Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
41/21.4T8CLB.G1
Relator: PEDRO MANUEL QUINTAS RIBEIRO MAURÍCIO
Descritores: PRAZO DE CADUCIDADE
LEGISLAÇÃO COVID-19
SUSPENSÃO DE PRAZO
ALARGAMENTO DO PRAZO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O art. 7º da Lei nº1-A/2020, de 19/03, que previa, nos seus nºs. 3 e 4, a suspensão generalizada dos prazos de caducidade (e de prescrição), foi revogado pelo art. 8º da Lei nº16/2020, de 29/05, com efeitos a partir de 03/06/2020, pelo que terminou aquela suspensão generalizada e tais prazos devem e tem que ser calculados como se a suspensão não tivesse tido lugar (o preceito que a previa deixou de existir do ordenamento jurídico).
II - Mas, por força do disposto no art. 6º da mesma Lei nº16/2020, aqueles prazos devem ser alargados por um período de tempo correspondente ao período da suspensão entre 09/03/2020 e 02/06/2020 (num total de 86 dias), não podendo aquele art. 6º ser interpretado no sentido de criar uma situação de duplicação do período de suspensão e do período de alargamento do prazo.
III – O art. 5º da Lei nº13-B/2021, de 05/04, dispõe exactamente no mesmo sentido que o referido art. 6º da Lei nº16/2020, pelo que deve ser interpretada no mesmo sentido: a) o art. 6ºB da Lei nº4-B/2021, de 05/04, que previa, nos seus nºs. 3 e 4, a suspensão generalizada dos prazos de caducidade (e de prescrição), foi revogado pelo art. 6º da Lei nº13-B/2021, de 05/04, com efeitos a partir de 06/04/2021, pelo que terminou aquela suspensão generalizada e tais prazos devem e tem que ser calculados como se a suspensão não tivesse tido lugar (o preceito que a previa deixou de existir do ordenamento jurídico); b) Por força do disposto no art. 5º da mesma Lei nº13-B/2021, devem ser alargados por um período de tempo correspondente ao período da suspensão entre 22/01/2021 e 05/04/2021 (num total de 74 dias), não podendo aquele art. 5º ser interpretado no sentido de criar uma situação de duplicação do período de suspensão e do período de alargamento do prazo.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada

A Autora Aluguer..., Lda interpôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum,  contra a Ré Via ... - Comércio de Peças e Acessórios Auto, Lda pedindo que «ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de € 44.216,92, acrescida de juros que se vencerem, à taxa legal, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento».

Fundamentou a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «dedica-se à prestação de serviços de pronto socorro a automóveis ligeiros e pesados reboque de veículos; é dona do veículo de marca ..., com a matrícula ..-US-.., que é um pronto-socorro; em Novembro de 2019, teve uma avaria na caixa de velocidades; foi levado à oficina, tendo sido desmontada a caixa e feito o diagnóstico da avaria, com identificação das peças necessárias para a reparação, que a Autora adquiriu à Ré, entregando-as na oficina, onde foi realizada a reparação; cerca de três meses após a reparação, a Autora constatou que a caixa de velocidades do mesmo apresentava resistência quando era engrenada a 4ª velocidade, e a viatura foi novamente levada à oficina, onde se  constatou que a anilha sincronizadora da 4ªvelocidade havia partido e que o 1ºcarreto do trem fixo estava gripado; a Autora reportou o que se estava a passar à Ré e exigiu a substituição dos artigos fornecidos com defeito, tendo a Ré solicitado o envio do material danificado para análise, o qual devolveu ainda mais danificado; em 31/08/2020, a Autora comunicou à Ré que se encontrava privada do veículo desde 16/03/2020 e que ia mandar reparar o veículo em causa, por forma a evitar o avolumar dos prejuízos, e mais informou que havia adquirido o material necessário à reparação, no que havia despendido a quantia de €1.346,56; a privação não se pode computar em menos de €200,00 diários, mais IVA; a oficina entregou à Autora o veículo reparado em 03/09/2020, tendo a Autora pago o montante de € 804,38; esta última reparação do veículo deveu-se única e exclusivamente ao facto de as peças terem sido fornecidos com defeitos pela Ré à Autora».
A Ré contestou, pugnando por «a) Ser julgada procedente a exceção da incompetência relativa do Tribunal com a consequente remessa do processo para o Tribunal competente; b) Ser julgada procedente por provada a exceção perentória da caducidade da ação, com a consequente absolvição do pedido; ou caso assim se não decida, c) Ser a ação julgada improcedente por não provada, com as legais consequências».
Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «o Tribunal competente para apreciar a presente acção é o Juízo Local Cível ..., local da sede da Ré e lugar do cumprimento da obrigação; a Autora dispunha do prazo de seis meses sobre a data da denúncia,
para intentar a presente ação; a denúncia ocorreu em data necessariamente anterior a 19/05/2020, pelo que o direito de ação já se encontrava caducado quando a presente ação deu entrada em tribunal no dia 12/04/2021; no âmbito das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos estiveram suspensos entre 09/03/2020 e 06/06/2020, inclusive, pelo que a contagem do prazo de caducidade de ação, apesar da denúncia ser anterior, só se iniciou a 0706/2020, tendo o mesmo terminado a 07/12/2020; na altura da encomenda das peças, foi a Autora aconselhada pela R. a comprar os kits sincronizadores completos, já que a aplicação de peças novas num kit já desgastado, nomeadamente, a colocação de uma anilha nova num cone já usado e desgastado, poderia não resolver o problema; apesar de avisada, a Autora optou por adquirir as peças “avulsas” e não o kit completo; não existe qualquer defeito de fabrico das peças fornecidas pela Ré; as peças novas não encaixaram devidamente nas peças usadas, devido ao desgaste destas últimas e foram estas folgas que deram origem a um novo problema mecânico; os carretos da caixa de velocidades não terão sido devidamente montados; a oficina reparadora ao “dar calor” e usar uma rebarbadora para cortar peças, impediu por completo que a Ré pudesse fazer uma avaliação das peças, bem como, demonstrar agora, que estas não padeciam de qualquer defeito; a demora de cerca de seis meses na reparação do veículo, resultou de decisão da responsabilidade da Autora, pelo que os eventuais prejuízos sofridos pela privação do uso do veículo surgiram por sua culpa exclusiva».
A Autora respondeu à matéria das excepções, pugnando por «serem julgadas improcedentes as excepções de incompetência relativa do tribunal e de caducidade invocadas pela ré em sede de contestação».
Por decisão proferida na data de 01/10/2021, foi julgada “procedente a excepção de incompetência relativa do tribunal em razão do território e, em consequência, declaro o presente Tribunal incompetente, em razão do território, para conhecer desta acção, por ser competente o Juízo Local Cível ..., para onde se determinará seja o processo remetido”.
Foi proferido despacho saneador, no qual, para além do mais, identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte decisório: “Nestes termos e perante todo o exposto, julga-se procedente a excepção peremptória de caducidade invocada pela Ré Ré Via ... – Comércio de Peças e Acessórios Auto, Lda. e, em consequência, absolvo-a do pedido”.
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1.2. Do Recurso da Autora

Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso de apelação, pedindo que seja “o presente recurso julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, condenando-se a recorrida no pedido pelos motivos supra expendidos”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:

