos de fls. 38 e 39, que confirma o seu teor, nomeadamente no que respeita à dificuldade de acesso à PDS, sendo que em momentos concretos e coincidentes com a necessidade da consulta, o profissional de saúde, neste caso o enfermeiro pode pedir apoio a outro colega que tenha a plataforma aberta e tenha uma melhor acessibilidade. No princípio da instalação os problemas informáticos de acesso à PDS eram mais frequentes.
A fls. 254 consta um e-mail enviado por R. R., através de endereço profissional terminado em “@uls....min-saude.pt”, dirigido aos enfermeiros chefes, no qual e a propósito da PDS refere que “A plataforma permite o acesso a informação dos cidadãos que tenham número de utente no Serviço Nacional de Saúde e aos profissionais de saúde em diversos pontos do SNS (hospitais, urgências, cuidados primários, rede nacional de cuidados continuados).”
De fls. 256 e 257 consta as declarações prestadas pela arguida S. M., em sede de inquérito, e nas quais a mesma refere que é enfermeira no Centro de Saúde ..., no qual trabalha em equipa em modo de intersubstituição, sendo natural que as enfermeiras, sempre que necessário, chamem a si doentes de outras que se encontrem impedidas por qualquer motivo.
A arguida esclareceu que os enfermeiros têm indicadores mensais que têm de cumprir, entre eles a consulta da PDS, no sentido de verificar a situação clínica dos utentes.
Relativamente aos acessos aos dados da assistente C. F., a arguida refere que é possível que tenha acedido uma ou duas vezes, e não a quantidade de vezes que vem descrita na participação, porque, no início da instalação da PDS, esta apresentava vários problemas informáticos, nomeadamente a tentativa de acesso aos dados, que mesmo que não fosse possível aceder ficava o registo de que a enfermeira tinha acedido, sem, no entanto, esse acesso ter sido efectuado. A maioria das vezes, embora ficasse registado o acesso, o mesmo não tinha sido efectuado.
No que respeita aos dados clínicos dos assistentes L. M. e N. M. refere que é provável que, no âmbito das suas funções, tenha acedido aos dados clínicos dos mesmos, mas única e exclusivamente no âmbito das suas funções.
Relativamente ao assistente G. A., esclareceu que a enfermeira S. P., a qual fazia parte da Equipa de Intervenção Precoce (EIP), onde se incluía o assistente, a dada altura, uma vez que o serviço era muito, pediu uma ajuda à arguida. Nesse sentido, e a pedido da enfermeira S. P., consultava frequentemente os dados do assistente G. A., no sentido de verificar se aquele ia às consultas de terapia da fala, inserido no plano da EIP, uma vez que aquela enfermeira tinha de elaborar que elaborar um plano sobre as crianças que frequentavam esse plano.
Mais esclareceu que os acessos aos dados do assistente G. A. poderiam ter sido efectuados no sentido de verificar se o mesmo teria ido às consultas e/ou até o estado em que se encontrava a respectiva vacinação.
De fls. 262 consta um e-mail enviado pela enfermeira S. P. à enfermeira L. P., informando que, estando o assistente G. A. integrado na EIP de ... e havendo necessidade de ter acesso a informação clínica decorrente de consultas fora da sua Unidade de Saúde Local, para garantir a continuidade de cuidados, houve necessidade de consultar a PDS do menor em causa, tendo essa consulta de informação sido solicitada por ela, na qualidade de enf.ª responsável da IP à colega enf.ª S. M., por esta colaborar ca Unidade de Cuidados na Comunidade.
De fls. 264 a 266 consta as declarações prestadas pela arguida S. P., em sede de inquérito, e nas quais a mesma refere que é enfermeira e exerceu funções no Centro de Saúde ... de 2011 a 2014, onde era responsável pela Unidade de Cuidados na Comunidade e representante da Equipa de Acolhimento de ... na Equipa Local de Intervenção de Macedo de Cavaleiros.
A referida equipa de acolhimento era constituída por vários técnicos de diferentes Ministérios e parceiros, tendo o assistente G. A. sido, na altura, acompanhado pela referida EIP.
Acrescentou que tal acompanhamento pressupunha que, sempre que necessário, fosse consultado o processo clínico do menor em causa na PDS, uma vez que à data o mesmo se encontrava a ser seguido num hospital no Porto.
Na qualidade de representante da AE tinha a seu cargo todos os processos do concelho de .... Pelo que, atento o volume de serviço, era normal que, por vezes, tivesse pedido às suas colegas o acesso à PDS do assistente G. A., para manter o processo sempre actualizado. Concretizou que pediu colaboração à enf.ª S. M. no acesso aos dados do G. A., como de outras crianças, porque na altura e ainda hoje faz parte da Equipa Sinalizadora da Equipa de Cuidados na Comunidade Integrados.
Referiu ainda a arguida S. P. que nunca acedeu ou pediu à enf.ª S. M. para aceder aos dados da restante família do G. A., acrescentando, porém, que se aquela o fez foi no estrito cumprimento das suas funções.
Confirmou que o programa tem bastantes problemas informáticos e muitas vezes ao tentar não se consegue entrar, ficando o registo como se tivesse acedido. A ter conseguido aceder foi porque no âmbito das suas funções tal foi necessário.
De fls. 278 e 279 consta o depoimento prestado por J. J., no qual, e para o que por agora interessa, afirmou que existem objectivos contratualizados com a tutela (ULS ... e ARS Norte) no sentido de acompanhar a saúde dos utentes de todos os cuidados de saúde integrados dos cuidados de saúde primários. No tocante às crianças, tais cuidados de saúde reportam-se à vacinação, saúde infantil. E relativamente aos adultos, tais cuidados reportam-se aos diabéticos e hipertensos e à saúde do adulto, nomeadamente quando os utentes são transferidos de outra unidade hospitalar.
De fls. 281 e 282 consta o depoimento prestado pela enf.ª L. P., no qual a mesma confirmou a contratualização de objectivos por parte da tutela, os quais passam pelo registo das actividades desenvolvidas pelos profissionais de saúde, médicos e enfermeiros, no sentido de acompanhar a saúde dos utentes. Refere que tais objectivos passam quase sempre obrigatoriamente pela consulta da área do utente, no sentido de monitorizar os cuidados de saúde do mesmo. No tocante às crianças tais objectivos passam pelo acompanhamento da vacinação, vigilância de saúde infantil, desenvolvimento infantil, tetecção de maus-tratos, relação pais filhos, papel parental da família. Acompanhamento dos adultos com diabetes e hipertensos e acompanhamento de utentes vindos de outros estabelecimentos de saúde. Sobre acessos por outros motivos refere que os profissionais podem ter alguma outra razão para aceder aos dados dos utentes, nomeadamente estudo da família continuidade de cuidados ou outro.
Acrescentou que, por diversas vezes, acontece que os profissionais de saúde tentam entrar na PDS, não o conseguem, mas as tentativas de acesso ficam registadas como de um acesso normal se tratasse.
De fls. 283, consta que no período compreendido entre 14-01-2013 a 03-07-2014, as arguidas S. M. e S. P. exerciam funções no Centro de Saúde ..., tendo esta última terminado funções em 30-06-2020.
De fls. 288 consta que nos anos de 2013/2014, o assistente N. M. tinha a Enf.ª V. T. como enf.ª de família e as assistentes L. M. e C. F. tinham a enf.ª N. B..
O documento constante de fls. 299 descrimina o histórico de acessos na PDS, relativos ao utente G. F., na instituição ..., com o tipo de episódio enfermagem e com o profissional Enf. S. M.. Acessos descriminados com tendo ocorrido em 18-02-2013, 11-03-2013, 21-03-2013 e 05-11-2013.
O documento constante de fls. 300 relata o mesmo tipo de acesso, relativamente à utente V. A., em 18-02-2013 e 21-03-2013.
A fls. 304 consta um esclarecimento prestado pela ULS..., a solicitação da assistente G. F., através do qual aquela entidade informa que a enf.ª S. M. é enf.ª de família das assistentes G. F. e V. A., tendo como responsabilidade efectuar a vigilância do cumprimento dos programas de saúde, independentemente da consulta presencial dos utentes do seu ficheiro. Mais esclarecem que os enfermeiros trabalham em equipa de forma articulada e muitas das vezes em regime de intersubstituíção, necessitando regularmente de consultar dados de saúde através da PDS.
De fls. 316 consta que a assistente G. F. se inscreveu no Centro de Saúde ... em 20-08-2013, sendo que de 25-01-2013 a 20-08-2013 esteve inscrita no Centro de Saúde de Matosinhos. Tendo estado, anteriormente, de 31-10-1997 a 08-06-2011 inscrita no Centro de Saúde ....
De fls. 318 consta que a assistente V. A. se inscreveu no Centro de Saúde ... em 20-08-2013, sendo que de 25-01-2013 a 20-08-2013 esteve inscrita no Centro de Saúde de Matosinhos.
A fls. 322, os SPMS esclarecem que a enf.ª S. M. encontra-se autorizada a aceder à PDS, podendo fazer acesso em contexto clínico necessitando, cumulativamente, que o utente não se oponha através do portal do utente. Confirmam os acessos da enf.ª S. M. aos dados das assistentes G. F. (apenas nas datas 11-03-2013, 21-03-2013 e 05-11-2013) e V. A. (apenas na data 18-02-2013).
De fls. 334, a ULS... informa que as assistentes G. F. e V. A., a partir de 14-11-2013 a Outubro de 2015, tiveram como enf.ª de família a enf.ª S. M..
De fls. 340 e seguintes encontra-se uma listagem de acessos enviada pelos SPMS, entre 14-01-2013 a 03-07-2014, efectuados por S. M., e relativos aos assistentes.
De fls. 389 e 390 constam as declarações prestadas pela arguida S. M., nas quais confirma as anteriormente prestadas.
Acrescentou que enquanto o menor G. A. esteve sujeito ao PIP, a arguida, enquanto elo de ligação entre a Unidade Familiar e a UCC teve conhecimento que os pais do G. A. recusaram conversar com a psicóloga integrada na EIP e, porque exercia as referidas funções de elo de ligação entre as unidades de saúde, considerou oportuno estudar os progenitores do G. A. ao nível da sua saúde.
Acrescentou também que a PDS tem uma lacuna, nomeadamente quando se encontra agendada uma consulta na agenda de um determinado enfermeiro, outro enfermeiro do mesmo Centro de Saúde pode aceder no computador do próprio à agenda do colega e ao PDS do utente, sendo que o nome do enfermeiro que fica registado como tendo acedido à PDS é o enfermeiro que tinha o utente agendado para ele e não o que realmente acedeu.
Confirma que, num determinado período, as assistentes G. F. e V. A. não estavam inscritas no Centro de Saúde ..., mas anteriormente haviam estado.
Acrescentou também que, no processo familiar de cada utente inscrito no centro de saúde, consta também os nomes dos familiares que estiveram ou estão inscritos no centro de saúde.
Referiu que os acessos à PDS das assistentes G. F. e V. A. poderiam ter ocorrido quando se encontrava a conferir as listas dos utentes afectos ao Dr. R. P., ou quando estava a estudar a família do G. A.. Confirma ter sido enf.ª de família das referidas assistentes entre finais de 2013 e finais de 2015.
De fls. 460 e seguintes consta uma listagem enviada pelos SPMS, descrevendo acessos datados de 21-01-2013 a 18-02-2013, como efectuados pelo utilizador ... (identificados noutros documentos juntos aos autos como sendo o número da cédula profissional da arguida S. M.), nas pessoas dos assistentes.
De fls. 481 e seguintes consta um perecer elaborado pela Ordem os Enfermeiros, no qual referem que nos cuidados de saúde primários todos os enfermeiros (das Unidades de Cuidados na Comunidade, das Unidades de Saúde Familiares, das Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, das Unidades de Saúde Pública) têm acesso à PDS desde que o utente tenha uma inscrição nesse Centro de Saúde. Caso o utente não tenha uma inscrição nesse Centro de Saúde, pode sempre ser efectuada uma inscrição esporádica, o que permite de seguida o acesso aos dados inseridos na plataforma.
O modelo de abordagem dos cuidados centrados na família determina a necessidade do enfermeiro fazer um estudo da família, o que exige a colheita de dados para o planeamento das intervenções. Assim, cada profissional de saúde que, no âmbito da prestação de cuidados de saúde promotores da qualidade e da continuidade dos cuidados, nomeadamente para o estudo de uma família, necessite de obter informação para tal, deve utilizar as suas credências para entrar na plataforma. Esse é mesmo o objectivo da plataforma, isto é, a recolha de informação por parte de quem dela necessite.
Conclui a Ordem dos Enfermeiros que, no âmbito do exercício profissional, os enfermeiros necessitam de informação sobre a pessoa, a família ou a comunidade alvo dos seus cuidados. E que não se afigura como necessário que seja solicitada informação de um utente ou família a outro enfermeiro.
A fls. 484, a ULS... confirma que é um procedimento habitual as enfermeiras que trabalham com determinado médico de família conferirem as listas de utentes afectos a tal médico e/ou centro de saúde. Contudo, tal análise não implica aceder à área reservada da PDS dos utentes, a menos que se insira num contexto concreto de prestação de cuidados de saúde.
A fls. 488 consta a concordância prestada pela assistente L. M. para que o assistente G. A. fosse acompanhado pela Intervenção Precoce, datada de 07-04- 2011.
A fls. 489 consta um e-mail enviado por S. P. à coordenadora da ELI de Macedo de Cavaleiros, onde aquela refere que a mãe assinou o consentimento informado para que a equipa multidisciplinar pudesse intervir com a criança, na qual se incluem profissionais de saúde. Desse modo, a equipa, nos seus diferentes perfis, organizou-se no sentido de proporcionar à criança/família a adequada resposta às suas necessidades.
Mais refere que a representação da Equipa de Acolhimento (EA) de ... na ULI de Macedo de Cavaleiros está a cargo do profissional de saúde, existindo assim a necessidade do mesmo ter conhecimento de todos os processos.
A fls. 496 constam as declarações prestadas pela arguida S. P., de acordo com as quais confirmou que o assistente G. A. integrou o PIP de 07-04- 2011 a Setembro de 2014.
A fls. 513 e 514, os SPMS esclarecem quais as várias funcionalidades no contexto da PDS e quais as informações passiveis de serem obtidas com cada funcionalidade, mais acrescentando que a PDS é independente do CLÍNICO... e que “um acesso pode levar a um ou mais registos nestes sistemas”.
A fls. 532 e seguintes consta uma listagem enviada pelos SPMS, descrevendo acessos correspondentes ao período em causa, efectuados por enfermeiros aos dados dos assistentes, entre os enfermeiros se incluindo, entre outros, ambas as arguidas. Com as especificações constantes de fls. 544 e 545, de onde se retira que nem todos os acessos descritos na referida listagem se reportam a acessos à PDS.
De fls. 597 e seguintes constam as declarações prestadas pela assistente L. M., na fase de inquérito, se acordo com as quais a mesma descreveu que, no mês de Janeiro de 2012, a própria, o seu marido, a enf.ª S. P. educadora P. D. elaboraram o PIIP, no qual constavam todos os técnicos, instituições, objectivos e actividades que a criança teria de efectuar. Referiu que os técnicos e as instituições referidas no PIIP actuavam, no âmbito das suas funções, individualmente, sendo que apenas a Educadora P. D. fazia parte da ELI. Confirma que existiram reuniões nas quais também esteve presente a enf.ª S. P.. No ano lectivo 2013/2014 saiu a enf.ª S. P..
Acrescentou que, no âmbito da IP, nunca ninguém lhe disse que poderiam ter acesso aos ficheiros clínicos do seu filho, nem nunca a assistente deu esse consentimento.
A fls. 618, o Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância esclarece que “Todo o processo de intervenção precoce baseia-se na elaboração, implementação e revisão periódica do Plano Individual de Intervenção Precoce (PIIP). Este documento resulta da avaliação da criança no seu contexto familiar e social. Inclui medidas e acções a desenvolver que se ajustem às características individuais de cada criança e família, optimizando a complementaridade entre serviços e instituições.

