Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3102/12.7TBBCL-H.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
PODERES INSTRUTÓRIOS
JUSTA COMPOSIÇÃO DO LITÍGIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O princípio do inquisitório, no seu sentido restrito, adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, uma vez que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, tendo o poder/dever de diligenciar pela obtenção da prova necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art. 411º do Cód. de Processo Civil).
II- O uso de poderes instrutórios está sujeito aos seguintes requisitos: i) a admissibilidade do meio de prova; ii) a sua manifestação em momento processualmente desadequado; iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio; e iv) a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer.
III- Se dos elementos constantes dos autos se mostrar indiciado o pressuposto da necessidade ou da imprescindibilidade da perícia para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio, a sua realização impõe-se ao tribunal, pelo que terá aquele de usar – como usou – dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelo art. 411º do CPC.
IV- Nesse pressuposto, a vontade (intempestiva) que a parte manifesta no sentido da realização da perícia é meramente acidental, não revelando autonomamente para a decisão do juiz.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

T. C., na qualidade de habilitada e no limite da sua quota-parte na herança aberta e indivisa por morte do seu pai A. F., deduziu embargos de executado e oposição à penhora contra a embargada/exequente, Caixa …, pedindo a extinção da execução.
*
Liminarmente recebidos, a ora recorrente apresentou contestação, concluindo pela improcedência dos embargos de executado, assim como da oposição à penhora.
*
Em 24/09/2019 foi realizada audiência prévia, na qual foi elaborado despacho saneador, onde foi afirmada a validade e a regularidade da instância, tendo-se procedido à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova, bem como foram admitidos os meios de prova (Ref.ª 165024244).
*
Em 27/02/2020, no início da audiência final (ref.ª 167461617), a embargante requereu a realização de perícia com vista a avaliação dos bens imóveis penhorados nos autos, a que a embargada se opôs, alegando que tal requerimento era extemporâneo e que não havia qualquer justificação válida para a sua apresentação nesse momento.
*
Foi, de seguida, proferido despacho que deferiu a realização da requerida perícia aos imóveis penhorados (e concedeu, ao embargado e embargante, o prazo de 10 dias, para, se pronunciarem sobre o objeto da perícia, mais determinando que os autos ficassem a aguardar a realização da perícia).
*
Inconformado com este despacho, dele interpôs recurso a embargada, tendo, a terminar as respetivas alegações, formulado as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1.ª - A recorrida poderia ter alterado o requerimento probatório inicial no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação dos embargos de executado, bem como na audiência prévia, apresentando, inclusive, meios de prova diversos dos apresentados inicialmente, o que nunca se verificou
- vd. 2.ª parte, n.º 2, art.º 552.º e n.º 1, art.º 598.º CPC
- vd. Ac. TR Évora, de 28.06.2017, proc. n.º 289/16.3T8FTR-A.E1
2.ª –Em 24.09.2019, em sede de audiência prévia, foi dada a palavra à recorrida para se pronunciar quanto às provas a produzir, limitando-se a mesma a reiterar a prova já junta aos autos, abstendo-se de requerer a perícia pretendida
3.ª - Apenas por inércia da recorrida não foi alterado o requerimento probatório inicialmente apresentado, pelo que, a realização da perícia ora em crise, requerida apenas em sede de audiência final, é extemporânea
- vd. a contrario sensu, n.º 1, art.º 598.º CPC
4.ª - A recorrida teve a possibilidade de requerer a aludida perícia durante mais de 2 anos, no entanto, nunca agiu processualmente em conformidade, pelo que, a alteração tardia do requerimento probatório inicial deve-se a inércia de sua parte
5.ª - A recorrida é responsável por requerer os meios de prova aptos a sustentar as suas razões, pelo que a sua inércia não pode ser colmatada pelo tribunal ao abrigo do princípio do inquisitório
- vd. Ac. TR Guimarães, de 20.03.2018, proc. n.º 14/15.6T8VRL-C.G1
6.ª - O despacho impugnado é contrário à lei, devendo ser revogado e substituído por outro que indefira a prova pericial requerida pela recorrida na audiência final de 27 de fevereiro de 2020.
7.ª - O despacho impugnado viola a força de caso julgado do despacho proferido em sede de audiência prévia, bem como viola princípio da estabilidade da instância
- vd. art.ºs 260.º, 265.º, 580.º, 581.º e 619.º e ss. CPC .
(…)
DE HARMONIA COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO À APELAÇÃO, REVOGANDO-SE O DESPACHO PROFERIDO E POR TAL EFEITO:
- substituir-se o mesmo por outro que indefira a prova pericial requerida pela recorrida na audiência final de 27 de fevereiro de 2020
ASSIM DELIBERANDO ESTE TRIBUNAL SUPERIOR FARÁ
JUSTIÇA».
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].
Assim, no caso, a questão a decidir que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se deverá ser revogado o despacho que deferiu a realização de perícia aos imóveis penhorados.
