Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ANTÓNIO BEÇA PEREIRA | ||
| Descritores: | ARROLAMENTO ÓNUS DE ALEGAÇÃO BENS COMUNS DO CASAL | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 01/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I - No procedimento cautelar de arrolamento de bens preliminar da ação divórcio o cônjuge requerente tem o ónus de alegar e provar factos dos quais resulte que os bens que pretende ver arrolados são bens comuns do casal. II - A presunção de comunicabilidade estabelecida no artigo 1725.º do Código Civil pressupõe um cenário dúvida, isto é, uma concreta situação de facto em que não se consegue alcançar um patamar mínimo de certeza quanto à natureza própria ou comum do bem móvel. Nesse caso a dúvida é resolvida em favor do casal. III - Não estamos numa situação de dúvida, que implique o recurso ao disposto no artigo 1725.º do Código Civil, quando o requerente se limita a identificar determinados bens e a alegar que o regime de bens do casamento é o da comunhão de adquiridos. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I AA instaurou o presente procedimento cautelar de arrolamento de bens preliminar da ação divórcio, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Fafe, contra BB, pedindo que se proceda ao arrolamento de: "a) Contas bancárias, seguros e outros: 1. Conta Bancária - que se encontra aberta no Banco 1..., Balcão ... e ... aberta em nome do requerido, com o IBAN ...09; 2. Quaisquer saldo de depósito à ordem ou a prazo, valores, objetos ou dinheiro em cofre, poupanças, obrigações e/ou fundos bancários, seguros financeiros e não financeiros, certificados de aforro e de tesouro que se encontrem depositados em nome do Requerido, ou deste e de terceiros, nas dependências dos bancos que infra se descriminam, mediante ofício dirigido ao Banco de Portugal, o qual, por sua vez se encarregará de o difundir por todos os bancos e entidades. b) Veículos automóveis: 1. Matrícula ..-NL-..; 2. Matrícula ..-XC-..; 3. Matrícula ..-JV-..; 4. Matrícula ..-CR-..". Alegou, em síntese, que casou com o requerido, sem convenção antenupcial, a 17-8-2017, que este "controla e administra a totalidade dos bens comuns do casal, constituídos, designadamente, por dinheiro depositado em contas bancárias e veículos automóveis" e que "irá intentar a competente ação de divórcio, com vista a dissolver o casamento". O Meritíssimo Juiz proferiu a seguinte decisão: "(…) Face à natureza do arrolamento requerido e porque a audiência prévia da Requerido pode frustrar a eficácia da providência, dissipando os bens cujo arrolamento é requerido, determina-se a tramitação subsequente sem a audição da Requerida. (…) Pelo exposto, julgo o presente procedimento cautelar procedente e, em consequência, ordeno o arrolamento dos bens identificados no final do requerimento inicial. Quanto ao arrolamento de depósitos bancários (o que não invalida a sua possível movimentação pelo seu titular), sendo que nomeio fiel depositário dos mesmos a Requerente e o Requerido, na proporção de metade do respetivo valor, podendo cada um deles movimentar a respetiva conta em metade desse valor. Previamente e nos termos requeridos, solicite ao Banco de Portugal que informe quais as instituições financeiras onde o ex-casal ou o Requerido tem contas bancárias. Com o arrolamento, os veículos automóveis não ficam impedidos de circular, nem devem ser apreendidos os seus documentos. Depositários (no demais): os detentores dos bens." Inconformado com esta decisão, dela o requerido interpôs recurso, findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões: 1. Nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto: 2. A douta decisão em crise, não obstante conter 2 (dois) factos provados, a verdade é que padece de falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, o que configura nulidade por falta de fundamentação de facto, nos termos do artigo 615.º n.º 1 da alínea b) do Código de Processo Civil. 3. Tal dispositivo legal prescreve que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. 4. Assim, considera-se nulidade da sentença quando o julgador deixe de incluir a decisão sobre a matéria de facto (provada e não provada). Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença. 5. Há nulidade (no sentido de invalidade, usado na lei) quando falte em absoluto, a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão. 6. Descendo ao caso concreto, constatamos que a decisão sob recurso, para além de dar como provado o casamento da Requerente e do Requerido, limitou-se a aderir e a dar como reproduzidos aos fundamentos alegados pela Requerente no seu requerimento inicial, o que origina um total desconhecimento dos fundamentos concretos e, por via disso, impossibilita dissentir. 7. In caso o Julgador demitiu-se da função decisória, porquanto, a factualidade (por remissão) não revela uma reflexão pessoal e decisão própria. 8. Andou mal o Tribunal de 1ª Instância quando em violação do n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil não dotou a decisão em apreço de factualidade provada e não provada. 9. Prescreve o n.º 1 do artigo 154.º do Código de Processo Civil que "as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas". 10. Por seu lado o n.º 2 do mesmo preceito legal impõe que "A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade." 11. Neste sentido, decidiu este Tribunal, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-11-2020 (P.º 1307/20.6T8VNF-A.G1, rel. JORGE TEIXEIRA): "No artigo 154, n.º 2, do C.P.C., o legislador afastou a fundamentação meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de aderência a razões invocadas por uma parte, exigindo a fundamentação material ou ativa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pelas partes, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma. Assim, para que a decisão careça de fundamentação "não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente", sendo também "preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito". 12. De facto, através da factualidade dada por provada pelo Tribunal a quo, não é possível conhecer as razões de decidir o que inviabiliza a sindicância da decisão. 13. Posto isto, deve este Tribunal Superior declarar a nulidade da sentença em causa. 14. Sem prescindir, 15. Falta de fundamentação da decisão do tribunal: 16. Analisada a douta decisão constatamos que a exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não existe! 17. Na mui humilde opinião da recorrente e s.m.o. a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância não se apresenta fundamentada, inexistindo qualquer analise critica à factualidade dada como provada/não provada. 18. Preceitua o artigo 607.º , n.º 4 do Código de Processo Civil : "Na fundamentação da sentença , o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzido a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência." 19. Descendo ao caso concreto e analisada a decisão em crise verificamos, sem qualquer sombra de dúvidas, de que a mesma padece de ausência total de fundamentação do julgamento de facto relativo aos "factos provados", porquanto, o Tribunal a quo, na sua decisão, não incluiu qualquer menção relativa à motivação de facto. 20. Com efeito, a decisão não revela qualquer apreciação crítica dos meios de prova, nem tampouco apresenta uma explicação do raciocino lógico e dos pontos que levaram à convicção do Tribunal, o que se traduz numa omissão de qualquer apreciação crítica da prova, impedindo, assim, a sua sindicância. 21. Não foi feita a valoração da consistência probatória e também não foi estabelecida a correlação entre cada um dos factos que foram julgados provados e os meios de prova produzidos. 22. Ante o exposto, é manifesto que a decisão da matéria de facto não se mostra devidamente fundamentada. 23. E a fundamentação visa, como se disse, assegurar a sindicância da decisão, permitindo às partes saber que elementos probatórios o Tribunal considerou e a valoração que lhes atribuiu de forma a em sede de recurso poder contrapor a sua posição, cumprindo os ónus que lhe impõe o artigo 640.º do Código de Processo Civil, e ao tribunal superior fazer o respetivo reexame. 24. A consequência desta "patologia" na decisão da matéria de facto está prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que dispõe: "2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (...) d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados." 25. Posto isto, deve este Tribunal "ad quem" revogar a decisão recorrida e determinar que a Tribunal "a quo" fundamente devidamente, segundo a lei e os critérios expendidos e tendo em conta toda a prova produzida, a sua decisão quanto aos factos provados e não provados, proferindo nova decisão. 26. Ainda sem prescindir, 27. Erro de julgamento do direito 28. Caso este Tribunal entenda não se verificar a nulidade acima indicada, posição que não sufragamos, mas que por mera hipótese académica se aceita poder acontecer, sempre se dirá que se verifica na decisão em crise erro de julgamento quanto à aplicação do direito. 