Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5451/21.4T8VNF.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
ARRENDAMENTO VERBAL
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A interpretação histórica, teleológica e literal dos artigos 14º nº 2 da Lei 13/2019 e 1069º nº 2 do Código Civil, fazem-nos concluir que esta norma não abrange os arrendamentos válidos à luz dos artigos 1.º do Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de janeiro, e 1029.º, n.º 3, do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

 Recorrentes e Autores: AA da e BB,
Recorrido e Réu: CC
Apelação em processo ação declarativa de condenação com processo comum

I- Relatório

Os Autores pediram que o Réu fosse condenado a:
a) reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano que identificam;
b) restituí-lo aos Autores, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando da ocupação efetuada pelo R.;
c) pagar aos Autores a quantia de €200 (duzentos euros), a título de indemnização por cada mês de ocupação indevida, contados desde a sua citação até entrega efetiva do prédio.
 Para tanto e em síntese, alegaram que são donos e legítimos proprietários desse prédio urbano, por o terem comprado em 4 de janeiro de 2021, o que se mostra inscrito no Registo. Os vendedores haviam levado o seu direito ao Registo pela inscrição AP. ...28 de 8 de setembro de 2015. O prédio integrava a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, de quem os vendedores foram sucessores. O Réu ocupa o imóvel sem título.
O Réu contestou, invocando, em súmula, que mora no prédio há 30 anos, por, na sequência do seu divórcio, ter ido viver com os seus pais, que haviam arrendado o prédio há mais de 60 anos, o que ocorreu com o conhecimento e consentimento da primitiva senhoria do prédio objeto dos presentes. Com a morte da sua mãe, que sobrevivera ao seu pai, o arrendamento transmitiu-se para o Réu. Mais deduziu reconvenção, pedindo a condenação dos Autores a reconhecer a existência e validade do contrato de arrendamento para o prédio e pediu a condenação dos Autores, como litigantes de má fé, no pagamento de multa e indemnização a seu favor, não inferior a cinco mil euros.
A reconvenção foi rejeitada e, produzida prova, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenou o Réu a reconhecer o direito de propriedade dos autores, absolvendo-o do mais pedido e bem assim do pagamento de uma indemnização como litigante de má-fé.

É desta sentença que os Autores apelam, apresentando as seguintes
conclusões:

“1. Os recorrentes não se conformam com a sentença proferida pelo tribunal a quo, porquanto fez uma incorreta avaliação da prova testemunha produzida em audiência de discussão e julgamento e documental junta aos autos, dando como provados factos que o R. não logrou demonstrar, concluindo, erroneamente, pela existência de título que legitima a ocupação do R.
2.  E, nessa medida julgou parcialmente procedente a ação e improcedente o pedido de restituição do imóvel reivindicado.
3.  Os factos contidos nos pontos 24 e 30 da sentença cuja revisão se requer não podem ser dados como provados por o R. não ter feito prova nesse sentido.
4.  O ponto 24 diz respeito à alegada existência de um contrato de arrendamento verbal celebrado entre os pais do R. e os anteriores proprietários, sobre tal matéria não foi junta qualquer prova documental, mas apenas produzida prova testemunhal, nomeadamente o depoimento das testemunhas EE (Cft. depoimento do dia 03-06-2022, resultado da respetiva ata que o seu inicio ocorreu pelos minutos 00:01 e termo pelos minutos 00:15:50, correspondendo-lhe o ficheiro audio 20220603112428_5979490_2870591), FF (cft. Depoimento audiência de julgamento 03-06-2022, resultando da respetiva Ata que o mesmo foi gravado no sistema audio, com início entre os minutos 00:00:01 e termo pelos 00:07:50, correspondendo-lhe o ficheiro audio 20220603143354_5979490_2870591) e GG ( cft. Depoimento prestado na audiência de julgamento de 03-06-2022, de acordo com a respetiva Ata com início entre os minutos 00:07:50 e termo pelos 00:17:11, ficheiro audio 20220603143354_5979490_2870591) e ainda declarações de parte do R. (cft. audiência de discussão e julgamento do dia 03-06-2022, as quais, conforme resulta da respetiva Ata, encontram-se gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo-se aí consignado que o seu inicio ocorreu pelos 00:05:28 minutos e termo pelos 00:24:43 minutos, correspondendo-lhe o ficheiro audio 20220603095857_5979490_2870591).
5.  No entanto, da prova produzida não resultou, com a certeza que é exigida pelo direito, que tenha existido um contrato de arrendamento que legitime a ocupação do imóvel.