*
III. Fundamentos
IV. Fundamentação de facto.

As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são as que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos), a que acrescem os seguintes factos:

1. Em 16 de outubro de 2012, a ora recorrente instaurou a execução apensa contra A. F. e mulher, reclamando, então, o valor de € 44.685,02, acrescido de juros vincendos e demais encargos.
2. Em 7 de agosto de 2016, faleceu o executado A. F., tendo a ora recorrente requerido a habilitação dos seus herdeiros, que foram habilitados no apenso C.
3. No requerimento de embargos de executado, a embargante alegou, entre o mais, que:
“(…) IV – DOS BENS APRENDIDOS
i. dos imóveis
22º - Notificada nos termos do nº7, do artigo 812º do C.P.C., a executada manifestou a sua discordância da decisão do agente de execução, tendo para o efeito reclamado e junto relatório de avaliação dos bens aos autos – cfr. Documento nº 4, datado de 07.04.2016, e cujos documentos estão junto aos autos deste aquela data, junto no requerimento datado de 21/05/2017, referência 5560055 e se dá por integralmente reproduzido.
23º- Da herança fazem parte vários imóveis.
24º- Só três imóveis estão avaliados em mais de € 300.000,00 – trezentos mil euros.
25º- São terrenos rústicos com hectares e hectares de área agrícola produtiva e, certamente, muito apetecível para eventuais clientes da exequente Caixa … que a todo o custo quer prosseguir com esta ação e ficar com os mesmos.
26º- De facto, verifica-se excesso de penhora dos bens na presente execução,
27º- …havendo violação clara do princípio da proporcionalidade dado que apenas deveriam ter sido penhorados os bens suficientes para satisfazer a prestação exequenda e das despesas previsíveis da execução, cujo valor de mercado permita a sua satisfação – artigo 735º, nº3 do C.P.C..
28º- Devendo a Agente de Execução limitar a penhora a um único imóvel.
29º- Pelo que, se requer que sejam anulados todos os atos de penhora efetuados em todos os imóveis dos executados, correndo a expensas do exequente tais despesas.
(…)”.
4. Na parte final do requerimento inicial dos embargos de executado, no tocante aos meios de provas, a embargante requereu prova documental e testemunhal.
5. Na contestação, a embargada alegou, em suma, as seguintes razões:
“(…)
7.º
Em 9 de janeiro de 2017, por requerimento junto na execução apensa, a embargada demonstrou o valor então em dívida, no montante de € 23 320,47, que, desde então tem sido acrescido de juros de mora, comissões e demais encargos.
(…)
19.º
Pelo exposto, é evidente que o depósito efetuado pela embargante de € 3 688,97 não paga de todo, a divida exequenda nem extingue, por conseguinte, a execução apensa, devendo a mesma seguir os demais trâmites normais.
(…)
21.º
Ora, na execução apensa a agente de execução no exercício normal de funções procedeu, em 26 de maio de 2016, à penhora de bens imóveis em nome dos executados.
22.º
De acordo com o princípio da proporcionalidade inerente à penhora, refere-nos a lei que “a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da divida exequenda e das despesas previsíveis da execução (…)”
- cfr. artigo 735.º do CPC
(…)
25.º
É evidente que a embargada não pretende receber mais do que aquilo que reclama na execução apensa, porém não sabe, nem tem como saber, no ato de penhora, o valor de real de mercado de cada imóvel penhorado.
26.º
Esse valor é conhecido por meio de uma avaliação, ordenada pelo tribunal, e não por iniciativa da embargante, que por si, resolveu apresentar uma avaliação de um perito, que se desconhece ser idóneo e os termos em que o mesmo foi contratado.
27.º
Pelo que a avaliação apresentada anteriormente, pela embargante não pode relevar para efeitos de prova do valor de mercado dos imóveis penhorados, nem tão pouco para se invocar excesso de penhora.
28.º
Por outro lado, a embargante refere, também, que “só três imóveis estão avaliados em mais de € 300 000,00”, contudo, não faz referência que imóveis são, ou se estão onerados por qualquer garantia real.
29.º
Pelo exposto a embargada não violou o princípio da proporcionalidade, nem se excedeu na penhora efetuada, uma vez que não está paga da divida exequenda reclamada na execução apensa, nem prevê se os bens penhorados são suficientes para o pagamento dessa dívida.
(…)”.
6. Na parte final da contestação, a embargada requereu os seguintes meios de provas:
a - depoimento de parte da embargante
b - perícia por meio de um único perito, tendo por objeto todos os movimentos e operações verificadas no empréstimo n.º 56035208360, por forma a concluir qual o valor exato em dívida por parte dos embargantes.
c – testemunhal.
7. Na audiência prévia, o objeto do litígio foi definido nos termos seguintes:
O objecto do litígio prende-se com a medida da responsabilidade da embargante/executada T. C. (…), pelo pagamento do crédito exequendo, considerando que a Caixa recebeu já por conta do crédito exequendo valores no âmbito do processo de insolvência respeitante ao principal devedor, J. F., que corre termos pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, Juiz 1, Proc. n.º 2378/12.4TBBCL”.
