Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
325/21.1T8MAC.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
ASSISTÊNCIA EM VIAGEM
DANOS CAUSADOS PELO REBOCADOR DURANTE O TRANSPORTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A assistência em viagem prestada pelo segurador ao segurado, associada a contratos de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, corresponde a um seguro de assistência, na definição prevista no artigo 173.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
II. Tendo a seguradora, no âmbito da execução deste serviço de reboque e transporte recorrido a terceiros, tal reconduz-se a um contrato de prestação de serviço, mais especificamente, ao contrato de transporte de mercadorias, a que tem directa aplicação o regime do art. 800º nº1 do Cód. Civil sobre a responsabilidade do devedor pelos “actos dos representantes legais ou auxiliares”.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

V..., Lda., com sede na Rua ..., ... ..., ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra F... Companhia de Seguros, S.A., com sede no Largo ..., ... ..., pedindo a condenação da ré no pagamento do valor da reparação (de cujo montante apenas reclama € 1017,25, por já se mostrar ressarcida na quantia de €500,00), acrescido de indemnização pela privação do uso entre 11.05.2021 e 24.05.2021, à razão diária de € 117,12, e desde 25.06.2021 até efectivo e integral pagamento dessa indemnização, no montante diário de €60,00, num total que computou, até à data em que acção foi instaurada, em €9.600,00. A somar a estes valores, a autora pede a condenação da ré no pagamento de juros moratórios contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para tano e em síntese, alegou que é proprietária de uma viatura, pesado de mercadorias, da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-JU-.., segurada na ré através da apólice n.º ...73 e que, tendo essa viatura sofrido uma avaria no dia 10-05-2021, na Zona Industrial ..., accionou a assistência em viagem garantida pelo seguro. Sucede que, aquando do transporte para a oficina no camião que foi enviado pela ré, o referido pesado de mercadorias sofreu danos no seu lado direito. A reparação de tais danos, ficou orçamentada no valor de €1.517,25, mas a ré apenas deu ordem para sua reparação no dia 16-06-2021, tendo esta ficado concluída em 24-06-2021.
A ré veio contestar, enquadrando a sua responsabilidade no contrato de seguro que firmou com a empresa “T..., Lda”, que efectuou o transporte do JU, e alegando que, no âmbito desse contrato de seguro, não está obrigada a satisfazer qualquer indemnização pela privação do uso.
No mais, em síntese, a ré pugnou pela sua absolvição, mas assumiu-se devedora do valor reclamado pela autora relativo à reparação da viatura.
Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“IV. DISPOSITIVO
Nestes termos, por parcialmente provada, julgo parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 6.053,45 (€1017,25 pela reparação do JU e € 5036,16 pelo dano da privação do uso entre 12-05-2021 e 24-06-2021), acrescida de juros de mora civis à taxa legal (4% ou outra que, entretanto, vigorar) desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Valor da causa: já fixado em despacho saneador.
Custas pela ré e pelo autor, nas proporções de 38% para a ré e 62% para a autora.
Notifique.”.
*
Inconformada com esta decisão, a ré, dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

“Em conclusão:
1ª- A recorrente não se conforma com a douta sentença proferida, na qual foi condenada a pagar à autora V..., Lda a quantia de 6.053,45 euros ao abrigo da apólice do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice ...73, porquanto entende, salvo o devido respeito, que a mesma fez uma errada interpretação e subsunção dos factos provados à lei e às conduções do contrato de seguro em causa.
2ª- A única questão a decidir neste caso concreto é saber se os danos reclamados pela Autora são passiveis de ser ressarcidos ao abrigo da cobertura facultativa de assistência em viagem e contratada no âmbito do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Pois,
3ª- A Autora intentou a presente acção, alegando, em síntese, que era proprietária do veiculo pesado de mercadorias, que se encontrava segurada na Ré recorrente pelo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel titulado apólice n.º ...73, com a cobertura facultativa de assistência em viagem, e tendo essa viatura sofrido uma avaria, acionou a assistência em viagem garantida pelo seguro , para transportar o veiculo avariado para a oficina em ..., sendo que, durante o transporte para a oficina no camião que foi enviado pela Ré, o veiculo sofreu danos e a Ré deverá ser condenada ao pagamento dos danos causados pelo rebocador durante o transporte e a privação do veiculo, ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...17 celebrado entre a recorrente a empresa rebocadora T..., Lda e requer a final que a Ré junte aos autos a apólice de seguro que celebrou com esta rebocadora com o nº RC ....