29. Quando o Tribunal decidiu julgar procedente o procedimento cautelar de arrolamento, cometeu um erro de julgamento, porquanto, a verdade é que – mesmo não existindo "factos provados/não provados" – encontrava-se, para apreciação do Tribunal, a verificação dos requisitos da providência cautelar, os quais a 1ª Instância não acautelou na sua decisão! 30. Vejamos, 31. Os requisitos – cumulativos - da providência de arrolamento (não especial) são, pois, os seguintes: a) A probabilidade da existência de um direito sobre bens ou documentos (o designado "fumus boni iuris", requisito indispensável ao decretamento da providência cautelar, que se traduz na possibilidade de antever a aparência do direito invocado pelo requerente à conservação de bens ou documentos); e b) O justo receio ("periculum in mora") de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou de documento (ou seja, que haja receio justificado de que tais bens ou documentos possam ser extraviados ou dissipados). 32. O arrolamento constitui uma providência cautelar de garantia, a qual visa impedir o extravio, a ocultação ou a dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos. 33. In caso estamos perante um arrolamento especial previsto no artigo 409.º do Código de Processo Civil, apenas requerido como preliminar ou incidente de uma "ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento". 34. Também não é menos verdade que, como o Tribunal a quo bem entendeu, não se aplica aos arrolamentos especiais (situação em apreço nos autos) o disposto no n.º 1 do artigo 403.º do Código de Processo Civil, ou seja, o requerente do procedimento encontra-se dispensado de alegar e provar o justo receio ("periculum in mora") de extravio, ocultação ou dissipação de bens, ou de documentos. 35. Como se viu, a lei apenas dispensa a aplicabilidade do estatuído no artigo 403.º, n.º 1, do Código de Processo Civil ao presente procedimento de arrolamento. 36. Deste modo, a dispensa da lei quanto à alegação e prova do periculum in mora não é extensível ao fumus boni juris, pelo que sempre cabe ao requerente demonstrar a séria probabilidade de tais bens serem comuns, ou serem seus, mas estarem sob a administração do outro cônjuge. 37. Sucede que a requerente, ora recorrida, não apresentou qualquer prova, sequer indiciária, de que os bens arrolados são comuns. 38. Relativamente ao casamento da requerente e requerido, ora recorrente, vigora o regime da comunhão de adquiridos. 39. Por conseguinte, 40. Impunha-se à requerente que trouxesse ao Tribunal prova de que os veículos automóveis indicados de matrícula ..-NL-..; ..-XC-..; ..-JV-.. E ..-CR-.. preenchem os bens comuns do ex-casal. Porém a requerente limitou-se a indicar matrículas sem qualquer documento ou qualquer outra prova de que os veículos automóveis por um lado, são propriedade do requerido ou da requerente e, por outro lado, de que foram adquiridos na constância do casamento! 41. Tal prova não apresenta qualquer dificuldade de ser realizada, por via de certidão permanente automóvel. 42. Assim, a requerente, ora recorrida, não cumpriu o ónus que sobre a mesma incorria. 43. Ademais, requereu a requerente o arrolamento de contas bancárias, seguros e outros, não tendo, tampouco, indicado as instituições bancárias em causa (não obstante referir "(...) dependências dos bancos que infra se descriminam (...)" não indica qual banco). 44. Pelo que duvidas não podem existir de que o Tribunal a quo não acautelou o preenchimento dos requisitos necessários à procedência da providência em causa. 45. Ou seja, não tendo a requerente provado, nem sequer alegado qualquer factualidade que pudesse indiciar que os bens arrolados são bens comuns do casal, não poderia o Tribunal a quo, em cumprimento do artigo 405.º do Código de Processo Civil, dar como procedente o pedido da requerente. 46. Em conclusão, faltando um dos pressupostos de que depende a procedência do arrolamento - a probabilidade da existência de um direito sobre bens "fumus boni iuris") - não podia o Tribunal a quo decidir como decidiu. 47. O arrolamento deve ser indeferido liminarmente, porque injustificado, se o requerente (como in casu ocorreu) não invocar algum direito sobre o bem que pretende arrolar, limitando-se a alegar o risco da sua dissipação (neste sentido, o Ac. do STJ de 14-10-1997, P.º 97B599, rel. ROGER LOPES). 