“I- A recorrente considera que o Tribunal a quo não interpretou, nem aplicou, correctamente as disposições legais que criaram, também em matéria de prescrição e caducidade, medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19.
II- Na verdade, face às medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19, os prazos de prescrição e caducidade estiveram suspensos, [nos termos do disposto no art.º 7º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03] desde 09/03/2020 (art.º 10º da predita Lei n.º 1-A/2020) até ao dia 03/06/2020, [nos termos do disposto no art.º 10º da Lei n.º 16/2020, de 29/05], ou seja, durante 86 dias.
III- Ora, em face do disposto no artigo 7º nºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, e no artigo 6º da Lei n.º 16/2020, de 29/05, o prazo de caducidade foi alargado pelo período de tempo em que vigorou a suspensão, ou seja, por mais 86 dias, o que perfaz um período total de 172 dias (86 dias de suspensão + 86 dias do alargamento do prazo de caducidade).
IV- Nessa medida, no caso dos autos, o prazo para instaurar a acção iniciou-se no dia 27 de Agosto de 2020 - e não, como se verteu na sentença recorrida, em 3 de Junho de 2020, porque, por erro de interpretação das sobreditas normas legais, apenas se consideraram os 86 dias de suspensão e não também, como se impunha, os 86 dias do alargamento do prazo de caducidade - e terminaria em 27 de Fevereiro de 2021.
V- Em consequência desse erro de interpretação, o Tribunal a quo não aplicou, como se lhe impunha, as outras normas legais que, também no âmbito da pandemia da doença COVID-19, impuseram a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade,
VI- Sendo que tais prazos também estiveram suspensos, [nos termos do disposto no art.º 6º-B, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02] desde 22/01/2021 (art.º 4º da predita Lei n.º 4-B/2021) até ao dia 06/04/2021, [nos termos do disposto nos art.ºs 6º e 7º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04], ou seja, durante 74 dias.
VII- Sendo que, das disposições conjugadas dos artigos 6º-B nºs 3 e 4 da Lei n.º 4- B/2021, de 01/02, e do artigo 5º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, resulta que o prazo de caducidade foi alargado pelo período de tempo em que vigorou a suspensão, ou seja, foi acrescido de mais 74 dias, o que perfaz um período total de 148 dias (74 dias de suspensão + 74 dias do alargamento do prazo de caducidade).
VIII- Destarte, aplicando ao caso sujeito as citadas normas dos aludidos diplomas legais, podemos concluir da seguinte forma:
- Se não tivesse ocorrido a suspensão do prazo de caducidade, e conforme consta da sentença recorrida, a presente ação tinha de ser proposta “… até ao mês de Outubro de 2020”.
- Por força da suspensão do prazo de caducidade e do alargamento desse prazo pelos períodos de tempo em que vigorou a suspensão, determinados nas Leis mencionadas nos art.ºs 4º a 6º e 11º a 13º desta peça processual, ao prazo de caducidade inicial foram acrescidos 320 dias.
- Admitindo, no pior cenário para a recorrente, que a acção tivesse que ser instaurada até dia 1 de Outubro de 2020, temos que, feita a contagem dos 320 dias, o limite do prazo para a propositura desta ação foi o dia 17 de Julho de 2021,
IX- Pelo que, tendo a presente ação sido proposta no dia 12 de Abril de 2021, é manifesto que foi instaurada tempestivamente, isto é, dentro do prazo estabelecido nas leis vigentes.
X- Ao não ter decidido assim, violou o Tribunal a quo, por erro de interpretação, as disposições conjugadas do artigo 7º nºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, e do artigo 6º da Lei n.º 16/2020, de 29/05,
XI- Sendo que, em consequência desse erro de interpretação, o Tribunal a quo deixou de aplicar as disposições conjugadas dos artigos 6º-B nºs 3 e 4 da Lei n.º 4- B/2021, de 01/02, e do artigo 5º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, que, assim, igualmente resultaram violadas.
XII- Por conseguinte, no caso sujeito, é manifesto que não se verifica a excepção da caducidade, devendo, em conformidade, nesta parte, julgar-se procedente a apelação, com as legais consequências.
XIII- Ora, a ver da recorrente, esta Relação não pode conhecer das demais questões suscitadas pelas partes, dado que, quanto aos danos sofridos pela recorrente, o Tribunal a quo não se pronunciou relativamente ao alegado pela recorrente nos artigos 35º e 36º da petição inicial,
XIV- Sendo que, a ver da recorrente, na sentença recorrida, também não se fez a análise crítica da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, uma vez que, como resulta da leitura daquela sentença, o Tribunal a quo limitou-se a decidir a grande maioria dos factos com base nas declarações das testemunhas x, y e/ou z ou dos legais representantes das partes – veja-se a motivação dos factos 4, 5 a 7, 25, 28 a 30, 36, 37, 38, 47 a 50, 53, 54, 55, 56 e 57 – sendo que, para o efeito, cingiu-se, a fls. 13 da sentença recorrida, à reprodução daquilo que considerou que elas relataram,
XV- Sem que, todavia, explicitasse porque acreditou em certa testemunha e não em outra, se uma testemunha foi ou não espontânea, hesitante, peremptória, assertiva, com um depoimento pensado, interessado, descontextualizado, etc.
XVI- Em consequência dessa omissão da análise crítica, o Tribunal a quo nem sequer conseguiu dar prevalência a um dos “…dois depoimentos contraditórios e divergentes entre si, quanto à causa dos problemas mecânicos surgidos no veículo ..-US-..”, em manifesto prejuízo da recorrente,
XVII- A qual, porque não se pode conformar com a decisão tomada pelo Tribunal a quo relativamente à matéria de facto, por mera cautela processual, a impugna, para a eventualidade desta Relação fazer uso do disposto no artigo 665 nº 2º daquele Código.
XVIII- Ora, considera a recorrente que, em face dos factos dados como provados, da prova testemunhal produzida e dos documentos juntos aos autos, nunca poderia o Tribunal a quo dar como não provado o seguinte facto:
“As peças constantes da factura referida no artigo 8º desta peça ( fls. 22 dos autos ) - nomeadamente um sincronizador e dois carretos – foram fornecidas com defeito pela Ré à Autora”.
XIX- Na verdade, tendo o Tribunal a quo dado como provados os factos constantes dos pontos 5 a 20 dos Factos Provados, é evidente que as peças – o sincronizador/anilha sincronizadora da quarta velocidade e os carretos da quinta e sexta velocidades – fornecidos pela recorrida à recorrente o foram com defeito, pois que, é absolutamente anormal que o sincronizador/anilha sincronizadora da quarta velocidade partisse quando o veículo tinha percorrido apenas 979 quilómetros – cfr. os factos 6 e 12 dados como provados ( 408729 km – 407750 km = 979 km ),
XX- Dado que, esse sincronizador/anilha sincronizadora, quando vendido no estado de novo ( como sucedeu no caso sujeito ) dura pelo menos 300 000 ( trezentos mil ) quilómetros.
XXI- Ora, a causa da avaria referida no ponto 11 dos factos provados da sentença recorrida e que motivou que o veículo da autora tivesse que ser reparado na oficina da A..., S.A., foi justamente o facto daquele sincronizador, fornecido pela ré à autora, ter partido,
XXII- E só partiu por defeito do material, porque não é normal um sincronizador partir, tal como resulta, de forma cristalina, do trecho do depoimento prestado, de forma espontânea, objectiva e assertiva, pela testemunha A..., - chefe de oficina há 45 anos na A..., S.A., a qual é representante oficial da ... há 30 anos e da ... ( marca do veículo da autora ) há 15 anos, indicado no artigo 35º da motivação,
XXIII- Sendo que, “Para se substituir o sincronizador, era necessário retirar os dois carretos da quinta e sexta velocidades, igualmente fornecidos, no estado de novo, sob as referências 34D e 6A3D, pela ré à autora” – cfr. o facto 15 dado como provado na sentença recorrida.
XXIV- Ora, resulta do depoimento prestado, de forma igualmente descomprometida e peremptória, pela testemunha A... que, nesse processo de substituição do sincronizador, constatou-se que os dois carretos referidos na anterior conclusão, foram fornecidos, pela ré à autora, com medidas desconformes e também com defeito – cfr. o trecho do depoimento referido no artigo 37º da motivação.
XXV- Ora, pese embora ter dado relevância ao depoimento da testemunha A... para dar como provados os factos referidos nos pontos 5 a 7 e 9 a 20 dos Factos Provados, certo é que, de forma incompreensível - porque, como se supra se referiu, infundada - o Tribunal a quo não deu como provada a causa – o defeito do sincronizador - invocada por esta testemunha como causa da avaria referida no ponto 11 dos factos provados da sentença recorrida,
XXVI- Por considerar que “… a testemunha AA afirmou que a avaria ficou a dever-se à má montagem das peças” e que, por isso, “Perante a divergência e discrepância dos aludidos depoimentos, fica por apurar e por esclarecer a que se deveu a avaria ocorrida em Março de 2020 e aqui em causa”.
XXVII- Salvo o devido respeito, tal conclusão é absolutamente inaceitável e só se pode dever ao facto do Tribunal a quo, ao arrepio do que o artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil impõe, não ter procedido à análise crítica dessa prova testemunhal,
XXVIII- Antes se tendo limitado, como resulta da leitura da sentença recorrida, a reproduzir o mero significado das palavras das testemunhas A... e AA, sem explicitar porque não acreditou em, ou deu prevalência a, qualquer um dos depoimentos,
XXIX- Sem evidenciar a importância do modo como elas depuseram, nomeadamente, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou esses depoimentos.
XXX- Ora, ao passo que, como claramente flui da audição do seu depoimento, a testemunha A... depôs de uma forma espontânea, objectiva e assertiva,
XXXI- Já a testemunha AA depôs de uma forma especulativa, pensada, parcial ( porque interessado em defender a posição da ré ) e, mesmo, exaltada, conforme limpidamente flui do trecho do seu depoimento referido no artigo 45º da motivação.
XXXII- Face ao exposto, em face dos concretos meios probatórios consubstanciados no teor de fls. 22 dos autos, nos documentos juntos com a P.I. sob os nºs 3 a 5 e no depoimento da testemunha A..., nesta parte, deve:
a) aditar-se aos Factos Provados a seguinte matéria de facto: “20.A- O sincronizador e os carretos referidos nos pontos 14 e 15 foram fornecidos com defeito pela Ré à Autora”
b) eliminar-se dos Factos Não Provados a seguinte matéria de facto: “As peças constantes da factura referida no artigo 8º desta peça (fls. 22 dos autos) – nomeadamente um sincronizador e dois carretos – foram fornecidas com defeito pela Ré à Autora”.
XXXIII- Da matéria de facto assim alterada e fixada, resulta que a recorrente logrou provar, como lhe competia, a responsabilidade da recorrida no pagamento da indemnização peticionada,
XXXIV- Pelo que se impunha a procedência da acção e a consequente condenação da recorrida no pedido.
XXXV- Pelos motivos supra expendidos, deverá ser revogada a decisão recorrida, condenando-se a recorrida no pedido de pagamento à recorrente da quantia de €44.216,92, a título de capital, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos desde a data da citação até integral pagamento”.
A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).

Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pela 2ªRé, são duas questões a apreciar por este Tribunal ad quem:

1) Se se verifica a caducidade do direito de acção;
2) Caso se responda negativamente à questão anterior, se este Tribunal ad quem pode conhecer das questões que não foram objecto de apreciação pelo Tribunal a quo;
3) Caso se responda afirmativamente à segunda questão, se a sentença recorrida deve ser alterada quanto à matéria de facto provado e não provada nos termos indicados pela Autora;
4) E, caso se responda afirmativamente à terceira questão (parcial ou totalmente), se assiste à Autora o direito a ser indemnizada.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:

1- A Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto e se dedica efectivamente, para além do mais, à prestação de serviços de pronto socorro a automóveis ligeiros e pesados e reboque de veículos – cfr. documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2- A Ré é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto e se dedica efectivamente ao comércio de peças e acessórios para automóveis;
3- A Autora é, desde 11 de Maio de 2018, dona e legítima possuidora do veículo de marca ... com a matrícula ..-US-.. – cfr. documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
4- Veículo esse que é um pronto-socorro, que a autora utiliza diariamente, 24 horas por dia e 7 dias por semana, no desenvolvimento do seu objecto social;
5- Em Novembro de 2019, o veículo ..-US-.. teve uma avaria na caixa de velocidades, pois que a mesma fazia um ruído e apresentava resistência (“arranhava”) quando era engrenada a quinta velocidade;
6- Por isso, no dia 18 de Novembro de 2019, o veículo ..-US-.. deu entrada, com 407750 km percorridos, nas instalações da A..., S.A., oficina autorizada da marca ..., sita no Porto ..., Guarda;
7- A A..., S.A., procedeu então à desmontagem da caixa, ao diagnóstico da avaria e à identificação de todas as peças necessárias para a reparação;
8- As quais foram adquiridas pela Autora à Ré, conforme factura nº...70, emitida pela ré em 6 de Dezembro de 2019, no valor de € 1.009,84 - documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (fls. 22 dos autos);
9- A Autora entregou à A... as peças que adquiriu à Ré;
10- Tendo a A... procedido à reparação do ..-US-..;
11- Cerca de três meses após a reparação, a Autora constatou que a caixa de velocidades do veículo ..-US-.. apresentava resistência (“arranhava”) quando era engrenada a quarta velocidade;
12- O veículo ..-US-.. deu entrada, no dia 16 de Março de 2020, com 408729 km percorridos, nas instalações da A..., S.A.;
13- A qual procedeu então à desmontagem da caixa e ao diagnóstico da avaria;
14- Constatou-se, então, que uma das peças fornecidas pela ré à autora para efeitos da reparação supra referida - o sincronizador/anilha sincronizadora da quarta velocidade – havia partido – cfr. documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
15- Para se substituir o sincronizador, era necessário retirar os dois carretos da quinta e sexta velocidades, igualmente fornecidos, no estado de novo, sob as referências 34D e 6A3D, pela ré à autora – cfr. o documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
16- Sucede, porém, que, ao ser retirado o primeiro carreto do trem-fixo, referente à quinta velocidade, verificou-se que este estava demasiado apertado ao veio do trem-fixo, não sendo possível a sua desmontagem;
17- Tendo o mesmo partido, pelo que foi cortado com uma rebarbadora para o poder retirar do veio;
18- Após a desmontagem de tal carreto, verificou-se que o mesmo tinha rodado no veio do trem-fixo, provocando assim a sua gripagem - cfr. documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
19- Constatou-se também que esse carreto não assentava de forma uniforme no veio, pois que só estava em contacto com o veio em dois terços da sua circunferência, quando devia assentar na totalidade do veio – cfr. documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
20- A A..., S.A. não conseguiu retirar o segundo carreto;
21- A Autora reportou então o que se estava a passar à Ré, tendo exigido a substituição dos artigos fornecidos;
22- A Ré apresentou então o orçamento nº ...58, datado de 19 de Maio de 2020, no montante de € 997,89 – cfr. documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (fls. 28 dos autos);
23- Confrontada com o facto de as peças terem que ser substituídas ao abrigo da garantia, a Ré solicitou então à autora que o material danificado (o grupo todo) lhe fosse enviado para análise;
24- A Ré devolveu à Autora, em 20 de Julho de 2020, o material danificado – documentos nºs ... a ...2 juntos com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
25- A Ré tentou retirar o segundo carreto – aquele que a A... S.A. não havia conseguido retirar - mas não o conseguiu, tendo-o partido todo e enviado o mesmo para a Autora aos bocados;
26- A Autora enviou um e-mail à Ré datado de 21 de Julho de 2020, nos termos constantes de fls. 35 dos autos (documento nº ...3 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):
27- A Autora enviou à Ré, por e-mail e através de registo postal, uma carta datada de 31 de Agosto de 2020, junta aos autos como documento nº ...4 com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (fls. 36 a 40 dos autos);
28- O veículo encontrou-se, desde 19 de Março de 2020 e até 3 de Setembro 2020 (data em que foi entregue, reparado, pela A..., S.A. à Autora), imobilizado e impossibilitado de ser afecto à actividade da Autora;
29- Durante o período mencionado em 28- dos factos provados, a Autora teve a solicitação de serviços de reboque;
30- A A..., S.A. entregou à Autora o veículo ..-US-.. reparado em 3 de Setembro de 2020;
31- Tendo emitido, em 15 de Setembro de 2020, a factura nº ...24, no montante de € 804,38, que a Autora lhe pagou - cfr. documento nº ...6 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (fls. 43 e 44 dos autos);
32- De seguida, a Autora enviou à Ré o e-mail datado de 22 de Setembro de 2020, nos termos constantes de fls. 46 dos autos (documento nº ...7 junto com a petição inicial) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