O PIIP integra os seguintes elementos (…):

- Identificação de recursos e necessidades da criança e da família
(…)”
A fls. 625, a testemunha P. D. refere que nunca perguntou nada a ninguém sobre os dados clínicos do menor a não ser à mãe, que lhe prestava os esclarecimentos achados por convenientes.
A fls. 627, a ULS... esclareceu que “Os relatórios elaborados no âmbito do estudo da família do menor G. A., efectuados pela enfermeira S. M.: referir que os enfermeiros de família não realizam relatórios que traduzem o estudo das famílias, existe um processo clínico do utente, denominado CLÍNICO...- ENFERMAGEM, onde os enfermeiros registam ou consultam informação acerca dos cuidados de enfermagem prestados ou qualquer assunto que considerem importante relativo à situação de saúde do utente. Dizer ainda, que a este processo têm acesso, todos os enfermeiros de família da Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados do Centro de Saúde ... (anexo I).”
De fls. 641 e seguintes consta o esclarecimento prestado pela Associação Nacional de Intervenção Precoce, de acordo com o qual “O consentimento informado refere-se, assim, à autorização para o preenchimento da referida base de dados com os dados da família/criança, sendo da responsabilidade do próprio SNIPI, através de orientações emanadas pela respectiva Subcomissão Regional do SNIPI, para as ELI.
No que concerne ao estudo da família nuclear e alargada do menor, não poderá deixar de referir-se que o modelo conceptual subjacente às Práticas Recomendadas de Intervenção Precoce (IP) pressupõe uma intervenção centrada na família, definida como uma filosofia e um conjunto de práticas que reconhecem a centralidade da família e promovem as suas forças e capacidades. Assim,
Os profissionais de IP devem nortear a sua acção pela centralidade da família no processo de intervenção, trabalhando em conjunto com os membros da família e outros cuidadores no projecto de vida das crianças.

Portanto,
Profissionais e família trabalham em parceria e colaboração, participando a família em todas as etapas de intervenção: conduzindo as avaliações, definindo prioridades de entre os objectivos formulados, desenhando planos de intervenção que consideram mais adequada para si e para o seu filho.

Nestes termos,

Sendo a família um parceiro ativo no desenvolvimento do processo de intervenção, não há lugar a um estudo da família nuclear e alargada sem o consentimento da família. De facto,
Existindo a necessidade de estudo da família nuclear e alargada, este deve acontecer a partir da perspectiva da família e daquilo que ela pretende ver abordado na intervenção. Em suma,
Qualquer acção do profissional de IP e de toda a equipa deverá basear-se no consentimento e necessidades manifestadas pela família, sempre com aval e conhecimento desta e devidamente enquadrado no Plano Individual de Intervenção Precoce.
A fls. 678, o Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância esclarece em que consiste o PIIP. Sobre o consentimento informado esclarece que através deste a família expressa a sua vontade no acompanhamento perspectivado no âmbito da IPI, designadamente através do preenchimento e assinatura de um campo específico do PIIP por parte dos pais ou dos responsáveis legais da criança. Recolhido pelo técnico da ELI após este ter esclarecido a família sobre as características e procedimentos do Sistema de Informação do SNIPI, com as garantias de privacidade e não discriminação; e ser assegurada a confidencialidade e segurança dos dados pessoais fornecidos, e a possibilidade de a família aceder e retificar os mesmos sempre que se justifique.
De fls. 700 e 704 consta que as assistentes G. F. e V. A. tiveram como enf.ª de família a enf.ª S. M., no período de 20-11-2013 a 12-10- 2015.
De fls. 714 e seguintes consta um parecer elaborado pela Ordem dos Enfermeiros, no qual esclarecem que “O modelo de abordagem dos cuidados de saúde centrados na família preconiza a necessidade do enfermeiro estudar a família como alvo de cuidados.
A identificação dos problemas de saúde em geral e de enfermagem em especial de uma pessoa e/ou família, exigem a recolha de dados recorrendo às fontes disponíveis, e sua apreciação. É com base nessa informação obtida que o enfermeiro formula diagnósticos de enfermagem e elabora o planeamento de cuidados a implementar.
Adianta-se que o artigo 96º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (EOE) enuncia os direitos dos membros efectivos da Ordem. Na alínea f) do n.º 2 é afirmado que constitui, ainda, direito dos membros efectivos “a informação sobre aspectos relacionados com o diagnóstico clínico e o bem-estar dos indivíduos, famílias e comunidade ao seu cuidado”.”
De fls. 718 e seguintes consta um esclarecimento prestado pela coordenadora do ELI de Macedo de Cavaleiros, do qual se retira, entre outros aspectos, que a subscrição do PIIP pela família representa, no SNIPI, o consentimento informado da família, autorizando a intervenção acordada com a equipa de intervenção, na figura do mediador do caso.
A fls. 727 e seguintes consta um relatório/formulário da Equipa Local de Intervenção de Macedo de Cavaleiros, relativo ao acompanhamento do assistente G. A., onde num dos campos de preenchimento se assinala uma boa relação com o pai e com a mãe e uma relação próxima com a tia, elaborado pela enf.ª S. P., datado de 07-05-2011.
De fls. 742 verso consta que em 03-01-2013 a enf.ª S. P. ainda fazia parte da EIP, que intervinha no PIIP.
A fls. 781 consta uma acta da reunião da EA de ..., datada de 26-09-2011, na qual S. P., na qualidade de enfermeira, se encontra identificada como interveniente na reunião. O mesmo se repete em 10-10-2011 (fls. 782 verso), onde figura na qualidade de enfermeira responsável, em 14-11-2011 (fls. 785 verso), onde figura igualmente na qualidade de enfermeira responsável, em 05-12-2011 (fls. 787), em 03-01-2012 (fls. 789), em 06-02-2012 (fls. 791), em 12-03-2012 (fls. 792), em 09-04-2012 (fls. 793), em 14-05-2012 (fls. 795), sempre como enfermeira responsável, em 10-09-2012 (fls. 795 verso), em 08-10-2012 (fls. 796 verso), em 12-11-2012 (fls. 797), em 10-12-2012 (fls. 798), em 11-04-2013 (fls. 799), em 13-06-2013 (fls. 801), em 11-07-2013 (fls. 802), em 16-01-2014 (fls. 803), em 13-02-2014 (fls. 804), em 13-03-2014 (fls. 805), onde figura na qualidade de enfermeira.

A fls. 841 e seguintes consta uma perícia elaborada pelo enf.º F. M., do qual se retira, sobre os quesitos colocados o seguinte:

“(…)
O enfermeiro tem direito ao acesso a informação sobre aspectos relacionados com o diagnóstico clínico, tratamento, bem-estar das pessoas, famílias e comunidades que estão ao seu cuidado e a quem presta cuidados de enfermagem – cfr. art.º96, n.º1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros;

(…)
Os cuidados de enfermagem acontecem por força da integração que se estabelece entre um enfermeiro e uma pessoa, família, grupo ou comunidade, durante a qual se cria uma relação de ajuda;

Os cuidados de enfermagem caracterizam-se pela utilização de metodologia científica, essencial para a formulação de diagnósticos de enfermagem que promovem a elaboração e concretização de planos de prestação de cuidados de enfermagem, através da:

a. identificação dos problemas de saúde da pessoa, família, grupo ou comunidade;
b. identificação dos problemas de enfermagem da pessoa, família, grupo ou comunidade;
c. recolha de informações e de dados pertinentes para o plano terapêutico sobre a pessoa, família, grupo ou comunidade.

Pelo exposto, é através do acesso à informação de saúde das pessoas, famílias ou comunidade, que o enfermeiro assume o seu dever de se responsabilizar pelos cuidados que presta, por forma a não haver atrasos na prevenção e no diagnóstico da doença e respectivo tratamento, garantindo o cuidado a que está obrigado.

No caso em apreço, só será considerado legítimo este acesso por enfermeiro, no exercício das suas funções, se estiver implicado no plano de cuidados de saúde e de enfermagem à pessoa, família, grupo ou comunidade e se a informação recolhida sustentar a elaboração de planos de cuidados ou de vigilância de saúde, ou seja se for o Enfermeiro de Família ou Enfermeiro em substituição deste, por motivos devidamente justificados.
(…)
Por norma, o enfermeiro, no exercício das suas funções, deve sempre respeitar, defender e promover o direito da pessoa ao consentimento informado. Todavia, dispensa-se o consentimento da pessoa ao acesso a informações e dados de saúde e autorização de superior hierárquico, se a finalidade do acesso é a recolha de informações necessárias à elaboração de diagnósticos de necessidades, planos de cuidados, vigilância e de intervenções do enfermeiro, no legítimo desempenho das suas funções, para o qual está legalmente mandatado. Mais, deve o enfermeiro manter o anonimato da pessoa, família, grupo ou comunidade no caso da informação recolhida ser usada para fins de ensino, investigação, epidemiológico/estatístico ou para controlo da qualidade dos cuidados de enfermagem dispensados.

(…)
A informação possível de se ver em 2013 e 2014 na PDS era muito limitado, além de formação paticamente inexistente sobre a plataforma, além de informações erradas/contraditórias (… pois estava ainda numa fase de implementação da plataforma, existindo por vezes muitos problemas em aceder às informações pois muitas vezes os sistema estava com indisponibilidades dos servidores locais das unidades de saúde, ou por os médicos optarem por ocultar a informação, sendo por isso que o cronograma (página inicial da PDS) apresentava inconsistências na apresentação das consultas. Um dos LOGs … enviados pela SPMS, julgo eu, demonstra a catalogação que a PDS utiliza para reunir informação dos servidores locais das Unidades de Saúde para construir o cronograma na PDS, pois é humanamente impossível consultar tanta informação no mesmo segundo. Através do cronograma seria possível aceder ao Processo Clínico Eletrónico alojado no servidor da Unidade de Saúde, é neste momento que existiam constrangimentos, principalmente nos anos iniciais da PDS, apresentando uma página de informação indisponível, existindo várias razões para esse facto (…)

Relativamente aos acessos por parte da enfermeira S. M., a nosso ver, estes demonstram uma metodologia de acesso à informação, pois quando geralmente que era consultada informação da criança G. A. era consultada a informação de alguns dos seus familiares, consistente com vigilância da família, pese embora se possa achar o número de acessos elevados, a gravidade de acesso indevido não é tanto o número de vezes que se acede à informação, mas sim o acesso em si e a divulgação dessa informação a terceiros não implicados no “Plano Terapêutico”.
Relativamente à enfermeira S. P., o contacto da equipa base/equipa de saúde familiar, faz parte da prática comum de muitos profissionais de saúde, inclusive de enfermeiros das Unidades de Cuidados na Comunidade, para obtenção de informação, e/ou para solicitar vigilância e/ou informar acerca da entrada de um novo programa/equipa (Equipa de Saúde Escolar, Equipa Local de Intervenção, Equipa de Cuidados Continuados Integrados, etc.).”
Em sede de instrução, foi junta aos autos, constante de fls. 1067 e seguintes, uma listagem de acessos, datados entre 14-01-2013 a 28-04-2014, relativos aos assistentes.
A fls. 1123, a ULS... informa que as aplicações informáticas a que os enfermeiros acedem são o CLÍNICO..., onde são efectuados registos de enfermagem relativos a doentes; GOTA, onde são efectuados registos de valores de Índice Internacional Normalizado necessários à monitorização de doentes que têm instituída terapêutica anticoagulante; Siima Rastreios – Programa informático indicador da necessidade de determinados utentes a realizarem rastreio.
Mais informaram que os enfermeiros têm disponível a aplicação “Vacinas” a partir do Registo de Saúde Electrónico (RSE), que é de âmbito nacional.
A fls. 1127, os SPMS informam os autos que não é possível apurar a concreta informação visualizada pelas arguidas em cada acesso, sendo o registo apenas de “entrada”.
A fls. 1129, a ULS... informa que “…o objectivo principal da carreira de Enfermagem é a prestação de cuidados de saúde preventiva e curativa à população.

(…)
Mais se informa que, para dar cumprimento aos objectivos é necessário efetuar a consulta dos Sistemas de Informação por parte da equipa, desde logo no que concerne ao Plano de Vacinação no qual a Equipa de Enfermagem acede ao processo sem intervenção do médico.”
De fls. 1130 e seguintes constam os objectivos da carreira de enfermagem nos anos de 2013 e 2014, de onde se conclui que os enfermeiros têm de monitorizar e calcular várias percentagens sobre várias problemáticas de saúde e rastreios entre as várias faixas da população, em vários eixos: nacional, regional e local.
De fls. 1132 consta os indicadores da Unidade de Cuidados na Comunidade, datados de 11-03-2013, de onde se extrai a existência de indicadores relacionados com os seguintes programas de saúde: ECCI, Saúde Escolar, Preparação para a Parentalidade, Intervenção Precoce, CPCJ, Rendimento Social de Inserção e Projecto específico de cada UCC, relativamente aos quais se pressupõe o cálculo de várias percentagens.
De fls. 1135 e seguintes consta o Plano de Actividades de Enfermagem, UCSP – ..., para o ano de 2014, onde se encontram descriminados vários programas de cuidados de saúde nos quais os enfermeiros têm intervenção para com a comunidade, onde a fls. 1141 indica como sistemas de informação utilizados pelos enfermeiros: SIIMA Rastreios, TAOnet, SICO, SINUS, Aplicativo Glintt Web (Farmácia, Armazém), Gestcare (Aplicativo da RNCCI) e PDS.
Entre os objectivos resultantes da contratualização externa e interna e que constam do Plano de Actividades da Unidade, destacam-se a título exemplificativo, para o que aqui releva: “Fazer o levantamento dos utentes que não utilizaram os serviços durante os últimos 12 meses e convocar para consulta”, “identificar anualmente a população alvo; apresentar o PNV totalmente cumprido às zero horas do dia em que completam 14 anos”, “efectuar pelo menos um registo de pressão arterial, nos últimos 36 meses”, “convocar todas as mulheres que não efectuaram rastreio nos últimos dois anos”.
De fls. 1153 consta uma informação prestada pela ULS..., da qual se refere que “No âmbito das funções exercidas pelas arguidas, as mesmas estavam autorizadas a consultar processos clínicos dos utentes no supremo interesse daqueles. Tais consultas eram necessárias para seguimento de programas de rastreio, vacinação, Programa Nacional de Saúde Infantil, ações da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, intervenção precoce, entre outros.
Sim, naqueles anos as arguidas eram detentoras de credenciais de acesso que constituíam ferramenta de trabalho no sentido de que os utentes fossem contactados para realização de ulteriores rastreios e outros exames. A utilização da referida password de acesso pressupunha, sempre, uma utilização com respeito pelos códigos deontológico e ético. A password de acesso destinava-se ao programa “Sape” atual “CLÍNICO...”(2015).
No que concerne à Enfermeira S. P., informa-se que a password lhe foi disponibilizada em 20 de setembro de 2011, no entanto, não é possível precisar a data exata em que foi atribuída password à Enfermeira S. M., apenas se sabe que foi em data anterior.
Sim os profissionais de saúde podiam aceder às bases de dados, sem necessidade de que os doentes/utentes estivessem presentes, de forma a que fosse possível assegurar o cumprimento dos programas de saúde no interesse do doente/utente.
Sim, os enfermeiros podiam aceder ao processo clínico sem que houvesse necessidade de intervenção do médico, mas não para realizarem estudos ou trabalhos de investigação.
Aos programas referidos só se pode aceder através de computador no Serviço e na respetiva entidade e área geográfica.
Para além disso, a assistente L. M. prestou declarações, nas quais, em síntese, confirmou aquilo que anteriormente já havia reportado nas declarações prestadas no decurso do inquérito.
Salientou que o processo de intervenção precoce, relativo ao assistente G. A., foi motivado pelos pais, pois os mesmos queriam que fosse acompanhado por uma educadora de ensino especial, nomeadamente pela educadora P. D..
Mais acrescentou quem unicamente acompanhava o G. A. era a educadora P. D., que era também a gestora de caso.
Não encontra justificação para acesso aos dados de saúde dos assistentes, pois nunca deu consentimento para tal.