48. A decisão sob recurso incorre em erro de julgamento quanto à aplicação do direito, de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa. 49. Analisada a decisão recorrida verifica-se que o Tribunal a quo não procedeu à fixação do valor da causa, não cumprimento ao disposto no artigo 306.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. A requerente contra-alegou sustentando a improcedência do recurso. As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se: a) "a douta decisão em crise (…) padece de falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, o que configura nulidade por falta de fundamentação de facto, nos termos do artigo 615.º n.º 1 da alínea b) do Código de Processo Civil"[2]; b) "a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância não se apresenta fundamentada, inexistindo qualquer análise crítica à factualidade dada como provada/não provada" e, sendo assim, se «deve este Tribunal "ad quem" revogar a decisão recorrida e determinar que a Tribunal "a quo" fundamente devidamente, segundo a lei e os critérios expendidos e tendo em conta toda a prova produzida, a sua decisão quanto aos factos provados e não provados, proferindo nova decisão»[3]; c) "não tendo a requerente provado, nem sequer alegado qualquer factualidade que pudesse indiciar que os bens arrolados são bens comuns do casal, não poderia o Tribunal a quo, em cumprimento do artigo 405.º do Código de Processo Civil, dar como procedente o pedido da requerente"[4]. II 1.º Foram julgados provados os seguintes factos: 1. A Requerente e o Requerido contraíram casamento católico e sem convenção antenupcial, em 15-08-2017. 2. A Requerente pretende instaurar ação de divórcio contra o Requerido, sendo os fundamentos alegados no requerimento inicial e cujo teor se considera reproduzido, idóneos à procedência da mesma. 2.º Segundo o requerido, "a douta decisão em crise (…) padece de falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, o que configura nulidade por falta de fundamentação de facto, nos termos do artigo 615.º n.º 1 da alínea b) do Código de Processo Civil". Na sua perspetiva o tribunal a quo "não dotou a decisão em apreço de factualidade provada e não provada". Com o devido respeito, não se compreende esta alegação do requerido, pois é manifesto que na decisão recorrida constam dois factos que foram julgados provados. Por outro lado, o requerido não identifica qualquer facto alegado na petição inicial que devesse ter sido considerado provado ou não provado. Aliás, esta afirmação do requerido está em oposição com o que adiante ele defende, quando diz que inexiste "qualquer análise crítica à factualidade dada como provada/não provada"[5]. Acresce que, como a jurisprudência e a doutrina vêm dizendo, "só a falta absoluta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, mas já não a que decorre de uma fundamentação incompleta, errada, medíocre, insuficiente ou não convincente"[6]. Com efeito, "para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta"[7]. Assim, neste contexto não ocorre a apontada nulidade da sentença. 3.º O requerido sustenta ainda que "a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância não se apresenta fundamentada, inexistindo qualquer análise crítica à factualidade dada como provada/não provada" e, sendo assim, «deve este Tribunal "ad quem" revogar a decisão recorrida e determinar que a Tribunal "a quo" fundamente devidamente, segundo a lei e os critérios expendidos e tendo em conta toda a prova produzida, a sua decisão quanto aos factos provados e não provados, proferindo nova decisão». Se bem se interpreta o pensamento do requerido, o que, na sua ótica, está aqui em causa é a omissão da fundamentação da decisão da matéria de facto julgada provada. Porém, na sentença recorrida afirma-se que "atento o teor do documento juntos e pelo teor da petição inicial, o Tribunal considera como factos provados" os factos que depois enuncia. Há que reconhecer que o Meritíssimo Juiz não fundamentou este segmento da decisão com o cuidado que era desejável. Não obstante, afigura-se que acabou por dizer o mínimo suficiente para se poder perceber que o tribunal a quo alicerçou o julgamento da matéria de facto no teor da certidão de casamento junta aos autos e na afirmação da requerente contida no artigo 3.º da petição inicial. Não há, por conseguinte, justificação bastante para que, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º, o processo baixe à 1.ª instância. 4.