33- Através desse e-mail, a Autora solicitou à Ré que, até ao dia 30 de Setembro de 2020, lhe pagasse a quantia global de € 44.216,92, assim discriminada: a) € 804,38 – a título de reembolso do montante pago pela reparação; b) € 1.346,56 – a título de reembolso do montante pago pelo material necessário à reparação; c) € 42.066,00 – a título de privação do uso do veículo ..-US-.. entre os dias 16 de Março de 2020 e o dia 3 de Setembro de 2020, à razão de € 246,00/dia (€ 200,00 mais IVA);
34- Ao receber esse e-mail, a Ré enviou à Autora a carta datada de 22 de Setembro de 2020, junta sob documento nº ...8 da petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (fls. 47 a 49 dos autos), através da qual transmitiu à Autora, que não aceitava a responsabilidade relativamente aos problemas surgidos com a caixa de velocidades do ..-US-..;
35- As peças fornecidas pela Ré destinavam-se à reparação da caixa de velocidades de um veículo marca ..., com a matrícula ..-US-..;
36- Na caixa de velocidades de um veículo, existe um kit sincronizador para cada velocidade, o qual é constituído por várias peças, nomeadamente anilhas;
37- A Autora optou por comprar as peças identificadas na factura constante de fls. 22 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
38- Na altura da encomenda das referidas peças, a Autora foi aconselhada pela Ré a comprar os kits sincronizadores completos;
39- A reparação ficou a cargo da oficina autorizada da marca ..., propriedade da sociedade A..., S.A., NIPC ...;
40- Em Abril de 2020, o Sr. BB, em representação da Autora, contactou o funcionário da Ré, CC, a reclamar das ditas peças e a pedir a substituição das mesmas;
41- Perante tal reclamação, foi solicitado à Autora que enviasse uma exposição dos factos, para uma melhor compreensão do que se estaria a passar;
42- Por isso, em 14 de Abril de 2020, BB enviou um email, no qual seguia em anexo um relatório da oficina reparadora, nos termos constantes do documento nº ... junto com a contestação (fls. 92 dos autos) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
43- De acordo com o teor do referido relatório, alguns meses após essa primeira reparação, a caixa de velocidades do veículo ... terá começado a apresentar um novo problema, já que “ao engrenar a quarta mudança arranhava” (fls. 92 dos autos);
44- Também de acordo com o referido relatório, tal problema deveu-se ao facto do sincronizador da quarta mudança estar partido e, para reparar tal situação, seria necessário proceder à desmontagem dos carretos da quinta e sexta velocidades (cfr. relatório de fls. 92 dos autos);
45- Ainda de acordo com o que consta do dito relatório, ao retirarem o carreto da quinta velocidade “verificou-se que este estava demasiado apertado ao veio do trem-fixo, não sendo possível a sua desmontagem e inclusive ao ponto de ter partido, recorremos assim ao meio de corte para se poder retirar do veio.” (cfr. relatório de fls. 92 dos autos);
46- Mais consta do relatório que “Após a sua desmontagem verificou-se que o mesmo tinha rodado no veio do trem-fixo provocando assim a gripagem, verificou-se também que o olhal onde entra o veio no referido carreto só estava em contacto com o veio dois terços da sua circunferência, ou seja, não acente na totalidade do veio.”, (cfr. relatório de fls. 92 dos autos);
47- Apesar da Ré, pela leitura do relatório, ter verificado desde logo que o problema mecânico não se devia a qualquer defeito das peças fornecidas, pediu que as mesmas fossem devolvidas para avaliação;
48- Ao receber as peças, a Ré verificou as mesmas estavam partidas e que tinham levado calor, o que adulterou o seu formato;
49- A oficina que procedeu à desmontagem da caixa, não conseguindo desmontar os carretos, optou por “dar calor” nas peças;
50- Após a recepção e observação das peças, a Ré informou a Autora que as peças não seriam cobertas pela garantia;
51- Posteriormente, a Ré emitiu um orçamento para aquisição das novas peças, enviado pelo funcionário CC em 19 de Maio de 2020, através da aplicação WhatsApp, no qual, atento o facto da Autora ser uma cliente de longa data da Ré, se efectuou uma redução do preço;
52- A Autora também não aceitou tal orçamento, tentando exigir que a Ré procedesse à substituição das peças a suas expensas;
53- Perante esta situação, a Ré decidiu enviar as peças para análise para a empresa fornecedora das mesmas, a “I..., Componentes Auto Lda.”, NIPC ..., para averiguar se esta prestaria garantia;
54- Por email de 16 de Junho de 2020, também esta empresa veio recusar prestar garantia, com os fundamentos seguintes: “na altura da compra foi-vos sugerido que adquirissem o kit sincronizador, mas optaram por adquirir somente as anilhas sincronizadoras. Ora é de conhecimento geral, que isto é um erro, porque a anilha nova montada num cone já usado e com desgaste, cria uma folga, provocando a sua fratura. É também visível que os carretos foram submetidos a um aquecimento não uniforme, o que provocou, no esforço da desmontagem, que os mesmos se partissem” – documento nº ... junto com a contestação (fls. 93 dos autos) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
55- Tais conclusões também foram transmitidas à Autora, que continuava insatisfeita, por isso, a Ré enviou, com o conhecimento e autorização da Autora, as peças para análise para a oficina F... Unipessoal, Lda., sita na Rua ..., ..., ... ..., a qual também concluiu que os carretos não tinham sido montados na posição correcta, originando a quebra do sincronizador;
56- A Ré comunicou, mais uma vez, à Autora, que não havia qualquer hipótese de prestar garantia sobre essas peças;
57- A Ré remeteu por correio as peças à Autora;
58- Perante nova insistência da Autora, através de carta datada de 30 de Agosto de 2020, a Ré veio responder, mais uma vez, que não assumia qualquer responsabilidade, nos termos constantes da carta junta sob o documento nº ... com a contestação (fls. 96 a 98 dos autos) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

