Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1251/24.8T9BRG.G1
Relator: CARLOS CUNHA COUTINHO
Descritores: COMPETIÇÕES DESPORTIVAS
AUTORIDADES PÚBLICAS
DEVER DE CORRECÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – O arguido que enquanto adepto assiste a um jogo de futebol da primeira liga, profere a expressão “que se foda o cartão a polícia e a liga”, dirigida aos militares da GNR que efectuavam o policiamento de evento desportivo, incorre na prática da contraordenação prevista no artigo 39.º, n.º 1, al. i) da Lei n.º 39/2009 de 30 de julho.
II – Na verdade, com a sua conduta o arguido violou o seu dever de «usar de correção, moderação e respeito relativamente a promotores dos espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, (…), autoridades públicas, (…) e outros intervenientes no espetáculo desportivo» previsto naquela norma legal, excedendo de forma manifesta o exercício do “direito à crítica” legalmente consagrado.
III- A liberdade de expressão não é, nem pode ser, um direito absoluto, podendo ser objecto de restrições para tutela de direitos de personalidade nos quais se incluem o direito à honra, à imagem e à reserva da vida privada e familiar;
IV – Há assim que conciliar o “direito o direito à crítica” com o “direito à honra e consideração”, ambos direitos fundamentais constitucionais, mas que não são direitos “absolutos, ilimitados”;
V – Nesse sentido dispõe a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que começa por afirmar no seu preâmbulo que o gozo entre outros, do direito de liberdade de expressão, implica «responsabilidades e deveres(…) para com as outras pessoas individualmente consideradas», acrescentando depois no artigo 3.º, n.º 1 que «todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental» e proibindo depois no artigo 54.º, o abuso de direito, estabelecendo que «nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de implicar qualquer direito de exercer atividades ou praticar atos que visem a destruição dos direitos ou liberdades por ela reconhecidos ou restrições desses direitos e liberdades maiores do que as previstas na presente Carta»;
VI - Também no mesmos sentido estabelece de forma clara o artigo 10.º, n.º 2. da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que o exercício da liberdade de expressão, «implica deveres e responsabilidades», podendo «ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime».
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

