Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
197/18.3PBVCT.G1
Relator: HELENA LAMAS
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
INAMISSIBILIDADE DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INTRUÇÃO
DECISÃO INSTRUTÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
O despacho que admitiu o requerimento para abertura de instrução nos termos do artigo 287º do Código de Processo Penal forma caso julgado formal, pelo que a decisão instrutória não pode julgar inadmissível tal requerimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. A decisão

No Processo de Instrução nº 197/18.... do Juízo de instrução criminal ..., foi proferida decisão instrutória que:

- ao abrigo do artigo 308º, nº 3 do C.P.P., julgou legalmente inadmissível o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente na parte em que pugna pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pela prática de um crime de apropriação ilegítima do artigo 209º do C.P., por falta de alegação de factos do tipo;
- ao abrigo do artigo 308º, nº 1, parte final do C.P.P. (e subsidiariamente abrangendo o supra mencionado crime de apropriação ilegítima do artigo 209º do C.P.), não pronunciou o arguido AA pela prática dos factos e com a qualificação jurídica constantes do requerimento de abertura de instrução do assistente BB a fls. 207 a 214.

2. O recurso

2.1. Das conclusões do assistente

Inconformado com a decisão o assistente interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

A. Nos termos do disposto no art.º 287.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPP o tribunal a quo proferiu despacho (28/01/2021), tendo expressamente julgado tempestivo e legalmente admissível o requerimento apresentado e a instrução requerida pelo recorrente. (cfr. fls. 240)
B. Deste despacho não foi interposto qualquer recurso ou impugnada a respetiva validade ou eficácia, tendo o referido despacho se considerado legalmente transitado em julgado.
C. Acontece que, a decisão ora em crise violou o caso julgado formado pela decisão de 28/01/2021,
D. porquanto, depois de receber o requerimento de abertura de instrução, julgá-lo legalmente admissível e declarar aberta a instrução, o juiz de instrução está impedido de, posteriormente, em sede de decisão instrutória, reverter a sua anterior decisão e declarar a inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução já julgado legalmente admissível por decisão anterior, transitada em julgado.
E. A decisão recorrida violou o disposto no n.º 1, do art.º 620.º, e os n.ºs 1 e 2, do art.º 625.º, do CPC, aplicáveis ex vi art.º 4.º do CPP.
F. Recordemos o decidido no acórdão proferido pela Relação de Coimbra, no processo 4725/17.3T9CBR-A.C1.
G. Além da jurisprudência, também a doutrina que prescreve que “…qualquer decisão, mesmo que não esteja em causa uma decisão de mérito, contém um efeito de vinculação processual” (…) “os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional – querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento).”
H. Igualmente a lei está em linha, como decorre dos n.ºs 1 e 3, do art.º 613.º do CPC (aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP, passando a sentença ou o despacho a ter força de caso julgado dentro do processo e fora dele (art.º 619º a 621º do CPC), relembrando que o art.º 620º do CPC dispõe que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, excluindo-se os despachos que não admitem recurso: os de mero expediente e os proferidos no uso legal de um poder discricionário.
I. Pelo exposto, deverão V. Exas. revogar a decisão instrutória recorrida, na parte em que decide “Julgar legalmente inadmissível o requerimento de instrução formulado pelo recorrente na parte em que pugna pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pela prática de um crime de apropriação ilegítima do artigo 209.º, do código penal, por falta de alegação de factos do tipo legal”, proferindo o tribunal nos termos dos art.ºs 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, decisão instrutória que, apreciando os indícios reunidos contra o arguido, contra quem foi apresentado requerimento de abertura de instrução, imputando-lhe um dos crimes de crime de recetação, p. e p. pelos art.ºs 231.º e 232.º do CP, crime de furto p. e p. no art.º 203.º do CP, o pronuncie.
J. Decidiu também o Tribunal a quo: “ julgar legalmente inadmissível o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente na parte em que pugna pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pela prática de um crime de apropriação ilegítima do artigo 209.º, do código penal, por falta de alegação de fatos do tipo legal.”
K. Analisando o art.º 209.º do CP, conclui-se que pune-se a apropriação ilegítima das coisas que entrem na posse e detenção de alguém que não seja o seu proprietário por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independentemente da sua vontade e ainda proveniente de achamento, perdida ou esquecida pelo seu dono, apropriando-se o agente de coisa alheia quando a decide colocar sob o seu domínio, com o intuito de tirar dela vantagens patrimoniais, para si ou para terceiro, ou quando a vende, troca, a oferece ou dá em garantia, sem revelar a sua proveniência ilegítima.
L. O art.º 209.º do CP prevê a punição da posse ilegítima, ou seja, por o agente manter a detenção ilegítima por qualquer maneira independentemente da sua vontade, bastando-se com a posse e atos de posse que efetivamente tenham sido praticados, como foi o caso de o arguido ter praticado verdadeiros atos de posse sobre o robot, como se atuasse como seu proprietário. E exemplo máximo do exercício dessa posse foi o arguido ter levado o robot para reparação.
M. Com efeito, apesar de o tribunal a quo defender a falta de imputação de todos os factos necessários e suficientes integrantes do tipo legal previsto no art.º 209.º do CP, o recorrente discorda, entendendo que alegou os factos de que dispunha, que configuram um conjunto de factos, que face ao tipo legal em causa, são suficientes para pronunciar o arguido, bastando para o efeito, a leitura, designadamente dos art.ºs 27.º a 33.º, 88.º a 102.º e 105.º do requerimento de abertura de instrução.
N. In casu, foram factos apurados, designadamente, que no dia 06/05/2020, pelas 19:20H as autoridades policiais deslocaram-se à loja de assistência a eletrodomésticos e afins de nome singular “CC”, mais conhecida por E... com NIF ..., sita na Rua ..., ..., ... ... e apreenderam o robot corta relva, tendo identificado o detentor do robot, o arguido AA, residente em ..., com o contacto ...94, pessoa que detinha o robot e o deixou para reparar no dia 30/04/2020,
O. Dos tipos legais alegados no requerimento de abertura de instrução, existe, pelo menos, a clara evidência da prática de um crime de apropriação ilegítima, através de detenção ilícita pelo arguido, contando aqui que tal posse é independentemente da sua vontade, porque tem cabimento legal. E porque esse tipo legal permite que independentemente de se apurar como e por que meio o arguido entrou na posse do robot, verifica-se a sua posse ilegítima.
P. Aliás, para a verificação do tipo legal de apropriação ilegítima, indagar se o arguido sabia que o robot que detinha era pertença de outrem e que ao detê-lo o fazia sem conhecimento, consentimento e vontade do seu dono, é ignorar a realidade da vida em sociedade e as regras de experiência comum, fazendo tábua rasa e invalidando os juízos assentes na observação do mundo exterior e da conduta humana, que em conjugação com a investigação já levada a cabo pelo tribunal, permite fundar presunções naturais, conduzindo à extração de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes com a realidade e, por isso, verosímil
Q. Quer isto dizer que, ainda que não se possa apurar como o robot chegou à posse do arguido, certo é que o mesmo o detinha, não podendo restar dúvidas de que o mesmo se encontrava na posse de material que sabia que não lhe pertencia e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
R. A este propósito não olvidemos que o Tribunal notificou o arguido para vir aos autos juntar fatura e/ou comprovativo de aquisição do robot que integra o objecto nestes autos (cfr. despacho Sr. Juiz de Instrução de 11/02/2022), tendo este, perante esta oportunidade de vir esclarecer o Tribunal a quo dos motivos que justificavam estar na posse do robot, o arguido nada disse, tendo o Tribunal, perante a falta de resposta do arguido, registado a mesma. (cfr. despacho Sr. Juiz de Instrução de 07/03/2022).
S. E, ainda que o arguido tenha optado por manter o silêncio, conforme consta de fls 135 verso, e este não o possa prejudicar, neste específico enquadramento factual, o tribunal deverá interpretar esse silêncio e não o ignorar, sendo que a este propósito se remete para o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. n.º 936/08JAPRT, de 06/10/2010.
T. Ora, o arguido remeteu-se ao silêncio, optando por não prestar declarações, e manteve-o não respondendo ao tribunal quando lhe foi pedido fatura e/ou comprovativo de aquisição do robot. Mas se o silêncio não pode desfavorecer o arguido, ainda que indiciariamente, dele se podem retirar ilações, conforme ditou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. n.º 08P694, datado de 12/03/2018 1, bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 430/15.3PAPNI.C1, de 17/05/2017.
U. Por tudo alegado, entende o recorrente que existiam indícios suficientes para o tribunal a quo pronunciar o arguido pela prática de um crime de apropriação ilegítima p e p pelo art.º 209.º do CP, entendendo-se por indícios probatórios, os que resultarem de uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança (cfr.arts. 283.º, n.ºs 1 e 2 e 308.º, n.ºs 1 e 2 do CPP).
V. São indícios suficientes os elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução, os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.
W. Daí que, perante tais entendimentos e razões, e não cabendo ao juiz de instrução decidir, definitivamente, pela condenação ou absolvição do arguido, esses poderes incumbem ao juiz que realiza o julgamento o recorrente entende que alegou factos do tipo legal suficientes para o arguido ser pronunciado pela prática de um crime de apropriação ilegítima do p e p pelo art.º 209.º do CP.
X. Além de que o recorrente não pode concordar com a douta decisão proferida na parte em que decide que o requerimento de abertura de instrução não observou os requisitos legais.
Y. O que decorre das alíneas b) e c), do n.º 3, do art.º 283.º do CPP foi cumprido pelo recorrente, tendo narrado os factos que integram os crimes em causa e em estrito cumprimento do princípio do acusatório, delimitando inequivocamente o objecto do processo e em cumprimento da lei. O que ocorreu.
Z. Ainda que o requerimento de abertura da instrução, não obstante não estar sujeito a uma forma especial, o que resulta claro da primeira parte do n.º 2, do artigo 287.º do CPP, deve obedecer a vários requisitos de conteúdo que vem enunciados na dita norma, a saber: (i) a enunciação “em súmula” das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação; (ii) a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende ver levados a cabo, bem como dos meios de prova que não hajam sido considerados no inquérito e ainda dos factos que, através de uns e outros, o requerente espera provar, o que foi feito pelo recorrente.
AA. Deste entendimento partilha a mais recente jurisprudência, conforme se pode apurar pelo Acórdão da Relação de Guimarães, de 11/07/2017, Proc. 649/16.0T9BRG.G1,
BB. Todavia, e como um claro sinal de que esta temática muito tem justificado a via recursória, também no Acórdão da Relação de Guimarães, de 09/01/2017, Proc. 207/14.3T9VNF.G1, se assume uma posição coincidente com a do Recorrente e por sua vez da própria jurisprudência relevante.
CC. Da leitura do sumário do suprarreferido acórdão, é clarificadora a definição dos elementos do dolo, e da sua importância para a abertura da instrução e consequente decisão instrutória.
DD. Contudo, esta alegação do dolo não se exige que seja expressa, bastando-se para o prosseguimento da instrução a sua alegação factual no respetivo requerimento de abertura de instrução como decorre do acórdão supra descrito
EE. Não nos parece, salvo o devido respeito por opinião contrária, que a douta decisão de que se recorre, alegando deficiências na elaboração do requerimento de abertura de instrução pelo recorrente, possa ter provimento ou possa de algum modo justificar a inadmissibilidade da instrução nos termos requeridos.
FF. A inadmissibilidade legal da instrução, como decorre do n.º 3, do art.º 287.º, do CPP, tem por escopo não deficiências meramente formais, mas sim deficiências que invalidem os fins da instrução, isto é, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 1, do art.º 286.º, do CPP.
GG. Neste mesmo sentido prescreve o Acórdão da Relação de Évora, de 24/10/2017, Proc. 1383/16.6T9BJA.E1, sobre o n.º 2 do art.º 287º do CPP.
HH. Assim e ao contrário do constante no despacho recorrido, o recorrente verteu no requerimento de abertura de instrução a narração dos factos que imputa ao arguido, fundamentadores da aplicação de uma sanção penal, indicando as disposições legais aplicáveis, inexistindo fundamento para a sua rejeição por inadmissibilidade legal da instrução.
II. Com efeito, ainda que se considere a descrição menos resumida do requerimento de abertura de instrução, a mesma é percetível e suficiente, não podendo conduzir ao mesmo desfecho, de por exemplo, da ausência de narração de factos que encerram os elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico em questão.
JJ. E, ainda que se considere que o requerimento de abertura de instrução do recorrente não tem estrutura acusatória, o que por mera hipótese académica se coloca,
KK. o RAI não está sujeito a uma forma especial, o que resulta claro da primeira parte do n.º 2, do art.º 287.º o CPP, como adiante se explanará. (Vide Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 5/17.2GCSEI.C1 de 17-01-2018.)
LL. E, analisado o n.º 2, do art.º 287.º do CPP, a questão fica explicada, pois na remissão que esta norma faz para o n.º 3, do art.º 283.º, também do CPP, apenas refere expressamente a aplicação das alíneas b) e c).
MM. No caso vertente, o requerimento de abertura de instrução encontrava-se devidamente elaborado em termos semelhantes ao de uma acusação, mesmo não sendo tal exigível pela lei. – art.º 287º nº 2 do CPP, (Vide Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 5/17.2GCSEI.C1 de 17-01-2018.)
NN. Decorre da decisão instrutória alguns pontos de factualidade apurada, sendo que decorre daquela que o recorrente BB era o proprietário do robot e que AA, o arguido, entrou na posse do robot Viking, pelo menos, desde 30-04-2020.
OO. Ora, o crime de apropriação ilegítima, p. e p. pelo art.º 209.º do CP refere expressamente que “1. Quem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”
PP. O recorrente nunca deu consentimento ao arguido para entrar na posse do robot.
QQ. Tais factos acima descritos e conjugados enquadram-se no tipo legal previsto no referido art.º 209.º do CP, impondo-se, também nesta parte, o reexame da causa e a revogação da decisão recorrida quanto ao crime de apropriação ilegítima do art.º 209.º do CP.
RR. O tribunal a quo julgou inadmissível o requerimento de abertura de instrução na parte em que pugnava pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pela prática de um crime de apropriação ilegítima do artigo 209.º, do Código Penal, por falta de alegação de factos do tipo legal.
SS. Porém, também decidiu “Ao abrigo do art.º 308.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal (e subsidiariamente abrangendo o supra mencionado crime de apropriação ilegítima do artigo 209.º do Código Penal)”: NÃO PRONUNCIAR O arguido …”
TT. Ora, não pode, por um lado o tribunal a quo decidir pela inadmissibilidade legal da instrução relativo à prática do crime de apropriação ilegítima p. e p. pelo art.º 209.º do Código do Penal por alegada falta de imputação de factos e ausência de estrutura acusatória.
UU. E, por outro, decidir pela não pronúncia.
VV. É que, decidindo-se pela inadmissibilidade legal da instrução relativo ao crime de apropriação ilegítima não pode, na mesma decisão proferir uma outra decisão que é a de não pronunciar.
WW. É que não pode não pronunciar algo que já foi alvo de uma decisão de inadmissibilidade legal, que impede a apreciação de algo que foi considerado inadmissível.
XX. Logo, nesta parte, a decisão relativa ao crime de apropriação ilegítima p. e p. pelo art.º 209.º do Código do Penal proferida padece de vicio, porquanto ou é inadmissível, ou é não pronunciado.
YY. Uma instrução que é legalmente inadmissível, não pode ser apreciada, como foi.
ZZ. Nesta parte, também o tribunal andou mal, devendo revogar-se a decisão.
AAA. Quanto à não pronuncia “Pela prática dos factos e com a qualificação jurídica constantes do requerimento de abertura de instrução do assistente BB a fls 207 a 214.”
BBB. Sempre se dirá, que não é verosímil que um agente que se encontre na posse de uma coisa, sem o conhecimento e consentimento do seu proprietário, coisa essa que foi subtraída nas circunstâncias de tempo, espaço e lugar conhecidos pelo tribunal e que foi encontrada nas circunstâncias de tempo, espaço e lugar também conhecidas pelo tribunal, saia impune. Se assim for, o crime compensa.
CCC. O arguido teve oportunidade processual para excluir o seu comprometimento nestes autos, podendo ter acrescentado alguma explicação para enfraquecer essa presunção, porém decidiu-se pelo silêncio que não o podendo prejudicar, mas também não pode deixar de ser apreciado pelo tribunal, como já se referiu.
DDD. No pedido de abertura de instrução, o recorrente pediu que fosse ouvida em sede de instrução a testemunha DD, uma vez que esta testemunha, tendo sido a pessoa a quem o arguido terá entregue o robot para reparar e quem constatou a falta de código, teria que esclarecer uma série de questões que não foram sequer afloradas em sede de inquérito.
EEE. Porém, o Juiz de Instrução indeferiu a inquirição de tal testemunha e com essa sua decisão impediu que mais fatos pudessem ser carreados ao processo com vista ao apuramento da verdade material, tornando-se mais imprescindível que os autos sigam para julgamento para que se possa vir a produzir essa prova no sentido de o tribunal melhor perceber a atuação do arguido.
FFF. Nesse sentido também por isso, deverá o tribunal ad quem decidir pela pronúncia do arguido, seguindo os autos para audiência de julgamento onde, ainda que este venha a manter o silêncio, ouvir-se-á a referida testemunha, acrescentando fatos importantes à causa.