Na mesma sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos[3]:

a) Com excepção de dois rolamentos que foram fornecidos pela A..., S.A..
b) Para além disso, e numa espúria tentativa no sentido de que a autora não se apercebesse que o veio referido no artigo 19º desta peça estava gripado, a ré poliu-o e enviou-o para a autora, mas desacompanhado do 1º carreto.
c) As peças constantes da factura referida no artigo 8º desta peça (fls. 22 dos autos) – nomeadamente um sincronizador e dois carretos – foram fornecidas com defeito pela Ré à Autora.
d) A Ré transmitiu pela primeira vez à Ré que não aceitava a responsabilidade em 22 de Setembro de 2020.
e) Na verdade, as peças novas não encaixaram devidamente nas peças usadas, devido ao desgaste destas últimas e foram estas folgas que deram origem a um novo problema mecânico.
f) Da análise do mesmo relatório, também resulta que os carretos da caixa de velocidades não terão sido devidamente montados.
g) Os problemas mecânicos surgidos ficaram-se a dever ao facto das peças novas não encaixarem devidamente nas peças usadas, devido ao acentuado desgaste destas últimas.
h) A Ré assumiu, após a denúncia dos defeitos comunicada pela Autora, a responsabilidade pela verificação desses defeitos.
i) Houve por parte da Ré um claro e inequívoco reconhecimento da existência dos mesmos.
j) A Ré deu início a trabalhos de reparação das peças.
* * *
4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Da Caducidade do Direito à Acção

Importa salientar que a decisão desta questão precede a de todas as restantes uma vez que, não só foi a primeira suscitada no recurso, mas sim e principalmente porque a sua apreciação não depende de modificação da decisão sobre a matéria de facto [os factos relevantes para a sua análise não são objecto da impugnação de facto deduzida no recurso que, aliás, se restringe à impugnação do facto não provado c)] e porque verificação da caducidade do direito em causa prejudica, em definitivo, o conhecimento de todas as restantes questões suscitadas no recurso.
Nos presentes autos, a título de causa de pedir (na parte que para aqui releva), a Autora/Recorrente invocou que ocorreu uma avaria na caixa de velocidades do veículo de marca ..., com a matrícula ..-US-.., da sua propriedade, que adquiriu à Ré as peças necessárias à reparação, que entregou estas peças na oficina onde foi realizada a reparação, que cerca de três meses depois ocorreu uma avaria na caixa de velocidades, que esta avaria se deveu às peças fornecidas pela Ré terem defeito, e que exigiu à Ré a substituição dessas peças, mas esta recusou fazê-lo.
Em sede de contestação, a Ré deduziu a excepção peremptória da caducidade do direito de da acção, invocando que à presente a acção é aplicável o prazo de 6 meses da garantia de bom funcionamento, contados desde a data em que a denúncia do defeito foi efectuada, previsto no art. 921º/4 do C.Civil, ou, alternativamente, o prazo de 6 meses para denúncia do defeito ou para a acção de anulação respectivamente previstos no art. 916º/2 e 917º do C.Civil, e mais invocando que, no âmbito das medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos estiveram suspensos entre 09/03/2020 e 06/06/2020 inclusive, pelo que a contagem do prazo de caducidade só se iniciou a 07/06/2020 mas terminou a 07/12/2020, antes da interposição da acção que ocorreu em 12/04/2021.
No articulado de resposta esta excepção peremptória, a Autora/Recorrente invocou que a Ré reconheceu a existência dos defeitos, o que impede a caducidade do prazo de propositura acção nos termos do art. 331º/2 do C.Civil. Neste articulado, nada opôs à aplicação do prazo de caducidade de 6 meses previsto no art. 921º/4 do C.Civil, à contagem do prazo em face das regras da legislação excepcional e temporária de resposta à situação epidemiológica.

Na sentença recorrida, o Tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos:

“Atentando na factualidade que resultou provada, da mesma ressalta que a Autora fez a denúncia à Ré em data não concretamente apurada do mês de Abril de 2020 (cfr. ponto 40- dos factos provados).
De acordo com o disposto no artigo 921º, nº 4, do C.C., a presente acção deveria ter sido instaurada no prazo de seis meses, a contar da aludida denúncia.
Tendo presente o momento em que a Autora procedeu à denúncia dos defeitos, a Autora poderia ter instaurado a acção em apreço até ao mês Outubro de 2020.
Importa considerar a suspensão dos prazos entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho de 2020, estabelecida no artigo 7º, nº 3 da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, o qual foi revogado pela Lei nº 16/2020, de 29 de Maio.
Assim, no caso dos autos, o prazo iniciou-se no dia 3 de Junho de 2020 e terminou no dia 3 de Dezembro de 2020.
Porém, a presente acção deu entrada neste Tribunal apenas no dia 12 de Abril de 2021, ou seja, após se mostrar decorrido o aludido prazo de seis meses.
O acima exposto leva-nos a concluir pela verificação da caducidade.
(…)
Nos termos do artigo 331º do Código Civil, “só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo” (nº 1) e “Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.” (nº 2).
(…)
Em face do factualismo apurado e acima evidenciado – constante dos pontos 41- e 47- a 58- dos factos provados – do mesmo não nos parece resultar um reconhecimento do direito invocado. A Ré dispôs-se a analisar as peças, donde se deduz que só após a verificação das mesmas é que tomaria alguma posição. Aceitar realizar a análise das peças não traduz um reconhecimento do defeito ou um reconhecimento do direito da Autora. Após ter visto e analisado as peças, a Ré comunicou à Autora a sua posição. Do factualismo apurado não resulta que em nenhum dos contactos ou comunicações entre as partes tenha havido, da parte da Ré, o reconhecimento do direito da Autora.
Nestes termos, não se verifica a causa impeditiva da caducidade invocada pela Autora.
Por todo o exposto, atendendo às datas da denúncia dos defeitos e da propositura da acção, conclui-se pela procedência da excepção peremptória de caducidade”.
Analisando as conclusões formuladas no recurso, verifica-se que nenhuma questão é suscitada quanto à aplicação do prazo de caducidade da acção previsto no art. 921º/4 do C.Civil, quanto à data em que ocorreu à denúncia dos efeitos, e/ou quanto à inexistência do reconhecimento por parte da Ré relativamente ao direito da Autora.
E, como decorre das conclusões I a XII, quanto a esta questão da caducidade do direito à acção, a Autora/Recorrente restringiu o objecto do recurso à contagem do prazo de caducidade à luz da legislação excepcional e temporária de resposta à situação epidemiológica, defendendo que: «em face do disposto no artigo 7º nºs 3 e 4 da Lei n.º1-A/2020, de 19/03, e no artigo 6º da Lei n.º 16/2020, de 29/05, o prazo de caducidade foi alargado pelo período de tempo em que vigorou a suspensão, ou seja, por mais 86 dias, o que perfaz um período total de 172 dias (86 dias de suspensão + 86 dias do alargamento do prazo de caducidade); no caso dos autos, o prazo para instaurar a acção iniciou-se no dia 27 de Agosto de 2020 - e não, como se verteu na sentença recorrida, em 3 de Junho de 2020, porque, por erro de interpretação das sobreditas normas legais, apenas se consideraram os 86 dias de suspensão e não também, como se impunha, os 86 dias do alargamento do prazo de caducidade - e terminaria em 27 de Fevereiro de 2021; os prazos também estiveram suspensos, [nos termos do disposto no art.º 6º-B, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02] desde 22/01/2021 (art.º 4º da predita Lei n.º 4-B/2021) até ao dia 06/04/2021, [nos termos do disposto nos art.ºs 6º e 7º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04], ou seja, durante 74 dias; das disposições conjugadas dos artigos 6º-B nºs 3 e 4 da Lei n.º 4- B/2021, de 01/02, e do artigo 5º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, resulta que o prazo de caducidade foi alargado pelo período de tempo em que vigorou a suspensão, ou seja, foi acrescido de mais 74 dias, o que perfaz um período total de 148 dias (74 dias de suspensão + 74 dias do alargamento do prazo de caducidade); admitindo que a acção tivesse que ser instaurada até dia 1 de Outubro de 2020, temos que, feita a contagem dos 320 dias, o limite do prazo para a propositura desta ação foi o dia 17 de Julho de 2021; tendo a presente ação sido proposta no dia 12 de Abril de 2021, é manifesto que foi instaurada tempestivamente».
Importa afirmar, desde já, que não assiste qualquer razão à Autora/Recorrente. Concretizando.