Referiu que nenhuma das arguidas integravam o processo de intervenção precoce. Acabando depois por concretizar que a arguida S. P. esteve presente 2 anos como representante do Centro de Saúde nas reuniões. Contudo, de acordo com as declarações prestadas pela assistente, não era a técnica que intervinha directamente com o G. A..
Salienta que o período durante o qual a arguida S. P. fez parte do PIIP não corresponde aos períodos dos acessos.

Referiu ainda que nada sabe sobre o estudo a que a arguida S. M. fez referência no âmbito das declarações que prestou nos autos, nem sobre a sua motivação. E que só teve conhecimento de tal estudo através dessas mesmas declarações.
Concretizou que o filho G. A. foi acompanhado pela IP entre 2012 e o ano lectivo 2013/2014. Sendo que, quando saiu do PIP não continuou a ser acompanhado no Centro de Saúde ....
Mais acrescentou que nos períodos correspondentes aos acessos em causa, os assistentes não se deslocaram ao Centro de Saúde ....
Referiu também que nunca lhe pediram consentimento para realizar qualquer estudo.
Relativamente ao PIIP, confirmou que os pais autorizaram que o G. A. fosse acompanhado pela Equipa de Intervenção Precoce.
Perguntada se os pais excluíram alguma das valências dessa intervenção, a assistente L. M. esclareceu que os pais não excluíram nada. Contudo, o PIIP que foi aprovado pelos pais integrava apenas a intervenção da educadora P. D..
Acaba por concretizar que a enf.ª S. P. integrou a EIP, tendo sido no exercício das suas funções que se encontrou com os assistentes L. M. e N. M., pais do assistente G. A.. Sendo que a enf.ª S. P. se intitulava como representante da Intervenção Precoce.

Por sua vez, a assistente C. F. também prestou declarações, confirmando o que anteriormente já havia relatado nos autos,
Salientou que não autorizou nem permitiu qualquer acesso aos seus dados de saúde e que não frequenta o Centro de Saúde .... Tendo sido apenas uma vez que foi a médico e estava a enf.º S. M. de serviço, mas que não foi atendida por ela.
No seu entender o estudo ao qual se refere a arguida S. M. contende com mera curiosidade, nunca ninguém a tendo informado de qualquer estudo, do qual só veio a ouvir falar no âmbito dos presentes autos.
Refere que no período dos acessos em causa não foi ao Centro de Saúde ....
A assistente G. F. também prestou declarações, confirmando as anteriormente prestadas.
Salienta que existem acessos num período em que nem sequer era utente do Centro de Saúde ....
Informou ainda que no dia 07-10-2013 a enf.ª S. M. lhe administrou uma vacina, sem que existam registos de quaisquer acessos nesse dia.
Pelo contrário, há acessos em datas nas quais não era utente do Centro de Saúde ....
No período em que a enf.ª S. M. foi sua enf.ª de família também não há registos de acessos.
Salientou que nunca deu consentimento para acesso aos seus dados, nem para nenhum estudo.
Tem a convicção que o estudo ao qual a arguida S. M. se reporta nas suas declarações é baseado na curiosidade da arguida.
Afirmou ainda que, de acordo com o que sabe sobre o esquema de intersubstituição de enfermeiros, o regime de substituição é feito no momento, não existindo nenhuma intersubstituição ad hoc.
Não sabe se em algum momento, a sua enf.ª de família foi substituída pela enf.ª S. M..
Por sua vez, a testemunha C. C., engenheira informática nos SPMS, esclareceu que nos registos extraídos pelos SPMS, em principio, o número de cédula e o nome do profissional correspondem.
Esclareceu que as datas presentes nos registos extraídos pelos SPMS correspondem às datas dos acessos ou às datas em que o utente teve consulta.
Mais esclareceu que os enfermeiros podem aceder aos dados clínicos dos utentes sem ser no âmbito de uma consulta médica. Não sabe para que efeitos, mas sabe que o sistema o permite.
As datas de acesso às plataformas, em princípio são datas certas.
Sobre o acesso à PDS, referiu que o profissional de saúde, no Centro de Saúde, através do nome do utente entra no SER e navega lá.
Relativamente ao acesso proveniente da PDS referiu que significa que o profissional acedeu num hospital ou Centro de Saúde no qual o utente não está inscrito.
Mais esclareceu que o acesso SISO ou GOTA correspondem a aplicações externas, pois o CLÍNICO... tem funcionalidades que permitem aceder a outras plataformas externas ao Sistema Nacional de Saúde.
Quanto às aplicações externas, concretizou que correspondem a outras aplicações das Unidades Locais de Saúde.
Confirmou ainda que houve períodos em que os profissionais de saúde se queixavam que não conseguiam aceder ao SER (antiga PDS).
A testemunha R. L., engenheiro informático dos SPMS, explicou que os registos dos acessos extraídos pelos SPMS servem para saber se determinados profissionais visualizaram processos de determinados doentes.
Concretizou que os médicos e os enfermeiros podem aceder aos processos clínicos dos utentes, inclusive através da PDS.
Mais concretizou que as datas correspondem exactamente ao momento em que foi feito o acesso.
Relativamente ao CLÍNICO..., cada profissional tem o seu login.
A testemunha A. C., psicóloga no Centro de Saúde ..., e parte integrante da Equipa de Intervenção Precoce, referiu que participou no caso do G. A..
Concretizou que fazem avaliação a todas as crianças inseridas nesse programa, tendo para esse efeito contactado a mãe da criança G. A., tendo está última recusado, com a informação de que a criança já estava a ser acompanhada.
A testemunha, enquanto psicóloga que integrava a EIP, transmitiu essa informação ao resto da equipa.
Confirmou que a criança estava a ser acompanhada pela educadora P. D., da EIP.
Mais referiu que a enf.ª S. M. é o elo de interligação entre a UCC e a USF, ajudando na comunicação entre as unidades, pois as mesmas funcionam de forma autónoma, mas têm pontos de ligação entre outras.
Esclareceu que, mesmo que a criança fosse acompanhada mais de perto por uma das valências da EIP, havia reuniões com as outras valências, pois a missão da EIP é ajudar a criança e a família.
As outras áreas não deixam de actuar/trabalhar em conjunto, encontrando-se todas as áreas representadas nas reuniões, inclusive enfermeiros, que também têm de estar.
A enf.ª S. P. era a coordenadora da IP, fazia a gestão das reuniões e representava a equipa.
Confirma que ambas as arguidas, em algum momento, estiveram presentes nas reuniões.
Relativamente a estudos, concretizou que, por exemplo, têm o ECO Mapa, preenchido com pessoas de ligação da criança, família e vizinhos, que preenchem para enquadramento do caso.
Todos os elementos têm acesso ao PIIP e averiguam as necessidades da criança.
Os pais dão consentimento para autorizar a equipa a poder intervir junto da criança e da família.
Por último, foi junto aos presentes autos, em 12-06-2020, um parecer elaborado pelo Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, perante a questão de saber se os enfermeiros podem consultar, na PDS, o processo clínico de utentes aos quais não prestam qualquer cuidado de enfermagem (que não foi elaborado para o presente caso concreto), e onde se concluiu que não é permitida a consulta de um processo clínico por enfermeiros que não estiveram envolvidos no plano terapêutico do utente, sem que para o efeito haja fundamento que assente nos termos legais. Refere que “Caso um enfermeiro aceda aos dados clínicos de um utente sem a sua autorização e sem motivo clínico adequado para o efeito está, conscientemente, a colocar em causa a dignidade da pessoa, violando o dever consagrado no artigo 97.º, número 1, alínea a) do EOE e, sobretudo, a desrespeitar a intimidade do mesmo, violando o dever consagrado no artigo 107.º do EOE.
A consulta indevida de dados clínicos dos utentes aos quais não prestaram qualquer cuidado de Enfermagem, através de plataformas de registo eletrónico, e fazendo-o de forma livre e consciente, os enfermeiros praticam factos suscetíveis de enquadrar o crime de acesso ilegítimo a dados confidenciais, previsto e punido pelo artigo 6.º, número 1 e número 4, alínea a) da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro.
*
Ora, em face dos indícios recolhidos, quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução, resulta claro que os profissionais de saúde, e para o que para aqui importa, designadamente os enfermeiros, estavam autorizados a aceder aos dados clínicos/dados de saúde dos utentes, nas respectivas plataformas informáticas onde esses dados se encontram armazenados e disponíveis para consulta, entre as quais a PDS e o CLÍNICO....

Assim consta da informação prestada, a fls. 158, pelos SPMS; a fls. 204, num e- mail enviado por R. R., através de endereço profissional terminado em “@uls....min- saude.pt”, dirigido aos enfermeiros chefes; do perecer elaborado pela Ordem os Enfermeiros, a fls. 481; da perícia de fls. 841; bem como, das informações constantes de fls. 1123 e 1153, prestadas pela ULS.... O que fora ainda confirmado pelas testemunhas C. C. e R. L..

Para este efeito importa também considerar que, de acordo com a informação prestada a fls. 283, as arguidas S. M. e S. P. exerciam funções no Centro de Saúde ..., no período em causa; relembrando-se ainda que de fls. 42 a 48 consta que os assistentes têm em “os meus dados” na PDS a autorização concedida para que “Profissionais de saúde credenciados podem consultar a minha informação clínica registada no Serviço Nacional de Saúde”.

Assim sendo, as condutas das arguidas, desde logo, não preenchem a parte do tipo legal de crime de acesso ilegítimo, na parte em que o mesmo refere “… sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático”.
Importa, porém, atentar se tinham, para esse efeito, permissão legal.
Na perspectiva defendida pelas assistentes, o acesso a tais dados, por parte das arguidas, enquanto profissionais de saúde, enfermeiras, à PDS, apenas estaria autorizado se se encontrasse finalisticamente delimitado ao contexto clínico, isto é, em ambiente de consulta médica, ou da prestação de um cuidado de saúde ao utente, que se encontre na instituição de saúde para esse efeito.

Será necessária a presença dos utentes em consulta/ em cuidados de enfermagem/ em contexto clínico, para que seja autorizado o acesso aos dados de saúde pelos profissionais de saúde?

De acordo com os indícios recolhidos, parece que não. Não se afigura necessário que os utentes se encontrem presentes em contexto clínico para que os profissionais possam aceder aos dados de saúde dos utentes, desde que o façam para algum dos efeitos legalmente previstos. Ou seja, tenham para tanto fundamento legal. Fundamento que se crê encontrar-se co-relacionado com o exercício das funções de enfermeiro. Dado que, para todos os efeitos, desde logo, não podemos deixar de considerar que o exercício das funções dos profissionais de saúde não pode ser entendido por ilegal. Isto é, se a Lei lhes exige que actuem de determinada forma e desempenhem determinadas funções, tais actos praticados com a intenção de bem desempenhar essas funções, não podem ser entendidos como ilegais.

Concretizando, no que respeita aos vários assistentes.

Comecemos pelo assistente G. A.. Haveria ou não fundamento para que tais acessos, aos respectivos dados de saúde desta criança, fossem efectuados pelas arguidas?

Vejamos,

Os acessos aos dados de saúde deste assistente encontram-se documentados a fls. 31 a 35, tendo decorrido entre Janeiro de 2013 e Julho de 2014.

O assistente G. A. beneficiava de um Plano Individual de Intervenção Precoce (PIIP), conforme consta de fls. 112 e seguintes, e do qual faziam parte vários profissionais, de várias valências, entre as quais a área da saúde, em representação da qual se encontrava a arguida S. P., na qualidade de enfermeira. Tendo inclusive, esta arguida, assinado o PIIP, conforme consta de fls. 133.
A assistente L. M. deu a sua concordância para que o assistente G. A. fosse acompanhado pela Equipa de Intervenção Precoce, conforme resulta de fls. 488.
A propósito do consentimento e daquilo que pelo mesmo deve ser entendido, a enfermeira S. P., a fls. 489, num e-mail enviado para a coordenadora da ELI de Macedo de Cavaleiros, refere que a mãe assinou o consentimento informado para que a equipa multidisciplinar pudesse intervir com a criança, na qual se incluem profissionais de saúde.
Desse modo, a equipa, nos seus diferentes perfis, organizou-se no sentido de proporcionar à criança/família a adequada resposta às suas necessidades.
Atente-se que, conforme consta de fls. 781 e seguintes, resulta que a Enf.ª S. P. participava activamente nas reuniões da EIP, inclusive, nas datas de 11-04-2013 (fls. 799), em 13-06-2013 (fls. 801), em 11-07-2013 (fls. 802), em 16-01-2014 (fls. 803), em 13-02-2014 (fls. 804), em 13-03-2014 (fls. 805), onde figura na qualidade de enfermeira. Datas estas que se aproximam dos períodos dos acessos efectuados pelas arguidas aos dados de saúde do assistente G. A., enquanto profissionais de saúde.
Os acessos foram efectuados por ambas as arguidas, e também isso resulta justificado de acordo com a versão das mesmas.
A arguida S. M., nas declarações que prestou em inquérito, a fls. 256 e 257, esclareceu que a enfermeira S. P., a qual fazia parte da Equipa de Intervenção Precoce (EIP), onde se incluía o assistente, a dada altura, uma vez que o serviço era muito, lhe pediu uma ajuda. Nesse sentido, e a pedido da enfermeira S. P., consultava frequentemente os dados do assistente G. A., no sentido de verificar se aquele ia às consultas de terapia da fala, inserido no plano da EIP, uma vez que aquela enfermeira tinha de elaborar um plano sobre as crianças que frequentavam esse plano.
O que se encontra coincidente com a versão da arguida S. P., a fls. 262, onde a mesma referiu que havia necessidade de ter acesso a informação clínica decorrente de consultas do G. A. fora da sua Unidade de Saúde Local, para garantir a continuidade de cuidados, houve necessidade de consultar a PDS do menor em causa, tendo essa consulta de informação sido solicitada por ela, na qualidade de enf.ª responsável da IP à colega enf.ª S. M., por esta colaborar na Unidade de Cuidados na Comunidade.
A mesma arguida, em declarações prestadas a fls. 264 a 266, referiu que tal acompanhamento pressupunha que, sempre que necessário, fosse consultado o processo clínico do menor em causa na PDS, uma vez que à data o mesmo se encontrava a ser seguido num hospital no Porto.
Na qualidade de representante da AE tinha a seu cargo todos os processos do concelho de .... Pelo que, atento o volume de serviço, era normal que, por vezes, tivesse pedido às suas colegas o acesso à PDS do assistente G. A., para manter o processo sempre actualizado. Concretizou que pediu colaboração à enf.ª S. M. no acesso aos dados do G. A..