A) Relatório:
1) O recorrente AA, melhor identificado nos autos, impugnou judicialmente, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local de Guimarães – Juiz ..., a decisão da Autoridade Para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto que lhe aplicou uma coima no valor de € 750,00 por violação da al. i) do n.º 1 do artigo 39.º da Lei n.º 39/2009 de 30 de julho, na sua actual redacção, ilícito previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 40.º do mesmo diploma legal.
2) Por sentença proferida em 17/09/2024, o Tribunal decidiu julgar o recurso “totalmente improcedente” e manteve, consequentemente, a decisão administrativa nos seus precisos termos.
*
3) Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, formulando no termo da motivação, as seguintes conclusões:
1. O recorrente AA, não se conforma com a douta sentença prolatada em 17.09.2024, no âmbito de recurso de contraordenação, e pelo qual, foi este condenado na coima no valor de € 750,00 por violação da al. i) do n.º 1 do art.º 39.º da Lei n.º 39/2009 de 30 de julho, daí aqui pôr em crise o mesmo, sem prescindir a qualidade do Mmo. Juiz, sendo que aquela decisão merece reparo, pelo que se impugna a mesma de direito;
2. Para o arguido inexistia, e inexiste, ilícito, censurável, que fosse punível com coima ou outra sanção;
3. Com efeito, na decisão aqui posta em crise, são dados por assentes a participação pelo Arguido em cânticos de conteúdo crítico, supra transcritos e que aqui se dão por integrados e reproduzidos;
4. A frase crítica ou o cântico “QUE SE FODA O CARTÃO A POLICIA E A LIGA”, insere-se no exercício do direito à crítica e no exercício do direito à liberdade de expressão por parte dos adeptos presentes nas circunstâncias de tempo, modo e lugar, sendo legítimo ao arguido e a qualquer adepto criticar, mesmo que alguma das críticas, como a dos autos, possam ser mais acrimoniosas, ou menor educadas ou menos éticas, sendo que esse direito à liberdade de expressão encontra-se consagrado no artigo 11º Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e ainda no artigo 10º da CEDH e também no artigo 37º da Constituição da Republica Portuguesa, sendo violadora daquelas normas, não podendo, nem devendo, a disposição consagrada no artigo 39º, n.º 1, alínea i) da Lei 39/2009, de 30 de julho ser interpretada, como é pela autoridade administrativa, e agora pelo Tribunal ad quem, no sentido de não terem os adeptos direito à crítica, mesmo que acrimoniosa ou pouca educada, consubstanciando essa crítica o incumprimento do dever de usar de correção, moderação e respeito relativamente a promotores dos espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes, sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportiva;
5. Aliás interpretada nesse sentido essa disposição do artigo 39º, n.º 1, alínea i) da Lei 39/07, é a mesma inconstitucional por violação do disposto no artigo 37º n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. Tudo conforme o arguido/recorrente já anteriormente invocou e aqui novamente se invoca para os devidos e legais efeitos;
6. Acresce que, o direito penal, nem contraordenacional, não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere a suscetibilidade do visado, o qual no caso concreto, e ao contrário do considerado pela autoridade administrativa e pelo próprio Tribunal ad quem, não seria apenas a autoridade pública (polícia), mas também a Liga e principalmente o Cartão do Adepto (facto reconhecido por todas testemunhas, cujos depoimento aqui não podemos transcrever porque a prova não foi gravada), o qual, como é público, foi criado pela Portaria n.º 159/2020, de 26 de junho com objectivo de controlar o acesso a zonas especiais dos estádios, normalmente reservadas às claques, que veio posteriormente, face a inúmeras críticas, como a dos autos, a ser revogado, pela Assembleia da República através Lei n.º 92/2021, de 17 de dezembro (cujo sumário: Revoga o «cartão do adepto», eliminando a discriminação e a estigmatização em recintos desportivos, alterando a Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos);
7. De nenhuma forma aquela frase ou refrão daquele cântico atinge o núcleo essencial de que devem existir para que a aquelas entidades pudessem ter deixado de ter apreço por si próprias ou para que pudessem sentir-se desprezadas pelos cidadãos, nomeadamente por estes adeptos, nem se vislumbra, ao contrário do preconizado pelo Tribunal ad quem, que aquela frase entoada em todos os estádios portugueses, e neste em particular, durante um jogo de futebol, criticando o Cartão do Adepto, a Liga e a Polícia, fosse lesiva da honra da autoridade pública (polícia), enquanto profissionais (fazendo dos mesmos descaso ou visando apoucá-los), e é instigadora da intolerância, impedindo, mesmo, por vezes, a realização dos eventos desportivos em segurança e de acordo com os princípios éticos inerentes ao desporto, sendo de salientar que a expressão em causa e a sua repetição, naquele contexto, consubstancia uma verdadeira conduta provocatória;
8. Reitere-se, a generalidade dos adeptos e em particular aqueles que faziam partes de claques ou grupos organizados de aptos, mas mesmo os adeptos em geral, eram críticos da instituição deste Cartão do Adepto, e da Liga por não ter combatido essa portaria e da Polícia que fiscalizava o cumprimento daquela Portaria, que veio a ser revogada pela Assembleia da República por terem entendidos os deputados, dando razão aos adeptos (remete-se novamente para o sumário da Lei n.º 92/2021, de 17 de dezembro), revogando aquele com uma forte censura, uma vez que o «cartão do adepto», consubstanciava uma “discriminação e a estigmatização em recintos desportivos”, pelo que foi alterada a Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos”;
9. A frase e crítica dos autos - “QUE SE FODA O CARTÃO A POLICIA E A LIGA” – foi proferida no âmbito do direito de defesa dos adeptos, não sendo susceptível de atingir a honra ou consideração dos visados;
10. Acresce que, e acompanhando o douto Acórdão da Relação de Guimarães, prolatado em 24-05-2021, em que é relator o Desembargador Armando Azevedo, in www.gde.mj.pt/jtrg : “Quem exerce funções públicas, de que é exemplo os agentes das forças de segurança, encontra-se sujeito à crítica objectiva. E, neste contexto, são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação, sendo exigível a quem exerce funções públicas disponha de capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social”- Entendimento este quer quanto a ilícitos de natureza criminal ou contraordenacional.
11. Pelo exposto, o arguido, tendo-se por assente a prática dos factos – que se têm de admitir porque já não tal factualidade ser impugnada pela via do presente recurso, apenas proferiu, num âmbito de um cântico, uma frase crítica – “QUE SE FODA O CARTÃO A POLICIA E A LIGA” –, e fê-lo no exercício do direito à crítica e no exercício do direito à liberdade de expressão, sendo legítimo ao arguido e a qualquer adepto criticar, mesmo que alguma das críticas, como a dos autos, possam ser mais acrimoniosas, ou menos educadas ou eventualmente grosseiras, sendo que esse direito à liberdade de expressão e ao direito à crítica não pode ser amordação pela imposição insita no artigo 39º, n.º 1, alínea i) da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, a qual não pode postergar o artigo 11º Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e ainda no artigo 10º da CEDH e também o artigo 37º da Constituição da Republica Portuguesa, como ocorre e ocorreu nos presentes autos.
12. Disposições violadas: Foram violados os artigos 11º Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e ainda o artigo 10º da CEDH e também o artigo 37º da Constituição da Republica Portuguesa, e o artigo 39º, n.º 1, alínea i) da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, e as demais disposições que V. Exias suprirão.
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4) Notificado do requerimento de interposição de recurso o Ministério Púbico respondeu ao recurso interposto pelo recorrente, pugnando pela sua improcedência e confirmação da Sentença recorrida, concluindo que “a expressão dirigida pelo arguido às autoridades policiais integra os elementos do tipo legal, pelo que muito bem andou o Tribunal a quo ao confirmar a decisão administrativa, condenando o arguido.
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5) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Exmo. Senhor Procurador – Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente, entendendo que “a desnecessidade e excesso da frase proclamada e ecoada pelo arguido assim lesando a consideração social dos que nela são referidos, e importunando os demais, leva à conclusão de que aquele se tornou autor da contra-ordenação prevista e punida pela al. a) 1) do art.º 39 e art.º 40, n.º 2, da Lei 39/2009, de 30/07, por violação do seu dever de correcção”.
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6) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não apresentou resposta.
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7) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre apreciar e decidir.
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B) Fundamentação:

1. Âmbito do recurso e questões a decidir:

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal)[1].
Por outro lado, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto (emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum) previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, bem como verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do mesmo Código. Acresce que o Tribunal da Relação conhece, neste âmbito, apenas da matéria de direito, como resulta do disposto no artigo 75.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (doravante designado por RGCO).
No caso dos autos face às conclusões da motivação apresentadas pelo arguido, a única questão a decidir prende-se com a de saber se os factos dados como provados, integram a prática da contraordenação imputada ao recorrente.
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2. A sentença recorrida:

Naquilo em que a mesma releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor da sentença impugnada:
(…)

II. FUNDAMENTAÇÃO 

1. DOS FACTOS 

A) FACTUALIDADE ASSENTE 
Encontra-se demonstrada, com relevância para a decisão a proferir, a seguinte factualidade: 
a) Em ../../2022, entre as ... e as ..., no estádio do ..., decorreu um jogo de futebol entre as equipas de ... e o ..., jogo de futebol 11, a contar para a ... jornada da ....
b) A GNR efectuou o policiamento do evento desportivo.
c) No decurso do espectáculo desportivo, um grupo organizado de cerca de 30 adeptos, não registados e afectos à claque ..., denominada “força azul”, que se encontrava no sector ... da bancada nascente do estádio, entoaram diversos cânticos em uníssono.
d) Aproximadamente entre as 21h45 e as 21h48, enquanto o grupo entoava o referido cântico, o arguido, de igual modo, de forma efusiva, perceptível e inequívoca proferia a seguinte expressão “que se foda o cartão a polícia e a liga”, o que repetiu por diversas vezes.
e) Quando identificado, o arguido foi colocado fora do recinto desportivo.
f) Sendo que ao ser identificado, os demais elementos do grupo organizado, ao perceberem a intervenção da GNR, pararam de cantar e abandonaram o estádio.
g) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente com o propósito concretizado de faltar ao respeito, proferindo os cânticos acima referidos, bem sabendo que tal facto era previsto e punível como contra-ordenação.
h) O arguido agiu com o propósito concretizado de proferir aqueles cânticos ofensivos e desrespeitadores dirigidos aos agentes policiais, bem sabendo que a sua conduta era proibida de punida por lei.
Mais se apurou:
i) O arguido é empresário de armazém, auferindo o salário mínimo nacional.
j) Vive com os pais, a quem entrega, mensalmente, a quantia de € 200,00, para ajuda das despesas domésticas.
k) O arguido concluiu o 11º ano de escolaridade.
l) Não são conhecidos ao arguido antecedentes contraordenacionais.
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3. Apreciação do recurso