Como supra se consignou, uma vez que a Autora/Recorrente, de forma expressa, restringiu o objecto do recurso, nesta questão, à interpretação e aplicação das regras da “legislação excepcional e temporária” à contagem do prazo de caducidade, este Tribunal ad quem não pode interferir na parte da sentença que, sobre esta mesma questão, foi excluída da presente impugnação judicial[4].

Assim sendo, na apreciação da presente questão, este Tribunal ad quem tem que partir dos seguintes pressupostos (considerados pelo Tribunal a quo):

- à pretensão formulada na presente acção aplica-se o prazo de caducidade da garantia de bom funcionamento e previsto no art. 921º/4 do C.Civil que prescreve: “A acção caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efectuada”;
- relativamente às peças que lhe havia adquirido em 06/12/2019 (cfr. facto provado nº8), a Autora/Recorrente fez a denúncia à Ré de que as mesmas padeciam de defeito, em data não concretamente apurada do mês de Abril de 2020;
- e, relativamente a tal denúncia, a Ré não reconhecimento o direito da Autora/Recorrente.

Perante tais pressupostos e considerando que se desconhece o dia concreto do mês de Abril de 2020 em que foi efectivada a denúncia, afigura-se-nos que terá que ser considerado o último dia desse mês, ou seja, dia 30/04/2020, para efeitos do início da contagem do prazo de caducidade em causa.
Como a presente acção tinha que ser instaurada no prazo de 6 (seis) meses a contar da aludida denúncia (em conformidade com o disposto no referido art. 921º/4), então este prazo terminava no dia 30/10/2020 [e não no dia 01/10/2020, como se refere de forma infundada e ininteligível no recurso, bastando atentar no disposto no art. 279º/c) do C.Civil].
Em regra, o prazo de caducidade não se suspende, nem se interrompa, mas como se prevê na parte final do art. 328º do C.Civil, tal pode ocorrer “nos casos em que a lei o determine”.
Foi precisamente o que sucedeu com a legislação excepcional e temporária relativa à situação pandémica (mundial) provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

Prescreve o art. 7º da Lei nº1-A/2020, de 19/03 (na parte que aqui releva):

“3. A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4. O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”.
Pronunciando-se sobre este preceito refere Paulo Pimenta[5]: “O nº 3 do art. 7º, também com foros de excepcionalidade, consagra a suspensão de prazos de prescrição e de caducidade relativamente a todos os tipos de processos e procedimentos, sendo que, nos termos do nº 4, esta suspensão de prazos de prescrição e caducidade prevalece sobre quaisquer regimes que fixem prazos máximos imperativos, prevendo-se que tais regimes serão alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional (…). Nesta conformidade, enquanto durar a situação de excepção, não haverá necessidade de instaurar processos ou procedimentos para evitar a prescrição ou a caducidade, sendo que os respectivos prazos retomarão a sua contagem assim que findar a dita situação de excepção. Importa salientar que o sentido da lei, e a suspensão opera somente quanto a esses prazos, é o de acautelar casos em que o exercício do direito implica a instauração de um processo ou um procedimento, isto é, implica uma concreta iniciativa processual”.

Embora o art. 10º da Lei nº1-A/2020 estabeleça que “a presente lei produz efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março”, esta Lei foi alterada pela Lei nº4-A/2020, 06/04, que veio dispor:

- no seu art. 5º, sob a epígrafe «Norma Interpretativa», que “O artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, deve ser interpretado no sentido de ser considerada a data de 9 de março de 2020, prevista no artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, para o início da produção de efeitos dos seus artigos 14.º a 16.º, como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março (os sublinhados são nossos);
- e no seu art. 6º, sob a epígrafe «Produção de efeitos», que “1 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a presente lei produz efeitos à data de produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março. 2 - O artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela presente lei, produz os seus efeitos a 9 de março de 2020, com exceção das normas aplicáveis aos processos urgentes e do disposto no seu n.º 12, que só produzem efeitos na data da entrada em vigor da presente lei”.

Da conjugação destes normativos resulta que a suspensão do prazo de caducidade, ao abrigo desta legislação excepcional e transitória, teve o seu início na data de 09/03/2020[6].
A Lei nº16/2020, de 29/05, através do respectivo art. 8º, determinou a revogação do supra referido art. 7º da Lei nº1-A/2020, o que conduziu ao terminus da suspensão do prazo de caducidade decorrente de tal legislação.
Como o legislador nada se consignou quanto à respectiva data de entrada em vigor, importa recorrer ao disposto no art. 2º/2 da Lei nº74/98, de 11/11 (“Na falta de fixação do dia, os diplomas referidos no número anterior entram em vigor, em todo o território nacional e no estrangeiro, no quinto dia após a publicação”), donde resulta que a Lei nº16/2020 entrou em vigor na data de 03/06/2020 (quinto dia posterior à publicação), sendo a suspensão generalizada dos prazos de caducidade (e de outros prazos) terminou no dia anterior, ou seja, 02/06/2020 (último dia em que vigorou o referido art. 7º da Lei nº1-A/2020)[7].
Sucede que a referida Lei nº16/2020 estatuiu no respectivo art. 6º: “Sem prejuízo do disposto no artigo 5.º, os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão”.
Prevê-se, neste preceito, um inquestionável alargamento dos prazos de caducidade que estiveram suspensos, alargamento esse que corresponde ao período tempo em que vigorou a sua suspensão, e que se quantifica em 86 (oitenta e seis) dias (de 09/03/2020 a 02/06/2020). Como explica Marco Carvalho Gonçalves[8], “esta norma tem o seu correspondente no revogado art.º7.º, n.º 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o qual estabelecia que o regime de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos prevalecia sobre quaisquer regimes que fixassem prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorasse a situação excepcional”.
Porém, este alargamento do prazo não pode ser interpretado no sentido alegado pela Autora/Recorrente: «o prazo de caducidade foi alargado pelo período de tempo em que vigorou a suspensão, ou seja, por mais 86 dias, o que perfaz um período total de 172 dias (86 dias de suspensão + 86 dias do alargamento do prazo de caducidade)».
Efectivamente, esta interpretação não tem fundamento legal porque não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. art. 9º/2 do C.Civil).
Com efeito, por um lado, na letra da lei do referido art. 6º da Lei nº16/2020 não está prevista qualquer «soma» do período de suspensão ao período de alargamento, estando sim e apenas estipulado que os prazos que estiveram suspensos «são alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão», o que, por si, só afasta a existência da referida «soma» e contraria qualquer possibilidade de o legislador ter querido criar uma situação de “duplicação” do alargamento (que, no fundo, é o que o que se defende em sede de recurso).
Por outro lado, a Autora/Recorrente olvida que o art. 8º da Lei nº16/2020, de 29/05, revogou o art. 7º da Lei nº1-A/2020 (e não determinou apenas e tão só o início, ou reinício, de contagem dos prazos suspensos), donde resulta que, por ter sido revogado, tal preceito deixou de existir no ordenamento jurídico (deixou de produzir efeitos, e nomeadamente deixou de ter efeito a previsão da parte final do nº4 do revogado art. 7º - “sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”). Logo, quando se fossem contar os prazos que anteriormente tiveram suspensos, inexistira qualquer efectivo período de suspensão dos mesmos (porque a lei, que a determinava, deixou de vigorar) que pudesse ser considerado, e foi precisamente para evitar tal situação que o Legislador determinou o alargamento de tais prazos por um período exactamente igual ao da suspensão que, embora tenha vigorado, deixou de produzir quaisquer efeitos com a revogação daquele preceito, tudo se passando, no fundo, como não tivesse existido aquela suspensão.
A razão de ser do alargamento do prazo é, apenas e tão só, acautelar os efeitos da revogação do preceito legal que impunha a suspensão (deixou de existir no ordenamento jurídico, pelo que a suspensão deixou de produzir efeitos), salvaguardando, assim, que no cálculo do prazo se atende ao período de suspensão, não se vislumbrando qualquer tipo de fundamento ou argumento que possa justificar, com um mínimo razoabilidade, que se considerasse, em simultâneo, por duas vezes o mesmo período (uma vez a “título de suspensão” e outra vez a “título de alargamento”).
Relembre-se que a Lei nº16/2020 não prescreve (em nenhum dos seus preceitos) que se inicia, ou reinicia, a contagem dos prazos de caducidade que estavam suspensos, antes determinando uma pura e simples revogação da norma legal que concedia tal suspensão (através do seu art. 8º, revogou o art. 7º da Lei nº1-A/2020) e antes determina um alargamento do prazo de caducidade por tempo igual ao da suspensão (através do seu art. 6º), sem prever qualquer acréscimo deste período de alargamento ao período de suspensão.   