Assim sendo, as declarações das arguidas resultam coincidentes entre si. Para além disso, outros indícios foram recolhidos para demonstração da necessidade de entreajuda dos profissionais de saúde na recolha dos dados de que necessitavam. Entre as principais causas encontra-se a circunstância da PDS, sobretudo no início da sua entrada em utilização, apresentar vários problemas informáticos/técnicos que levavam a que, muitas vezes, os profissionais pedissem ajuda a outros para conseguir aceder às informações necessárias ao exercício da sua função. Nesse sentido, veja-se fls. 204 e seguintes (onde, para além disso, consta ainda que os registos em causa, podem corresponder apenas a tentativas e não a consultas efectivas, uma vez que, por vezes, mesmo não visualizando os registos, ficavam os acessos gravados); fls. 208 e seguintes; fls. 228 e 229 (depoimento da testemunha A. P.); fls. 256 e 257 (declarações da arguida S. M.); fls. 281 e 282 (depoimento da testemunha L. P.); fls. 513 e 514 (onde o SPMS esclarece que um acesso pode levar a um ou mais registos nestes sistemas); fls. 841 e seguintes (onde se refere em 2013 e 2014 na PDS era muito limitado, além de formação paticamente inexistente sobre a plataforma, além de informações erradas/contraditórias (… pois estava ainda numa fase de implementação da plataforma, existindo por vezes muitos problemas em aceder às informações pois muitas vezes os sistema estava com indisponibilidades dos servidores locais das unidades de saúde, ou por os médicos optarem por ocultar a informação, sendo por isso que o cronograma (página inicial da PDS) apresentava inconsistências na apresentação das consultas. Um dos LOGs … enviados pela SPMS, julgo eu, demonstra a catalogação que a PDS utiliza para reunir informação dos servidores locais das Unidades de Saúde para construir o cronograma na PDS, pois é humanamente impossível consultar tanta informação no mesmo segundo. Através do cronograma seria possível aceder ao Processo Clínico Eletrónico alojado no servidor da Unidade de Saúde, é neste momento que existiam constrangimentos, principalmente nos anos iniciais da PDS, apresentando uma página de informação indisponível, existindo várias razões para esse facto (…)). Estes problemas informáticos de acesso à PDS foram ainda confirmados pelos dois engenheiros informáticos que actualmente prestam serviços nos SPMS, e que prestaram depoimento em sede de instrução, as testemunhas C. C. e R. L.. O que por sua vez ajuda a sustentar neste aspecto a versão apresentada pelas arguidas, conferindo-lhes credibilidade quando as mesmas referem dificuldades de acessos aos dados da PDS e necessidade de se auxiliarem entre si enquanto colegas, profissionais de saúde.

Para além disso, a Enf.ª S. M., de acordo com os indícios recolhidos, consistia no elemento que se caracterizava como sendo o elo de ligação entre a Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados e a Unidade de Cuidados na Comunidade, conforme resulta de fls. 38 e 204. Embora a fls. 228 e 229, a testemunha A. P. confira uma caracterização diversa deste elo de interligação, referindo que o elemento de interligação entre a Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados e a Unidade de Cuidados na Comunidade é o enfermeiro de família e o médico de família, contudo, a mesma acaba por conclui que não existe apenas um elemento de interligação, mas sim uma equipa constituída por elementos que trabalham articuladamente, conferindo, assim, estes indícios recolhidos sustentabilidade à versão das arguidas.

Acresce ainda que, embora a assistente L. M., nas declarações prestadas, afirme que quem unicamente acompanhava o G. A., no âmbito da EIP, era a educadora P. D., que era também a gestora de caso, certo é que, de acordo com o que acima já se referiu, atentos os indícios recolhidos, essa mesma equipa era composta por profissionais de outras áreas para além da educação. Inclusive pela área da enfermagem/saúde.

Neste sentido, afigura-se ainda relevante o depoimento prestado pela testemunha A. C., psicóloga no Centro de Saúde ..., e parte integrante da Equipa de Intervenção Precoce, a qual referiu que participou no caso do G. A., concretizando que, mesmo que a criança fosse acompanhada mais de perto por uma das valências da EIP, havia reuniões com as outras valências, pois a missão da EIP é ajudar a criança e a família.

As outras áreas não deixam de actuar/trabalhar em conjunto, encontrando-se todas as áreas representadas nas reuniões, inclusive enfermeiros, que também têm de estar. Salientou ainda que a enf.ª S. P. era a coordenadora da IP, fazia a gestão das reuniões e representava a equipa.

Acresce ainda que, atendendo ao período em que o G. A. beneficiou do PIIP (cfr. fls. 496), verifica-se que os acessos aos seus dados de saúde ocorreram dentro desse mesmo período de tempo.

Apesar de a Enf.ª S. P. não ter participado no plano até ao seu termo, certo é que, conforme pela mesma foi explicado, a representação da Equipa de Acolhimento (EA) de ... na ULI de Macedo de Cavaleiros está a cargo de um profissional de saúde, existindo assim a necessidade do mesmo ter conhecimento de todos os processos. Isto é, havia sempre um profissional de saúde envolvido na EIP.

Nestes termos, sobretudo porque resulta evidente que os acessos aos dados de saúde do assistente G. A. se afiguravam relevantes, pelo menos para a área da saúde, integrada como uma das valências da EIP, acaba por legitimar a intervenção e os acessos da arguida S. P. e da arguida S. M. (esta última porque aquela lhe pedia colaboração), ambas actuando no exercício das suas funções enquanto enfermeiras, não podendo deixar de haver um motivo/justificação atendível no desempenho das suas tarefas para poderem aceder de forma legítima e, como tal, legalmente admissível, aos dados do assistente G. A..
O mesmo se diga relativamente aos assistentes N. M. e L. M., pais do assistente G. A., pois, vejamos,
Os pais do assistente G. A. assinalaram as seguintes caixas de texto: “participamos na elaboração do PIIP”, “estamos de acordo com o PIIP”, “concordamos em fazer parte desta equipa e em colaborar na implementação do PIIP” e “temos em nosso poder um exemplar deste plano”, tendo aposto a sua assinatura em 03-01-2012.
A este propósito, importa salientar o esclarecimento prestado, a fls. 618, pelo Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância, de acordo com o qual a intervenção inclui medidas e acções a desenvolver que se ajustem às características individuais de cada criança e família. Bem como, o esclarecimento prestado pela Associação Nacional de Intervenção Precoce, a fls. 641 e seguintes, de acordo com o qual a intervenção é centrada na família, demonstrando que de acordo com as práticas e objectivos de tal intervenção os pais colaboram e trabalham em conjunto com a EIP, corroborando os termos em que foram prestados os necessários consentimentos. Melhor concretizado nos seus termos e alcance a fls. 678 e 718 e seguintes.
A colaboração dos pais para estes efeitos também ressalta do parece elaborado pela Ordem dos Enfermeiros, constante de fls. 714 e seguintes.
Assim, uma vez mais, se conclui que a actuação das enfermeiras segue legitimada na intervenção e nos acessos. Pela arguida S. P. como parte integrante da EIP e pela arguida S. M., em colaboração com aquela e enquanto elo de ligação entre as Unidades de Saúde. Isto é, ambas actuando no exercício das suas funções enquanto enfermeiras, não podendo deixar de haver um motivo/justificação atendível no desempenho das suas tarefas para poderem aceder de forma legítima e, como tal, legalmente admissível, aos dados dos assistentes N. M. e L. M..
Ainda que assim não se entendesse, atente-se que os assistentes N. M. e L. M., assim como a assistente C. F. eram, à data dos acessos, e continuam a ser, utentes inscritas no Centro de Saúde ....
Desta perspectiva, atentemos nos indícios recolhidos nos autos que acabam por justificar a existência de acessos, por parte dos profissionais de saúde, inclusive enfermeiros, fora do contexto clínico efectivo (isto é, sem os utentes necessitem de estar presencialmente a receber cuidados no Centro de Saúde em causa) aos dados de saúde dos utentes. Para que tal possa acontecer no exercício das funções que incumbem aos enfermeiros, os indícios recolhidos apontam vários motivos justificativos. Veja-se: fls. 39, 40 e 204 (onde se refere a existência de regime de intersubstituição de enfermeiros que podem levar a que não só os enfermeiros de família de um concreto utente aceda aos respectivos dados, mas também acedam outros enfermeiros do Centro de Saúde em causa); também a fls. 204 (onde se refere completar os registos no processo de enfermagem no âmbito da enfermagem familiar, facilitando o cumprimento de objectivos/indicadores quer da equipa de família quer da Unidade Funcional); fls. 208 e seguintes (os Centos de Saúde têm de cumprir determinados objectivos fixados pela tutela, como seja garantir a vacinação das crianças ou a realização de determinados exames e é natural, até porque é o seu dever, que os profissionais de saúde acedam às bases de dados disponíveis para saber se a situação dos utentes se encontra regularizada, sendo o papel dos profissionais de saúde um papel pro-activo e não meramente reactivo); fls. 218 e seguintes (a testemunha Dr. M. S,., médico no Centro de Saúde ..., corroborou a informação de acordo com a qual os centros de saúde têm de cumprir determinados objectivos fixados pela tutela como sejam garantir a vacinação das crianças ou a realização de exames, tendo os mesmos um papel pro-activo); fls. 256 e 257 (a arguida S. M. refere que é enfermeira no Centro de Saúde ..., no qual trabalha em equipa em modo de intersubstituição, sendo natural que as enfermeiras, sempre que necessário, chamem a si doentes de outras que se encontrem impedidas por qualquer motivo. A arguida esclareceu que os enfermeiros têm indicadores mensais que têm de cumprir, entre eles a consulta da PDS, no sentido de verificar a situação clínica dos utentes.); a fls. 278 e 279 (a testemunha J. J. referiu que existem objectivos contratualizados com a tutela (ULS ... e ARS Norte) no sentido de acompanhar a saúde dos utentes de todos os cuidados de saúde integrados dos cuidados de saúde primários. No tocante às crianças, tais cuidados de saúde reportam-se à vacinação, saúde infantil. E relativamente aos adultos, tais cuidados reportam-se aos diabéticos e hipertensos e à saúde do adulto, nomeadamente quando os utentes são transferidos de outra unidade hospitalar); a fls. 281 e 282 (a testemunha L. P., enfermeira chefe no Centro de Saúde ..., confirmou a contratualização de objectivos por parte da tutela, os quais passam pelo registo das actividades desenvolvidas pelos profissionais de saúde, médicos e enfermeiros, no sentido de acompanhar a saúde dos utentes. Refere que tais objectivos passam quase sempre obrigatoriamente pela consulta da área do utente, no sentido de monitorizar os cuidados de saúde do mesmo. No tocante às crianças tais objectivos passam pelo acompanhamento da vacinação, vigilância de saúde infantil, desenvolvimento infantil, detecção de maus-tratos, relação pais filhos, papel parental da família. Acompanhamento dos adultos com diabetes e hipertensos e acompanhamento de utentes vindos de outros estabelecimentos de saúde); fls. 481 e seguintes (a Ordem dos Enfermeiros esclarece que o modelo de abordagem dos cuidados centrados na família determina a necessidade do enfermeiro fazer um estudo da família, o que exige a colheita de dados para o planeamento das intervenções. Assim, cada profissional de saúde que, no âmbito da prestação de cuidados de saúde promotores da qualidade e da continuidade dos cuidados, nomeadamente para o estudo de uma família, necessite de obter informação para tal, deve utilizar as suas credências para entrar na plataforma. Conclui a Ordem dos Enfermeiros que, no âmbito do exercício profissional, os enfermeiros necessitam de informação sobre a pessoa, a família ou a comunidade alvo dos seus cuidados.); fls. 841 e seguintes (o perito, enfermeiro F. M., esclareceu que é através do acesso à informação de saúde das pessoas, famílias ou comunidade, que o enfermeiro assume o seu dever de se responsabilizar pelos cuidados que presta, por forma a não haver atrasos na prevenção e no diagnóstico da doença e respectivo tratamento, garantindo o cuidado a que está obrigado); fls. 1129 (a ULS... informa que “…o objectivo principal da carreira de Enfermagem é a prestação de cuidados de saúde preventiva e curativa à população. Mais se informa que, para dar cumprimento aos objectivos é necessário efetuar a consulta dos Sistemas de Informação por parte da equipa, desde logo no que concerne ao Plano de Vacinação no qual a Equipa de Enfermagem acede ao processo sem intervenção do médico.”); fls. 1130 e seguintes (onde constam elencados os objectivos da carreira de enfermagem nos anos de 2013 e 2014, e que permite concluir que os enfermeiros têm de monitorizar e calcular várias percentagens sobre várias problemáticas de saúde e rastreios entre as várias faixas da população, em vários eixos: nacional, regional e local); fls. 1132 (onde constam os indicadores da Unidade de Cuidados na Comunidade, datados de 11-03-2013, de onde se extrai a existência de indicadores relacionados com os seguintes programas de saúde: ECCI, Saúde Escolar, Preparação para a Parentalidade, Intervenção Precoce, CPCJ, Rendimento Social de Inserção e Projecto específico de cada UCC, relativamente aos quais se pressupõe o cálculo de várias percentagens); fls. 1135 e seguintes (onde consta o Plano de Actividades de Enfermagem, UCSP – ..., para o ano de 2014, onde se encontram descriminados vários programas de cuidados de saúde nos quais os enfermeiros têm intervenção para com a comunidade, onde a fls. 1141 indica como sistemas de informação utilizados pelos enfermeiros: SIIMA Rastreios, TAOnet, SICO, SINUS, Aplicativo Glintt Web (Farmácia, Armazém), Gestcare (Aplicativo da RNCCI) e PDS. Concretizando que, entre os objectivos resultantes da contratualização externa e interna e que constam do Plano de Actividades da Unidade, destacam-se a título exemplificativo, para o que aqui releva: “Fazer o levantamento dos utentes que não utilizaram os serviços durante os últimos 12 meses e convocar para consulta”, “identificar anualmente a população alvo; apresentar o PNV totalmente cumprido às zero horas do dia em que completam 14 anos”, “efectuar pelo menos um registo de pressão arterial, nos últimos 36 meses”, “convocar todas as mulheres que não efectuaram rastreio nos últimos dois anos”.); fls. 1153 (onde consta uma informação prestada pela ULS..., da qual se refere que “No âmbito das funções exercidas pelas arguidas, as mesmas estavam autorizadas a consultar processos clínicos dos utentes no supremo interesse daqueles. Tais consultas eram necessárias para seguimento de programas de rastreio, vacinação, Programa Nacional de Saúde Infantil, ações da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, intervenção precoce, entre outros.); mencionando expressamente a desnecessidade da presença dos utentes para efeitos de consulta dos dados por parte dos profissionais de saúde, referindo “Sim os profissionais de saúde podiam aceder às bases de dados, sem necessidade de que os doentes/utentes estivessem presentes, de forma a que fosse possível assegurar o cumprimento dos programas de saúde no interesse do doente/utente. Sim, os enfermeiros podiam aceder ao processo clínico sem que houvesse necessidade de intervenção do médico.)