8. E foram enunciados os seguintes temas da prova:
Atenta a posição das partes, os temas da prova consistem em averiguar:
1. Do valor que a exequente recebeu já por conta do crédito exequendo, em que datas e como foram imputados esses valores à medida em que foram recebidos
2. Do excesso de penhora”.
9. Notificados nesse diligência para se pronunciarem quanto às provas a produzir, o mandatário da embargada reiterou a prova já junta aos autos e o mandatário da embargante reiterou a prova já junta aos autos e requereu, ainda, a notificação do administrador de insolvência nomeado no processo n.º 2378/12.4TBBCL para informar os valores que foram entregues à recorrente por conta do crédito reclamado e em que datas.
10. Relativamente aos requerimentos probatórios, o tribunal “a quo” proferiu o seguinte despacho:
Admito a prova testemunhal junta aos autos.
*
Admito a prova documental.
*
Quanto à requerida perícia ordeno se notifique a embargada para apresentar os quesitos a serem apresentados sobre o objecto da perícia, não se nos afigurando, por ora, numa apreciação liminar impertinente e nem dilatória a diligência.
Após, notifique a embargante, para se pronunciar sobre o objecto da perícia.
*
Notifique o Sr. Administrador de Insolvência do processo nº 2378/12.4TBBCL do Juiz 1 de Comércio de Vila Nova de Famalicão, como requerido pela embargante.
(…)”.
*
V. Fundamentação de direito

1. - Da revogação do despacho que deferiu a realização de perícia aos imóveis penhorados.
A apelante recorre do despacho proferido no dia 27/02/2020 – que deferiu a realização de uma perícia com vista à avaliação dos bens imóveis penhorados nos autos – com fundamento na extemporaneidade da perícia requerida pela embargante e da violação do caso julgado.
O direito à prova, como tem sido sublinhado, surge como corolário do direito de ação e defesa, consagrado no art. 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que garante a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)».
O direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efetivar-se através de um processo equitativo, que, entre outras manifestações, se traduz na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas da outra parte e discretear sobre o valor e resultado dessas provas(1).
E se o direito de acesso à justiça comporta, indiscutivelmente, o direito à produção de prova (2), tal não significa, porém, que o direito subjetivo à prova implique a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, em qualquer tipo de processo e relativamente a qualquer objeto do litígio (3), muito embora a recusa de qualquer meio de prova deva ser, devidamente, fundamentada, na lei ou em princípio jurídico, não podendo o Tribunal fazê-lo de modo discricionário.
Ao juiz, enquanto “gestor” ou responsável pela direção do processo incumbe autorizar a realização das diligências que se afigurem necessárias e adequadas e indeferir as que afigurem inúteis ou meramente dilatórias (4).
Mas a restrição incomportável da faculdade da apresentação de prova em juízo impossibilitaria a parte de fazer valer o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, tal como vem reconhecido pelo art. 20.º da CRP (5).
Rejeita-se, no entanto, o entendimento que erige o direito à prova como um direito absoluto e incondicionado, «não implicando a total postergação de determinadas limitações legais aos meios de prova utilizáveis ou a imposição de condições à sua utilização, desde que essas limitações se mostrem materialmente justificadas e respeitadoras do princípio da proporcionalidade. A emissão de uma norma restritiva da utilização dos meios de prova, não implica necessariamente um desrespeito do direito acesso à justiça na sua vertente do direito do interessado produzir a demonstração de factos que, na sua ótica, suportam o seu direito ou a sua defesa. Tal desrespeito só se verificará quando se possa concluir que a norma em causa determina para o interessado, na generalidade das situações, a impossibilidade de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito» (6).
Estatui o art. 341º do Código Civil (CC) que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Nas palavras de Alberto do Reis (7), a prova “é o conjunto de operações ou actos destinados a formar a convicção do juiz sobre a verdade das afirmações feitas pelas partes”.
No domínio processual, proclama o art. 410º do CPC que “[a] instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”.
Os temas da prova delimitam o âmbito da instrução, que terá como objeto os factos em que se traduzem ou desdobram e sobre os quais incidirá o juízo probatório, nos termos do art. 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC (8).
Os factos a provar são os factos essenciais ou principais da causa, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas, que deverão ser alegados pelas partes [art. 5.º, n.º 1, do CPC], e os factos instrumentais, que se situam na cadeia dos factos probatórios e permitem chegar aos factos principais que as partes tenham alegado, relativamente aos quais inexiste qualquer vinculação temática [artigo 5.º, n.º 2, al. a), do CPC], sem prejuízo dos casos excecionais (como seja os factos notórios e aqueles de que tem conhecimento por virtude do seu exercício funcional – art. 5º, n.º 2, al. c) do CPC) em que o juiz pode oficiosamente introduzir factos principais na causa (9).