Termos em que,
Requer-se a V. Exa. se digne admitir o presente recurso, devendo ao mesmo ser concedido provimento, revogando-se o Douto Despacho de não admissibilidade legal da instrução substituindo-o por outro que deverá admitir a abertura da instrução, pronunciando o arguido.
Caso assim não se entenda, deveráao presente recurso ser concedido provimento, revogando-se o Douto Despacho de não pronúncia,substituindo-o por outro que pronuncie o arguido pelos crimes requeridos pelo assistente, ora recorrido, no RAI.

2.2. Da resposta do Ministério Público

O Ministério Público, em primeira instância, respondeu, defendendo a manutenção do despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução, pois o mesmo não é bastante para abrir a instrução nos presentes autos, devendo considerar-se como legalmente inadmissível a instrução requerida, e não se estando perante caso que permita haver lugar a convite para aperfeiçoamento.

2.3. Respondeu o arguido, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):


No recurso, o recorrente deve apresentar a sua alegação, onde expõe as razoes de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada e concluir indicando, de forma resumida através de proposições sintéticas, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Não o fazendo, não cumpre os ónus a que está vinculado (art.º 412º, n.º 1 do CPP), e o recurso deve ser rejeitado por não cumprir os requisitos legais.

O despacho que se limita a admitir liminarmente o requerimento de abertura da instrução é meramente tabelar, não formulando caso julgado formal pois não decide definitivamente questões relativas à verificação dos pressupostos processuais, nulidades e/ou exceções, assegurando apenas o seguimento do processo.

Como na decisão instrutória o juiz tem de decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer (art.º 308.º, n.º 3 do CPP) que são também necessárias para a decisão sobre se o processo há-de prosseguir ou não para a fase seguinte, então, pelo menos quanto àquelas questões (nulidades, questões prévias ou incidentais), o Tribunal não se encontra vinculado pelo despacho liminar de abertura da instrução e este não constitui, portanto, caso julgado formal.

O facto de no despacho inicial sobre o pedido de abertura de instrução se afirmar que não há causas de rejeição do respectivo requerimento não é obstáculo a que, no final da instrução, se profira decisão a julgar improcedente esse requerimento, com o fundamento de que não descreve os factos integradores do crime pelo qual se pretende a pronúncia do arguido.

Tendo a instrução sido requerida após a prolação de despacho de arquivamento do inquérito, o requerimento de abertura de instrução do assistente tem de ter estrutura acusatória, tanto mais que, como resulta inequivocamente dos art.ºs 303.° e 309.° do CPP, o juiz de instrução criminal está limitado, nos seus poderes de cognição, pelo requerimento do assistente para que se abra a instrução, constituindo os factos apresentados nesse requerimento a sua base de trabalho, sendo eles que fixam o objeto do processo dentro do qual se moverá a atividade do juiz de instrução e sendo também a base factual dentro da qual se moverá o contraditório consagrado no art.º 32.°, n.°s l e 5 da CRP.

Não sendo conformado o requerimento de abertura de instrução como uma verdadeira acusação por dele não constar a descrição da conduta típica (com os seus elementos objetivos e subjetivos) ou a indicação das disposições legais violadas ou a falta ou indicação do arguido - a fase da instrução torna-se legalmente inadmissível, nos termos do n.° 3 do art.º 287.° do CPP, porque não há nem não pode haver um processo sem objeto ou sem arguido.

Não cumprindo o requerimento de abertura da instrução o disposto nos art.ºs 283.º, nº 3 e 287.º, n.º 2 do CPP a acusação (no caso relativa ao crime de apropriação ilegítima) é nula, nulidade esta que é insanável e deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento (art.º 119.º do CPP). E mais: a decisão instrutória que aprecie o mérito dos autos quanto a esse crime é igualmente nula pois se baseia numa invalidade anterior e constitui a prática de um ato inútil, expressamente proibido na lei (art.º 130.º do CPP, aplicável ex vi art.º 4.º do CPP).

Se o assistente, no requerimento de abertura de instrução, não procede à imputação ao arguido de factos do tipo legal (no caso concreto do crime de apropriação ilegítima), não pode o juiz de instrução substituir-se àquele requerente da abertura de instrução nessa tarefa, não competindo ao tribunal compulsar os autos e os elementos que dele constam para se substituir ao assistente e descrever e imputar os factos ao arguido, pois então estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais em vigor, sob pena de nulidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido.