4ª- A ora Recorrente na sua contestação alega que efectivamente celebrou com a T..., Lda o contrato de seguro do ramo de “responsabilidade civil exploração” titulado pela Apólice ...17 e sujeito às condições gerais, particulares e especais que juntou, e porque não está obrigada a satisfazer qualquer indemnização pela privação do uso por tal dano estar excluído, apenas aceitou pagar o valor reclamado pela autora relativo à reparação da viatura ao abrigo do contrato de seguro de responsabilidade civil titulado por aquela apólice e celebrado com aquela transportadora .
5ª- Com base na factualidade provada e nestes pressupostos o Mº Juiz do Tribunal a quo condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 6.053,45 € , sendo 1.017,25 € da reparação e 5.036,16 € da privação de uso do veiculo, por entender ser aplicável ao caso a cobertura facultativa de assistência em viagem do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel aplicando-se as regras do contrato de transporte de mercadorias, o que merece, salvo o devido respeito, a nossa total discordância.
6ª- Não obstante a ausência de uma definição legal de contrato de seguro, o seu regime jurídico está actualmente regulado no anexo ao D.L. 72/2008, de 16/04, que entrou em vigor no dia 01/01/2009 (art. 7º) e revogou, entre outras, as normas dos arts. 425º a 462º do Cód. Comercial (art. 6º).
7ª- O contrato de seguro é desde logo enformado pelo princípio de liberdade contratual, o qual resulta do art. 405º do Cód. Civil, o que implica, quanto à seguradora, o poder de incluir na apólice cláusulas de exclusão da cobertura de determinados riscos, assumir o risco de forma parcial, ficando o restante a cargo do segurado - estas cláusulas visam que o segurado se empenhe em evitar o dano -, ou estabelecer franquias, ou seja, estabelecer o montante mínimo a partir do qual a seguradora responderá – embora, hoje em dia, esta liberdade contratual esteja substancialmente cerceada, nomeadamente pela legislação sobre cláusulas contratuais gerais.
8ª- Pelo que a regra geral do regime contratual, que é o da autonomia da vontade, segundo o qual as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos (artigo 405º do Código Civil), excepto se colidir com normas de natureza imperativa quer relativa, quer absoluta”, (Ac. STJ, de 2 de Dezembro de 2013; www.dgsi.pt/jstj- Proc. nº2199/10.9TVLSB.L1.S1). Cfr. art. 427º do Código Comercial.
9ª-Pese embora não exija a forma escrita, o contrato de seguro é corporizado num instrumento que constitui a apólice (cfr. artigo ...2.º, n.º 2, do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril).
10ª- Desta constam as condições do contrato acordado, as quais integram o contrato de seguro e vinculam as partes, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 405.º, n.º 1, e 406.º, n.º 1, ambos do CC, e 32.º, n.º 2 do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril.
11ª- Desta forma, temos, por um lado, as condições gerais, que são as que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo de actividade, e as especiais, as que, completando ou especificando as condições gerais, são de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo.
12ª- Ora, por força do contrato de seguro automóvel celebrado com a Autora, à cobertura facultativa de assistência em viagem é aplicável a condição especial de “assistência em viagem”, pela qual a Ré se obrigou conforme clausula 7ª – Garantia de assistência ao veiculo e seus ocupantes” garante conforme dispõe no seu ponto 1.4:
“Transporte ou repatriamento do veiculo e despesas de recolha em consequência de avaria, acidente, furo ou roubo”:
b) – as despesas de transporte ou repatriamento do veiculo até ao domicilio da Pessoa Segura, em Portugal ou até à oficina ou concessionário mais próximos deste domicilio, por ela indicado.