Atento o objeto do recurso importa incidir a nossa atenção sobre algumas regras de direito probatório material e de direito probatório formal, em particular da prova pericial.
Segundo o estatuído no art. 388° do CC, a «prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial».
Esta prova tem como figura central o perito que se distingue da testemunha, pois enquanto esta descreve as suas perceções sobre factos passados, o perito serve-se de princípios científicos, de critérios artísticos, de máximas de experiência para fazer valer a sua apreciação ou valoração dos factos passados ou presentes, valoração que constitui precisamente o ato característico da prova pericial (10).
Atribui-se, pois, a técnicos especializados a verificação/inspeção de factos não ao alcance direto e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor (11).
A prova pericial pode visar a perceção indiciária de factos por inspeção de pessoas (ex., exame médico-legal) ou de coisas, móveis ou imóveis (ex., exame duma máquina ou vistoria dum prédio), como a determinação do valor das coisas ou direitos (ex., determinação do valor dum prédio ou duma quota social), ou ainda a verificação da origem dum documento (ex., assinatura, letra, data, genuinidade, alteração), a revelação do seu conteúdo (ex. os livros e documentos da escrita comercial) (12).
A prova pericial é livremente apreciada pelo tribunal (arts. 389º do CC e 489º e 607.º, n.º 5 do CPC), não estando o mesmo, por isso, adstrito às asserções e conclusões dessa perícia (13).
O procedimento da prova pericial em juízo mostra-se regulado pelos arts. 467º a 489º do CPC.
A perícia pode ser oficiosamente ordenada pelo juiz ou requerida por qualquer das partes (art. 467º, n.º 1 do CPC).
Ao tribunal compete apreciar se a diligência não é impertinente ou dilatória e conceder à parte contrária a faculdade de se pronunciar sobre o objeto da perícia (n.º 1 do art. 476.º do CPC).
O resultado da perícia é expresso num relatório, no qual o perito – se a perícia for singular - ou peritos – se a perícia for colegial – se pronunciam, fundamentadamente, sobre o respetivo objeto (art. 484º, n.º 1 do CPC).
No que ao momento processual de proposição de prova pelas partes diz respeito (14), resulta dos arts. 552º, n.º 6, 1ª parte, (15) , e 572º, al. d), do CPC que os meios de prova devem ser apresentados/requeridos logo nos respetivos articulados (petição e contestação).

O requerimento probatório inicialmente efetuado pode, contudo, ser alterado nos seguintes momentos:
- Se o réu contestar, o autor é admitido a alterá-lo, o que poderá fazer na réplica, caso haja lugar a esta, ou no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação (art. 552º, n.º 6, 2ª parte, do CPC).
- O réu é admitido a alterar o requerimento probatório inicial no prazo de 10 dias a contar da notificação da réplica (art. 572º, al. d) do CPC).
- Na audiência prévia quando a esta haja lugar (art. 598º, n.º 1 do CPC).
A oposição à execução, após a notificação para contestar, segue, sem mais articulados, os termos do processo comum declarativo (art. 732º, n.º 2 do CPC).
E por se tratar de um incidente deverá observar-se o disposto nos arts. 293º [no requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova (n.º 1)] e 294º “ex vi” do art. 292º, todos do CPC.
No caso em apreço, como primeiro fundamento da apelação, a recorrente pugna pela extemporaneidade da perícia requerida pela embargante.
E, de facto, analisados os autos é indubitável que o requerimento de perícia não observou os prazos delineados para o efeito, já que apenas foi formulado no início da audiência de julgamento, em 27/02/2020, quando há muito estava esgotado o prazo para requerer a alteração dos requerimentos probatórios apresentados.
Note-se que, no âmbito dos autos, foi realizada audiência prévia, em 24/09/2019, sendo que nessa diligência a embargante limitou-se a reiterar a prova já indicada, mais requerendo a notificação de um administrador de insolvência para prestar informações, sem que haja então requerido a prova pericial.
Dir-se-ia, por conseguinte, que a apelação em apreço deveria ser julgada procedente uma vez que o despacho recorrido dá guarida à admissibilidade de um meio de prova extemporaneamente requerido.
Mas será que, no caso objeto dos autos, a inércia da recorrida/embargante determinará inelutavelmente a não realização da (requerida e determinada) perícia ?
A resposta à questão colocada impõe que se tenha presente o princípio do inquisitório, expressamente consagrado no art. 411.º do CPC (correspondente ao anterior art. 265º, n.º 3, do CPC), nos termos do qual “[i]ncumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Sem prejuízo de, em obediência ao princípio do dipositivo estabelecido no n.º 1 do art. 5º do CPC, caber às partes o ónus de invocar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, o princípio do inquisitório impõe ao juiz, quanto àqueles factos e aos demais de que lhe é lícito conhecer, o poder/dever de diligenciar no sentido da descoberta da verdade e da justa composição do litígio.