Face à omissão de imputação dos factos necessários ao tipo legal, o Tribunal tem de rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade do mesmo (falta de objeto criminal suficiente imputado ao arguido), não havendo lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento.
10ª
Quando, como sucede no caso dos autos, falta a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos objectivos e subjectivos do tipo, designadamente quanto ao crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, p. e p. pelo art.º 20.9.º do CP, o Juiz de Instrução não pode devolver os autos ao Ministério Público ou ao acusador particular para que a mesma seja completada, em conformidade, aliás, com a jurisprudência já fixada no AUJ do STJ n° 7/2005, de 12/05/2005, in DR, I de 4-11-2005), nem pode aditar tais factos pois que o despacho que viesse a pronunciar o arguido por factos diversos dos descritos no requerimento de abertura da instrução seria nulo (art.° 309.°, n.° 1, do CPP).
11ª
O assistente, no requerimento de abertura da instrução, veio requer a pronúncia do arguido pela prática do crime de receptação, p. e p. pelos art.ºs 231.º e 232.º; ou, se assim se não entender, do crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º ou, se assim se não entender, do crime de apropriação ilegítima, p. e p. pelo art.º 209.º, todos do Cód. Penal. Ora, jamais pode ficar ao arbítrio do tribunal a escolha de uma dessas opções.
12ª
A instrução não visa a substituição do MP na função investigatória e não pode ser um suplemento de investigação nem como ela se pode pretender um novo inquérito. A finalidade essencial da instrução, tal como indica o n.° 1 do art.º 286.° do CPP é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
13ª
A fase da instrução foi estruturada com uma dupla finalidade: obter a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e a fiscalização judicial da decisão processual do Ministério Público de acusar ou arquivar o inquérito, por outra.
14ª
O juiz de instrução só “pronuncia o arguido pelos factos respectivos” se, “até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” (art.º 308.º, n.º 1 do CPP), considerando-se “suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança” (art.º O nº 2 do art.º 283.º, n.º 2 do CPP).
15ª
A avaliação da suficiência de indícios para acusar ou pronunciar deverá ser levada a efeito sob duas perspectivas autónomas: uma primeira sobre a imputação dos factos ao arguido, no sentido de apurar se o mesmo pode ser por eles responsabilizado juridicopenalmente; uma segunda, sobre a consistência do acervo probatório recolhido e da sua reprodutibilidade em audiência de julgamento, na ideia de que apenas a prova produzida e/ou susceptível de ser valorada na fase de julgamento pode fundar uma decisão de condenação». E, se no momento da acusação ou da pronúncia, a prova indiciária não atinge a força necessária para formar a convicção razoável sobre a futura condenação, não deverá o processo prosseguir pois por certo tal convicção não será alcançada nas fases posteriores conhecida que é a tendência para a atenuação dos indícios existentes.
16ª
i) se apurou que o assistente «é proprietário de um robot – corte de relva, de cor ..., marca..., modelo ..., imow 422.0 nº de série/Imei ...23», que «no período entre as 10:00H do dia 09-02-2018 e as 12:00H do dia 18-02-2018, pessoa não concretamente identificada, através de escalamento, introduziu-se no interior da propriedade privada do referido assistente, sita na Estrada ..., ..., em ..., levando consigo e fazendo seu o robot supra mencionado» e que «de forma não concertamente apurada, em data subsequente, também não concretamente apurada, mas remontando, pelo menos, a 30-04-2020, o arguido AA entrou na posse do dito robot»;
ii) não se apurou a demais factualidade imputada ao arguido pois ninguém presenciou a autoria do furto, a ocorrência e termos da recetação ou apropriação de coisa achada e a própria perícia realizada ao nível da comparação dos vestígios lofoscópicos recolhidos no local com os do arguido deu negativa, não se tendo verificado qualquer correspondência e ficou sem se saber o que se passou ao nível dos termos em que o arguido entrou na posse do dito robot e, inerentemente, de um qualquer dolo (ou negligência, na parte aplicável)»; tais elementos não permitem concluir nada, para além da simples posse do robot, pelo arguido, 2 anos, 2 meses e cerca de 10 dias depois de o mesmo ter sido furtado e da prova produzida não resulta se essa posse foi legítima ou ilegítima e os termos dessa ilegitimidade (furto, receptação ou apropriação ilegítima de coisa achada).
17ª
Em Portugal não existe presunção de culpa do arguido nem este tem o ónus de provar a sua inocência. Pelo contrário. O art.º 32.º n.º 2 da CRP consagra, expressamente, a presunção de inocência ou de não culpabilidade do arguido e este princípio impõe que, em caso de dúvida, a questão seja sempre decidida a favor do arguido (é o princípio geral do processo penal “in dúbio pro reo”).
18ª
Em Portugal o silêncio do arguido não é tido como um elemento de prova sujeito ao princípio da livre apreciação e muito menos como um indício ou presunção de culpa deste. Essa possibilidade esvaziaria de sentido o direito à não auto-incriminação, pois equivaleria a estabelecer a obrigatoriedade do arguido prestar declarações — visto que, não o fazendo, se extrairia uma consequência no sentido da admissão da culpabilidade. O direito ao silêncio, reconhecido no art.º 61.º, n.º 1, alínea d) do CPP, como direito que é não pode prejudicar o arguido, não podendo dele ser retiradas quaisquer consequências probatórias da matéria da acusação.
19ª
Não se vislumbrando, in casu, indícios suficientes que permitam imputar ao arguido a prática do crime de furto, ou do crime de receptação ou do crime de apropriação ilegítima, atenta a inexistência de prova da autoria objetiva e subjetiva de qualquer um daqueles crimes imputados, em alternativa, ao arguido, muito bem andou o M. Juiz a quo em não o pronunciar, devendo a decisão instrutória manter-se talqual.
20ª
A D. Decisão Instrutória recorrida não merece qualquer censura.

2.4. A Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de o recurso ser rejeitado liminarmente, pelo facto de o recorrente ter incumprido o disposto no parte final do nº 1 do artigo 412º do C.P.P., pois não formula um pedido concreto e, não sendo a situação em apreço subsumível ao disposto nos artigos 414º, nº 2 e 417º, nº 3 do C.P.P., não há lugar a convite a aperfeiçoamento.

2.5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.

II. OBJECTO DO RECURSO

De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso que, no caso em apreço, não se suscitam.
Assim, examinadas as conclusões do recurso, são duas asquestões que importa conhecer :
- violação do caso julgado formal, pois o requerimento de abertura de instrução já havia sido admitido;
- existência de indícios da prática, pelo arguido, do crime de apropriação ilegítima p. e p. pelo artigo 209º do C.P..

III. QUESTÃO PRÉVIA

Quer o arguido, quer o Ministério Público nesta instância superior, entendem que o recurso deve ser rejeitado por não cumprir os requisitos legais previstos no artigo 412º, nº 1 do C.P.P., acrescentando o Ministério Público que o recorrente não formula um pedido concreto, o que juridicamente equivale a falta de pedido.
Dispõe assim o aludido artigo 412º, nº 1 do C.P.P. : «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.».

Por sua vez, o artigo 417º, nº 6 do mesmo código estipula :

Após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que:

a) Alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso;
b) O recurso dever ser rejeitado;
c) Existir causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo do recurso; ou
d) A questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado.
Mais, o artigo 420º do C.P.P., sob a epígrafe «Rejeição do recurso», reza assim :

1 - O recurso é rejeitado sempre que:

a) For manifesta a sua improcedência;
b) Se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º; ou
c) O recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afectar a totalidade do recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 417.º

Analisando a motivação do recurso interposto pelo assistente, mormente as respectivas conclusões, não vemos que tenha sido violado o disposto no nº 1 do artigo 412º acima transcrito, nomeadamente que não se descortine qual o seu «pedido».
Pelo contrário, o recorrente termina, requerendo que se revogue «o Douto Despacho de não admissibilidade legal da instrução, substituindo-o por outro que deverá admitir a abertura da instrução, pronunciando o arguido.
Caso assim não se entenda, deverá ao presente recurso ser concedido provimento, revogando-se o Douto Despacho de não pronúncia, substituindo-o por outro que pronuncie o arguido pelos crimes requeridos pelo assistente, ora recorrido, no RAI».
Deste modo, sem necessidade de mais explicações, não há lugar à rejeição do presente recurso.

IV. FUNDAMENTAÇÃO

Definidas as questões a tratar, importa considerar o que resulta da análise dos autos com interesse para a respectiva decisão:
a – Em 24/6/2021, o Ministério Público, concluindo inexistirem indícios suficientes da prática dos crimes de furto qualificado e de receptação imputados ao arguido EE, e não havendo qualquer outra diligência que se revestisse de utilidade para a descoberta da verdade, determinou o arquivamento do inquérito, nos termos do artigo 277º, nº 2 do C.P.P..
b –Em 13/9/2021, BB, requerendo a sua constituição como assistente, requereu a abertura da instrução da seguinte forma, na parte que aqui interessa :

«A. Do inquérito
7. Da investigação levada a cabo, nomeadamente das provas testemunhal e documental carreadas para os autos, quer quanto ao crime de furto qualificado p e p pelos art.ºs 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, al. e) do CP, quer quanto ao crime de receptação p. e p. pelos art.ºs 231.º e 232.º do CP, o Ministério Público entendeu que resultaram insuficientes os elementos probatórios para imputar ao arguido a sua autoria.
8. Entendeu o Ministério Público que as diligências investigatórias realizadas não foram bastantes para, com segurança jurídica, imputar ao arguido a prática dos crimes em causa.
9. Porém, o assistente não concorda com a apreciação que o Ministério Público fez da prova que se produziu.