6.  Das declarações de parte do R. entre os minutos 08:00 a 09:00 (cft. declarações de parte da audiência de discussão e julgamento do dia 03-06-2022, as quais, conforme resulta da respetiva Ata, encontram-se gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo-se aí consignado que o seu inicio ocorreu pelos 00:05:28 minutos e termo pelos 00:24:43 minutos, correspondendo-lhe o ficheiro audio 20220603095857_5979490_2870591), por confronto com os documentos n.º ... e ... juntos com a petição inicial, existem desconformidade quanto há identificação do proprietário do prédio.
7.  De facto, resulta dos documentos n.º ... e ... juntos com a petição inicial e que aqui se dão por reproduzidos, que há 69 atrás, ou seja, no ano de 1953 a proprietária do imóvel era DD e não a D.ª BB como o R. afirma.
8.  Para além disso, não resultou provado que efetivamente fosse entregue qualquer montante a título de rendas aos senhorios, o que resultou é que alegadamente foram pagas rendas a terceiros.
9.  Primeiro, segundo o R., as rendas eram pagas a um feitor da Dª BB, Sr. HH, cft. Declarações de parte entre os minutos 10:30 a 11:10, conforme resulta da respetiva Ata, encontram-se gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo-se aí consignado que o seu inicio ocorreu pelos 00:05:28 minutos e termo pelos 00:24:43 minutos, correspondendo-lhe o ficheiro audio 20220603095857_5979490_2870591.
10.Depois com o óbito daquele, as rendas passaram a ser pagas na “Contribuinte” e após esta encerrar passaram a depositar na Banco 1..., isto ainda no tempo dos pais do R.., cft. Depoimento da testemunha EE entre os entre os minutos 15:09 a 15:37 - Cft. Depoimento do dia 03-06-2022, correspondendo-lhe o ficheiro audio 20220603112428_5979490_2870591, com início entre os minutos 00:00:01 e termo 00:15:50, e depoimento da testemunha FF entre os minutos 02:10 e 02:24 - cft. Depoimento da audiência de julgamento de 03-06-2022, cujo início ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:07:50, ficheiro audio 20220603143354_5979490_2870591.
11.Porém, nenhum documento foi junto que corrobore essas declarações, apesar de as testemunhas EE e FF afirmarem ter-lhes sido entregues recibos de renda, cft. depoimentos da testemunha EE entre os minutos minutos 09:45 a 10:10 e entre os entre os minutos 10:20 a 10:34 (cft. depoimento no dia 03-06-2022, o qual encontra-se gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo-se aí consignado que o seu inicio ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:15:50, correspondendo-lhe o ficheiro áudio com a seguinte informação: 20220603112428_5979490_2870591); e depoimento da testemunha FF entre os minutos 2:10 a 2:24 (cft. depoimento da audiência de julgamento de 03-06-2022, cujo início ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:07:50, ficheiro audio 20220603143354_5979490_2870591).
12.Sendo certo que, em momento algum foi alegado que os recibos de renda se teriam extraviado, danificado ou destruído.
13.Nenhuma prova foi produzida acerca da legitimidade quer do feitor, quer da “Contribuinte” para receber rendas, nem que as mesmas eram entregues aos antepossuídores.
14.Nada foi apurado quanto ao feitor, nem nada foi apurado quanto à “Contribuinte”, desconhecemos que entidade era esta, nem quem mandou que aí fossem pagas rendas. Neste sentido veja-se o depoimento da testemunha EE entre os minutos 09:45 a 10:10 (cft. depoimento no dia 03-06-2022, o qual encontra-se gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo-se aí consignado que o seu inicio ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:15:50, correspondendo-lhe o ficheiro áudio com a seguinte informação: 20220603112428_5979490_2870591) e depoimento FF entre os minutos 2:10 a 2:24 (cft. depoimento da audiência de julgamento de 03-06-2022, cujo início ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:07:50, ficheiro audio 20220603143354_5979490_2870591).
15.Destarte, não se provou o pagamento de rendas ao legítimos donos e proprietários do prédio reivindicado, nem a quem estivesse devidamente mandatado para as receber.
16.Nenhuma, reitera-se, nenhuma prova foi produzida que permita concluir pela efetiva celebração do contrato de arrendamento que legitime a ocupação do imóvel primeiro pelos pais do Réu e posteriormente pelo R., por via da transmissão por morte.
17. É que a ocupação de um imóvel, mesmo que prolongada no tempo, não permite só por si retirar a conclusão de que existiu um contrato de arrendamento.