Como explicam Nuno Peres Alves e Mara Rupia Lopes[9], “Cessando a suspensão, os prazos de prescrição e caducidade deverão ser calculados como se a suspensão não tivesse tido lugar, acrescentando-se uma dilação ao prazo final correspondente ao período da suspensão, ou seja, correspondente ao período entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020. Esta solução afigura-se como a mais correta de forma a evitar uma duplicação da suspensão e respetivo alargamento do prazo”. Este entendimento foi acolhido no Ac. da RL de 10/03/2022[10].

Aliás, ao contrário do que a Autora/Recorrente advoga em sede de recurso (e até de forma que roça a litigância de má fé), no já citado Ac. da RL de 24/03/2021[11] (e indicado por aquela a favor da sua tese…) refere-se inequívoca e expressamente que: “(…) do supra citado regime (do preceituado nos nºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020) , resultava que os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos não urgentes estavam suspensos. Porém, com a revogação dessa norma, pela Lei n.º 16/2020, os prazos de prescrição e de caducidade deixaram de estar suspensos, sendo que foram alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão (artigo 6.º da Lei n.º 16/2020). Assim, cessada a suspensão, os prazos de prescrição e caducidade passaram a dever ser calculados como se a suspensão não tivesse tido lugar, acrescentando-se, pois, uma dilação ao prazo final correspondente ao período de suspensão ocorrido entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho de 2020” (o sublinhado é nosso, não se concordando apenas com a data de 03/06/2020, uma vez que, como supra se explicou, o último dia da suspensão foi efectivamente o dia 02/06/2020).

É certo que o já citado Ac. da RE de 28/04/2022[12] e a Autora/Recorrente indica a favor da sua tese, parece «aceitar» que a «soma do período de suspensão e do período do alargamento ao prazo de caducidade em causa» (quando afirma que “o prazo de caducidade em causa retomou a sua contagem, como dissemos, no dia 3 de Junho de 2020 e, ao invés de se completar no dia 25.6.2020[4], beneficiou do aumento da sua duração pelo período de 86 dias, ou seja, pelo período de tempo em que durou a suspensão do prazo legalmente determinado”), mas analisando a sua fundamentação, verifica-se que a questão não foi expressamente apreciada nem decidida (ou seja, não foi ponderada a existência de uma situação de duplicação do período a acrescer ao prazo de caducidade).

Refira-se que, embora pronunciando-se sobre o art. 5º da Lei nº13-B/2021, 05/04 (mas que tem exactamente o mesmo teor do referido art. 6º da Lei nº16/2020), o Ac. desta RG de 30/06/2022[13] afasta completamente a possibilidade da existência de uma situação de duplicação quando afirma que: «Aliás, o artº 5º, da referida Lei 13-B/2021 em apreço, dispôs, quanto a prazos de prescrição e de caducidade, que “Sem prejuízo do disposto no artigo 4º [que nada tem a ver com o caso], os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei [como sucede com o prazo de caducidade aqui em questão] são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão”, isto, é o prazo não retoma o seu curso pelo número de dias que faltava, antes é ampliado em função do número de dias em que esteve suspenso. Suspensão que, como já se viu, durou, pois, 74 dias” (o sublinhado é nosso).