º Por último o requerido defende que "não tendo a requerente provado, nem sequer alegado qualquer factualidade que pudesse indiciar que os bens arrolados são bens comuns do casal, não poderia o Tribunal a quo, em cumprimento do artigo 405.º do Código de Processo Civil, dar como procedente o pedido da requerente"[8], visto que "a dispensa da lei quanto à alegação e prova do periculum in mora não é extensível ao fumus boni juris, pelo que sempre cabe ao requerente demonstrar a séria probabilidade de tais bens serem comuns, ou serem seus, mas estarem sob a administração do outro cônjuge". Contrapõe a requerida dizendo que, "comprovado o regime de bens do casal (comunhão de adquiridos) e considerada a presunção de comunicabilidade dos bens móveis (artigo 1725.º do CC), está preenchido o fumus boni juris que justifica o decretamento do arrolamento dos veículos automóveis". Vejamos. O n.º 1 do artigo 409.º estabelece que "como preliminar (…) da ação de (…) divórcio (…) qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro." Neste arrolamento é "dispensada a alegação e prova de uma situação que configure justo receio de dissipação ou ocultação"[9], dado que «a situação de conflito que normalmente acompanha este tipo de situações (…) faz (...) "presumir", juris et de jure, o periculum in mora, quer no plano da prova, quer no da própria alegação»[10]. Contudo, "o cônjuge requerente tem de provar que (…) há a séria probabilidade de os bens a arrolar serem comuns, ou serem seus, mas estarem sob a administração do outro cônjuge"[11]. Na verdade, "o citado normativo não dispensa o requerente da prova sumária de que os bens a arrolar são comuns"[12]. Portanto, contrariamente ao que afirma a requerente, não basta que se comprove que o regime de bens do casal é o da comunhão de adquiridos. Devemos ter presente que neste regime há bens próprios[13], como por exemplo os anteriores ao casamento[14] e os adquiridos por sucessão ou doação. E a presunção do artigo 1725.º do Código Civil só funciona perante uma situação de dúvida[15]; ou seja, é necessário que nos defrontemos com um concreto cenário em que não se consegue alcançar uma certeza quanto aos factos que determinam a natureza do bem, normalmente porque cada um dos cônjuges apresenta uma versão diferente relativamente à forma ou ao momento em que o bem foi adquirido. Numa situação de incerteza a dúvida é, então, resolvida em favor do casal e não de um dos cônjuges. Mas para que essa dúvida ocorra não basta que o requerente se limite a identificar determinados bens e a alegar que o regime de bens do casamento é o da comunhão de adquiridos. No nosso caso, olhando para os factos provados verificamos até que neles nem sequer figura um qualquer bem. Fica assim claro que a requerente não provou facto algum que, de alguma forma, indicie que os bens que constam no seu pedido de arrolamento são bens comuns do casal ou que, sendo somente seus, se encontram sob a administração do requerido. E também nada se provou que nos coloque perante a dúvida que a presunção do artigo 1725.º do Código Civil resolve. Portanto, é evidente que este procedimento de arrolamento está votado ao insucesso. 5.º De qualquer modo, afigura-se oportuno dar ainda nota de que na petição inicial a requerente não alegou factos que, à luz de uma "prova perfunctória"[16], possam conduzir o julgador ao juízo de que "se encontre indiciariamente provado"[17] que os bens que pretende arrolar são bens comuns do casal. Nesta parte a requerente alegou apenas, e de modo conclusivo, que os bens comuns do casal são "constituídos, designadamente, por dinheiro depositado em contas bancárias e veículos automóveis", que "o Requerido controla e administra todas as contas bancárias em que se encontra depositado dinheiro que é bem comum do casal" e que "o Requerido encontra-se na posse dos veículos automóveis com as matrículas ..-NL-.., ..-XC-.. e ..-CR-.., adquiridos em compropriedade por Requerente e Requerido". Quanto às contas bancárias, no articulado da petição inicial[18] a requerente, para além de não as identificar ou de justificar por que as não pode identificar, também não diz quem é o seu titular (nomeadamente se um ou ambos os cônjuges), quem aí tem vindo a fazer depósitos e a proveniência dos valores depositados. Relativamente aos veículos, se, como afirma a requerente, eles foram "adquiridos em compropriedade"[19], então não se trata de bens integrados na comunhão do casal enquanto tal. Com efeito, "no âmbito da propriedade dos bens comuns do casal, também chamada comunhão de mão comum, não assiste aos contitulares o direito a uma quota ideal sobre cada um dos bens integrados na comunhão, mas sim o direito a uma fração ideal sobre o conjunto do património comum, como é o direito à meação do património do casal, a ser efetivado mediante partilha do mesmo, nos termos do disposto no artigo 1689.