O princípio do inquisitório, no seu sentido restrito, adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, uma vez que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, tendo o poder-dever de procura da verdade material, dentro do âmbito limitado pelo objeto do processo (16). Outorga-se ao juiz um poder para garantir que este reúna toda a prova necessária à formação completa e esclarecida da sua convicção (17).
Os poderes probatórios do juiz são-lhe conferidos pela lei processual tendo em vista uma finalidade concreta que o art. 411º do CPC refere expressamente: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio. Por outras palavras, o juiz deverá providenciar pela obtenção da prova necessária à formação da sua convicção quanto aos factos que lhe é lícito conhecer e que possam ter utilidade para a solução da controvérsia suscitada no processo (18).
O mesmo é dizer que o princípio do inquisitório onera o juiz com um poder vinculado ou um poder-dever, que não um poder discricionário (19).
Por assim ser, a partir do momento em que se aperceba de que a realização de certa diligência probatória é necessária para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, o juiz não tem o poder discricionário de a ordenar ou não; está, sim, vinculado à prática do ato (20).
O referido princípio aponta para uma conceção do processo em que a investigação da verdade material é também da responsabilidade do juiz, constituindo, dessa forma, uma compressão ao princípio do dispositivo (21).
Com efeito, o art. 411º do CPC postula “um critério de plenitude do material probatório no sentido de que todas as provas relevantes devem ser carreadas para o processo, por iniciativa das partes ou, se necessário for, por iniciativa do juiz (…).
O objetivo final da atividade do juiz é, assim, a descoberta da realidade dos factos na medida em que tal seja possível” (22).
Assim, a lei processual atribui ao juiz poderes ao nível da determinação das diligências probatórias necessárias ao apuramento da verdade ou da junção ao processo de meios de prova não indicados pelas partes quanto aos factos que lhe é lícito conhecer (enunciados no art. 5º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Esta regra é transversal ao momento instrutório da ação e vale para qualquer um dos meios de prova que a lei enuncia (23).
O princípio do inquisitório, porém, coexiste com outros igualmente consagrados no nosso CPC, como sejam “os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado, para de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova” (24).
Considerando que sobre as partes continua a incumbir a iniciativa da prova, “o inquisitório deve orientar-se por um padrão mínimo de objetividade, condição para ser exigível que o juiz adopte certa conduta em matéria instrutória. Para isso muito contribuirá o zelo probatório das partes” (25).
Na verdade, como se explicita no Ac. da RP de 18/11/2013 (Proc. n.º 851/10.8TTVFR-B.P1) (26), “esta amplitude de poderes/deveres (…) não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso mesmo, aquelas têm interesse direto em cumprir. Até porque, no limite, em sede probatória, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o mesmo aproveita [art. 414º]. Daí que as partes tenham natural interesse em concorrer ativamente no processo de instrução da causa».
E mais adiante acrescenta-se no mesmo aresto: «(…) reconhecendo embora a lei às partes um interesse legítimo na instrução da causa, não lhes permite o exercício desse direito de forma arbitrária. Bem pelo contrário. Condiciona esse exercício a determinados pressupostos, fora dos quais aquele direito pode ficar comprometido. E, neste contexto, não faz sentido que esses pressupostos possam ser contornados por recurso aos poderes/deveres que a lei comete ao juiz em sede instrutória”.
O que significa que o princípio do inquisitório não afasta a auto-responsabilidade das partes quanto à obrigação de indicarem, tempestivamente nos momentos processuais próprios, os meios de prova (27).
Deste modo, caso a parte tenha omitido o cumprimento dos seus deveres processuais, concretamente na apresentação dos requerimentos probatórios no tempo adjetivamente oportuno, o juiz só deverá exercitar o poder-dever conferido pelo art. 411º do CPC quando resultar patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos ou da produção de outras provas a necessidade da produção de um outro meio de prova (como sucede, no art. 526º do CPC, com a inquirição de pessoa não indicada como testemunha), manifestandose tal necessidade em termos tais que permitam concluir que a inevitabilidade da produção desse meio de prova ocorreria mesmo que a parte houvesse sido diligente na satisfação do seu ónus probatório. A não ser assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais específicos na medida em que a parte, subsidiariamente, poderia invocar o regime do art. 411º do CPC (e do art. 526º do CPC) (28).
Daí o requisito da relevância do meio de prova para o esclarecimento da verdade e a apreciação do tema da prova controvertido, não bastando a mera vontade da parte na sua produção.
A negligência das partes, só por si, não é suficiente para estreitar a margem de manobra do juiz que queira mais bem investigar os factos, determinado, por exemplo, a produção da prova no exercício de um poder-dever que a lei lhe atribui para satisfazer o interesse público da descoberta da verdade e da realização da justiça (29).