Neste sentido, e conforme acima já se deixou consignado, muitos indícios apontam para o desempenho de várias funções e alcance de variados objectivos (muitos deles de recolha de dados para efeitos de estatísticas e cuidados preventivos sobre os utentes inscritos no Centro de Saúde no qual prestam actividade) por parte dos profissionais de saúde, inclusive enfermeiros, que implicam controlo e acompanhamento das fichas clínicas dos utentes, necessitando para tal de consultar os sistemas informáticos onde se encontram armazenadas as informações de saúde, entre elas a PDS e o CLÍNICO....

Por sua vez, contrariamente, no que respeita às assistentes G. F. e V. A., as justificações escasseiam, pois, as mesmas, no período em que foram efectuados acessos aos seus dados de saúde, nem sequer se encontravam inscritas no Centro de Saúde ..., conforme resulta do confronto do teor dos documentos constantes de fls. 299, 300, 316, 318 e 322.

Especificando, os acessos relativos à utente G. F., ocorreram em 11-03- 2013, 21-03-2013 e 05-11-2013; e à utente V. A. ocorreram em 18-02-2013, sendo que ambas as assistentes se inscreveram no Centro de Saúde ... em 20-08-2013.

A arguida S. M., em declarações prestadas em inquérito, reporta-se a estes acessos relativos às assistentes G. F. e V. A., com base num alegado estudo à família do G. A. (fls. 389 e 390), admitindo algo extra daquilo que deve ser entendido como sendo o exercício das suas funções como enfermeira. Pois, nada nos autos, dos vastos e numerosos elementos de prova recolhidos, justifica que a mesma actuasse sobre utentes que não estavam inscritos no Centro de Saúde ..., fosse para que efeito fosse, inclusive para elaboração de estudos.

Pelo que, relativamente a estas utentes, não podem (ao contrario do que acontece em relação aos demais assistentes) ser considerados os acessos para efeitos de controlo, estatísticas e cuidados primários e preventivos à população alvo daquele concreto Centro de Saúde onde, para o que por ora importa, a Enf.ª S. M. exercia funções, na qualidade de enfermeira.

A este propósito assume relevo o teor do parecer elaborado pelo Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, junto aos autos em 12-06-2020, de acordo com o qual não é permitida a consulta de um processo clínico por enfermeiros que não estiveram envolvidos no plano terapêutico do utente, sem que para o efeito não haja fundamento que assente nos termos legais. Mais sustentando o parecer que “Caso um enfermeiro aceda aos dados clínicos de um utente sem a sua autorização e sem motivo clínico adequado para o efeito está, conscientemente, a colocar em causa a dignidade da pessoa, violando o dever consagrado no artigo 97º, número 1, alínea a) do EOE e, sobretudo, a desrespeitar a intimidade do mesmo, violando o dever consagrado no artigo 107º do EOE.

A consulta indevida de dados clínicos dos utentes aos quais não prestaram qualquer cuidado de Enfermagem, através de plataformas de registo eletrónico, e fazendo-o de forma livre e consciente, os enfermeiros praticam factos suscetíveis de enquadrar o crime de acesso ilegítimo a dados confidenciais, previsto e punido pelo artigo 6.º, número 1 e número 4, alínea a) da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro.”

Ora, se relativamente aos demais assistentes, conforme supra exposto, se considera existir fundamento para a conduta das arguidas que encontra assento nos termos legais, já em relação às assistentes G. F. e V. A. o mesmo não se pode considerar, pois não existe qualquer motivo clínico adequado para que a Enf.ª S. M., em exercício de funções no Centro de Saúde ..., acedesse justificadamente aos dados clínicos/ dados de saúde das assistentes G. F. e V. A., uma vez que, estas, nas datas em que os acessos foram concretizados nem sequer estavam inscritas naquele concreto Centro de Saúde, devendo, assim, a consulta aos seus dados, pela arguida S. M., ser considerada indevida, configurando um acesso ilegítimo legalmente tipificado.

Porém, no que respeita às datas em que ocorreram os concretos acessos aos dados de saúde da assistente G. F., por parte da arguida S. M., importa atentar que, embora se encontrem registados acessos nos dias 11-03-2013, 21-03-2013 e 05-11-2013 (conforme resulta da interpretação conjugada dos documentos constantes de fls. 299 e 322), considerando os problemas técnicos e informáticos evidenciados pela plataforma PDS, conforme resulta de vários meios de prova recolhidos nestes autos, já acima descritos, apenas se poderá considerar um único acesso, relativamente à assistente G. F..
Relativamente à assistente V. A. também só resulta indiciado um acesso, em 18-02-2013, por confronto com o teor dos documentos constantes de fls. 300 e 322.
Para além disso, não estão em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, pois o tipo legal de crime de acesso ilegítimo visa acautelar, como acima se referiu, a segurança dos sistemas informáticos.
Assim, relativamente ao conjunto das assistentes G. F. e V. A., ambos os acessos ocorridos no período compreendido entre 18-02-2013 e 05-11-2013, efectuados pela arguida S. M., não podem deixar de configurar um único crime, na forma continuada (atendendo ao disposto no artigo 30º nº 2 e nº 3 a contrario, do Código Penal), de acesso ilegítimo agravado, uma vez que está em causa a tomada de conhecimento de dados confidenciais, protegidos por lei, como são os dados relativos à saúde, considerando o disposto no artigo 6º nº 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime.
Contrariamente, de acordo com o que supra se deixou consignado, nenhum indício existe que atribua tal conduta à arguida S. P.. Assim sendo, a arguida S. P. não praticou as referidas acções integradoras do tipo legal do crime de acesso ilegítimo agravado.
Face ao exposto, relativamente à arguida S. P., entende-se que não existem indícios suficientes que se possam subsumir nos elementos objectivos e subjectivos do crime de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6º nº 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime.
Assim, dos indícios existentes não resulta uma possibilidade razoável de à arguida S. P. vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou medida de segurança.
Não se pode concluir que exista uma probabilidade de futura condenação da arguida S. P.. Aliás, se esta arguida fosse submetida a julgamento muito provavelmente seria absolvida.
Já quanto à arguida S. M., deve ser proferido despacho de pronúncia, por existir uma probabilidade de futura condenação da arguida, pela prática de um crime de acesso ilegítimo agravado, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 6º nº 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime. De facto, quanto a esta arguida, entende-se que existem indícios dos factos que lhe são imputados no RAI relativamente à conduta que contende com os acessos a dados de saúde das assistentes G. F. e V. A.. A ser assim, o Tribunal não pode deixar de formular um juízo de probabilidade de aplicação à arguida S. M. de uma reacção criminal por tal crime devendo, por isso, esta arguida ser submetida a julgamento pela prática do mesmo.
*
Nestes termos e sem necessidade de tecer mais considerações, decide-se:

- proferir despacho de não pronúncia da arguida S. P., pelo crime de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6.º n.º 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, previsto e punível pelo artigo 44º nº 2 alínea b)) e 14º do Código Penal, que lhe foi imputado pelos assistentes;
- proferir despacho de pronúncia da arguida S. M., pela prática de um crime de acesso ilegítimo agravado, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 6º nº 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime.
*
Condena-se os assistentes em taxa de justiça, que se fixa em 3 UCs (cfr. artigo 515º nº 1 alínea a) do Código de Processo Penal; devendo ser tida em conta a UC já paga com a abertura de instrução – artigo 8º, nº 2 do Regulamento das Custas Processuais).
*
Assim sendo, pronuncio:

- S. M., filha de M. A. e de F. F., nascida a ..-01-1975, enfermeira, residente na Av. …, ...,

Porquanto
A assistente G. F. esteve inscrita no Centro de Saúde ... até 08.06.2011 (tendo até essa data como médico de família o Dr. R. P. e enfermeira de família N. B.); e posteriormente, desde 20.08.2013; bem como, a assistente V. A. está inscrita no Centro de Saúde ... desde 20.08.2013; sendo que, lhes foi atribuída, entre 14.11.2013 e 29.09.2015, como enfermeira de família a arguida S. M. e como médica de família a Dra. M .M.
A arguida S. M., entre 14.01.2013 e 3.07.2014, exercia a profissão de enfermeira no Centro de Saúde ..., que se encontrava enquadrado na Unidade Local de Saúde do ..., Empresa Pública do Estado.
A arguida S. M., por ser enfermeira a exercer funções no Centro de Saúde ..., tinha a possibilidade de aceder a sistemas informáticos, designadamente à aplicação CLÍNICO..., existente naquele Centro, e à Plataforma Dados da Saúde, mediante a entrada no sistema informático do computador que lhe estava pessoalmente atribuído, através da utilização de um código de utilizador ou credencial pessoal e intransmissível.

A aplicação CLÍNICO... permitia a consulta do registo clínico local dos utentes e estava ligada à Plataforma Dados da Saúde, na qual era possível aceder e consultar informação ligada à saúde ali partilhada, obtida e registada em qualquer entidade da Saúde que se encontrasse em rede com aquela plataforma e partilhasse informação.
À data dos factos era possível consultar o processo clínico electrónico dos utentes, quer via CLÍNICO..., quer via PDS.
A aplicação CLÍNICO... e a PDS estavam alojadas em sistemas informáticos e armazenavam dados pessoais sensíveis e confidenciais ligados à saúde das pessoas.
A arguida S. M., sem que a assistente G. F. se tivesse dirigido ao Centro de Saúde, para consulta médica ou beneficiar de cuidados de saúde, e sem que para tanto estivesse autorizada pelo proprietário do sistema ou tivesse o consentimento da própria, acedeu e consultou, nas bases de dados do CLÍNICO.../SAM e da PDS, através do sistema informático existente no Centro de Saúde ..., a sua informação de saúde e informação médica, designadamente inserta no seu processo clínico, nas seguintes datas: 11- 03-2013, 21-03-2013 e 05-11-2013.
Sendo ainda que, a arguida S. M., nos termos e pelo modo referidos no ponto precedente, tomou conhecimento do processo clínico e de informação médica ligada à saúde da assistente G. F..
A arguida S. M., sem que a assistente V. A. se tivesse dirigido ao Centro de Saúde, e sem que para tanto estivesse autorizada pelo proprietário do sistema ou tivesse o consentimento dos pais daquela para o efeito, acedeu e consultou, nas bases de dados do CLÍNICO.../SAM e da PDS, através do sistema informático existente no Centro de Saúde ... a sua informação médica, designadamente inserta no seu processo clínico, na seguinte data: 18-02-2013.
As assistentes G. F. e V. A. estavam, nas datas em que a arguida S. M. acedeu e consultou a sua informação médica através do sistema informático, inscritas na UCSP de …, em Bragança, e na UCSP de Matosinhos (com excepção do acesso de 05/11/13 relativo à assistente G. F.).
Os acessos realizados pela arguida S. M. ao processo clínico das assistentes G. F. e V. A. e a consulta da informação médica das mesmas, através do sistema informático existente no Centro de Saúde ..., nas datas referidas não foram realizados em contexto clínico, de consulta ou cuidado de saúde, nem com o consentimento ou autorização dos assistentes.
As informações ligadas à saúde das assistentes G. F. e V. A. a que a arguida acedeu e tomou conhecimento são dados pessoais sensíveis e confidenciais, da vida íntima das assistentes.
A arguida S. M. actuou do modo descrito na qualidade de enfermeira do Centro de Saúde ... abusando das suas funções e da autorização de acesso ao sistema informático, visando unicamente satisfazer a sua curiosidade pessoal.
A arguida S. M. não estava incumbida, individual ou conjuntamente, de nenhuma tarefa ligada à saúde das assistentes G. F. e V. A..
A arguida S. M. conhecia que os dados de saúde são dados pessoais e confidenciais, relativos à saúde e intimidade das pessoas.
A arguida S. M. sabia que não podia, autonomamente, por sua única e exclusiva iniciativa, aceder através de sistema informático ao processo clínico das assistentes G. F. e V. A. e à informação médica de saúde destas.
Sabia a arguida S. M. que, actuando nos moldes em que actuou, extravasava a sua autorização de acesso, num desvio não permitido pela lei, fora do exercício permitido pelas suas funções de enfermeira.
Sabia que o conhecimento da informação médica de saúde das assistentes G. F. e V. A. era confidencial e que lhe estava vedado, nos referidos moldes, aceder-lhe e tomar conhecimento pela forma descrita.
Não obstante, quis a arguida S. M. agir pelos referidos meios de acesso aos sistemas informáticos, e nos referidos termos, tomar conhecimento do processo clínico das assistentes G. F. e V. A. e da informação médica pessoal e confidencial ligada à saúde das referidas assistentes, como efectivamente tomou.
A arguida S. M. sabia que abusava das suas funções para um fim contrário àquele que lhe é permitido no exercício da enfermagem, não podendo consultar por sua iniciativa informação médica, protegida por lei.
Não se coibindo a arguida S. M., ainda assim, a actuar, como actuou, com o propósito concretizado de conhecer a informação médica confidencial das referidas assistentes, visando unicamente satisfazer interesses pessoais.
A arguida S. M. agiu livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, querendo e não se coibindo de actuar, com o propósito concretizado, de actuar do modo supra descrito.