13ª- Por isso, no contrato de seguro, em que a seguradora se substitui ao segurado na assunção das consequências patrimoniais decorrentes da verificação do risco de sinistro, os riscos cobertos têm de constar do texto da apólice, como determina o artigo 37º, nº 2, alínea d) do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
14ª- Assim, salvo o devido respeito, sem grande esforço intelectual se verifica que a condição especial de assistência em viagem contratada entre a Autora e a Ré, apenas obriga esta a suportar as despesas de transporte do veiculo entre o local da avaria e a oficina por si escolhida.
15ª- E salvo o devido respeito, in casu não se pode aplicar à cobertura de assistência em viagem as regras do contrato de transporte de mercadorias vertidas no DL 239/2003 de 04.10., pois que a seguradora não efectua o transporte, mas apenas tem de suportar as despesas de transporte.
16ª- Mesmo considerando a cobertura de assistência em viagem um “contrato de seguro de assistência” previsto no artigo 173º e 174º do Regime Juridico do contrato de seguro, temos de atentar ao disposto nestas disposições legais.
17ª- A obrigação do segurador, in casu da Ré recorrente, é, nos termos da condição especial – “termos estipulados” na expressão do art. 173º- a suportar as despesas de transporte que corresponde ao “prestar ou proporcionar auxilio” ao segurado em consequência da avaria, e a sua obrigação esgota-se aqui, não abrange a privação de uso, nem engloba a actividade de transporte.
18ª- Por isso, e para isso, é que a empresa rebocadora que efectuou o transporte possuía o contrato de seguro de responsabilidade do exercício da sua actividade e constante do ponto 12, 16 e 17 dos factos provados.
19ª- Foi, e teria de ser, ao abrigo deste contrato de seguro que a Autora reclamou o pagamento dos danos por si sofridos como decorre da douta p.i. e requereu a junção da respectiva apólice, e foi ao abrigo desta que a Ré se disponibilizou a suportar os danos no veiculo – danos directos – no valor de 1.017,25 €, pois que a segurada já havia pago a franquia de 500,00 €.
20ª- Não podia a Ré ao abrigo deste contrato de seguro de responsabilidade civil suportar os danos decorrentes da privação de uso do veiculo por serem danos indirectos e se encontrarem excluidos.
21ª- Neste contexto teria, e deveria, a Autora ou intentar a acção também logo ab initio contra o rebocador ou, face à contestação da Ré, requer a sua intervenção principal provocada, o que não fez.
22ª- Pelo exposto e salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida fez errada interpretação dos termos da clausula facultativa de assistência em viagem contida no contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, e errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 32º, 37º, 173º e 174º do DL 72/2008 de 16.04 e artigos 405º e 406º do CC, aos factos provados.
Termos em que,
e nos mais e melhores de direito que V. EXªs doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso, e consequentemente revogar-se a douta decisão recorrida, substituindo-se por douto acórdão outra que absolva a Ré dos pedidos, e assim, se fará inteira J U S T I Ç A.”.
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A autora não apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber qual o contrato de seguro ao abrigo do qual foi reclamada da ré a indemnização peticionada na acção, e se este cobre os riscos em causa.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

“1. A autora, na qualidade de proprietária da viatura, pesado de mercadorias (trator) da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-JU-.., contratou com a ré o seguro para cobertura da responsabilidade civil que pudesse decorrer da utilização daquela viatura, titulado pela apólice n.º ...73, cujas cláusulas gerais e especiais aqui se dão por integralmente reproduzidas.
2. Desse contrato de seguro fazia parte, também, a cobertura de assistência em viagem, nomeadamente em caso de avaria da viatura.
3. No dia 10-05-2021, na Zona Industrial ..., a viatura JU sofreu uma avaria na caixa de velocidades que a impediu de prosseguir viagem.