Em suma, como sublinha Paulo Pimenta (30), o “equilíbrio do nosso quadro legal resulta da intersecção de duas dimensões: por um lado, o ónus da iniciativa probatória das partes; por outro, o poder-dever do juiz em sede instrutória. Daqui resulta o seguinte: jamais as partes podem encontrar naquele poder-dever um pretexto para negligenciarem a sua iniciativa probatória; jamais o juiz pode ver naquela iniciativa probatória um alibi para a sua própria inércia. O critério firmado no art. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigo. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o juiz tem um dever oficial de agir. Não se verificando o pressuposto, inexistirá aquele dever”.
*
Tendo presentes os considerandos jurídicos supra enunciados, importa agora particularizar o caso objeto dos autos.
Como já se disse, a embargante não requereu tempestivamente a realização da perícia (seja no requerimento de oposição à execução e à penhora, seja na sequência da apresentação da contestação pela embargada, seja no decurso da audiência prévia mediante alteração do requerimento probatório inicialmente apresentado), tendo-o feito apenas no início da audiência de julgamento.
Não obstante a extemporaneidade do requerimento em apreço o que se questiona é se dos elementos constantes dos autos resulta, ou não, indiciado o pressuposto da necessidade ou da imprescindibilidade da prova pericial para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio.
Sobre esse ponto há que ter presente que o processo do qual este recurso emerge corresponde a uma oposição à execução em que foi também cumulado o incidente de oposição à penhora (art. 856º, n.º 3 do CPC), alegando a embargante verificar-se excesso dos bens penhorados, pelo que requer que a penhora se restrinja a um único imóvel (com o consequente levantamento dos outros dois imóveis penhorados).
A embargada/exequente refuta essa alegação, referindo não se antever se os bens penhorados são suficientes para o pagamento dessa dívida.
Posteriormente, foi elaborado despacho saneador, no qual um dos temas da prova enunciados consiste em averiguar do excesso de penhora.
Ora, como vimos, a pertinência da determinada prova pericial decorrerá da circunstância de os factos ou questões a responder com o relatório pericial estarem, ou não, integrados nos temas de prova ou, não tendo havido lugar a esta enunciação – o que não é o caso versado, visto aquela enunciação ter sido feita –, serem subsumíveis aos factos necessitados de prova. Por outras palavras, a relevância dos meios de prova só pode aferir-se pela possibilidade de a requerida perícia relevar para a formação da convicção do julgador relativamente aos factos que careçam de prova.
Isto porque o poder-dever, conferido/imposto ao Tribunal pelos arts. 411º do CPC, pressupõe que a perícia seja (objetivamente) necessária ao esclarecimento da verdade. O mesmo é dizer que, desde que esse concreto meio probatório satisfaça a condição de ser necessário, o tribunal pode (e deve) ordená-lo, não sendo este poder discricionário.
Em contraponto, a perícia será impertinente ou dilatória se não respeitar a factos condicionantes da decisão final ou porque, embora respeite a tais factos, o respetivo apuramento não depende de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe (31).
Ora, no caso sub júdice, o deferimento da realização da perícia visa precisamente auxiliar o Tribunal “a quo” na averiguação e apuramento do valor dos imóveis penhorados, sendo certo tratar-se dum domínio técnico específico que reclama conhecimentos especiais de que o julgador não é portador.
Deste modo, e contrariamente ao afirmado pela recorrente, é inequívoco que a prova pericial em causa reveste uma relevância essencial com vista à formação da convicção do julgador quanto à perceção, averiguação e apuramento daquele concreto tema da prova, o qual, como se disse, reclama conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (art. 388º do CC).
Aliás, no tocante à pertinência e necessidade da perícia com vista à avaliação dos imóveis penhorados não podemos deixar de assinalar o (prematuro) reconhecimento desse juízo feito pela própria recorrente/embargada em sede de contestação, designadamente quando se insurgiu contra o resultado da avaliação extra-judicial feita pela embargante, contrapondo que o valor de mercado de cada imóvel penhorado é “conhecido por meio de uma avaliação, ordenada pelo tribunal, e não por iniciativa da embargante” (arts. 25º e 26º da contestação).
Decisivo ao sucesso da pretensão probatória da parte é que o tribunal se convença fundadamente de que a diligência a promover é absolutamente necessária ao esclarecimento dos factos e que esta necessidade se impõe, por si, desligada da vontade que a parte manifestou na sua realização. Tal vontade é meramente acidental, pois que – tal como no caso dos autos – não revelou autonomamente para a decisão do juiz.
E, como tem sido salientado (32), a amplitude dos poderes/deveres do juiz, decorrentes do princípio do inquisitório impõe que o julgador admita, por exemplo, um requerimento probatório ainda que apresentado intempestivamente sempre que existam fortes razões para concluir que os meios de prova em causa podem contribuir decisivamente para a apreciação do mérito das pretensões.
Estão, pois, demonstrados os requisitos do uso de poderes instrutórios, tais como: i) a admissibilidade do meio de prova; ii) a sua manifestação em momento processualmente desadequado; iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio; e iv) a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer (33).