Pelo exposto, cometeu a arguida, como autora material e na forma consumada, UM CRIME DE ACESSO ILEGÍTIMO AGRAVADO, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 6º nº 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime, em conjugação com o artigo 30º nº 2 e 3 a contrario do Código Penal.
*
Prova:
(...).”.
*
4. Inconformados com essa decisão judicial, dela vieram interpor recurso os assistentes L. M., N. M., por si e em representação da criança G. A., C. F. e G. F., por si e em representação da criança V. A., nos termos da peça processual cuja cópia consta de fls. 205 Vº / 294 Vº, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Os assistentes requereram a abertura da presente instrução, nos termos que constam de fls. 992 e ss. dos autos e para as quais se remete por brevidade de exposição, mas em suma com fundamento no facto de a arguida S. M. ter directamente acedido aos processos clínicos e visualizado a informação de saúde e médica confidencial de todos os assistentes, sem ter permissão legal, para tanto estar autorizada e sem o consentimento ou conhecimento destes através da sua área reservada na PDS (Plataforma Dados da Saúde) e directamente através da aplicação CLÍNICO..., imputaram-lhe na pessoa do assistente menor G. A. a prática de 106 crimes de acesso ilegítimo qualificado, p. e p. pelo artigo 5º, nsºs. 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime, na pessoa da assistente L. M. 24, na pessoa do assistente N. M. 7, na pessoa da assistente C. F. 6, na pessoa da assistente C. F. 6, na pessoa da assistente G. F. 4 e na pessoa da assistente menor V. A. 2.
2. Igualmente, no que concerne à arguida S. P. por esta ter directamente acedido ao processo clínico e visualizado informação de saúde e médica confidencial do assistente menor G. A., sem ter permissão legal, para tanto estar autorizada e sem o consentimento ou conhecimento dos pais deste, através da sua área reservada na PDS e CLÍNICO.../SAM, o assistente menor G. A. imputou-lhe um crime de acesso ilegítimo qualificado, p. e p. pelo artigo 6º, nsº 1 e 4, alínea a), da Lei do Cibercrime.
3. À data dos factos, as arguidas não eram enfermeiras de família de nenhum dos assistentes, não lhes prestaram cuidados de enfermagem ou sequer de saúde e não se encontravam implicadas em plano terapêutico referente a qualquer um dos assistentes, acedendo ao processo clínico electrónico destes, consultando sua informação médica, sem a necessária intermediação de médico, conforme designadamente imposto pela Lei de Informação Genética Pessoal e Informação de Saúde (Lei nº 12/2005, de 26/01, à data em vigor) e Lei a Protecção de Dados (Lei 67/98, de 26 de Outubro, em vigor à data dos factos).
4. Nos termos da Lei, dispersa por vários diplomas legais, as arguidas, sendo enfermeiras, não podem aceder aos processos clínicos dos utentes, sem ser em contexto de consulta e sob intermédio de médico, na medida estritamente necessária ao concreto cuidado de saúde a prestar, dado que, em suma, a informação clínica desses processos está sujeita a sigilo médico, sob reserva da sua confidencialidade.
5. A decisão instrutória sob recurso determinou-se pela pronúncia da arguida S. M. quanto a um crime de acesso ilegítimo qualificado, p. e p. pelo artigo 6º, nº 1 e 4º, alínea a), da Lei 109/2009 de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), quanto às assistentes G. F. e filha menor desta, V. A. e pela não pronúncia das arguidas S. M. e S. P. quanto aos demais crimes que lhe foram imputados pelos assistentes.
6. É, contudo, impossível discernir os fundamentos da decisão instrutória, dado que esta não julgou os factos indiciados e não indicados, não verteu qualquer motivação quanto a estes e não apreciou sequer o objecto da instrução fixado pelo RAI.
7. Com efeito, a decisão instrutória não cumpre os padrões mínimos exigíveis a uma decisão judicial no cômputo do quadro das sociedades actuais composta por cidadãos cada vez mais conscientes dos seus direitos.
8. Limita-se a decisão a aferir panoramicamente sobre a possibilidade de as arguidas acederem à Plataforma Dados da Saúde, quando o que está em causa e foi invocado pelos assistentes, é o facto de as arguidas compulsarem os seus processos clínicos electrónicos e visualizado a sua informação médica e de saúde, através do sistema informático que lhes está disponível no Centro de Saúde ..., mediante o uso de vários programas e aplicações informáticas, designadamente o CLÍNICO... – Serviço de Apoio ao Médico, ao qual se pode aceder, por sua vez, através daquela plataforma.
9. A decisão é absolutamente omissa quanto ao objecto que foi presente ao Tribunal para decidir: não aprecia, nem deixa de apreciar, em que circunstâncias as arguidas, sendo enfermeiras, podem compulsar processos clínicos dos utentes, e consultar a informação de saúde e médica confidencial aí depositada, fazendo-o assincronamente relativamente a qualquer cuidado de saúde a prestar na pessoa daqueles.
10. A decisão é confusa, obrigando os assistentes a depreenderem os eventuais fundamentos que a subjazeram e incongruente, no sentido em que sem qualquer análise lógica e jurídica antecedente sobre a informação médica visualizada através do perscrutar dos respectivos processo clínicos electrónicos pronuncia a arguida S. M. por tais factos quanto a duas das assistentes e não quanto aos demais e bem assim não pronuncia a arguida S. P.; por outro lado refere que alguns dos acessos podem ser tentativas e desculpabiliza a arguida S. M. por isso, quando nos termos da do nº 5, do artigo 6.º da Lei do Cibercrime e tentativa é punível….
11. No decurso do inquérito a arguida S. M. assumiu que acedeu aos processos clínicos electrónicos de todos os assistentes visualizando a sua informação de saúde e médica, e a arguida S. P. assumiu que acedeu ao processo clínico electrónico e visualizou informação médica e de saúde do assistente menor G. A..
12. De entre as várias justificações apontadas pelas arguidas (não estando nenhuma ligada a pedidos de médicos ou cuidados de saúde a prestar), a arguida S. M. assumiu que visualizou informação médica de todos os assistentes, compulsando os seus processo clínicos electrónicos, inter alia, para elaborar um estudo sobre o estado de saúde do G. A. e dos seus familiares, aqui assistentes.
13. O Tribunal a quo escusou-se a analisar – como se lhe impunha que o fizesse - a bondade desta justificação…. depreendem, pois, os assistentes que considerou juridicamente válido tal motivo, mas não se sabe quais os fundamentos que levaram o Tribunal a tal conclusão.
14. A decisão em crise também não se pronuncia sobre diversos elementos que estão nos autos, como sendo os seguintes: fls. 36 a 37, fls. 160 e ss., 340 e ss., 466 e ss., 532 e ss., registo de acessos junto com a instrução e que voltamos a juntar com o presente recurso (CD anexo a fls. 513), fls. 96 e 97, fls. 301, fls. 490 e 491, fls. 503, fls. 606, fls. 628, fls. fls. 637, fls. 693, fls. 713, fls. 740 e ss., fls.1124, fls. 597 a 599.
15. Por outro lado, para sustentação dos factos que imputou à arguida S. M. quanto às assistentes G. F. e V. A. indicou prova que não foi produzida nos autos, cuja pertinência vislumbrada pelo Tribunal na produção da mesma é por isso impossível de discernir.
16. Com efeito, o Tribunal indicou como prova, designadamente as testemunhas Maria, V. T., SM., as quais não foram ouvidas sequer nos autos e indicou ainda H. R., cujo óbito (lamentavelmente) se encontrava já comunicado no processo…
17. Na decisão sob recurso não é feita qualquer análise jurídica com pertinência sobre os factos aqui em questão, posto que para além de citar o artigo 6º da Lei do Cibercrime, se limita a despejar três normas cuja aplicação nem cabimento têm nos autos, por não convocáveis para o caso ou por dizerem respeito a legislação posterior à data dos factos.
18. Tanto assim é que na própria decisão apesar de transcrever tais normas, não lhes dá qualquer tratamento na genérica apreciação feita sobre o caso dos assistentes.
19. Finalmente, a decisão em causa é ainda totalmente omissiva quanto ao modo como determinou a resolução continuada do crime que imputou à arguida S. M., bem como é omissiva quanto à forma como determinou o valor das custas que imputou a eito aos assistentes, sem sequer considerar a utilidade da instrução para cada um dos mesmos, pese embora tenha proferido despacho de pronuncia quanto a uma das arguidas, por alguns dos factos que lhe foram imputados pelas assistentes G. F. e V. A..
20. Posto isto, a decisão instrutória é nula, por violação do disposto no artigo 308º, ns.º 1 e 2 em conjugação com o artigo 283º, nº 2, alíneas b) e c), do CPP e do artigo 6º da CEDH.
21. Como tal requer-se a V. Exs.ª se dignem a declarar a nulidade da mesma e a ordenar que o Tribunal a quo profira decisão na qual especifique os factos dados como indiciados e não indiciados, procedendo a uma motivação escrutinável dos mesmos de acordo com uma análise crítica de toda a prova que consta e foi produzida nos autos e bem assim a subsunção jurídica que considere como pertinente, desde que reportada ao assunto em análise sem alusões a normas jurídicas manifestamente inócuas ao seu tratamento.

Sem prescindir,

Para o caso de assim se não entender,

22. O objecto dos presentes autos é pois, tal como fixado pelo RAI, o de saber se as arguidas, sendo enfermeiras, podem aceder aos processos clínicos electrónicos e tomar conhecimento da informação médica e de saúde aí depositada dos assistentes, sem ser em contexto clínico de consulta, na dependência de médico, e sem lhes prestarem um concreto cuidado de saúde.
23. Processo Clínico é qualquer registo informatizado, ou não, que contenha informação de saúde – considerada sensível - sobre doentes ou seus familiares e a informação médica aí inscrita, propriedade daqueles, sujeita a sigilo, e é destinada a ser usada na prestação de cuidados de tratamento de saúde (cfr. artigos 11º, 3º e 7º da Lei nº 67/98, de 26/10 e artigos 1º, 2º, 3º 4º 5º, ns.º 1 e 2 da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro, na redação em vigor à data da prática dos factos).
24. O acesso ao processo clínico dos utentes, à informação médica, de dados da saúde é sempre feita por intermédio de médico (artigos 11º, nº 5, da Lei nº 67/98, de 26/10, artigo 5º, nº 5 da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro, na redação em vigor à data da prática dos factos).
25. A informação constante do processo clínico individual do utente está sujeita a segredo médico – artigo 67º do CDM – Regulamento nº 14/2009, em vigor à data dos factos.
26. É aos médicos que cabe definir, por ser da sua responsabilidade a salvaguarda da integridade da informação, que tipo de informação clínica podem ter acesso os profissionais não médicos e sempre na estrita medida do cuidado concreto de saúde a prestar.
27. A consulta (incluída no tratamento de dados sensíveis) por terceiros a dados relativos à saúde só pode ser feita, com consentimento expresso do titular dos dados, mediante disposição legal (positivada), autorização da CNPD, ou quando haja motivo de interesse público importante e esse tratamento for indispensável à prossecução desse interesse (artigo 7.º da Lei 67/98, de 26 de Outubro na redação em vigor à data da prática dos factos).
28. Consta de fls. 160 e ss., 340 e ss, 466 e ss., 532 e ss. e do documento que se junta agora impresso sob o nº 1, a consulta e visualização do processo clínico dos assistentes por parte das arguidas.
29. Tais registos são fidedignos, coincidentes quanto às datas dos acessos e visualizações, mas apresentam mapeamentos diferentes da mesma informação (pese embora o Tribunal não os tenha escalpelizado, como se lhe impunha, as consultas estão concatenadas no quadro acima com menção às fls. dos autos, assim sendo mais fáceis de consultar).
29. As arguidas admitiram que consultaram os processos clínicos dos assistentes e visualizaram a informação aí depositada.
30. De entre as justificações apontadas nenhuma corresponde à necessidade de acesso e consulta da informação para a prestação de um cuidado de saúde na pessoa de qualquer um dos assistentes, nem se reporta à necessidade dessa informação para auxílio de médico num concreto cuidado de saúde a prestar e na estrita medida do necessário para o efeito.
31. Inexiste qualquer motivo de interesse público que justifique a conduta das arguidas, ou qualquer outro direito fundamental em confronto com o direito à reserva da vida privada e intimidade dos assistentes que as arguidas visassem acautelar.
32. Em face do exposto, deviam os factos e crimes imputados pelos assistentes no seu RAI às arguidas ter sido dados como verificados e terem estas sido pronunciadas pelos crimes aí indicados, nos concretos termos em que o foram.
33. Contudo, volateando sobre a situação que efectivamente aqui estava em causa, o Tribunal descurou as normas atinentes ao direito de acesso ao processo clínico, informação médica e informação de saúde e entendeu que as arguidas podiam infringir a confidencialidade da informação dos assistentes depositada nos seus processos clínicos, espadelando o segredo médico em ordem a prosseguir finalidades não relacionadas com a prestação de cuidados concretos de saúde.
34. Os motivos apontados pela arguida S. M. para aceder informaticamente ao processo clínico do assistente G. A. residiram:

- no argumento de que este menor estava integrado no Sistema Nacional de Intervenção Precoce e que neste âmbito a arguida S. P. tinha que verificar se o menor frequentava as consultas de terapia da fala e apresentar relatórios que implicavam visualizar a informação médica do mesmo.
- que o fazia, em parte, a pedido desta arguida, na qualidade de elo de ligação entre a unidade familiar e a UCC, porque a mesma não dispunha de password para o fazer por si;
- que a determinado momento considerou oportuno fazer um estudo sobre o estado de saúde deste menor e dos demais assistentes seus familiares.