Desde logo,
10. resulta do depoimento da testemunha DD, a fls 83 verso, que este conhece o arguido melhor identificado nos autos e que no final do mês de abril de 2021 lhe deixou, no estabelecimento comercial «Casa ...» sito na ..., ..., o robot ... (...23|1201|) corta relva, doravante robot, para reparar na oficina do pai daquela testemunha.
11. Ficou claro que foi o arguido quem, naquela data, levou o objeto do furto em discussão nos autos até à referida testemunha para reparação.
12. Acrescenta a testemunha que faz alguns arranjos na oficina, propriedade do pai, onde o robot foi apreendido pelas autoridades policiais.
13. Mais refere a identificada testemunha que o arguido se dedicava à compra e venda de bens em leilões.
14. Mais declarou a testemunha DD que, quando pediu à marca ... o código exigido pelo robot para reparar, o arguido não o detinha, pedindo à testemunha para o solicitar à marca.
15. O fato do arguido não deter o código exigido é, per si, revelador de que o meio pelo qual o arguido terá obtido o objeto do furto não foi legítimo.
16. O depoimento desta testemunha é por si só indiciador de atividade criminosa por banda do arguido, todavia os órgãos de policia criminal deveriam ter ido mais além, pois ficaram por esclarecer factos importantes para este inquérito.
17. Designadamente, porque não foi perguntado à testemunha de que circunstâncias conhece o arguido? Com que frequência o arguido deixa equipamento para reparar? Que tipo de aparelhos? Se o arguido atesta a propriedade desses equipamentos quando os deixa na loja para reparar? Se o arguido atestou a propriedade do robot corta relvas? Se é normal quando contacta directamente os fabricantes se estes detêm o registo atualizado do proprietário? O que denota o facto de não ter o código exigido e que é facultado ao legítimo proprietário aquando da compra do equipamento?
18. Além disso, sempre diremos que o facto do arguido se dedicar à compra e venda em leilões e de não deter o código de acesso do robot, que deveria ser detido pelo proprietário do robot são circunstâncias a ter em conta para efeitos de incriminação.
19. Isto porque, é do conhecimento geral que o comércio da compra e venda em leilões é um meio propicio à pratica do crime.
20. Por outro lado, o facto do arguido não possuir o código do robot deveria ter suscitado na testemunha alguma suspeita, atenta a sua qualidade de técnico, habituado a reparar/lidar com equipamento desta natureza.
21. A testemunha remata o seu depoimento informando que em conversa com o arguido, este referiu-lhe que iria telefonar para a GNR para explicar toda a situação.
22. Quer isto dizer que, já após a apreensão do equipamento, testemunha e arguido conversaram acerca dos factos, dando-lhes relevância.
23. E, contrariamente ao alegado pela testemunha, o arguido não só não contactou a GNR para explicar a situação como, quando teve oportunidade processual para esclarecer a situação, remeteu-se ao silêncio, optando por não prestar declarações, conforme consta de fls 135 verso.
24. Ora, ainda que o silêncio não o possa desfavorecer, certo é que deste silêncio, ainda que indiciariamente, se podem retirar ilações.
25. Conforme ditou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. n.º 08P694, datado de 12/03/2018 1 e que se transcreve: “O direito ao silêncio não pode ser valorado contra o arguido. Porém, a proibição de valoração incide sobre o silêncio que o arguido adoptou como estratégia processual, não podendo repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal, designadamente a que venha a precisar e demonstrar a responsabilidade criminal do arguido, revelando a falência daquela estratégia.”
26. Quanto a este tema também decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 430/15.3PAPNI.C1, de 17/05/2017 2: “Um arguido que mantém o silêncio em audiência nãopode ser prejudicado, mas, também é certo que prescinde de dar a sua visão pessoal dos factos e de esclarecer pontos de que tem um conhecimento pessoal. Assim, não pode, depois, reclamar que foi prejudicado pelo seu silêncio.”
Posto isto,
27. não existam dúvidas que o arguido foi detentor ilegítimo do robot;
28. o arguido levou e depositou o robot para reparação numa loja conhecida por si;
29. o arguido apoderou-se do robot e exerceu sobre o mesmo atos, como se se tratasse do seu proprietário.
30. O arguido podia ter conseguido identificar o proprietário, bastando para tal acionar o fabricante que, como é do conhecimento público, detém esse registo.
31. Mas optou por não o fazer.
32. Preferiu manter na sua posse o robot, tornando-se claro que actuou de forma negligente, consciente de que o objecto que detinha não lhe pertencia.
33. Ou teria o arguido consciência de que o robot havia sido adquirido de forma ilegítima contra património alheio.
Isto porque,
34. Ao contrário do que consta do despacho de arquivamento, ainda que o tribunal entenda que não estão preenchidos os pressupostos do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, l. e) do CP, o arguido praticou o crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231º do CP.
35. Estatui o artigo 231º do CP, sob a epígrafe Receptação 1 - Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa ou animal que foi obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. 2 - Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa ou animal que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias.
36. Para o preenchimento deste tipo criminal, exige-se que um agente actue sem a necessária cautela, adquirindo ou recebendo a(s) coisa(s), quando previa ou podia prever que a sua origem era criminalmente ilícita.
37. Em termos subjectivos, exige-se apenas "um dolo eventual, mesmo uma negligência grosseira, consubstanciado na suspeita, que razoavelmente não pode deixar de pôr-se ao agente, quanto à legítima proveniência da coisa, quer pela qualidade da coisa, quer ela condição de quem a oferece, quer, ainda, pelo desconforme do preço proposto ou solicitado" (Carlos Alegre, Crimes contra o Património, Cadernos da Revista do Ministério Público, nº 3, 1988, pag. 151).
38. Vários são os modos de receptação, ou as condutas típicas que determinam a prática do crime: dissimular, receber em penhor, adquirir por qualquer título, deter, conservar, transmitir ou contribuir para a transmissão, ou assegurar por qualquer forma, a posse para si ou para terceiros de coisa obtida mediante facto ilícito contra o património.
39. O tipo de ilícito previsto no artigo 231º do CP consiste “em o agente estabelecer através das várias modalidades de acção descritas, uma relação patrimonial com a coisa obtida por outrem mediante um facto criminalmente ilícito contra o património, sendo a conduta guiada pela intenção de alcançar, para si ou para terceiro, uma vantagem patrimonial. O conteúdo de ilícito reside, pois, na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica (...), aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior (facto referencial) ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação com a coisa (...)” - Cfr. Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense, Tomo II, pags. 475 e 476.
40. O tipo legal exige ainda, como elemento subjectivo, a intenção de obter uma vantagem patrimonial.
41. A nível do tipo subjectivo, trata-se de um crime doloso, sendo admissível qualquer das modalidades de dolo previstas no art.º 14º do Código Penal.
42. É, portanto, necessário, da parte do agente, o conhecimento ou representação de todos os elementos do tipo já referidos (elemento intelectual) e a vontade de realização ou aceitação do resultado tipificado (elemento volitivo).
43. Não é, todavia, necessário, para que a consumação do crime de receptação venha a ocorrer, que se verifique efectivamente essa vantagem patrimonial – basta, na expressão da lei, a intenção de obter vantagem patrimonial.
44. Ora, no caso em apreço, estão verificados os elementos objectivos e subjectivos de tal crime de receptação.
45. Outra conclusão fáctica ou deliberação seria ilógica e irracional, violadora das regras da lógica e da experiência que o art.º 127.º do CPP impõe, que não fosse que o arguido cometeu o crime de receptação.
46. E fê-lo com o propósito conseguido de para si obter uma vantagem patrimonial e para tanto adquiriu a posse do robot que bem sabia ser proveniente de facto ilícito típico contra o património de outrem, o legítimo proprietário.
47. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punível pela lei penal.
48. E não se diga, que por não ter sido concretamente apurado de que forma o arguido acedeu à posse do robot implica que está afastado um dos elementos objectivos do crime ou que exista uma qualquer contradição pelo facto de não ter sido demonstrada de que forma o arguido acedeu ou adquiriu a posse de tal equipamento.
49. Uma variedade de situações podem ter ocorrido (a título de exemplo podem-se mencionar: através de doação, mútuo, compra, mera tolerância de uso, depósito, pratica de actos compagináveis com a inversão do titulo) só que não se apurou de que concreta forma houve esse acesso.
50. Mas a verdade é que houve esse acesso e isso é bastante para incriminar o arguido.
51. O não concreto apuramento é inócuo para a verificação do crime, desde que o agente receptor da coisa tenha conhecimento da proveniência ilícita contra o património – o que se verifica.
52. E tal é aferível pela conduta do arguido que sequer procurou esclarecer os autos porque detinha o robot e a que título mantinha o robot na sua posse.
53. Podia e devia o arguido, caso fosse o legítimo proprietário do Robot, ter apresentado prova inequívoca de que o era.
54. Mas não o fez.
55. Mesmo tendo tido essa oportunidade.
56. E igualmente indiciador é que o arguido tão pouco se opôs, fosse por que forma ou meio fosse, à apreensão do robot ou ergueu qualquer esforço para o reaver.
57. Se efetivamente o arguido fosse o proprietário e estivesse munido de documentos para justificar a posse licita do robot, teria procurado provar e recuperar o que era seu, como aliás qualquer pessoa faria nas mesmas circunstâncias.
58. Mas, por opção, nada fez, devendo retirar-se conclusões desta conduta.