Assim, não obstante extemporaneamente requerido, o indicado meio de prova é pertinente e indispensável à demonstração daquele tema da prova, sendo, por conseguinte, essencial ou imprescindível à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa no tocante ao incidente de oposição à penhora.
Aduz, contudo, a recorrente que o despacho impugnado viola a força do caso julgado do despacho proferido em sede de audiência prévia, bem como viola o princípio da estabilidade da instância.
Carece, no entanto, de razão.
Diz-se que a decisão – despacho, sentença ou acórdão – forma caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável ou imutável por força do seu trânsito em julgado.
A decisão considera-se transitada em julgado, nos termos do art. 628º do CPC, «logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação».
A decisão transitada tem força de caso julgado, ou seja, tem força obrigatória, não podendo a questão decidida vir a ser decidida em termos diferentes.
Tanto podem transitar em julgado as sentenças ou despachos recorríveis, relativos a questões de carácter processual, como a decisão referente ao mérito da causa, isto é, respeitante à concreta relação material controvertida.
No primeiro caso, forma-se o caso julgado formal (processual, externo ou de simples preclusão); no segundo caso, forma-se o caso julgado material (substancial ou interno).
O caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, que se constitui sobre uma sentença ou despacho saneador que aprecie o mérito da causa, restringe-se às decisões que apreciem unicamente matéria de direito adjetivo ou processual (por exemplo as que se pronunciem sobre exceções dilatórias), não provendo sobre os bens ou direitos litigados.
O caso julgado formal (que é o único que aqui releva) só tem força obrigatória dentro do próprio processo em que a decisão é proferida (eficácia estritamente intraprocessual), obstando a que o juiz possa, na mesma ação, alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra ação, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro, entretanto, chamado a apreciar a causa (art. 620º, n.º 1, do CPC).
O caso julgado, para além de uma função positiva, conforma uma função negativa.
Esta função negativa encontra-se na finalidade de impedir que a questão que foi objeto da decisão proferida e inimpugnável possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação de qualquer tribunal (mesmo aquele que proferiu a decisão); se tal ocorrer, por força da figura da exceção dilatória de caso julgado, que visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior correspondendo à proibição de repetição de ações aludida no art. 580º, n.º 2, do CPC , deve o juiz abster-se de voltar a apreciar a matéria ou questão que se mostra já jurisdicionalmente decidida, em termos definitivos, como objeto de uma anterior ação (art. 576º, n.º 2 do CPC).
A não observância de qualquer um desses dois efeitos processuais característicos do caso julgado dá origem à existência de casos julgados contraditórios (quer no mesmo processo, quer em processos distintos). Nessa hipótese, o art. 625º, n.º 1, do CPC, estabelece que, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.
Este princípio da prioridade do trânsito em julgado vale igualmente para as decisões que, dentro do mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual (art. 625º, n.º 2, do CPC).
Portanto, a oposição tanto pode verificar-se entre dois casos julgados materiais, como entre dois casos julgados formais.
Revertendo ao caso em apreço é indubitável que o despacho impugnado não consubstancia qualquer situação de violação do caso julgado formal por referência ao despacho proferido em sede de audiência prévia, visto que nessa diligência o Tribunal “a quo” não se pronunciou concretamente (nem sequer tabelarmente) sobre a (in)admissibilidade da prova pericial tendo por objeto a avaliação dos imóveis penhorados (34).
Acresce que o facto do objeto do litígio aí identificado ser omisso quanto à matéria do incidente de oposição da penhora não obsta à procedência da realização da perícia, nem o despacho recorrido viola o princípio da estabilidade da instância.
Em primeiro lugar, porque o referido incidente não poderá deixar de ser oportunamente apreciado, sob pena de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. d, 1ª parte, do CPC.
Em segundo lugar, porque um dos temas da prova consiste precisamente na averiguação do “excesso de penhora”, sendo que o meio de prova ora impugnado visa auxiliar o julgador a formar a sua convicção quanto aos factos controvertidos atinentes a esse específico tema.
*
A decisão recorrida merece, assim, confirmação, improcedendo as conclusões da apelante.
*
As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade do recorrente, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I - O princípio do inquisitório, no seu sentido restrito, adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, uma vez que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, tendo o poder/dever de diligenciar pela obtenção da prova necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art. 411º do Cód. de Processo Civil).
II - O uso de poderes instrutórios está sujeito aos seguintes requisitos: i) a admissibilidade do meio de prova; ii) a sua manifestação em momento processualmente desadequado; iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio; e iv) a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer.
III - Se dos elementos constantes dos autos se mostrar indiciado o pressuposto da necessidade ou da imprescindibilidade da perícia para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio, a sua realização impõe-se ao tribunal, pelo que terá aquele de usar – como usou – dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelo art. 411º do CPC.
IV - Nesse pressuposto, a vontade (intempestiva) que a parte manifesta no sentido da realização da perícia é meramente acidental, não revelando autonomamente para a decisão do juiz.