Concluindo: o art. 7º da Lei nº1-A/2020, de 19/03, que previa, nos seus nºs. 3 e 4, a suspensão generalizada dos prazos de caducidade (e de prescrição), foi revogado pelo art. 8º da Lei nº16/2020, de 29/05, com efeitos a partir de 03/06/2020, pelo que terminou aquela suspensão generalizada e tais prazos devem e tem que ser calculados como se a suspensão não tivesse tido lugar (o preceito que a previa deixou de existir do ordenamento jurídico), mas, por força do disposto no art. 6º da mesma Lei nº16/2020, devem ser alargados por um período de tempo correspondente ao período da suspensão entre 09/03/2020 e 02/06/2020 (num total de 86 dias), não podendo aquele art. 6º ser interpretado no sentido de criar uma situação de duplicação do período de suspensão e do período de alargamento do prazo.
Não se pode, pois, subscrever a sentença recorrida quer quando afirma “o prazo se iniciou em 03 de Junho” (porque omite que a suspensão deixou de vigorar no nosso ordenamento jurídico, logo inicia-se no momento da denúncia dos defeitos), quer quando afirma que “terminou no dia 3 de Dezembro de 2020” (porque não considerou o alargamento do prazo previsto no art. 6º da Lei nº16/2020).  
Aplicando a interpretação supra sufragada ao caso dos autos, e considerando que o prazo de 6 (seis) meses para interpor a acção se iniciou no dia 30/04/2020 (data de denúncia dos efeitos), verifica-se que o mesmo terminaria no dia 30/10/2020 (data em que se completam os 6 meses), mas como beneficia do alargamento do prazo por um período de 86 dias (em razão do disposto no art. 6º da Lei nº16/2020), então tal prazo apenas findou efectivamente na data de 25/01/2021 (data em que se completaram os 86 dias de acréscimo – 30 dias do mês de Novembro, 31 dias do mês de Dezembro e mais 25 dias do mês de Janeiro de 2021).
Sucede que, por força de nova legislação introduzida em razão do agravamento da situação pandémica, a Lei nº4-B/2021, de 01/02, introduziu nova alteração à Lei nº1-A/2020, de 19/03, aditando-lhe o art. 6ºB que, através dos seus nºs. 3 e 4, determinou nova suspensão generalizada dos prazos de caducidade e de prescrição (frisando-se que esses nºs. 3 e 4 do art. 6ºB têm exactamente o mesmo teor dos nºs. 3 e 4 do antigo e revogado art. 7º da Lei nº1-A/2020, também incluindo a previsão de que àqueles prazos acresce «o período de tempo em que vigorar a suspensão»).
E, nos termos do art. 4º da Lei nº4-B/2021, tal suspensão generalizada produziu efeitos a partir da data de 22/01/2021, o que impediu a continuação da contagem do supra referido prazo de caducidade a partir deste dia e, por isso, impediu que o mesmo decorresse integralmente até àquele dia 25/01/2021.
Mas, tal como ocorreu com a “primeira legislação especial”, a Lei nº13-B/2021, de 05/04, através do respectivo art. 6º, também determinou a revogação do supra referido art. 6ºB da Lei nº4-B/2021, o que conduziu ao terminus da suspensão do prazo de caducidade decorrente desta “segunda legislação especial”, sendo que, nos termos do art. 7º da Lei nº13-B/2021, esta Lei entrou em vigor na data de 06/04/2021 (pelo que o terminus ocorreu no dia anterior - 05/04/2021).
E, do mesmo modo, a Lei nº13-B/2021 estatuiu no respectivo art. 5º (Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão”) um comando legal que tem exactamente o mesmo teor que do já referido art. 6º da Lei nº16/2020 e, por via disso, deve ser interpretado nos mesmos termos que este preceito e que supra se assinalaram: o art. 6ºB da Lei nº4-B/2021, de 05/04, que previa, nos seus nºs. 3 e 4, a suspensão generalizada dos prazos de caducidade (e de prescrição), foi revogado pelo art. 6º da Lei nº13-B/2021, de 05/04, com efeitos a partir de 06/04/2021, pelo que terminou aquela suspensão generalizada e tais prazos devem e tem que ser calculados como se a suspensão não tivesse tido lugar (o preceito que a previa deixou de existir do ordenamento jurídico), mas, por força do disposto no art. 5º da mesma Lei nº13-B/2021, devem ser alargados por um período de tempo correspondente ao período da suspensão entre 22/01/2021 e 05/04/2021 (num total de 74 dias), não podendo aquele art. 5º ser interpretado no sentido de criar uma situação de duplicação do período de suspensão e do período de alargamento do prazo (tal como também defendia a Autora/Recorrente em sede de recurso – cfr. conclusão VII).
Continuando a aplicação da interpretação supra sufragada ao caso dos autos, uma vez que até à data de 25/01/2021 estavam contabilizados os 6 (seis) meses do prazo de caducidade e o prazo alargado de 86 (oitenta e seis) dias (decorrente do disposto no art. 6º da Lei nº16/2020), incumbe agora acrescentar o prazo alargado de 74 (setenta e quatro) dias (decorrente do disposto no art. 5º da Lei nº13-B/2021), o qual se completou, de forma integral, no dia 09/04/2021 (frise-se que também este segundo “prazo alargado” não foi tido em consideração na sentença recorrida).
Como a presente acção judicial apenas deu entrada em juízo na data de 12/04/2021, então impõe concluir-se que, nesta data, já estava integralmente decorrido o respectivo o prazo de caducidade aplicável, mesmo incluindo os dois prazos alargados que legalmente lhe acresciam.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que supra se expôs e concluiu, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que efectivamente caducou o direito da Autora/Recorrente interpor a presente acção, sendo por isso procedente a correspondente a excepção peremptória deduzida, mas por fundamentos distintos daqueles que constam da sentença recorrida e, por via disso, deverá improceder, na íntegra, o presente fundamento de recurso.
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4.2., 4.3. e 4.4. - Da Possibilidade do Tribunal ad quem pode conhecer das questões que não foram objecto de apreciação pelo Tribunal a quo, Da Alteração da Matéria de Facto e Do Direito da Autora a ser Indemnizada

Como resulta das conclusões de recurso formuladas (cfr. em especial, as conclusões XIII, XVIII, e XXXIII), todas restantes questões suscitadas pela Autora/Recorrente tinham como pressuposto/fundamento básico a efectiva procedência do anterior fundamento de recurso, mais concretamente que era improcedente a excepção peremptória da caducidade do direito à acção.           Logo, tendo-se respondido negativamente quanto à primeira questão (isto é, estando efectivamente caducado o direito da Autora/Recorrente interpor a presente acção), então está absoluta e definitivamente prejudicada a apreciação das segunda, terceira e quarta questões, inexistindo qualquer fundamento legal para que a sentença recorrida seja alterada quanto ao juízo de mérito.
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4.5. Do Mérito do Recurso

Perante as respostas alcançadas quanto às questões que se impunham decidir, deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora/Recorrente, devendo ser mantida a decisão recorrida (ainda que com base em fundamentação diversa).
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4.6. Da Responsabilidade quanto a Custas

Improcedendo o recurso, porque ficou vencida, deverá a Autora/Recorrente suportar as respectivas custas - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
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5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora/Recorrente e, em consequência, confirmar e manter a sentença recorrida (ainda que com base em fundamentação diversa).
Custas do recurso de apelação pela Autora/Recorrente.
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Guimarães, 16 de Março de 2023.

(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.


[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[3]Optou-se por atribuir letras a cada um dos factos não provados referidos na decisão recorrida com vista a facilitar a sua identificação para efeitos de apreciação do presente recurso.
[4]Cfr. António Abrantes Geraldes, in obra referida, p. 138.
[5]In Prazos, diligências, processos e procedimentos em época de emergência de saúde pública (DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e Lei nº 4-A/2020, de 6 Abril”, Abril 2020, disponível em https://www.direitoemdia.pt/magazine/show/68.
[6]No sentido de que é esta a data da entrada em vigor (e, por isso, a data de início da suspensão dos prazos), entre outros, Ac. RL 19/03/2020, Juiz Desembargador Leopoldo Soares, proc. nº2072/20.2T8CSC.L1-4, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl, Ac. RC 15/12/2021, Juiz Desembargador Mário Rodrigues Silva, proc. nº939/19.0T8GRD-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc, e Ac. RE 28/04/2022, Juíza Desembargadora Maria João Sousa e Faro, proc. nº98/20.5T8RMZ.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.
[7]No sentido de que foi este o último dia de vigência do preceito em causa (e, por isso, a data de termo da suspensão dos prazos), entre outros, Ac. RL 06/07/2021, Juíza Desembargadora Dina Monteiro, proc. nº12420/16.4T8LSB-C.L1-7, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl, Ac. RC 15/12/2021, Juiz Desembargador Mário Rodrigues Silva, proc. nº939/19.0T8GRD-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc, e Ac. RE 28/04/2022, Juíza Desembargadora Maria João Sousa e Faro, proc. nº98/20.5T8RMZ.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.
[8]In Actos Processuais e Prazos no âmbito da pandemia da doença Covid-19, p.11 consultável em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream.
[9]In Legal Alert – Covid-19 – Medidas Excecionais e Temporárias – Cessação da Suspensão dos Prazos Administrativos e de Contencioso Administrativo, em: https://www.mlgts.pt/xms/files/site_2018/Newsletters/2020/Cessacao_da_suspensao_dos_prazos_administrativos_e_de_contencioso_administrativo__-_Legal_Alert.pdf.
[10]Juiz Desembargador Carlos Castelo Branco, proc. nº2797/21.5T8FNC-A.L1-2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
[11]Juiz Desembargador Leopoldo Soares, proc. nº2072/20.2T8CSC.L1-4.
[12]Juíza Desembargadora Maria João Sousa e Faro, proc. nº98/20.5T8RMZ.E1.
[13]Juiz Desembargador José Amaral, proc. nº1733/20.0T8VNF-G.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.