B. Da Abertura de instrução
59. Assim, e tendo em atenção o supra exposto, a prova testemunhal, a versão apresentada pelas partes (ou falta dela, no caso do arguido), somos da opinião que andou mal o Ministério Público.
60. Dos autos de inquérito resultam provas suficientes que demonstram que o arguido cometeu o crime de receptação.
61. Afinal, o robot corta-relva estava na posse do arguido, sem que nada o justificasse, nem este proveio por qualquer explicação para justificar a sua posse.
62. Assim, existe pelo menos, e ao contrário do que afirma o Ministério Público no douto despacho de arquivamento, matéria suficiente para imputar ao arguido a prática do crime previsto e punível pelo crime de receptação p. e p. pelo art.º 231.º do CP.
63. Igualmente, se considerarmos que o robot foi levado pelo arguido para ser reparado e se o mesmo não provou a propriedade do mesmo sempre se dirá que, estando o robot dado como furtado, sobre o arguido impende a presunção de que terá sido o autor do crime de furto – presunção esta que o arguido não teve a virtualidade de afastar.
64. Nunca provando a sua legítima detenção de um objeto furtado.
65. E, ainda que não se considere que existe matéria suficiente para se enquadrar os factos apurados nos referidos tipos legais de crime, sempre se poderá lançar mão da apropriação ilegítima.
De notar que perante estas evidências,
66. e salvo opinião contrária, o Ministério Público não analisou corretamente os depoimentos das testemunhas, não os valorando com a carga indiciária que deles deveria ter retirado.
67. Em momento algum o Ministério Público procurou avançar na investigação, procurando junto da testemunha DD saber mais sobre questões essenciais para a descoberta da verdade.
68. Em momento algum o Ministério Público apreciou a aplicação do art.º 127º do CPP que prevê sob a epígrafe Livre apreciação da prova “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
69. A este propósito recordemos o Ac. TRL de 13-02-2013 “I. «Nas questões humanas (por oposição, diga-se, à matemática e à lógica) não pode haver certezas». E, mais do que isso, neste campo também não se pode pensar que é possível, sem mais, descobrir «a verdade». «A verdade absoluta não pertence ao mundo das coisas humanas».
II. Ela não é alcançável devido às limitações próprias do ser humano, à quantidade e qualidade dos elementos de prova disponíveis em cada julgamento, às condicionantes de natureza temporal que rodeiam o processo judicial e mesmo à necessidade de nele salvaguardar outros valores relevantes para a sociedade que se encontram consagrados na ordem jurídica, os quais, em alguns casos, têm natureza contra-epistémica.
III. Isto não significa, no entanto, que o objectivo do tribunal não seja o de procurar chegar o mais perto possível da verdade, o de procurar conhecer, até onde isso for possível, a realidade.
IV. Mas a reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é meramente marginal.
V. Chegamos, assim, à conclusão que o cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e que a obtenção da verdade é, em rigor, um objectivo inalcançável, não tendo por isso o juiz fundamento racional para afirmar a certeza das suas convicções sobre os factos.
VI. A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem.
VII. Esta exigência de confirmação impõe a definição de um «standard» de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio «in dubio pro reo».
VIII. Podemos, para o efeito, aceitar o critério definido por Ferrer Beltrán segundo o qual «para se considerar provada uma hipótese de culpabilidade devem encontrar-se preenchidas simultaneamente as seguintes condições:
1) A hipótese deve ser capaz de explicar os dados disponíveis, integrando-os de forma coerente, e as previsões de novos dados que a hipótese permita formular devem ter resultado confirmadas; 2) Devem ter-se refutado todas as demais hipóteses plausíveis explicativas desses mesmos dados que sejam compatíveis com a inocência do acusado, excluídas as meras hipóteses «ad hoc».”
70. Ainda, se atendermos ao teor do Ac. TRE de 19-05-2015 : “(..) a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração «racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (..), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão de modo a que seja possível, porqualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo; porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo.
Como diz o Prof. Figueiredo Dias, in «Direito Processual Penal», 1º Vol., Coimbra Editora, 1974, págs. 202/203, «a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo ». Também o Prof. Cavaleiro Ferreira, in «Curso de Processo Penal», 1986, 1° Vol., Fls. 211, diz que o julgador, sem ser arbitrário, é livre na apreciação que faz das provas, contudo, aquela é sempre «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e as normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».
71. Relembramos também, Ac. TRC de 3-06-2015 :“I. Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com o benefício da imediação e da oralidade - apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
II. Quando a prova pessoal produzida aponta em dois sentidos ou direcções completamente distintas, o tribunal deve recorrer ás regras de experiência e apreciar a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade á versão dos factos constante da acusação e a não dar credibilidade á versão dos factos apresentada pelo arguido, permitindo aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz á convicção do julgador.”
72. Bem como o Ac. TRE de 27.06.2017 (Furto qualificado - Prova indirecta. “III (A prova dos factos não tem que assentar, necessariamente (e muitas vezes assim não acontece), em prova direta, designadamente, no depoimento de testemunhas presencias, podendo assentar na chamada prova indireta ou por presunção, ou seja, em indícios ou circunstâncias conhecidas e provadas ? no caso, as circunstâncias em que o arguido é localizado com parte do produto do furto - que, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, permita a conclusão segura e sólida de outro facto, como sua consequência necessária.”
73. Certo é que em momento algum, o Ministério Público diligenciou adequadamente, nesta fase e como lhe competia, no sentido de, in casu, aplicar à factualidade dos autos o previsto no art.º 127º do CPP,
74. não ponderando, sequer, que tal factualidade era consentânea com as regras de experiencia comum, de que alguém que detém um equipamento propriedade de outrem pode, porque se remete ao silêncio, sair incólume e sem qualquer responsabilização penal e civil, tendo beneficiado ilicitamente de um equipamento, que retornou às mãos do seu proprietário incompleto e danificado.
75. É o Ministério Público conivente com o facto de não reconhecer responsabilidade criminal ao arguido e consequentemente presumir a sua legitimidade na detenção do objeto do furto e, simultaneamente, consentir que tal objeto tenha sido entregue ao seu legítimo proprietário, aqui ofendido.

Ora, questiona-se:
76. como se explica não se achar ilícito o arguido estar na posse de um robot que não lhe pertence, uma vez que é propriedade do ofendido e que este nunca transferiu ou emprestou o referido equipamento e que, portanto, a proveniência e posse pelo arguido é claramente ilegal. 77. Aliás, ofendido e arguido não se conhecem.
78. Porque haveria o arguido de ter na sua posse o robot do ofendido?
79. Seria ilógico, irracional e violador das regras da lógica e da experiência aceitar a circunstância do arguido ter na sua posse e assumindo atos de proprietário como provendo pela sua reparação, um robot que não era seu - o que contraria o imposto pelo art.º 127.º do CPP.
80. Seria ilógico e viola de forma grosseira as regras da experiência comum e da normalidade das coisas.
81. Apesar de o Ministério Público não ter conseguido apurar como, quando e concretamente de quem, em especial, o arguido terá recebido o robot ou se o próprio foi o autor do furto do robot,
82. como o próprio reconhece “… sendo certo que todos os indícios factuais apontam para a sua participação, qualquer que seja o seu grau…”
83. O Ministério Público admite a participação do arguido, mas não o acusa.
84. Pelo que antecede, sempre respeitando opinião contrária, somos de concluir que o Ministério Público, não cuidou por investigar devidamente e, por insuficiência e/ou omissão na investigação, não fez correcta apreciação das provas, quer por não analisar concertadamente os factos, quer por não aplicar a lei.
85. Quando tal insuficiência, salvo melhor e mais douta opinião, resulta da falta de ação investigatória e de uma analise mais racional e cuidada, até lógica, das provas que detinha.
86. Assim, com o douto suprimento de V. Exa., justifica-se e mostra-se adequado e necessário que se proceda à requerida abertura de instrução, nos termos do disposto no art.º 287.º e ss do C. P. Penal.
87. De forma a que o arguido seja pronunciado pela prática de um crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231º do CP.
Posto isto,
88. No período entre as 10:00H do dia 09-02-2018 e as 12:00H do dia 18-02-2018, no interior da propriedade privada do ofendido, sita na Estrada ..., ..., em ..., através da introdução com escalonamento, um desconhecido ou o arguido levou consigo um robot – corte de relva, de cor ..., marca..., modelo ..., imow 422.0, n.º de série/Imei ...23.
89. De forma não concretamente apurada, o arguido entrou na posse do referido robot corta relva que foi subtraído nas circunstâncias de tempo, espaço e lugar acima descritas.
90. No início do mês de maio de 2020, o ofendido recebeu uma chamada telefónica da Casa ..., o fornecedor do robot ... (...23 |1201|), a informar que obtiveram informações sobre o paradeiro do robot furtado.
91. A 05/05/2020 o aqui ofendido teve conhecimento, através de FF, do paradeiro do robot.
92. O robot encontrava-se para reparação numa loja de assistência a eletrodomésticos e afins de nome singular “CC”, mais conhecida por E... com NIF ..., sita na Rua ..., ..., ... ....
93. No 06/05/2020, pelas 19:20H as autoridades policiais deslocaram-se à identificada loja e apreenderam o robot corta relva, tendo identificado o detentor do robot, o arguido AA, residente em ..., com o contacto ...94, pessoa que detinha o robor, se fez passar por seu legítimo proprietário e o deixou para reparar no dia 30/04/2020.
94. Era o arguido o detentor do equipamento e agia como se se tratasse do proprietário.
95. Porquanto, final do mês de abril de 2021 o arguido deixou, no estabelecimento comercial «Casa ...» sito na ..., ..., o robot ... (...23|1201|) corta relva, para reparação.
96. Tratando-se este robot um equipamento dado como furtado e para o qual o arguido não detinha qualquer prova de ser o legítimo proprietário e pior, sequer detinha o código de acesso.
97. Porque o arguido não detinha o código de acesso ao robot, tal facto desencadeou o contacto com o fornecedor do mesmo e assim se percebeu a proveniência criminosa deste equipamento. 98. O arguido estava ciente que a proveniência do robot era ilícita, uma vez que se tratava de um robot de qualidade e desacompanhado de quaisquer documentos.
99. Também o arguido nunca procurou junto da marca descobrir o nome do proprietário.
100. E, mais tarde, quando o arguido foi confrontado com a situação ilícita e teve oportunidade para esclarecer o sucedido, remeteu-se ao silêncio e não apresentou qualquer título ou evidência probatória que legitime a sua detenção.
101. O arguido, ao agir conforme descrito, fê-lo com plena consciência e com conhecimento da sua ilicitude.
102. Agiu de forma livre, voluntária e consciente.
103. Face ao que aqui se expôs, praticou o arguido um crime de receptação, p. e p. pelos art.ºs 231.º e 232.º do CP.
104. Se assim não se entender, praticou o arguido o crime de furto p. e p. no art. 203º do CP.
105. Se assim não se entender, praticou o arguido o crime de apropriação ilegítima p.e.p. no art. 209º do CP.
Nestes termos, requer a V.ª Exa:
106. Que se digne a deferir a constituição de assistente do ofendido, nos termos do disposto no artigo 68.º do CPP;
107. Se digne declarar aberta a instrução e, após debate instrutório, seja o arguido pronunciado pela prática do crime de receptação, p. e p. pelos art.ºs 231.º e 232.º e, se assim não se entender, pelo crime de furto p. e p pelo art.º 203º e, se assim não se entender, pelo crime de apropriação ilegítima p. e p. no art.º 209º todos do CP.
(…)”
c –Em 28/1/2022 foi proferido o seguinte despacho :

Requerimento de abertura de Instrução formulado a fls. 207 a 214 pelo assistente BB:

Por não se verificar nenhum dos circunstancialismos previstos no n.º 3 do art.º 287.º do Código de Processo Penal (mas sempre sem prejuízo do que ulterior análise mais aprofundada vier a revelar), sendo que o tribunal é o competente (cfr. o art.º 19.º do Código de Processo Penal), o requerente tem legitimidade (cfr. o art.º 287.º, n.º 1, al.ª b), do C.P.P. e o primeiro despacho proferido a fls. 227), está em tempo (cfr. o n.º 1 do mesmo normativo, os art.os 287.º, n.º 1 e 113.º, n.os 3 e 9, do C.P.P., a data das notificações efetuadas a fls. 199, 200 e 204 e a data do correio eletrónico de fls. 206), tendo procedido ao pagamento da taxa de justiça devida (cfr. o art.º 8.º, n.º 2, do R.C.P. e fls. 216 e 218), admito o requerimento de abertura de Instrução formulado pelo assistente BB a fls. 207 a 214 e, em conformidade, declaro aberta a fase de Instrução Criminal.
Notifique – cfr. o art.º 287.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
*
Da pertinência das diligências instrutórias requeridas:

I.
Da requerida remessa de ofício à S...:

Ao abrigo dos artigos 289.º, n.º 1, 1.ª parte e 290.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, determino se notifique a entidade que representa a marca em apreço para, no prazo de dez dias, vir aos autos informar e remeter cópia documental de todos os dados de que disponha relativamente ao robot mencionado nos autos, designadamente dados do respetivo comprador e subsequentes contatos efetuados com a marca por qualquer pessoa a propósito desse mesmo robot.
Notifique.
D.N., fornecendo os dados de identificação do robot disponíveis nos autos e fazendo menção de urgência.