35. A arguida S. P. dispunha de password de acesso desde data anterior à prática dos factos aqui em questão, tanto mais que ela própria acedeu ao processo clínico do menor em 11.2.2013; não apresentou, nem estava incumbida de apresentar, relatórios sobre o menor G. A. naquele âmbito e dispunha da informação sobre a frequência das consultas à terapia da fala directamente através da Terapeuta.
36. Os pais do G. A. não deram o seu consentimento ou autorização para que as arguidas acedessem ao processo clínico do menor fosse para que efeito fosse, nem sequer disso tinham conhecimento até ao momento que motivou a participação dos autos.
37. A Intervenção Precoce está integrada no Sistema Nacional de Intervenção Precoce, sendo totalmente autónoma e distinta, para o que aqui releva, do Centro de Saúde ... e dos profissionais que o compõem nas suas diversas valências.
38. Designadamente, é totalmente distinta das Unidades de Cuidados na Comunidade e Unidades e de Serviços Personalizados na Comunidade.
39. O Centro de Saúde ... e os seus profissionais são considerados pelo Sistema Nacional de Intervenção Precoce como terceiros a quem não cedem, por isso, os processos individuais de intervenção precoce das crianças que acompanham.
40. A arguida S. M. não era elo de ligação do que quer que fosse, mas mesmo que assim não sucedesse nunca tal a habilitaria a agir nos termos que agiu, para além do mais porque os assistentes nem integrados estão em tais unidades.
41. As arguidas retiveram toda a informação de que tomaram conhecimento sobre os dados de saúde dos assistentes única e exclusivamente para si, não a comunicando a quem quer que fosse e não lhe dando qualquer destino.
42. Nada há nos autos que pudesse habilitar as arguidas a aceder e consultar a informação médica desta criança, por falta de norma que as habilitasse a fazerem-no sem qualquer ligação a um cuidado de saúde a prestar a esta criança e sem intermediação médica, ou expresso consentimento dos pais.
42. A arguida S. M. invocou ainda o cumprimento de objectivos impostos pela tutela, a verificação do plano nacional de vacinação, a conferência de listas de utentes e a intersubstituição de enfermeiros.
43. Nenhum destes motivos, nos termos legais, permitia que a arguida consultasse o processo clínico e a informação de saúde e médica dos assistentes, existindo bases de dados disponíveis para esse efeito distintas daquelas onde se encontra o processo clínico do utente e a sua informação médica.
44. Acresce que tais objectivos são nos termos da lei levados a cabo por enfermeiros de família, o que não era o caso das aqui arguidas sobre qualquer um dos assistentes, nos períodos em causa.
45. A proactividade inerente à actividade de enfermagem apenas pode ser concebida dentro do quadro das funções que os enfermeiros podem prosseguir.
46. Donde, não se encontrando os mesmos habilitados à prática de actos médicos não há proactividade que possa juridicamente ser valer à actução das arguidas, completamente desforme aos deveres éticos, estatutários, legais, constitucionais e humanos a que estavam obrigadas.
45. Os enfermeiros dispõem de bases de dados próprias, onde devem registar com rigor as observações feitas e as intervenções concretamente realizadas aos utentes, diversas das bases de dados dos médicos.
46. As arguidas não registaram qualquer motivo de consulta à informação de saúde dos assistentes, actuaram na penumbra dos sistemas informáticos, na convicção de que estavam ocultas ao controlo dos mesmos…
47. No que concerne à intersubstituição de enfermeiros, está bom de ver que tal circunstância igualmente não subtrai a ilegitimidade da conduta das arguidas, pelo simples motivo de que os enfermeiros, nos termos da lei, não podem entrar nos processos clínicos electrónicos dos utentes e visualizar a sua informação sem ser com intermediação de médico, no contexto de um concreto cuidado médico a prestar no auxílio deste e na estrita medida do necessário.
48. Considerando que as arguidas prestam o seu trabalho no Centro de Saúde ..., o auxílio destas a médico resumir-se-ia ao contexto de consulta médica a receber por aqueles.
49. As perscrutações feitas aos processos clínicos electrónicos dos assistentes foram concebidas de forma assíncrona, isto é, sem que os assistentes estivessem a receber qualquer cuidado de saúde, incluindo em consulta de enfermagem ou médica, ou mesmo se encontrassem no Centro de Saúde.
50. As arguidas viram informação médica realizada noutras instituições públicas e/ou privadas: exames de neurologia, radiologia, ressonâncias magnéticas, exames de obstetrícia e ginecologia, TAC´s, exames bioquímicos, exames de hematologia, diagnósticos de medicina física e de reabilitação, prescrições médicas, locais de consulta e respectiva especialidade …
50. Tudo de forma indiscriminada, sem critério e sem estar tal conhecimento relacionado com a prestação de um cuidado concreto de saúde e muito menos no interesse do menor G. A., dado que tudo o que fizeram foi devassar selvaticamente a intimidade desta criança.
51. É absurdo considerar que as arguidas actuaram no interesse da criança G. A..
52. Como é igualmente absurdo que a arguida S. M. pudesse ter realizado um estudo sobre o estado de saúde dos assistentes, sem o conhecimento destes e sem cumprir qualquer trâmite legal a esse propósito e tal se mostre legítimo aos olhos da justiça…
52. O raciocínio levado a cabo pelo Tribunal a quo parece ter assentado no facto de que as arguidas sendo enfermeiras numa instituição de saúde podem aceder à informação médica e de saúde de qualquer pessoa que aí se encontre inscrita e por isso considerou apenas ser de pronunciar a arguida S. M. pela actuação desta nas pessoas das assistentes G. F. e V. A., porquanto estas nas datas em questão não estavam ali inscritas.
53. É uma conclusão que se afigura perturbadora de tão perigosa e potencialmente danosa para os direitos fundamentais e humanos dos cidadãos (!).
54. O critério de acesso à informação médica e de saúde e seu inerente conhecimento está na lei e deve ser conjugado com critérios de necessidade, adequação e necessidade dirigidos a um concreto cuidado de saúde a prestar.
55. Nunca um qualquer profissional de saúde, médico ou não (mas por maioria de razão nunca as arguidas que são enfermeiras) pode sem motivo concreto e suficientemente justificativo invadir a intimidade dos cidadãos, exposta pelas tecnologias da informação aplicadas à área da saúde.
57. Tal raciocínio viola todas as normas e princípios básicos de um estado de direito democrático.
58. Mostra-se ainda arbitrário porque assente em considerandos genéricos insuficientemente concretizados ou densificados na decisão em recurso.
59. Em face do exposto, as arguidas por serem, á data, enfermeiras do Centro de Saúde ... estava genericamente autorizadas a aceder aos sistemas informáticas onde constam aplicações, programas e plataformas que disponibilizam a informação de saúde e médica dos utentes do Serviço Nacional de Saúde.
60. A pesquisa nestes aplicativos pode ser feita com recurso à inserção na funcionalidade de procura de utente através de um elemento identificativo do mesmo, designadamente pelo nome do utente.
61. A arguida S. M. é vizinha dos assistentes, uns e outros conhecem-se deste sempre porque cresceram na mesma aldeia (…)- não se falando ou relacionando há mais de dez anos- e a arguida S. P. conhece os elementos de identificação do assistente menor G. A. do contexto da intervenção precoce.
62. Dado que as pesquisas à informação de saúde dos assistentes foram feitas sem que os mesmos apresentassem um episódio activo no sistema informático (não tinham consulta ou cuidado de saúde agendado) as arguidas tiveram que inserir os dados destes de cada uma das vezes que acederam aos seus processos e dentro destes escolher os itens desejados, assim percorrendo todo conteúdo aí disponibilizado sobre a informação de saúde, íntima, sensível e confidencial dos visados.
63. A arguida S. M. no que concerne ao assistente menor G. A. acedeu ao seu processo clínico e consultou a sua informação médica e de saúde 106 vezes, sem que em alguma delas lhe estivesse a prestar um cuidado de saúde ou a auxiliar médico, pelo que deve ser pronunciada pela prática de 106 crimes de acesso ilegítimo qualificado, na pessoa deste, nos termos previstos no artigo 6º, nº 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime.
64. A arguida S. M. no que concerne à assistente L. M. acedeu ao seu processo clínico e consultou a sua informação médica e de saúde 24 vezes, sem que em alguma delas lhe estivesse a prestar um cuidado de saúde ou a auxiliar médico, pelo que deve ser pronunciada pela prática de 24 crimes de acesso ilegítimo qualificado, na pessoa desta, nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime.
65. A arguida S. M. no que concerne ao assistente N. M. acedeu ao seu processo clínico e consultou a sua informação médica e de saúde 7 vezes, sem que em alguma delas lhe estivesse a prestar um cuidado de saúde ou a auxiliar médico, pelo que deve ser pronunciada pela prática de 7 crimes de acesso ilegítimo qualificado, na pessoa deste, nos termos previstos no artigo 6º, nº 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime.
66. A arguida S. M. no que concerne à assistente C. F. acedeu ao seu processo clínico e consultou a sua informação médica e de saúde 6 vezes, sem que em alguma delas lhe estivesse a prestar um cuidado de saúde ou a auxiliar médico, pelo que deve ser pronunciada pela prática de 6 crimes de acesso ilegítimo qualificado, na pessoa desta, nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime.
67. A arguida S. M. no que concerne à assistente G. F. acedeu ao seu processo clínico e consultou a sua informação médica e de saúde 4 vezes, sem que em alguma delas lhe estivesse a prestar um cuidado de saúde ou a auxiliar médico, pelo que deve ser pronunciada pela prática de 4 crimes de acesso ilegítimo qualificado, na pessoa desta, nos termos previstos no artigo 6º, nº 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime.
68. A arguida S. M. no que concerne à assistente menor V. A. acedeu ao seu processo clínico e consultou a sua informação médica e de saúde 2 vezes, sem que em alguma delas lhe estivesse a prestar um cuidado de saúde ou a auxiliar médico, pelo que deve ser pronunciada pela prática de 2 crimes de acesso ilegítimo qualificado, na pessoa desta, nos termos previstos no artigo 6º, nº 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime.
69. A arguida S. P. no que concerne ao assistente menor G. A. acedeu ao seu processo clínico e consultou a sua informação médica e de saúde 1 vez, sem que em alguma delas lhe estivesse a prestar um cuidado de saúde ou a auxiliar médico, pelo que deve ser pronunciada pela prática de 1 crime de acesso ilegítimo qualificado, na pessoa deste, nos termos previstos no artigo 6º, nº 1 e 4, alínea a) da Lei do Cibercrime.
70. Com efeito, a conduta da arguida S. M. não é reconduzível à previsão do nº 2, do artigo 30º, do CP, pela constante vontade empedernida de por várias vezes, sob diversas formas e sobre diversos conteúdos consultar a informação dos assistentes.
71. E ainda que assim não fosse, a alínea a), do nº 4, do artigo 6º da Lei do Cibercrime, protege bens jurídicos complexos, incluindo bens jurídicos iminentemente pessoais, na vertente da tutela de conteúdos dos dados confidenciais, onde se incluem, entre outros, a os dados da vida intimidade e sensíveis relativos à saúde das pessoas, pelo que o nº 3, do artigo 30º, obsta à consideração da prática dos crimes como um único crime continuado, nos termos do seu nº 1.
72. Tudo pelos factos imputados pelos assistentes às arguidas no seu RAI, nos pontos 1. a 45. do mesmo, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos (considerando a extensão do presente recurso, por força da necessidade de rebater argumentos que implicaram o necessário esforço de interpretação quanto aos hipotéticos argumentos de facto e de direito em abstracto considerados na decisão sob recurso).
73. Ao não ter decido neste sentido, a decisão instrutória violou todas as normas especificadas ao longo deste recurso e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos e nos precisos termos invocados.

Assim fazendo V. Exas. a sã e costumada JUSTIÇA! “.
*
5. Pelo despacho de 24/09/2020 foi rejeitado, por falta de legitimidade, o recurso interposto pela assistente G. F., por si e em representação de sua filha, a menor V. A..
5.1. E pelo despacho da mesma data, foi admitido o recurso interposto pelos assistentes L. M., N. M., por si e em representação do seu filho G. A. e pela assistente C. F., recurso esse a subir imediatamente, em separado, e com efeito devolutivo.
*
6. Na 1ª instância foram notificados os sujeitos processuais afectados pelo recurso, tendo-se apresentado a responder (pela ordem que consta dos autos):
6.1. A arguida S. M. nos termos constantes de fls. 619/650, pugnando pela sua improcedência, terminando a sua peça processual formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“A - No que respeita aos crimes que teriam sido cometidos pela arguida S. M. na pessoa das assistentes L. M., N. M., G. A. e C. F.,
1 - A arguida S. M. é e era ao tempo dos autos, enfermeira a prestar serviço no Centro de Saúde ....
2 - Além de prestar serviços na Unidade de Cuidados na Comunidade, era o elo de ligação entre esta e a Unidade de Saúde Familiar, seja Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados.
3 - O menor G. A. estava a ser apoiado no Plano Individua! de Intervenção Precoce
4 - Seus pais, L. M. e N. M., autorizaram que fosse acompanhado por aquela equipa, não excluindo nenhuma valência daquela Intervenção tendo assinado a respectiva declaração em 07/04/2011 (fls. 488),
5 - Assim como fizeram parte do Plano, assinando-o (fls. 742).
6 - Os assistentes C. F., N. M., L. M. e G. A. colocaram os seus dados na PDS pelos quais dão autorização para que profissionais de saúde credenciados possam consultar as suas informações clínicas registadas no Serviço Nacional de Saúde (fls. 42 a 48).
7 - A fls. 641 do Inquérito consta o esclarecimento prestado pela Associação Nacional de Intervenção Precoce, que é do seguinte teor: O consentimento informado refere-se à autorização para o preenchimento da referida base de dados com os dados da família/criança, sendo da responsabilidade do próprio SNIPI, através das orientações da respectiva subcomissão regional do SNIPI para as ELI.
8 - A partir da entrada em vigor do Sistema de Informação (Base de Dados do SNIOI, de 09105/2016) foi elaborada uma declaração de consentimento pelo próprio SNIPI onde as famílias declaram ter sido devidamente esclarecidas sobre as características e procedimentos dando o seu consentimento para a recolha e tratamento das informações e dos dados pessoais fornecidos através do registo informático na base de dados do SNIPI (fls. 641 e 8S.).
9 - Segundo a informação dada pelo Sistema Nacional da Intervenção Precoce, constante de fls. 678 a 681, vê-se a fls. 680, 4° parágrafo: " ... É no âmbito deste Plano de Intervenção elaborado em articulação com a família e demais entidades e serviços envolventes, que se estabelece o "consentimento informado" por parte das famílias, no qual esta expressa a sua vontade no acompanhamento perspetivado no âmbito da IP, designadamente através do preenchimento e assinatura de um campo específico do PIIP por parte dos pais ou dos responsáveis legais da criança, aspecto devidamente acautelado pelo técnico gestor da situação em acompanhamento", para o efeito juntaram um modelo da PIIP em branco seja sem estar preenchido.
10 - A fls. 133 e ss. e posteriormente repetido a fls. 732 e SS. está o mesmo modelo mas devidamente preenchido do qual se vê que o início do PllP foi em 10/04/2011 e que os pais assinaram donde resulta que deram o seu consentimento informado.
11 - Como se vê nessa folha, também assinou como elemento que interveio no PIIP, a arguida S. P..
12 - Que fora a responsável pela Equipa de Acolhimento em ... (fls. 782 verso)
13 - Estando presente em diversas reuniões, conforme fls. 789 a 805, data em que por acumulação de serviços deixou de pertencer a essa equipa.
14 - Os planos de Intervenção Precoce são centrados na família in casu a que os pais do G. A. indicaram no EcoMapa de fls. 121 e 731 verso, onde vêem os seus nomes, tia avós e tios avós e os seus contactos telefónicos.
15 - A arguida S. M. era o elemento referido de inter ligação entre UCC e U.Familiar, Unidade de Cuidados de Saúde Personalizada.
16 - Sendo como tal reconhecida inclusivamente pelo ULS... em 29/07/2014 e 23/09/2014 fls.
17 - Sendo a enfermeira S. P. não só um elemento da AE, como também fora a sua representante.
18 - A arguida S. M., como elemento de interligação e a pedido da enfermeira S. P., que fez parte do Plano de Intervenção Precoce do G. A. e o assinou, e era a representante da EA de ... e como tinha a seu cargo todos esses processos de ... pediu aquela que fizesses essas consultas.
19 - O que fez, acedendo também aos dados dos pais e da tia C. F., que constavam do Plano do G. A. com os seus números de telefone, já que aquele se centra na família.
20 - Fez também alguns desses acessos em regime de substituição de alguns colegas, designadamente da enfermeira N. B. por estar em Licença de parto.
21 - Assim como o podia ter feito por outras colegas em regime de substituição, até porque o Centro de Saúde ... também funcionava aos Sábados e Domingos.
22 - Assim como, aquando duma consulta, sem o utente passar pela enfermagem a enfermeira de serviço deve consultar o processo clinico para o apresentar ao médico.
23 - Acresce que no início da Instalação da Plataforma da PDS havia pouca preparação para aceder, por um lado e por outro o sistema apresentava constrangimentos, não resultando os acessos.
24 - Quando isso acontecia, os colegas pediam ajuda.
25 - Neste contexto a arguida actuou dentro da legalidade, cumprindo os seus poderes, deveres profissionais que se preza de o ser e actuou tão só no interesse do menor, pois nunca confundiu, nem confundirá urna relação social de vizinhança com os seus deveres profissionais.
26 - Por isso sendo enfermeira da família da assistente Drª G. F. e filha telefonou-lhe a avisar que a filha precisava da vacinação.