Primeira questão:
Alega o recorrente que não existe “ilícito, censurável, que fosse punível com coima ou outra sanção”, justificando a sua conclusão com o facto de considerar que “a frase crítica ou o cântico “QUE SE FODA O CARTÃO A POLICIA E A LIGA”, insere-se no exercício do direito à crítica e no exercício do direito à liberdade de expressão por parte dos adeptos”, direito que se encontra consagrado no artigo 11.º Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no artigo 10.º da CEDH e no artigo 37.º da Constituição da Republica Portuguesa.
Vejamos.
A Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho (versão actual dada pela Lei n.º 40/2023, de 10 de Agosto), estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos. Como se estatui no seu artigo 1.º, o diploma legal em causa tem como objeto possibilitar a realização de espetáculos desportivos, «ou atos com eles relacionados», com «segurança e de acordo com os princípios éticos inerentes à sua prática”, constituindo um ilícito de mera ordenação social, «o incumprimento do dever de usar de correção, moderação e respeito relativamente a promotores dos espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes, sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportivo» - artigo 39.º, n.º 1, i) daquele diploma legal.
No caso dos autos, a questão que se suscita é a de saber se será que com a sua conduta o recorrente violou o seu dever de «usar de correção, moderação e respeito relativamente a promotores dos espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, (…), autoridades públicas, (…) e outros intervenientes no espetáculo desportivo», nos termos previstos na Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho ou será que se limitou a exercer o seu “direito à crítica” no “exercício do direito à liberdade de expressão por parte dos adeptos”, como é defendido em sede de recurso.
Preceitua o artigo 37.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que «todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações». 
Como refere o recorrente, o direito à liberdade de expressão encontra-se também consagrado no artigo 11.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, direito que compreende «a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras» e no artigo 10.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, direito que compreende «a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras».
Ora, há que começar por dizer que o Tribunal recorrido não ignorou o Direito da liberdade de expressão consagrado na constituição e nos diplomas acima citados, admitindo a existência de “margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos (art.º. 37.º, n.º 1, da CRP)”; no entanto, entendeu e bem que há que conciliar o “direito o direito à crítica” com “o direito à honra e consideração”, ambos direitos fundamentais constitucionais, mas que “não são direitos absolutos, ilimitados”.  
Nesse sentido, a própria Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia começa por afirmar no seu preâmbulo que o gozo entre outros, do direito de liberdade de expressão, implica «responsabilidades e deveres, (…) para com as outras pessoas individualmente consideradas», acrescentando depois no artigo 3.º, n.º 1 que «todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental» e proibindo depois no artigo 54.º, o abuso de direito, estabelecendo que «nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de implicar qualquer direito de exercer atividades ou praticar atos que visem a destruição dos direitos ou liberdades por ela reconhecidos ou restrições desses direitos e liberdades maiores do que as previstas na presente Carta». Também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem estabelece de forma clara que o exercício da liberdade de expressão, «implica deveres e responsabilidades», podendo «ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime» - cf. o disposto no artigo 10.º, n.º 2.
Na verdade, a liberdade de expressão não é, nem pode ser, um direito absoluto, podendo ser objecto de restrições para tutela de direitos de personalidade em que se incluem o direito à honra, à imagem e à reserva da vida privada e familiar.
Como acima fizemos referência, a Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, considera que constitui um ilícito de mera ordenação social, «o incumprimento do dever de usar de correção, moderação e respeito relativamente a promotores dos espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes, sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportivo» - cf. artigo 39.º, n.º 1, i) e no caso dos autos, o Tribunal recorrido salientou a propósito que a “urbanidade, consideração, respeito e correcção” a que alude o tipo de ilícito em causa, “consiste num bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior”, admitindo que “nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão de violação do dever de correcção, moderação e respeito”.
Como bem salienta o Senhor Procurador Geral da Republica no parecer junto aos autos, “sempre que haja uma conduta desrespeitosa, por excessiva e desnecessária, e que é dirigida à honra de alguém ou à consideração social, estamos perante a violação desse dever de correcção”.