II.
Da requerida notificação ao arguido para junção de elementos documentais:

Após resposta que for dada à diligência supra determinada, o tribunal pronunciar-se-á – cfr. o artigo 291.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal.
Notifique.
d – O despacho referido na alínea anterior foi notificado ao arguido, ao assistente, aos respectivos advogados e ao Ministério Público e não foi impugnado por qualquer deles.
e - Em 8/7/2022 foi proferida decisão instrutória, com o seguinte teor, na parte que aqui interessa :
Do tramitado:
Foi proferido despacho liminar de abertura da Instrução, admitindo-se a mesma (cfr. fls. 240), tendo-se realizado as diligências instrutórias consideradas pertinentes, designadamente a obtenção de informações documentadas (cfr. fls. 247-a) e seguintes); realizou-se, igualmente, audiência de debate instrutório, em conformidade com o processualismo legal, conforme consta da respetiva ata (cfr. fls. 276, 277 e 285).
*
Do saneamento:
Mantém-se a validade e regularidade da instância criminal que estiveram subjacentes à prolação do despacho de abertura de Instrução, com a ressalva do que em seguida se aprecia e decide, a título oficioso, ao abrigo do artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Na verdade, a título oficioso importa apreciar uma questão prévia e que se prende com a admissibilidade legal da Instrução ou, se preferirmos, com a ponderação da factualidade que vem imputada ao arguido no requerimento de abertura de Instrução ser suscetível ou não de integrar os elementos do tipo legal de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, pois, a não sê-lo, a Instrução e apreciação do mérito da mesma é inútil e redundaria em nulidade, salientando-se que o despacho que em seguida se profere segue de muito perto o entendimento preconizado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 06-10-2014 no âmbito do processo n.º 150/10.5TAMNC em que foi Relator o Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Dr. José Maria Tomé Branco.
Mas vejamos o caso dos autos, aplicando-se, então, em seguida ao mesmo, a jurisprudência supra mencionada.
No caso dos autos temos um requerimento de abertura de Instrução do assistente que sustenta, no que ora se analisa e releva, que em causa estaria a prática pelo arguido, de um crime deapropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, previsto e punido pelo artigo209.º, do Código Penal.
Estabelece este normativo: “1 - Quem se apropriar ilegitimamente de coisa ou animal alheios que tenham entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito ou por qualquer maneira independente da sua vontade é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem se apropriar ilegitimamente de coisa ou de animal alheios que haja encontrado”.
Consignando-se que tivemos o cuidado de transcrever integralmente supra no relatório o teor do requerimento de abertura de Instrução, importa concluir que o requerimento em apreço não imputa ao arguido os factos necessários para se considerar preenchidos este tipo legal; na verdade, para além de não vir especificado qualquer dos números do tipo legal, em momento algum o assistente refere qualquer força natural, erro, caso fortuito ou modo independente da vontade do arguido; nada disto é alegado de forma concretizada, da mesma forma que não é alegado que a posse do objeto por parte do arguido seja derivada de a ter encontrado; constata-se, por conseguinte, a omissão da imputação dos factos necessários ao tipo legal.
Ou seja, estamos perante um requerimento de abertura de Instrução em que o assistente sustenta a sua desconformidade com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, mas no seu requerimento de abertura de Instrução não imputa todos os factos necessários e suficientes integrantes deste tipo legal por si arrogado (do artigo 209.º, do Código Penal), pelo que o requerimento de abertura de Instrução – nessa parte - deveria ter sido rejeitado
Ora, nos termos do disposto no art.º 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar qualquer arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de abertura de instrução, prevendo o art.º 303.º do mesmo código as consequências da alteração não substancial e substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução constatada no decurso desta.
A este requerimento aplica-se, nos termos preceituados pelo n.º 2 do art.º 287.º, do Código de Processo Penal, o previsto no n.º 3, al.as b) e c) do mesmo normativo.
Impunha-se, assim, ao assistente requerente da abertura de Instrução (obviamente em caso de arquivamento, como sucede no caso dos autos) um especial cuidado na seleção dos factos pelos quais pretende ver o arguido pronunciado, especificamente, tendo em vista a verificação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal por si enunciado referido.
Ao assistente impunha-se proceder a uma imputação de factos – qual verdadeira acusação – ao arguido, o que, na realidade, não fez, não podendo o tribunal substituir-se àquele requerente da abertura de instrução nessa tarefa, designadamente compulsando os autos, sob pena de nulidade da decisão instrutória que pronuncie qualquer arguido, conforme supra exposto - cfr. a este propósito o Ac. RE de 14-04-1995, CJ, XX, II, 280.
Face a estas deficiências, impunha-se a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade do mesmo (falta de objeto criminal suficiente imputado ao arguido, ao nível do pretendido crime previsto no artigo 209.º, do Código Penal), não havendo lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, conforme, de resto, jurisprudência quer do Tribunal Constitucional (cfr. o Ac. n.º 27/2001 – processo n.º 189/2000, D.R. – II Série de 23-03-2001, págs. 5265 e seguintes), quer das Relações – cfr. os Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-10-2002, 27-05-2003 e 15-12-2004, in www.dgsi.pt/jtrl, e os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14-01-2004, 21-01-2004, 24-03-2004, 31-03-2004, 05-01-2005 e 12-01-2005, estes in www.dgsi.pt/jtrp e, de forma bem conclusiva, o Acórdão STJ n.º 7/2005, publicado no D.R. º I Série A, de 04-11-2005, páginas 6340 e seguintes.
Efetivamente, o convite ao aperfeiçoamento encontra-se previsto para o processo civil, processo de partes e interesses privados, enquanto no processo criminal nos movemos no domínio do interesse público, alicerçado numa estrutura acusatória (cfr. o n.º 5 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa), a qual resultaria totalmente subvertida caso se admitisse esse convite ao aperfeiçoamento, ao que acresceria uma dilação (e, logo, também aqui, subversão) do prazo para requerer a abertura de instrução.
Face à falta de alegação integral, necessária e suficiente de factos (objeto) que integrem o tipo legal invocado do artigo 209.º, do Código Penal, importa, pois, concluir pela inadmissibilidade legal da instrução, nesta parte.
A questão que se suscita é que, conforme mencionado, foi proferido despacho liminar declarando aberta a fase de Instrução (cfr. fls. 240), pelo que se levanta a questão de saber e determinar o rumo a dar aos autos, quanto a este concreto crime.
É neste ponto que voltamos ao supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-10-2014 no âmbito do processo n.º 150/10.5TAMNC em que foi Relator o Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Dr. José Maria Tomé Branco; o caso analisado neste Acórdão reporta-se a uma situação em que o Ministério Público proferiu despacho final em sede de Inquérito determinando o arquivamento dos autos e a assistente veio requerer a abertura de Instrução pugnando pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pela prática do crime de introdução em lugar vedado ao público, tendo sido proferido despacho liminar de abertura de Instrução, realizada a mesma e o debate instrutório e proferido despacho de pronúncia do arguido; o arguido recorreu, invocando, precisamente, a nulidade decorrente da circunstância de o requerimento de abertura de Instrução não corresponder, como deveria, a uma acusação e, por conseguinte, a decisão instrutória ser também nula, já que não tem factos suficientes para se concluir pela pronúncia; neste caso o Tribunal da Relação de Guimarães reconheceu integral razão ao arguido recorrente.
Ora, se assim é, verifica-se que o caso de que cuidamos nos presentes autos é idêntico e solução idêntica merece: sendo o requerimento de abertura de Instrução nulo (quanto ao crime mencionado), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 283.º, n.º 3 e 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, a decisão instrutória a proferir que apreciasse o mérito dos autos seria igualmente nula, nos termos do art.º 309.º, n.º 1, do Código de Processo penal, já que estaria a basear-se numa invalidade anterior.
Apreciar, pois, o mérito dos autos quanto a esse crime redundaria, por conseguinte e em princípio, em nulidade, por um lado e, por outro, na prática de um ato inútil, de resto expressamente proibido por lei; veja-se a este propósito, o disposto no art.º 130.º, do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do art.º 4.º, do Código de Processo Penal): “Não é lícito realizar no processo actos inúteis”.

Salientaremos, de resto, que entendimento essencialmente idêntico – e com as necessárias adaptações - foi seguido no Acórdão do STJ de 12-03-2009, consultável no respetivo sítio, onde se decidiu que:
“I - A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.
II - A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução.
III - Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 137.º CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4.º do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal.
(…)
V - Dado o paralelismo entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, deve aquilatar-se da possibilidade de aplicação ao requerimento para abertura da instrução do disposto no art. 311.º, que considera manifestamente infundada a acusação: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.
VI -Se o requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente não contém (…) a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente deixar de narrar os factos (…).
VII - De igual modo, se, pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados peloassistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia.
(…)” – (os sublinhados são da nossa lavra).
Em suma: quanto ao crime correspondente ao tipo legal de apropriação ilegítima previsto e punido pelo artigo 209.º, do Código Penal, verifica-se a nulidade do requerimento de abertura de Instrução do assistente e a desnecessidade da apreciação do mérito nessa parte, levando à declaração de extinção do procedimento criminal contra o arguido nessa parte pendente.
Inexistem quaisquer outras nulidades, questões prévias, incidentais e/ou supervenientes que invalidem o processado e que obstem ao conhecimento do mérito dos autos, que cumpra conhecer.
Não vislumbrando a necessidade de realização de quaisquer outras diligências instrutórias, declaro encerrada a fase de Instrução Criminal, cumprindo decidir, na parte sobrante, bem como, a título subsidiário quanto ao mencionado crime de apropriação ilegítima – apenas porquanto a solução sempre seria a mesma.
*
Do enquadramento a efetuar:
Com relevância para o despacho a proferir, concretamente, da ponderação da existência de indícios suficientes da prática, pelo arguido dos factos e do(s) crime(s) pelos quais foi requerida e admitida a Instrução do assistente e da submissão daquele a julgamento, com vista à aplicação de uma pena, importa proceder a uma apreciação crítica e articulada, ainda que sumária, ante a fase em que nos encontramos, dos elementos probatórios carreados para os autos em sede de Inquérito e em sede de Instrução, tendo em consideração, ainda, o direito aplicável.
Conforme resulta do preceituado no art.º 286.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, na fase processual penal (facultativa) de instrução, visa-se a “(...) comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Com tal fase não se pretende um novo inquérito, mas a comprovação, por parte do Juiz de Instrução Criminal da decisão, in casu, do assistente, de requerer a Instrução, não obstante o juiz de instrução dever instruir autonomamente os factos em apreço, não se limitando ao material probatório apresentado pelos sujeitos processuais.
Estabelece o art.º 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal da seguinte forma: “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Nesta sequência – e conforme o estabelecido pelo art.º 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – a suficiência de indícios encontra-se dependente de “deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
No seguimento do entendimento preconizado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-06-1963, in J.R., 3, 777, os indícios suficientes configurarão “Vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes de que há crime e de que o arguido é responsável” - vide, ainda, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/11/1983, CJ, V, 71 e de 31-03-1993, CJ, 1993, II, 65.
E como se pode ler no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 20-01-2010, in www.dgsi.pt/jtrp: “A avaliação da suficiência de indícios para acusar ou pronunciar deverá ser levada a efeito sob duas perspectivas autónomas: uma primeira sobre a imputação dos factos ao arguido, no sentido de apurar se o mesmo pode ser por eles responsabilizado juridicopenalmente; uma segunda, sobre a consistência do acervo probatório recolhido e da sua reprodutibilidade e, audiência de julgamento, na ideia de que apenas a prova produzida e/ou susceptível de ser valorada na fase de julgamento pode fundar uma decisão de condenação. Se no momento da acusação ou da pronúncia, a prova indiciária não atinge a força necessária para formar a convicção razoável sobre a futura condenação, não deverá o processo prosseguir, pois por certo tal convicção não será alcançada nas fases posteriores, conhecida que é a tendência para a atenuação dos indícios existentes”.
Reportando-nos ao caso dos autos e procedendo a essa articulação, o tribunal tem o seguinte entendimento:
A.