Quanto à multiplicidade de crimes porque pretendem pronunciá-Ia

27 - Rejeita-se categoricamente.
28 - Por um lado, seria impossível em meia dúzia de segundos cometer diversos crimes da mesma natureza.
29 - Enfocar-se-iam crimes impossíveis.
30 - Finalisticamente a sua acção tinha como escopo a vigilância de saúde do menor G. A..
31 - Só uma acção e não várias acções.
32 - A repetição da acção, não significa nova acção, mas sim a mesma acção, pelo facto de a primeira ou anterior não ter resultado, considerando-se, pois inexistentes.
33 - Tinham somente uma finalidade: a saúde do G. A. dentro do Plano de Intervenção Precoce.
34 - De resto o bem atingido sempre seria a violação da legislação informática.
35 - Atuando a arguida S. M., no cumprimento dos seus poderes deveres, dentro da sua profissão, guardando sempre sigilo do conhecimento que obtinha, não praticou qualquer ilícito, pelo que, deve manter-se o despacho de não pronúncia.
36 - Pelos mesmos motivos e sendo certo que a Drª G. F. é tia e a filha é prima sempre estariam no núcleo familiar do G. A., cujo Plano de Intervenção se centrava na Família.
37 - De qualquer forma e sem prescindir as nulidades invocadas e pelos motivos apontados devem considerar-se sanadas.
Deve, pois manter-se a pronúncia tal como consta na Decisão Instrutória.”.
*
6.2. A arguida S. P., nos termos constantes de fls. 652/656, pugnando também pela sua improcedência, terminando a sua peça processual formulando as seguintes conclusões (transcrição):

“I - O vício que vem apontado pelos Recorrentes à decisão recorrida não importa a nulidade da mesma, consubstanciando, quando muito, mera irregularidade (cfr., a título de exemplo, o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 14.06.2017, proferido no proc. nº 5726/14.9DPRT.P1 e o Ac. desse Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 27.05.2019 no proc. nº 134/17.2T9TMC.G);
II - Mesmo que se entendesse ocorrer nulidade, sempre se entende que a mesma estaria dependente de arguição, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 1, do CPP, arguição essa a efectuar, à luz do disposto no artigo 105°, nº 1, do mesmo diploma legal, no prazo de 10 dias contados da data da notificação da decisão instrutória, sob pena de se considerar sanada (cfr. o Ac. da Relação do Porto de 10.05.2017, proferido no proc. nº 5761/13.4TAVNG.P1);
III - A dita nulidade não foi arguida no referido prazo pelo que, mesmo que se considerasse que se verificava, teria de considerar-se sanada;
IV - A decisão instrutória contém ampla narração dos factos indiciários em que se estriba, seja relativamente àqueles que foram recolhidos em sede de inquérito, seja no que concerne aos já carreados em sede de instrução, e, por contraposição, do que não se considera indiciado;
V - Dos elementos constantes dos autos resulta, de forma evidente, que, quanto à Arguida S. P., não existem indícios suficientes que se possam subsumir nos elementos objectivos e subjectivos do crime de acesso ilegítimo agravado, previsto e punível pelo artigo 6°, nº 1 e 4 alínea a) da Lei do Cibercrime;
VI - O acesso da Arguida - um único, realizado em 11.02.2014 - estava devidamente autorizado e enquadrado nas funções que exercia.
VII - Existia, à data, quanto ao Assistente G. A., autorização, prestada de forma voluntária pelos respectivos progenitores, para que profissionais de saúde, devidamente credenciados, pudessem consultar a sua informação clínica registada no Serviço Nacional de Saúde;
VIII - O Assistente G. A. beneficiava, mediante autorização expressa dos progenitores, de um Plano Individual de Intervenção Precoce (PIlP), no qual intervinham vários profissionais de saúde, entre os quais a Arguida, enquanto membro da Equipa de Intervenção Precoce;
IX - O acesso aos dados do menor por parte da Arguida foi efectuado no âmbito e em virtude das suas funções, não existindo um único indício que demonstre que assim não foi;
X - A Arguida estava devidamente autorizada para aceder à PDS e ao CLÍNICO... e a, no exercício das suas funções, consultar informações de utentes, onde se inclui, porque utente, o Assistente G. A.;
Xl - O acesso feito pela Arguida ocorreu em 11.02.2014 e que a Arguida, em 13.02.2014 - ou seja, dois dias depois - participou em reunião da Equipa de Intervenção Precoce, equipa essa que acompanhava o assistente G. A. no âmbito do Plano Individual de Intervenção Precoce de que este nessa data, e mediante autorização expressa dos seus progenitores, beneficiava;
XII - Bem andou o Tribunal a quo ao proferir despacho de não pronúncia relativamente à Arguida, não merecendo essa decisão qualquer censura.

Nestes termos,
Considerando totalmente improcedente o recurso interposto e confirmando a decisão instrutória, farão V. Exas.
JUSTIÇA!”.
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6.3. A Exma. Magistrada do Ministério Público, nos termos constantes de fls. 657/662, sem formular conclusões, pugnando igualmente pela improcedência do recurso, e pela confirmação da decisão recorrida.
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7. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer que consta de fls. 665/667, o qual conclui nos seguintes termos (transcrição):

“Assim, parece-nos, face ao exposto e tendo em conta o facto de a douta Decisão Instrutória ser omissa quanto à enumeração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados que estiveram na base da decisão, que a mesma deve ser considerada nula e determinar-se a sua substituição por outra que proceda de acordo com o exposto e retire, após essa descrição, as devidas consequências e conclusões, merecendo o recurso ser, nesta parte, julgado procedente.”.
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8. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, não foi apresentada qualquer resposta.
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9. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, é hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2.

Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelos assistentes/recorrentes [e excluindo as questões concretamente suscitadas pela assistente G. F., por si e em representação da sua filha V. A., dado que, como supra se referiu, o respectivo recurso foi rejeitado, por falta de legitimidade], são as seguintes as questões que importa apreciar:

a) Saber se a decisão instrutória é nula, por violação do disposto no Artº 308º, nºs. 1 e 2 em conjugação com o Artº 283º, nº 3 [por manifesto lapso de escrita os recorrentes fazem menção ao nº 2] als. b) e c), do C.P.Penal, e Artº 6º da CEDH, em virtude de:
- Ser impossível discernir os fundamentos (da decisão instrutória), dado que esta não julgou os factos indiciados e não indicados, não verteu qualquer motivação quanto a estes, e não apreciou sequer o objecto da instrução fixado pelo RAI;
- O Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre diversos elementos que estão nos autos, a saber: fls. 36 a 37, fls. 160 e ss., 340 e ss., 466 e ss., 532 e ss., registo de acessos junto com a instrução; fls. 96 e 97, fls. 301, fls. 490 e 491, fls. 503, fls. 606, fls. 628, fls. fls. 637, fls. 693, fls. 713, fls. 740 e ss., fls.1124, fls. 597 a 599;
- Não ter sido feita qualquer análise jurídica com pertinência sobre os factos aqui em questão, posto que para além de citar o Artº 6º da Lei do Cibercrime, o Tribunal a quo limitou-se “a despejar três normas cuja aplicação nem cabimento têm nos autos, por não convocáveis para o caso ou por dizerem respeito a legislação posterior à data dos factos”;
- Ser omissiva quanto à forma como determinou o valor das custas que imputou aos assistentes.

Em caso de improcedência dessa questão

b) Saber se existem ou não nos autos indícios suficientes da prática, pelas arguidas, dos crimes que lhes eram imputados no requerimento de abertura de instrução.

Vejamos.

Como se extrai do Artº 286º, nº 1, a instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento, com base em critérios de legalidade.
Nas situações como a sub-judice, em que a instrução requerida pelo assistente se destina a reagir contra um despacho de arquivamento do Ministério Público, o requerimento de abertura de instrução tem de conter, além do mais, os requisitos exigidos para a acusação, tal como constam do Artº 283º, nº 3, aplicável ao requerimento instrutório por força do disposto no nº 2 do Artº 287º, designadamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (al b)).
Nesse conspecto, é o requerimento de abertura de instrução que fixa o objecto do processo, estando o juiz de instrução substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos que nele tenham sido descritos e que o assistente considera que deveriam ser objecto da acusação por parte do Ministério Público, assim se compreendendo a proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento instrutório (cfr. Artºs 303º, nº 3, e 309º, nº 1).
Ora, de acordo com o que prescreve o Artº 308º, nº 1, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respectivos factos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Na situação em apreço está em causa a decisão de não pronúncia da arguida S. M. da prática:

- Como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 106 (cento e seis) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente G. A.;
- Como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 7 (sete) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime (em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al.b), da Lei da Protecção de Dados, e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente N. M.;
- Como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 24 (vinte e quatro) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente L. M.;
- Como autora material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de 6 (seis) crimes de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, al. b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa da assistente C. F..

Bem como a decisão de não pronúncia da arguida S. P. da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo agravado, p. e p. pelo Artº 6º, nºs. 1 e 4, al. a), da Lei do Cibercrime, em concurso aparente com o crime de acesso indevido agravado, p. e p. pelo Artº 44º, nº 2, alínea b), e 14º do Código Penal, perpetrados na pessoa do assistente G. A..
Ora, tal despacho, como decorre do disposto no Artº 97º, nºs. 1, al. b), e 5, enquanto acto decisório do juiz, tem necessariamente de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respectiva decisão, de molde a permitir, além do mais, a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Ademais, convém sublinhar que, para além dessa imposição legal expressa, o cumprimento da exigência de fundamentação do despacho de não pronúncia que conheça do mérito da causa, com a indicação dos factos indiciados e não indiciados, é essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado.
Efectivamente, como assertivamente se refere no acórdão deste TRG, de 27/05/2019, proferido no âmbito do Proc. nº 134/17.2T9TMC.G1, in www.dgsi.pt, relatado pela Exma. Desembargadora Fátima Furtado, “uma vez transitado o despacho de não pronúncia forma-se caso julgado sobre esses factos, não sendo admissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova. Só podendo o processo ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos previstos nos artigos 449º, nº 2, e 450º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal. Assim como, se for instaurado um outro processo pelos mesmos factos, o arguido poderá arguir, com sucesso, a excepção do caso julgado.
A decisão instrutória de não pronúncia que conheça do mérito, proferida por um juiz, após um debate público e com respeito pelo contraditório tem pois força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado material. Já assim não acontecendo com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova.
Daí que, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, «a narração dos factos que não estão suficientemente indiciados no despacho de pronúncia é fundamental, porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado. A delimitação objectiva e subjectiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui (...) a garantia última da segurança jurídica do arguido» (3).
Sucede que, na situação em apreço, como facilmente se alcança do despacho recorrido [na sua vertente de “não pronúncia”, repete-se], foi totalmente omitida a componente fáctica, não se descrevendo nem especificando quais os factos alegados no requerimento instrutório que se consideram suficientemente indiciados, nem os que como tal se não consideram, limitando-se a Mmª JIC a, basicamente, tecer considerações acerca da prova.
No entanto, e salvo o devido respeito, contrariamente à tese defendida pelos recorrentes, o vício em causa não consubstancia a nulidade insanável da decisão instrutória por ausência de fundamentação, nos termos do Artº 308º, nº 2, nem tampouco constitui uma nulidade sanável ou dependente de arguição perante o tribunal a quo (e já não em recurso), como é sustentado pela arguida S. P. na sua resposta ao recurso, e por alguma jurisprudência, designadamente no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/06/2015, proferido no âmbito do Proc. nº 12/11.9GTLRA.C1, no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 02/11/2015, proferido no âmbito do Proc. nº 44/14.5GAMSF.G1, e nos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 31/05/2017, proferido no âmbito do Proc. nº 628/14.1TDPRT.P1, e de 27/02/2013, proferido no âmbito do Proc. nº 1004/11.3TAVFR.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Com efeito, e na esteira da posição expressa no já supra citado aresto deste TRG, de 27/05/2019, afigura-se-nos que o vício em causa consubstancia uma mera irregularidade.
Efectivamente, a remissão feita pelo nº 2 do Artº 308º para o Artº 283º, nº 3 [cuja al. b) comina de nulidade a acusação que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança], só pode respeitar ao despacho de pronúncia, face ao teor das várias alíneas daquele nº 3 do Artº 283º, na medida em que as exigências contidas nas alíneas a) a f) não fazem qualquer sentido num despacho de não pronúncia, restando apenas a inócua al. g), que se reporta à data e assinatura, obrigatórias em qualquer despacho.
Nessa perspectiva, tudo indica que o legislador, com a aludida remissão, disse mais do que pretendia, já que a mesma só se justifica em relação ao despacho de pronúncia, e não ao despacho de não pronúncia, na justa medida em que apenas o primeiro deve conter os requisitos formais de uma acusação, previstos nas diversas alíneas do nº 3 do Artº 283º, entre eles a descrição dos factos imputados ao arguido [al. b)].
Daí que, tal como sucede com a acusação que não contenha a narração desses factos, a lei também fulmine com a nulidade o despacho de pronúncia que não descreva a factualidade suficientemente indiciada e não indiciada padece de nulidade, a qual é insanável, mau grado o Artº 283º, nº 3, não o referir expressamente nem a mesma figurar do elenco do Artº 119º.
Esta conclusão decorre da conjugação com o disposto no Artº 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b), que prevê a rejeição da acusação que não contenha a descrição dos factos, por ser manifestamente infundada, consequência essa aplicável ao despacho de pronúncia por força da remissão feita pelo Artº 308º, nº 2.
Já o despacho de não pronúncia que não contenha a descrição dos factos considerados indiciados e não indiciados não padece de nulidade, por tal não estar legalmente previsto, mas sim de mera irregularidade.
Na verdade, em consonância com o princípio da legalidade que vigora no regime geral das nulidades em processo penal, só são nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (Artº 118º, nº 1), sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular (nº 2 do mesmo preceito legal).
Nestas circunstâncias, entendemos que a falta de fundamentação traduzida na não enunciação dos factos que se consideram suficientemente indiciados e aqueles que se consideram não suficientemente indiciados, quando verificada no despacho de não pronúncia, como sucede no caso sub-judice, reconduz-se a uma mera irregularidade, a qual, porém, por poder afectar o valor do acto praticado, é de conhecimento oficioso, podendo e devendo ordenar-se a sua reparação no momento em que dela se tomar conhecimento, conforme prevê o nº 2 do Artº 123º, não carecendo, por isso, de ser invocada pelo interessado [posição esta maioritária, segundo cremos, neste TRG, citando-se, v.g., para além do já referido acórdão de 27/05/2019, o acórdão de 06/12/2004, proferido no âmbito do Proc. nº 1823/04-1, relatado pela Exma. Desembargadora Nazaré Saraiva, e o acórdão de 23/10/2017, proferido no âmbito do Proc. nº 781/14.4GBGMR.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Bispo, ambos igualmente disponíveis in www.dgsi.pt].
Assim sendo, constando-se que a decisão recorrida, de não pronúncia, padece desta invalidade, impõe-se a sua revogação e a sua substituição pelo tribunal a quo por outra que supra tal irregularidade, com a enumeração de todos os factos indiciados e não indiciados relativamente aos assistentes e recorrentes L. M., N. M., por si e em representação do seu filho G. A., e C. F., por referência ao requerimento instrutório, com a inerente e necessária análise crítica das provas produzidas no inquérito e na instrução, e subsequente extracção das consequências jurídicas tidas por pertinentes.
Sendo certo que, face à procedência desta questão, fica prejudicado conhecimento de todas as demais questões suscitadas pelos assistentes/recorrentes (cfr. Artº 608º, nº 2, 1ª parte, do C.P.Civil, ex-vi Artº 4º do C.P.Penal).

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelos assistentes/recorrentes L. M., N. M., por si e em representação do seu filho G. A., e C. F., e, consequentemente:

a) Julgam inválido o despacho recorrido, de não pronúncia, e determinam que o mesmo seja substituído por outro em que a Mmª Juíza a quo proceda à reparação da irregularidade consistente na insuficiente fundamentação, por falta da enumeração dos factos indiciados e dos factos não indiciados, no que àquelas assistentes/recorrentes diz respeito, por referência ao requerimento de abertura da instrução, com a inerente e necessária análise crítica das provas produzidas no inquérito e na instrução, e subsequente extracção das consequências jurídicas tidas por pertinentes;
b) Consideram prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas por aqueles assistentes/recorrentes.

Sem custas, por não serem devidas.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 22 de Fevereiro de 2021

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)



1. Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
2. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
3. Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, 2009, Universidade Católica Editora, pág. 778. Cfr ainda, no mesmo sentido, Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 2014, Almedina, pág. 1024; bem como Damião da Cunha, Ne bis in idem e exercício da ação penal, Que futuro para o processo penal?, pág. 557.