18. Mais, do depoimento da testemunha II, que era procuradora da D.ª BB, resultou que os antepossuídores nem sequer sabiam a localização do imóvel, veja-se depoimento entre os minutos 02:24 a 03:30; 03:45 a 04:35 (cft. Depoimento do dia 28-06-2022, o qual de acordo com a respetiva Ata encontra-se gravado, cujo início ocorreu pelos minutos 15:43 a 15:59 do ficheiro audio 20220628154327_5979490_2870591).
19. A qual esclarece ainda que a D. BB faleceu em fevereiro do ano de 2021, veja-se depoimento entre os minutos 07:53 a 09:55 do depoimento do dia 28-06-2022, o qual de acordo com a respetiva Ata encontra-se gravado, cujo início ocorreu pelos minutos 15:43 a 15:59 do ficheiro audio 20220628154327_5979490_2870591.
20.Não obstante e de forma a proteger as partes, a lei impõe regras imperativas para prova da existência de um contrato de arrendamento verbal, pelo que é nas mesmas que o tribunal deve ancorar a decisão a produzir.
21.Essas regras constam do artigo 1069° do Código Civil, o qual sofreu profunda alteração com a publicação e entrada em vigor da Lei 13/2019 de 12 de Fevereiro.
22.Neste conspecto, o n.º 2 do art. 1069º serve de matriz condutora, ditando o mesmo que na ausência de redução do contrato de arrendamento a escrito, cabe ao arrendatário demonstrar a a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de 6 meses.
23.Ora, como demonstramos supra, face à prova referida, somos a concluir que o réu não ousou demonstrar o pagamento mensal da renda, por parte dos seus pais, pelo período de seis meses.
24.Note-se que, apesar das testemunhas EE e FF nos seus depoimentos referirem que chegaram a proceder ao pagamento de rendas junto da “Contribuinte”, dos seus depoimentos não resultou quantas vezes o fizeram, muito menos que o tenham feito por um período de 6 meses. Veja-se o depoimento da testemunha EE entre os minutos 10:10 aos minutos 10:31 e entre os minutos 15:09 a 15:37 ( cft. depoimento no dia 03-06-2022, o qual encontra-se gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo-se aí consignado que o seu inicio ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:15:50, correspondendo-lhe o ficheiro áudio com a seguinte informação: 20220603112428_5979490_2870591) e depoimento de FF entre os minutos 02:10 a 02:24 (cft. depoimento da audiência de julgamento de 03-06-2022, cujo início ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:07:50, ficheiro audio 20220603143354_5979490_2870591).
25.É que, apesar dos documentos de depósito juntos pelo Réu e pela Banco 1... a fls 81 a 84 e 88 verso, e extratos bancários de fls 89 a 94 dos autos, repare-se que nenhum se reporta ao período de tempo em que ocorreu a ocupação por parte dos pais do R..
26. Tratam-se sim de depósitos que ocorreram à posteriori, após o falecimento de ambos os pais do R. e que, segundo se retira dos mesmos, foram efetuados pelo R. a favor de BB.
27.No que respeita ao facto provado sob o n.º 30, pode ler-se na sentença revidenda que o Tribunal a quo formou a sua convicção nos documentos fls 81 a 84 e 88 verso, e extratos bancários de fls 89 a 94 dos autos.
28.Ora a informação prestada a fls 88 verso e extratos bancários de fls 89 a 94 dos autos nada dizem quanto a este facto, apenas revelam a existência de um depósito, os seus titulares, número de conta, e data e valor dos respetivos depósitos, bem como informam que o valor depositado nunca foi levantado.
29.Desses documentos não decorre que os depósitos foram motivados pela recusa da senhoria em receber rendas.
30. Os únicos documentos de onde se retira tal afirmação são das cópias das guias de depósito juntas sob fls. 81 a 84 dos autos e trata-se de aposição manual por parte de quem preencheu essas guias.
31.Esses documentos foram impugnados pelos Autores.
32.Nenhuma prova foi produzida de onde decorra que os alegados senhorios se tenham recusado a receber rendas.
33.Foi produzida prova em sentido contrário e que deve ser apreciada e retiradas as devidas conclusões.
34.Referimo-nos, mais uma vez, ao depoimento da testemunha EE entre os minutos 09:00 a 09:34 e entre os minutos 11:18 a 11:20 ( cft. depoimento no dia 03-06-2022, o qual encontra-se gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo-se aí consignado que o seu inicio ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:15:50, correspondendolhe o ficheiro áudio com a seguinte informação: 20220603112428_5979490_2870591) e ao depoimento da testemunha FF entre os minutos 05:13 a 07:10 (cft. depoimento da audiência de julgamento de 03-06-2022, cujo início ocorreu pelos minutos 00:00:01 e termo pelos 00:07:50, ficheiro audio 20220603143354_5979490_2870591).