º, n.º 1. (…) O direito dos respetivos membros não incide diretamente sobre cada um dos elementos que constitui o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário (…). Os bens comuns constituem uma massa patrimonial à qual a lei, tendo em vista a sua especial afetação, concede um certo grau de autonomia, e pertence aos dois cônjuges, podendo dizer-se que ambos são titulares de um único direito. (…) Na compropriedade, o consorte é titular de uma quota ideal que recai especificamente sobre o bem indiviso, assistindo-lhe o direito de exigir a divisão da coisa comum, nos termos dos artigos 1403.º, 1412.º e 1413.º. O entendimento dominante é que, nesta, o direito de cada um dos comproprietários exprime-se por uma quota qualitativamente igual às demais, mas que pode ser quantitativamente diferente (art.ºs 1403.º n.º 1 e 2 e 1408.º)."[20] Aqui chegados, se "houver bens em regime de compropriedade, não se aplica o disposto no n.º 1 (e 3) [do artigo 409.º]. O cônjuge interessado pode requerer para esses bens uma providência cautelar comum (art. 362.º, n.º 1)."[21] No que toca aos veículos automóveis, se por hipótese entendermos que se deve colocar de lado a referência à compropriedade, então verificamos que a requerente não alegou um mínimo de factos suscetíveis de deles se extrair a conclusão de que se trata de bens comuns do casal, nomeadamente não alegou a data da aquisição dos mesmos[22]. III Com fundamento no atrás exposto revoga-se a decisão recorrida e julga-se improcedente o pedido de arrolamento. Custas pela requerente. Notifique. António Beça Pereira Alcides Rodrigues Maria dos Anjos Nogueira [1] São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência. [2] Cfr. conclusão 2.ª. [3] Cfr. conclusões 17.ª e 25.ª. [4] Cfr. conclusão 15.ª. [5] Cfr. conclusão 17.ª. [6] Ac. STJ de 21-6-2011 no Proc. 1065/06.7TBESP, em www.gde.mj.pt. [7] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 687. Neste sentido pode também ver-se Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 703, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221, Alberto dos Reis CPC Anotado, Vol. V, 1952, pág. 140, Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 806, Ac. STJ de 1-3-2018 no Proc. 4290/09.5 TBCSC.L1.S1, Ac. STJ de 15-5-2019 no Proc. 835/15.0T8LRA.C3.S1, Ac. STJ de 10-5-2021 no Proc. 3701/18.3T8VNG.P1.S1, Ac. STJ de 16-11-2022 no Proc. 1060/19.6T8BRR.L1.S1, Ac. STJ de 16-3-2023 no Proc. 1377/18.7T8LSB.L1.S1, Ac. STJ de 18-4-2023 no Proc. 9560/21.1T8PRT-A.P1.S1, Ac. STJ de 16-11-2023 no Proc. 4286/20.6T8ALM-B.L1.S1 e Ac. STJ de 4-4-2024 no Proc. 5223/19.6T6STB.E1.S1, estes em www.gde.mj.pt. [8] Cfr. conclusão 15.ª. [9] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 501. [10] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, pág. 198. [11] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, pág. 199. [12] Ac. Rel. Guimarães de 12-11-2020 no Proc. 1555/19.1T8BCL-A.G1, www.gde.mj.pt. [13] Cfr. artigo 1722.º do Código Civil. [14] E na situação sub iudice o casamento é de 2017; não se trata de um casamento com 20 ou 30 anos. [15] Neste sentido veja-se Ac. Rel. Guimarães de 16-11-2023 no Proc. 613/20.4T8BCL.G1 e Ac. Rel. Coimbra de 15-10-2019 no Proc. 680/17.8T8GRD.C1, www.dgsi.pt. [16] Ac. STJ de 13-4-2010 no Proc. 168/06.2TBVGS, www.gde.mj.pt. [17] Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2.ª Edição, pág. 182. [18] No artigo 6.º da petição inicial a requerente usa o plural, mas no pedido acaba por identificar só uma conta. Fica a ideia de que apenas pretende o arresto da conta no Banco 1..., Balcão ... e ..., com o IBAN ...09. [19] Cfr. artigo 9.º da petição inicial. [20] Ac. Rel. do Porto de 15-4-2021 no Proc. 17294/18.8T8PRT-A.P1, www.gde.mj.pt. [21] Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, novembro de 2024, pág. 127, https://blogippc.blogspot.com. Mas nesse procedimento cautelar comum o requerente já terá, para além do mais, de demonstrar a existência de "fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito". [22] Aliás, essa insuficiência de factos também ocorre quanto à alegada aquisição em compropriedade. |