*
VII. DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
*
Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Guimarães, 12 de novembro de 2020

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)


1. Cfr., Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed. revista, Coimbra Editora, p. 415, Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1993, p. 379 e Acs. do TC n.ºs 86/88, de 13/04/1988 (relator Messias Bento) e 530/2008, de 11/11/2008 (relator Carlos Fernandes Cadilha), disponíveis in www.dgsi.pt.
2. Cfr., Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, p. 228 e ss..
3. Cfr. Acórdão do TC n.º 209/95, proc. n.º 133/93, 1.ª secção, DR, II Série, n.º 295, de 23.12.1995, p. 15380.
4. Cfr. Ac. da RC de 21/04/2015 (relatora Maria João Areias), in www.dgsi.pt..
5. Cfr. Ac. da RL de 30/06/2011 (relatora Isabel Tapadinhas), in www.dgsi.pt.
6. Cfr. Ac. da RC de 21/04/2015 (relatora Maria João Areias) e Ac. do TC n.º 530/2008, de 11/11/2008 (relator Carlos Fernandes Cadilha), disponíveis in www.dgsi.pt.
7. Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª ed. – reimpressão -, Coimbra Editora, 1985, p. 239.
8. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, p. 482.
9. Cfr. Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa à luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª ed., Gestlegal, pp. 240/241.
10. Cfr. Alberto do Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, reimpressão, 1987, Coimbra Editora, 1985, p. 181.
11. Cfr. Ac. do STJ de 25/11/2004 (relator Ferreira de Almeida), in www.dgsi.pt.
12. Cfr. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, (Ana Prata Coord.), volume I, 2017, Almedina, p. 475.
13. Cfr. Acs. do STJ de 6/07/2011 (relator Hélder Roque) e de 12/05/2011 (relator Granja da Fonseca) e Ac. da RC de 24.04.2012 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt.
14. Reportamo-nos à generalidade dos meios de prova, incluindo a prova pericial, sem cuidarmos das particularidades da prova por declarações de parte (art. 466º, n.º 1 do CPC), da prova documental (art. 423º, n.º 1 do CPC) e da prova testemunhal (art. 598º, n.º 2 do CPC).
15. Por força da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26 de julho.
16. Cfr. Rita Lobo Xavier, Inês Folhadela e Gonçalo Andrade e Castro, Elementos de Direito Processual Civil - Teoria Geral – Princípios - Pressupostos, 2ª ed., 2018, UCEP, pp. 151.
17. Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, Almedina, p. 273.
18. Cfr. Nuno Lemos Jorge, Os problemas instrutórios do juiz: alguns problemas, Julgar, n.º 3, Setembro/dezembro 2007, Coimbra Editora, p. 65.
19. Cfr. Luís Lameiras, “O princípio do Inquisitório: um poder-dever ou um poder discricionário do juiz?”, II Colóquio de Processo Civil, 2016, Almedina, p. 30.
20. Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, 2014, Almedina, p. 363 e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., Almedina, 2017, p. 32.
21. Cfr. Rita Lobo Xavier e Outros, obra citada, pp. 151.
22. Cfr., Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª ed., 2017, Almedina, p. 154.
23. Cfr. Luís Lameiras, obra citada, p. 29.
24. Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 484.
25. Cfr. Paulo Pimenta, obra citada, p. 372.
26. Citado no Ac. da RP de 09-02-2015 (relator João Nunes), este disponível in www.dgsi.pt.
27. Cfr., sobre a articulação entre o princípio da autorresponsabilidade das partes e do inquisitório, Ac. da RC de 6/06/2017 (relator Arlindo Oliveira), Ac. da RG de 23/05/2019 (relatora Conceição Sampaio), Ac. da RG de 20/03/2018 (relator João Diogo Rodrigues), Ac. da RL de 6/06/2019 (relatora Laurinda Gemas) e Ac. da RL de 11/07/2019 (relator Luís Filipe Sousa), todos disponíveis in www.dgsi.pt.
28. Cfr., versando, em concreto, a prova testemunhal, Luís Filipe Sousa, Prova testemunhal, p. 275 e Ac. da RL de 21/02/2019 (relatora Gabriela Cunha Rodrigues), in www.dgsi.pt.
29. Cfr., Ac. da RP de 2/05/2013 (relator Araújo Barros) e Ac. da RL de 21/02/2019 (relatora Gabriela Cunha Rodrigues), in www.dgsi.pt.
30. Cfr. Paulo Pimenta, obra citada, pp. 372/373 (nota 871).
31. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, obra citada, p. 539.
32. Cfr. António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, p. 69.
33. Cfr. Lemos Jorge, Estudo citado, pp. 74 e 75.
34. Pronunciou-se, sim, sobre a admissibilidade liminar da perícia requerida pela embargada que tinha por objeto a análise da conta-corrente referente ao empréstimo em causa na execução, mas que claramente não é confundível com a perícia ora impugnada.