Factualidade apurada:

1. O assistente BB é proprietário de um robot – corte de relva, de cor ..., marca..., modelo ..., imow 422.0, n.º de série/Imei ...23.
2. No período entre as 10:00H do dia 09-02-2018 e as 12:00H do dia 18-02-2018, pessoa não concretamente identificada, através de escalamento, introduziu-se no interior da propriedade privada do referido assistente, sita na Estrada ..., ..., em ..., levando consigo e fazendo seu o robot supra mencionado.
3. De forma não concretamente apurada, em data subsequente, também não concretamente apurada, mas remontando, pelo menos, a 30-04-2020, o arguido AA entrou na posse do dito robot.
B.

Factualidade não apurada:

Toda a demais imputada ao arguido pelo assistente no respetivo requerimento de abertura de Instrução, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais, designada e relevantemente:

1. Que a pessoa que agiu da forma supra descrita na factualidade dada como apurada sob o n.º 2 tivesse sido o arguido AA.
2. E que assim tivesse agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
3. Que o arguido tivesse entrado na posse do referido robot, sabendo que o mesmo havia sido furtado.
4. E que assim tivesse agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
5. Que o arguido tivesse entrado na posse do referido robot sem previamente ter-se assegurado da sua legítima proveniência, sabendo que deveria ter suspeitado que o mesmo era furtado.
6. E que assim tivesse agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.

C.
Motivação:
A convicção do tribunal alicerçou-se na apreciação crítica, conjunta e articulada dos diversos elementos probatórios carreados para os autos, de entre documentais, periciais e depoimentos recolhidos, tendo em consideração o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no artigo127.º, do Código de Processo Penal, salientando-se que quer o despacho de arquivamento, quer o requerimento de abertura de Instrução, elencam esses meios de prova, tendo o tribunal tido o cuidado de transcrever integralmente essas duas peças processuais, pelo que quanto ao seu elenco nos dispensamos de o sumariar, partindo para a sua análise enquanto meios de prova e conclusões a retirar dos mesmos.
Assim, relativamente à factualidade dada como apurada, a mesma dispensa considerações desenvolvidas, estando-se, no geral, perante matéria consensual entre as partes, que nenhuma objeção levanta, salientando-se somente que o segmento vertido na factualidade dada como apurada sob o n.º 2 reportado a “pessoa não concretamente identificada” e o segmento dado como apurado sob o n.º 3 da mesma factualidade reportado a “de forma não concretamente apurada”, encontram-se conexos, na sua motivação, com a factualidade dada como nãoapurada, importando, aqui sim, desenvolver um pouco mais a motivação.
Assim, dos elementos carreados para os autos ficamos sem saber o que se passou ao nível dos termos em que o arguido entrou na posse do dito robot e, inerentemente, de um qualquer dolo (ou negligência, na parte aplicável); note-se que ninguém presenciou a autoria do furto, a ocorrência e termos da recetação ou, já agora – porque vai pelo mesmo caminho - da apropriação de coisa achada; a própria perícia realizada ao nível da comparação dos vestígios lofoscópicos recolhidos no local com os do arguido deu negativa, não se tendo verificado qualquer correspondência – cfr. fls. 193 – estando-se, por conseguinte, perante um meio de prova produzido que, de forma bastante objetiva, não permite associar o arguido à autoria do furto; quanto ao demais, note-se que se atentarmos na própria argumentação do assistente, quer no respetivo requerimento de abertura de Instrução, quer em sede de conclusões orais na audiência de debate instrutório, salvo o devido respeito, as mesmas surpreendem-nos, tendo em conta as regras processuais aplicáveis; desde logo, a questão do direito ao silêncio do arguido e da interpretação do mesmo; é princípio basilar do direito processual penal (cfr. o artigo 61.º,n.º 1, al.ª d), do Código de Processo Penal), que o arguido não é obrigado a prestar quaisquer declarações no processo, não é obrigado a explicar-se ou a explicar o que quer que seja e tal não pode ser valorado contra o mesmo;
note-se que o próprio assistente deixa em aberto, no artigo 49.º, do requerimento de abertura de Instrução, que o arguido pode ter entrado na posse legítima do robot por uma imensidão de meios: “doação, mútuo, compra, mera tolerância de uso, depósito (…)”, mas afirma a seguir, que o arguido não provou tal posse legítima, não provou a posse por qualquer desses meios, afirmando que este deveria ter procedido a tal prova e rematando, num surpreendente crescendo (salvo o devido respeito, pasme-se!) que “sobre o arguido impende a presunção de que terá sido o autor do crime de furto – presunção esta que o arguido não teve a virtualidadede afastar” (cfr. o artigo 63.º, do requerimento de abertura de Instrução) – portanto, ao arrepio das mais elementares regras e princípios processuais penais e constitucionais, para o assistente, existe uma presunção de culpa do arguido e o arguido tem de afastar a mesma, incumbindo-lhe provar a sua inocência!; é o que lemos na argumentação do assistente…
Ora, o silêncio do arguido, como vimos, não pode prejudica-lo, sendo que, se é verdade que a circunstância de o mesmo se remeter ao silêncio também não tem de beneficiá-lo, podendo este ser prejudicado pelos demais elementos probatórios produzidos nos autos, que apontem para uma versão incriminadora concreta; a questão é que os demais elementos não permitem concluir nada, para além da simples posse pelo arguido dois anos, dois meses e cerca de dez dias depois de o robot ter sido furtado; a prova produzida não permite concluir se essa posse foi legítima ou ilegítima e, muito menos, para a eventualidade de se considerar (que não se considera) ilegítima, os termos dessa ilegitimidade (furto, recetação ou apropriação ilegítima de coisa achada), jamais podendo ficar ao arbítrio do tribunal a escolha de uma dessas opções, que é o que o assistente peticiona no respetivo requerimento de abertura de Instrução e que reiterou em sede de conclusões orais na audiência de debate instrutório: para o assistente o arguido praticou um dos crimes alternativos e o tribunal que escolha (sem prova)!
Inexiste prova da autoria objetiva e subjetiva por parte de qualquer um desses crimes imputados – note-se bem – em alternativa ao arguido, sendo que a prova produzida em sede de Instrução nada de relevante carreou.
Neste seguimento – indo a argumentação do assistente completamente ao arrepio das mais elementares regras processuais e constitucionais aplicáveis, inexistindo qualquer presunção de culpa do arguido e qualquer ónus de prova da sua inocência atribuído ao mesmo (repete-se, que surpreendentemente o assistente alega existirem!) – existindo, ao invés, o princípio dapresunção de inocência do arguido constitucionalmente consagrado no art.º 32.º, n.º 2, daConstituição da República Portuguesa(“Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito emjulgado da sentença de condenação”), sendo de fazer apelo, ainda e em todo o caso, ao princípio in dubio pro reo (aplicável, também, nesta fase processual – cfr. o Acórdão do Tribunal daRelação do Porto de 14-12-2011, in www.dgsi.pt/jtrp), entendimento este que vai ao encontro do entendimento do Tribunal Constitucional conforme Acórdão n.º 439/2002, onde se estabeleceu que: “Se o tribunal que pronunciar não demonstrar que ultrapassou as dúvidas sobre uma efetiva possibilidade de condenação através de um juízo probabilístico apoiado nos factos concretos constantes da acusação, estará a enfraquecer intensamente de conteúdo a garantia processual, suportada pelo contraditório, consistente em poder infirmar a sustentabilidade da acusação e anulará, na prática, a possibilidade de o arguido impedir a submissão a julgamento” dizendo, mais adiante: “a interpretação normativa dos artigos citados – 286.º, n.º 1, 298.º e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, reduz, desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido previstas no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição”, neste seguimento, no caso dos autos, em última análise, não deixa – nem pode deixar - de ser relevante a presunção de inocência do arguido e o princípio in dubio pro reo, assim se tendo dado, também como este fundamento, repete-se, toda a factualidade em apreço como não apurada.

D.

Do Direito:

A factualidade dada como apurada é manifestamente insuficiente para se concluir pelo preenchimento de qualquer dos em alternativa imputados crimes de furto, recetação ou de apropriação ilegítima (este aqui mencionado a título subsidiário), previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos 203.º, n.º 1, 231/2 e 209.º, todos do Código Penal, uma vez que o núcleo essencial da autoria objetiva e subjetiva dos factos imputados ao arguido foi levado ao capítulo da factualidade dada como não apurada, atento o que importa formular um juízo de prognose de absolvição do mesmo se sujeito a julgamento pela prática respetiva, o que é sinónimo de prolação de despacho de não pronúncia do arguido.
*
Dispositivo:

Em conformidade com o exposto, O TRIBUNAL DECIDE:
A.
Ao abrigo do artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:
JULGAR LEGALMENTE INADMISSÍVEL O REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO FORMULADO PELO ASSISTENTE NA PARTE EM QUE PUGNA PELA PROLAÇÃO DE DESPACHO DE PRONÚNCIA DO ARGUIDO PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE APROPRIAÇÃO ILEGÍTIMA DO ARTIGO 209.º, DO CÓDIGO PENAL, POR FALTA DE ALEGAÇÃO DE FACTOS DO TIPO LEGAL.

B.
Ao abrigo do art.º 308.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal (e subsidiariamente abrangendo o supra mencionado crime de apropriação ilegítima do artigo 209.º, do Código Penal):
NÃO PRONUNCIAR
O arguido:
- AA, melhor identificado a fls. 137;
Pela prática dos factos e com a qualificação jurídica constantes do requerimento de abertura de Instrução do assistente BB a fls. 207 a 214.