35.As referidas testemunhas nas passagens devidamente identificadas explicam de forma clara que ainda no tempo dos avós (pais do R.) a “Contribuinte” encerrou e que por esse motivo os avós abriram uma conta na Banco 1... onde passaram a depositar as rendas, sendo que após o falecimento dos avós o tio continuou a pagar as rendas na mesma conta.
36. Desta feita, contrariamente ao que se escreveu na douta sentença, não resulta provado que a razão do depósito das rendas foi a recusa de as receber por parte dos alegados senhorios.
37.Subsequentemente, não podia o Tribunal dar como provado os factos contidos nos pontos 24 e 30, pelo que pugnam os Recorrentes, conforme fundamentos que citaram nas alegações, pela alteração da resposta dada aos mesmos no sentido de não provados.
38.Por cautela de patrocínio, importa referir que, caso se venha a concluir que o que se relatou supra não permite a modificação da decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, o que não se concede, sempre importa considerar as declarações de parte do R. entre os minutos 12:18 a 15:55 (cft. Declarações de parte de dia 03-06-2022, as quais conforme resulta da respetiva Ata, encontram-se gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo-se aí consignado que o seu inicio ocorreu pelos 00:05:28 minutos e termo pelos 00:24:43 minutos, correspondendolhe o ficheiro audio 20220603095857_5979490_2870591).
39.Atentas essas declarações é possível verificar a existência de matéria confessória por parte do R., na medida em que o mesmo relatou que após o óbito da mãe comunicou tal facto à alegada Senhoria e que na sequência de correspondência trocada entre ambos, a Senhoria opôs-se à transmissão do arrendamento, remetendo-lhe um cheque em valor correspondente a metade do valor da indemnização devida e informou que após a entrega das chaves do imóvel lhe pagaria a outra metade.
40. Á data do óbito da mãe do R., ou seja em .../.../2004 (cft. certidão de óbito junta aos autos requerimento Ref.ª CITIUS ...83), vigorava o Decreto-Lei n.º 321-B/90 de 15/10 que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano.
41. Conjugados os artigos 85º n.º 1 al. a), 87º n.º 1, 89º, 89º-A, 89-B e 89-C todos daquele diploma, decorre que, recebida a comunicação do óbito e da transmissão, o senhorio podia optar pelo regime da renda condicionada ou pela denúncia do contrato mediante o pagamento de uma indemnização correspondente a 10 anos de renda.
43. Apesar disso, e à revelia, o R. manteve-se no imóvel e começou a depositar as rendas na Banco 1... como resulta da informação prestada pela Banco 1... a fls. 88 verso e extratos de fls. 89 a 94 dos autos.
42. O que, segundo as declarações confessórias do R., a alegada Senhoria fez.
44. Sendo certo que, não resulta provado que o R. tenha comunicado tais depósitos aos antepossuídores.
45.As declarações confessórias do Réu conjugadas com o depoimento da testemunha EE e com os documentos juntos a fls. 81 a 84 e informações prestadas pela Banco 1... a fls. 88 verso e extratos bancários de fls. 89 a 94, permitem concluir que as conversações ocorreram dentro dos prazos previstos na lei, atente-se que o primeiro depósito foi efetuado em .../.../2004 e a mãe do R. Faleceu em .../.../2004 (cft. Certidão de óbito junta aos autos).
46. Deste modo, por confissão do R. resulta provado que a ter existido contrato de arrendamento verbal o mesmo foi denunciado e por esse motivo não se transmitiu para o R., consequentemente o R. não dispõe de título legítimo para a ocupação do imóvel.
47. Caso se venha a provar a existência de um alegado contrato de arrendamento verbal, o que não se concede, sempre terá que ser aditado ao elenco dos fatos provados o seguinte:
48.Após o óbito da mãe do Réu, este comunicou o mesmo à D. BB, remetendo certidões, e que na sequência de troca de correspondência, o contrato foi denunciado pela D. BB, que remeteu ao R. um cheque correspondente a metade da indemnização a que aquele tinha direito e dessa forma opôs-se de forma válida e eficaz à transmissão do contrato.
49. Consequentemente, a ocupação do R. e a recusa de entrega do imóvel são injustificadas, porque não fundamentadas em título legítimo, tendo-se de concluir, também nesta parte, pelo procedimento da ação e pela condenação do R na entrega do imóvel livre e desembaraçado de pessoas e bens, o que se requer.
50. No que respeita à interpretação e aplicação do direito, o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro na medida em que violou o que se encontra disposto no n.º 2 do art. 1069 do CC.