4. A autora acionou a assistência em viagem junto da ré, que providenciou pelo envio de um camião para transportar o JU para a oficina “RE...-Serviços Técnicos e R..., S.A.”, indicada pela autora, e sita na Rua ..., ..., em ....
5. No dia 11-05-2021, a oficina informou a autora de que a viatura tinha ali sido entregue batida do lado direito e com danos avultados.
6. A autora, em 12-05-2021, enviou reclamação – com fotografias dos danos – e orçamento a solicitar a reparação dos danos, para o seu mediador de seguros, que no dia 14-05-2021 a encaminhou para a ré.
7. A ré ordenou a peritagem à viatura da autora, que foi executada em 24-05-2021, na oficina da RE...-Serviços Técnicos, tendo sido orçamentado o valor de € 1.517,25, acrescido de IVA, para reparação dos danos do JU.
8. Tal peritagem teve caráter condicional, apenas servindo para determinar o valor dos danos, não tendo a ré assumido então a responsabilidade pelo pagamento da reparação.
9. A ré apenas deu ordem de reparação dos danos em 16-06-2021, tendo a mesma sido concluída em 24-06-2021.
10. Pela empresa que efetuou o reboque do JU – “T..., Lda” - foi transferida para a conta da autora a quantia de € 500,00 e foi enviado pela ré, com data de 15-06-2021, um recibo de indemnização no montante de €1.017,25 que, no entanto, a autora não aceitou assinar por conter uma declaração de quitação total dos danos causados pelo sinistro, o que foi transmitido à ré por carta registada, enviada em 28-06-2021.
11. A autora pagou pela reparação da viatura a quantia de € 1.517,25, acrescida de IVA.
12. A ré celebrou com “T..., Lda” um contrato de seguro facultativo do ramo R..., S.A. Exportação – ... com as condições gerais 033 e com a condição especial 001 – ..., titulado pela Apólice ...17.
13. A autora exerce a atividade de transporte de mercadorias, sendo o JU a única viatura da empresa.
14. Nos cinco meses que antecederam o dia 10-05-2021, a autora faturou, em média, pelo menos, € 5.405,38 por mês.
15. Entre 11-05-2021 e 24-06-2021, a ré teve de continuar a pagar todas as despesas inerentes à sua atividade, com exceção de combustível, pneus e manutenção corrente do JU.
16. O limite do capital coberto pelo seguro celebrado entre a ré e a sociedade “T..., Lda” é de € 100.000,00 e encontra-se sujeito à franquia de 10% do prejuízo indemnizável, com o mínimo de € 500,00 e máximo de €2.500,00.
17. Este contrato de seguro estipula, no artigo 6.º das respetivas condições gerais:
“Exclusões:
1 – O presente contrato nunca garante os danos:
(…)
t) Indiretos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e direta do ato ou omissões do segurado.”
18. E na cláusula 15.º, sob a epígrafe “Obrigações do Segurador”:
“O Segurador obriga-se:
d) Pagar a indemnização devida logo que concluídas as averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento da responsabilidade do Segurado e ao estabelecimento do acordo quanto ao valor a indemnizar. Se decorridos 30 dias, o Segurador, de posse de todos os elementos indispensáveis à reparação dos danos ou ao pagamento de indemnização acordada, não tiver realizado essa obrigação, por causa não justificada ou que lhe seja imputável, incorrerá em mora, vencendo a indemnização juros à taxa legal em vigor.”.
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Foram dados como não provados os seguintes factos:
“a) As despesas de combustível, pneus e manutenção corrente do JU representam 35% dos encargos da autora.”.
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IV. Do objecto do recurso.

Nas suas conclusões de recurso, começa a apelante por afirmar que a única questão a decidir é saber se os danos reclamados pela autora são passiveis de ser ressarcidos ao abrigo da cobertura facultativa de assistência em viagem e contratada no âmbito do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Contudo, logo a seguir, invoca que a autora pede a condenação da ré/apelante no pagamento dos danos causados pelo rebocador durante o transporte e a privação do veículo, ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...17 celebrado entre a recorrente a empresa rebocadora T..., Lda, e que requereu a final que a ré juntasse aos autos a apólice de seguro que celebrou com esta rebocadora com o nº RC ....