Segundo a matéria de facto assente, no dia ../../2022, entre as ... e as ..., no estádio do ..., onde decorreu um jogo de futebol entre as equipas de ... e o ... que estava a ser policiado pela GNR, enquanto um grupo organizado de cerca de 30 adeptos, não registados e afectos à claque ..., entoaram diversos cânticos em uníssono, o recorrente, “de forma efusiva, perceptível e inequívoca proferia a seguinte expressão “que se foda o cartão a polícia e a liga”, o que repetiu por diversas vezes”. Entendeu o Tribunal recorrido que “atento o teor das expressões em causa, claramente dirigidas à autoridade policial, que, de resto, se encontrava no local, estamos perante uma conduta de falta de correcção e de desrespeito para com a Polícia”. 
Ora pela nossa parte, subscrevemos este entendimento porque consideraremos que em relação ao agente policial que se encontrava no local, não estava em causa por parte do arguido, o mero exercício do seu direito de crítica como se defende no recurso. Se estivesse em causa, apenas o ataque ao cartão de adepto ou a qualquer atitude menos adequada da Liga de Futebol, admitiríamos que a conduta do arguido se pudesse reduzir a uma mera crítica. No entanto, o arguido, com a sua insistente declaração, visou também o ataque desnecessário à autoridade policial que no local era representada por soldados da GNR que se encontravam no exercício das suas funções de policiamento de um espetáculo desportivo. O uso incorreto e imoderado da expressão “que se foda a Polícia”, não encontra qualquer justificação, nem é necessário para fundamentar qualquer crítica. A entidade policial encontra-se no local para garantir a segurança de um espetáculo desportivo, desiderato que vai sendo cada vez mais difícil de manter, levando em casos extremos, a lamentáveis actos de violência que põem em causa a integridade física de todos os que se dirigem a um recinto desportivo.
Não havendo definição legal do dever de correcção a que alude a Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, subscrevemos a definição do conceito constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/04/2011 (processo n.º 123/10.8YFLSB.S1) citado no parecer junto aos autos, segundo o qual integra violação do dever de correcção, “o uso de expressões excessivas e, por isso, desnecessárias” que “configuram uma actuação que vai para além da liberdade de expressão e crítica”.
Como se salienta no acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Abril de 1981, citado na decisão recorrida e que também subscrevemos, “a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros [...]. Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte as que estabelecem a “obrigação e o dever” de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, mínimo esse de respeito que não se confunde, porém, com educação ou cortesia, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o direito penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências”.
Concordamos com o Tribunal recorrido quando afirma que a expressão em causa, não se enquadra, “na liberdade de expressão ou de opinião, uma vez que se apresenta como lesiva da honra da autoridade pública (polícia), enquanto profissionais (fazendo dos mesmos descaso ou visando apoucá-los), e é instigadora da intolerância, impedindo, mesmo, por vezes, a realização dos eventos desportivos em segurança e de acordo com os princípios éticos inerentes ao desporto, sendo de salientar que a expressão em causa e a sua repetição, naquele contexto, consubstancia uma verdadeira conduta provocatória”.
Concluindo como se concluiu no Parecer junto aos autos, tendo em conta o circunstancialismo provado e imodificado e em que a frase “que se foda o cartão a polícia e a liga” foi proferida, “a sua proclamação num estádio de futebol atinge o respeito devido à polícia, como entidade a quem legalmente está atribuído o dever da segurança pública, e à liga, a entidade organizadora da competição desportiva em causa, fazendo-o então gratuitamente, isto é, impondo-a aos demais intervenientes importunando-os sem qualquer justificação plausível”.
O arguido utilizou uma expressão “excessiva” e, por isso, “desnecessária” o que configura “uma actuação que vai para além da liberdade de expressão e crítica”.
Assim sendo, também nós entendemos que atenta a matéria de facto dada como provada, se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivo da infracção, na sua forma dolosa (artigo 14.º, nº 1, do Código Penal), inexistindo qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude.
O recurso improcede, pois, na sua totalidade não merecendo qualquer reparo a Sentença recorrida.
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A) Decisão:

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido/recorrente AA e, em consequência, decidem manter a Sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida (artigos 92.º, 93.º, n.ºs 3 e 4 e 94.º do Decreto-Lei n.º 433/82, e respetivo Regulamento das Custas Processuais).
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Notifique.
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Guimarães, 11 de Fevereiro de 2025 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
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Carlos da Cunha Coutinho (relator);
Júlio Pinto (1.º Adjunto);
Pedro Miguel Cunha Lopes (2.º Adjunto).


[1] O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.