V. APRECIAÇÃO DO RECURSO

5.1. - Violação do caso julgado formal, por ter sido admitido o requerimento de abertura de instrução :
O recorrente começa por se insurgir contra a decisão instrutória, na parte em que julgou inadmissível o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente na parte em que pugna pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pela prática de um crime de apropriação ilegítima do artigo 209º do C.P., por falta de alegação de factos do tipo.
A questão que se coloca é a do valor do despacho que admitiu o requerimento de abertura de instrução.
O assistente requereu a abertura da instrução e o juiz de instrução, por despacho de 28/1/2022, admitiu o requerimento de abertura da instrução e declarou aberta a fase de instrução criminal, depois de ter afirmado a competência do tribunal, a legitimidade do requerente, a tempestividade daquele requerimento e ter constatado o pagamento da taxa de justiça devida, afirmando «por não se verificar nenhum dos circunstancialismos previstos no nº 3 do artigo 287º do C.P.P. (mas sempre sem prejuízo do que ulterior análise mais aprofundada vier a revelar)» - sublinhado meu.
Após a realização do debate instrutório, o juiz de instrução julgou inadmissível o requerimento de abertura de instrução na parte em que pugna pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pela prática de um crime de apropriação ilegítima do artigo 209º do C.P., por falta de alegação de factos do tipo.
O artigo 613º, nºs 1 e 3 do C.P.C., aplicável ex vis o artigo 4º do C.P.P., determina que, proferida a sentença ou o despacho, fica imediatamente esgotado o poderjurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Ou seja, o poder jurisdicional do juiz esgota-se com a prolação da sentença ou do despacho, nomeadamente após a sua notificação aos interessados e após o decurso do prazo de recurso, se a ele houver lugar.
Na realidade, o artigo 620º do C.P.P., sob a epígrafe «Caso julgado formal», aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do C.P.P., estipula que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre arelação processual têm força obrigatória dentro do processo, excluindo-seos despachos que não admitem recurso: os de mero expediente e osproferidos no uso legal de um poder discricionário.
As normas atrás mencionadas visam assegurar a estabilidade da decisão judicial, a segurança e a confiança jurídicas e a protecção das expectativas criadas por decisão judicial anterior, que não foi objecto de recurso.
Deste modo, apenas são admissíveis as alterações quenão importem modificação essencial, de acordo com previsão do artigo 380º, nºs 1, al.b), parte final, e 3, do C.P.P..
Nas palavras de Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal comentado, 2022 4ª edição revista, Almedina, p. 1173, «… a correcção da sentença só é admissível …quando não importe modificação essencial, modificação esta absolutamente vedada, quer no que tange à decisão quer no que concerne à fundamentação. Assim, como se refere no acórdão do STJ de 5 de Julho de 2007, proferido no Processo nº 1398/2007, está vedado ao juiz, a pretexto da correcção do acto decisório, qualquer intromissão no conteúdo do julgado, estando pois subtraídos ao acto de correcção os erros e as omissões de julgamento».
Assim, o despacho recorrido não pode manter-se, pela circunstância de o mesmo significar a alteração ou revogação da decisão anteriormente tomada, de admissãodo requerimento para abertura da instrução, assim violando o caso julgado formal formado.
No sentido atrás exposto, ver os acórdãos da Relação de Coimbra de 14/10/2020, processo 4725/17.3t9cbr-A.C1, relatado por Elisa Sales, da Relação de Lisboa de 13/2/2020, processo 2721/18.2t9sxl.L1-9, relatado por Maria do Carmo Ferreira, e da Relação do Porto de 22/5/2019, processo 109/14.3t9lra.P1, relatado por Maria Deolinda Dionísio, in www.dgsi.pt.
E não se diga, como fez o arguido na sua resposta ao recurso, que o despacho de admissão liminar do requerimento de abertura da instrução é meramente tabelar, pelo que não forma caso julgado.
É que o despacho em questão analisou expressamente as questões da competência do tribunal, da legitimidade do requerente e da tempestividade do requerimento, fundamentando-as com a lei processual penal e com os dados fornecidos pelo processo.
Também não obsta à conclusão acima exposta a circunstância de o despacho proferido em 28/1/2022 ter afirmado «Por não se verificar nenhum dos circunstancialismos previstos no nº 3 do artigo 287º do C.P.P. (mas sempre sem prejuízo do que ulterior análise mais aprofundada vier a revelar)…», sob pena de estar desta forma aberta a possibilidade de revisão posterior das decisões, assim se obstando à formação de caso julgado formal.
Como sublinha Damião da Cunha, in O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num processo de Estrutura Acusatória, 2002, p. 143-144, «qualquer decisão, mesmo que não esteja em causa uma decisão de mérito, contém um efeito de vinculação processual …os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional – querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento).».
Em conclusão, o despacho recorrido, na parte em que julgou inadmissível o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, por violar o caso julgado formal,deve ser revogado.

5.2. - Existência de indícios da prática, pelo arguido, do crime de apropriação ilegítima p. e p. pelo artigo 209º do C.P.:
O recorrente entende que a decisão recorrida deve ser substituída por outra que pronuncie o arguido pelos crimes por si requeridos no requerimento de abertura de instrução.
Embora no requerimento de abertura da instrução o assistente impute ao arguido a prática «do crime de receptação, p. e p. pelos art.ºs 231º e 232º e, se assim não se entender, pelo crime de furto p. e p. pelo art.º 203º e, se assim não se entender, pelo crime de apropriação ilegítima p. e p. no art,º 209º todos do CP», da leitura das conclusões do recurso por si interposto, constata-se que o recorrente defende existirem indícios do crime de apropriação ilegítima, somente .
Ora, como se afirmou já, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, pelo que importa analisar a decisão instrutória recorrida na perspectiva dos elementos típicos do crime previsto no artigo 209º do C.P..
A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento (artigo 286º, nº 1 do C.P.P.).
Conforme refere Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal comentado, Almedina, 2022 - 4ª edição revista, p. 969, «A instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito.
(…) A comprovação consiste no controlo jurisdicional sobre qualquer dessas decisões por parte de um juiz diverso do juiz de julgamento.
No último caso (despacho de arquivamento) a instrução não se destina a repetir ou a completar o inquérito, nem a realizar um inquérito complementar, abrangendo novos factos ou novos suspeitos ou arguidos; destina-se apenas a fiscalizar a decisão que pôs termo ao inquérito. Se o assistente considera o inquérito insuficiente em termos de investigação e recolha de prova, deverá reclamar hierarquicamente, nos termos do artº 278º, nº 2, e não requerer a abertura da instrução.
É esta a conceção que respeita e se coaduna com a natureza acusatória do processo penal».
A estrutura acusatória do nosso direito processual penal resulta, desde logo, da Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 32º, nº 5 estipula : «O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».
Conforme explica Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, volume I, Editorial Verbo 1996, p. 54, «O processo de tipo acusatório caracteriza-se, pois, essencialmente, por ser uma disputa entre duas partes, uma espécie de duela judiciário entre a acusação e a defesa, disciplinado por um terceiro, o juiz ou tribunal, que, ocupando uma situação de supremacia e de independência relativamente ao acusador e ao acusado, não pode promover o processo…, nem condenar para além da acusação …».
Expressão legal deste princípio encontramo-la nos artigos 309º e 379º do C.P.P., relevando aqui o primeiro, quando estipula a nulidade da pronúncia na parte em que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução.
De acordo com o nº 2 do artigo 287º do C.P.P., o requerimento para a abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar.
No caso do requerimento para abertura da instrução efectuado pelo assistente, deve o mesmo conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis, tal como prescreve o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c) do CPP.

Assim, na hipótese de o Ministério Público ter arquivado o inquérito, o requerimento do assistente para a abertura da instrução vai funcionar como uma acusação, no sentido de que vai delimitar o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se vai desenvolver a actividade do juiz de instrução.

De acordo com o artigo 308º do C.P.P.:
1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2 - É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos nºs 2,3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.
3 - No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.

Assim, o juízo a efectuar no final da instrução – bem como neste recurso – é acerca da suficiência de indícios recolhidos nos autos, para o que há que formular um prognóstico, uma previsão sobre o que acontecerá em julgamento.

Refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, volume III, Editorial Verbo 1994, p. 182-183, que «Nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e tão só indícios, sinais, de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento.
Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.».
Já Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Volume I, Coimbra Editora, 1974, p. 133, sublinha que «os indícios só são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição».

Nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 400º do C.P.P., não é admissível recurso de acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem decisão da 1ª instância.
Depois, o artigo 425º, nº 5 do mesmos código prescreve que «Os acórdãos absolutórios enunciados na alínea d) do nº 1 do artigo 400º, que confirmem decisão da 1ª instância sem qualquer declaração de voto, podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada».
Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em vários arestos, o acórdão confirmatório de uma decisão de não pronúncia é acórdão absolutório para o efeito das normas transcritas.
Veja-se o Acórdão de 11/10/2001, no processo 01P1932, em que foi relator o Conselheiro Carmona da Mota, apenas sumariado in www.dgsi.pt (mas publicado na Colectânea de Jurisprudência, CJSTJ, ano III, p. 196-198) que decidiu que o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância, não admitindo, consequentemente, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Neste sentido, ver ainda o acórdão de 12/12/2002, processo 02P4414, em que foi relator o Conselheiro Abranches Martins, in www.dgsi.pt.
E nos Tribunais das Relações ver os seguintes acórdãos : da Relação de Lisboa de 2/5/2006, processo 849/2006-5, relatado por José Adriano, da Relação de Coimbra de 11/3/2015, processo 202/11.4talnh.C1, e de 29/6/2016, processo 35/14.6pfvis.C1, ambos relatados por Fernando Chaves, e da Relação de Guimarães de 8/3/2021, processo 138/16.2t9vrl.G2, relatado por Teresa Coimbra, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Assim, havendo confirmação do despacho recorrido, a Relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada ao abrigo do disposto no artigo 425º, nº 5 do C.P.P..
Analisando o despacho recorrido, na parte em que analisa os indícios recolhidos nos autos contra o arguido, concordamos com o mesmo : não existe prova indiciária que sustente que o arguido se tenha apropriado do robot, tendo este chegado à sua posse/detenção por efeito de força natural, erro, caso fortuito, ou por qualquer maneira independente da sua vontade, ou por tê-lo encontrado !
Aliás, o próprio assistente, no requerimento de abertura da instrução, afirma que o arguido entrou na posse do robot «de forma não concretamente apurada».
Ora, como se afirmou supra, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, por força da parte final do nº 2 do artigo 287º do C.P.P., funciona como uma «acusação».
De acordo com o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do S.T.J. de 12/5/2005, publicado no Diário da República, 1ª série de 4/11/2005, está vedada a possibilidade de prolação de um despacho de aperfeiçoamento de tal requerimento.
E a instrução não se destina a completar o inquérito, a apurar novos factos.
Depois, o despacho de 19/4/2022, proferido em sede de debate instrutório, que indeferiu a inquirição da testemunha DD, transitou em julgado, não sendo objecto do presente recurso .
Deste modo, inexistindo qualquer elemento probatório que indique, ainda que através de presunções, de que forma o robot entrou na posse/detenção do arguido – sendo que tal forma é um dos elementos típicos do crime em questão - , e uma vez que o arguido não tem qualquer ónus da prova da sua inocência (cfr. o artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa), impõe-se confirmar a decisão recorrida que decidiu não pronunciar o arguido AA.

V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recursointerposto pelo assistente BB e, em consequência :
- revogar a decisão instrutória na parte em que julgou inadmissível o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, por violar o caso julgado formal;
- no mais, manter o despacho de não pronúncia.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3UC.
Guimarães, 22 de Fevereiro de 2023

(Helena Lamas - relatora)
(Cruz Bucho)
(Ana Teixeira)