Aqui reside, como se diz na decisão apelada, o equívoco da ré/apelante.
É que, contrariamente ao por si invocado, a autora/apelada alicerça a sua pretensão indemnizatória na cobertura de assistência em viagem do contrato de seguro celebrado entre si e a ré/apelante, titulado pela apólice n.º ...73, e no alegado incumprimento culposo pela ré das respectivas obrigações contratuais (na sequência dos danos que ocorreram aquando do reboque/transporte da viatura JU até à oficina).
Tal é o que manifestamente resulta da leitura da petição inicial, sendo que o pedido de junção da apólice de seguro com o nº ...17, se destina apenas à prova da existência do mesmo (como resulta do requerido).
De facto, como se diz na decisão apelada: “Com efeito, a ré, por mera coincidência, também é a seguradora do veículo que efetuou o reboque e transporte do JU. Contudo essa relação contratual não alcança nenhum relevo para o caso, já que a sociedade “T..., Lda” não é demandada, nem o é a ré na sua qualidade de seguradora do veículo que efetuou o reboque/transporte, pelo que não respondem diretamente, isto é, perante a autora, pela reparação dos danos que foram produzidos no JU e aqueles que advieram da sua paralisação durante o período que decorreu entre o sinistro e a reparação.
Daí que, salvo o devido respeito, seja descabido convocar para a solução do presente litígio o contrato de seguro celebrado entre a ré e a sociedade “T..., Lda”, para, nomeadamente, invocar qualquer limitação que desse contrato pudesse resultar à indemnização de certos danos, nomeadamente a privação do uso.”.
Temos assim que, de facto, a questão a decidir é saber se os danos reclamados pela autora são passiveis de ser ressarcidos ao abrigo da cobertura facultativa de assistência em viagem e contratada no âmbito do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º ...73, e já não, como entende a apelante, ao abrigo do contrato de seguro celebrado entre a ré/apelante e a sociedade “T..., Lda”, titulado pela apólice nº ...17.
Mais entende a ré/apelante que por força do contrato de seguro automóvel celebrado com a autora/apelada, à cobertura facultativa de assistência em viagem é aplicável a condição especial de “assistência em viagem”, que apenas obriga a ré/apelante a suportar as despesas de transporte do veículo entre o local da avaria e a oficina por si escolhida, sendo que entende também que não se pode aplicar à cobertura de assistência em viagem as regras do contrato de transporte de mercadorias vertidas no DL 239/2003 de 04.10., pois que a seguradora não efectua o transporte, mas apenas tem de suportar as despesas de transporte.
Julgamos não lhe caber razão, e pelas razões já apontadas na decisão apelada, à qual aderimos.
Na verdade, também entendemos que, a assistência em viagem prestada pelo segurador ao segurado, associada a contratos de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, corresponde a um seguro de assistência, na definição prevista no artigo 173.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
No caso dos autos estamos perante um seguro de assistência, na sub-modalidade de assistência em viagem.
Resulta da cláusula 3.ª do capítulo da “Assistência em Viagem”, que a ré está obrigada ao reboque e transporte da viatura segurada em caso de avaria, sendo definido no clausulado o “reboque” como a “transferência do veículo seguro, sem carga, do local do acidente ou avaria para o local da reparação ou domicílio em Portugal ou, em alternativa, para um local de recolha a aguardar o transporte.” e o “transporte” como a “transferência do veículo seguro, sem carga, do local de recolha onde se encontra guardado na sequência do reboque, para o local de reparação ou domicílio em Portugal”.
Ora, seguindo muito de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10.02.2009 relatado pelo Des. Jorge Arcanjo, disponível em www.dgsi.pt, citado na decisão apelada, também entendemos que tendo a ré/apelante, no âmbito da execução deste serviço de reboque e transporte recorrido a terceiros, tal se reconduz a um contrato de prestação de serviço, mais especificamente, ao contrato de transporte de mercadorias, sendo este definido como aquele em que uma as partes (o carregador) encarrega outra (o transportador) que a tal se obriga a deslocar determinadas pessoas ou coisas de um local para outro, e de os entregar pontualmente ao destinatário, mediante retribuição.
Como afirma Francisco Costeira da Rocha, in “O Contrato de Transporte de Mercadorias”, Almedina, pág.55 e segs., o contrato de transporte não se esgota na deslocação de pessoas ou coisas, abrangendo todo o período que decorre desde o momento em que o transportador as recebe até à entrega no local convencionado, compreendendo, assim, as chamadas “operações de manuseamento de carga”, como o carregamento, descarga, armazenamento e a guarda.
Tendo a aqui ré/apelante recorrido a terceiros para realizar a prestação a que estava adstrita, tem directa aplicação o regime do art. 800º nº1 do Cód. Civil sobre a responsabilidade do devedor pelos “actos dos representantes legais ou auxiliares”.
Tal norma, inserida no âmbito da responsabilidade obrigacional, postula o princípio geral da responsabilidade objectiva do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor, sendo que a responsabilidade não pressupõe qualquer dependência ou subordinação do auxiliar em relação ao devedor, verificando-se também quando o auxiliar é independente e autónomo, já que a razão de ser é a mesma, pois o critério relevante, para o efeito, é de que se trate de pessoas de quem o devedor se serve para o cumprimento da obrigação (cf., por ex., Vaz Serra, “A responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes ou dos substitutos”, BMJ 72, pág.274 e 277, dando precisamente o exemplo do agente de transportes, a quem o devedor entrega a expedição de uma mercadoria).

Como afirma Carneiro da Frada in “Contrato e Deveres de Protecção”, pág.209 e segs, há situações em que a execução do contrato envolve a transmissão temporária do domínio de facto sobre a coisa, a implicar os deveres laterais de conduta, como os de custódia e protecção, visando preservar a integridade dos bens. Por isso, se o devedor tiver a obrigação de guardar e preservar a coisa também responderá pelo facto dos auxiliares a quem ela foi entregue, já que o “cumprimento” referido no art.800 nº1 do Cód. Civil, vai para além da mera execução da prestação a que o devedor se vinculou, abrangendo os deveres laterais de conduta que integram a relação obrigacional complexa, onde se incluem os deveres de protecção.
Ora, no caso dos autos, a partir do momento em que a ré/apelante assumiu a assistência, ficou com o domínio de facto sobre o veículo da autora, e sobre ela impendiam os deveres de guarda e de preservação da integridade do bem.

Tendo como assente que:
- a ré/apelante contratou a empresa “T..., Lda” para executar o reboque e transporte do JU desde o local em que avariou, na Zona Industrial ... até à oficina “RE...-Serviços Técnicos”, em ...;
- que, aí chegado, aquele pesado de mercadorias se mostrava batido do lado direito;
- que tais danos se produziram durante o transporte, ascendendo a sua reparação à quantia de € 1.517,25, mais IVA;
- que a ré/apelante não negou a responsabilidade daqueloutra empresa por si contratada pela produção dos identificados danos;
Podemos concluir que à luz das obrigações contratuais da ré/apelante para com a autora/apelada, no âmbito do contrato de seguro de assistência em viagem, é aquela responsável perante a autora pelo pagamento do custo da reparação e de outros prejuízos que tenham advindo do incumprimento nos termos gerais da responsabilidade civil contratual (cf. artigo 798.º do Código Civil).
Improcede, pois, o recurso.
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V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes desta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, confirmando em consequência a sentença apelada.
Custas do recurso pela ré/apelante.
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Guimarães, 17 de Novembro de 2022

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Anizabel Sousa Pereira
Jorge dos Santos
(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das citações/transcrições efectuadas que o sigam)