51.Porquanto, resulta do mesmo que: “Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.”
52. Entendemos que o R. não demonstrou a não oposição dos senhorios à utilização do locado, pelo contrário resultou provado que os antepossuídores estavam alheados do imóvel e nem sequer sabiam a sua localização.
53. É que a lei não se basta com a prova do pagamento de rendas, o que a lei exige é que o arrendatário demonstre o pagamento de rendas por um período de seis meses.
54.Prova que o Réu não logrou demonstrar.
55. Ao decidir da forma como o fez a sentença revidenda atropelou de forma clara e manifesta a lei vigente, a qual é imperativa.
56. Acresce que a sentença revidenda ocorreu ainda em manifesto erro pois não se provou que as rendas fossem pagas aos antepossuídores e legítimos proprietários do prédio.
57. É que não basta fazer o pagamento da prestação para o credor cumprir a obrigação, é ainda necessário que esse pagamento seja efetuado ao credor ou a quem o representa.
58. Neste sentido, resulta do disposto no art. 769º do CC a prestação deve ser feita ao credor ou ao seu representante, sendo certo que a prestação feita a terceiro não extingue a obrigação, exceto nas hipóteses referidas nas alíneas do art. 770º.
59. Embora o R. e as testemunhas EE e FF afirmem ter pago rendas nenhum disse tê-lo feito ao legítimo credor, nem a quem o representava.
60. Nenhuma prova foi efetuada quanto à legitimidade do feitor ou da “Contribuinte” para receber rendas, nem que as mesmas eram entregues aos legítimos proprietários.
 Assim, face ao exposto, deve este Tribunal aplicar a solução de direito aos factos em conformidade com o supra exposto, devendo, consequentemente, ser julgado procedente, porque provado, o pedido de restituição do imóvel e o R. condenado a entregar o mesmo aos AA livre de pessoas e bens, tal como peticionado na petição inicial.
Termos em que V. Exas revogando a douta sentença recorrida e proferindo Acórdão no sentido propugnado farão, como de hábito, boa e sã JUSTIÇA.”

Foi apresentada resposta, com as seguintes
conclusões:

“I. Entende o Recorrido que a douta sentença proferida não merece qualquer juízo de censura, não só quanto à matéria de facto mas, também, quanto ao direito aplicado.
I. O facto provado 24 diz-nos que “O prédio foi dado de arrendamento aos pais do réu há mais de sessenta anos.”
III. Em sede de audiência de julgamento foi realizada prova, tanto da existência de um contrato verbal de arrendamento anterior ao Réu, como da transmissão deste contrato para o próprio Réu.
IV. A prova de tal facto decorre da conjugação da prova testemunhal, assim como da prova documental.
V. Todas as testemunhas envolvidas arroladas pelo Recorrido, assim como o próprio, admitem a existência e prevalência deste contrato de arrendamento há mais de sessenta anos, visto que, em primeiro lugar, os arrendatários eram os pais do Réu e, à sua morte existiu transmissão deste contrato para o Réu.
VI. Para prova deste facto, foram tidas em conta, e bem, ousamos dizer, as declarações prestadas pela testemunha EE (entre os minutos 01.40 a 15:35 da gravação 20220603112428_5979490_2870591), assim como as declarações de FF (entre os minutos 00.42 a 07.10 da gravação 20220603143354_5979490_2870591) e, ainda, as de GG (entre os minutos 09.40 a 15.50 da gravação 20220603143354_5979490_2870591).
VII.Deve, ainda, atender-se ao conteúdo das declarações de parte prestadas pelo Recorrido (minutos 05.39 a 23.50 da gravação 20220603095857_5979490_2870591).
VIII. Posto isto, fica evidente que o Réu reconhece a sua posição contratual, como arrendatário, no contrato de arrendamento transmitido pelos seus pais, tal como obviamente a posição de arrendatários dos pais neste imóvel, tal como as testemunhas reconhecem esta situação.
IX. Em face da prova produzida, entre a qual a prova gravada, inexiste qualquer motivo atendível para colocar em causa a bondade da decisão doutamente proferida, pelo que o tribunal recorrido decidiu e, assim entendemos, decidiu bem, ao considerar tal facto como provado.
X. Mais clara a prova não pode ser, ainda que tal facto não agrade aos Recorrentes: existe um contrato de arrendamento com mais de sessenta anos e o dito contrato decorreu à vista de todos, durante todo esse período.
XI. Agora, ousar afirmar ou colocar em causa que o Recorrido não tenha comprovativos de rendas com sessenta anos é, à imagem de toda a postura que os Recorrentes têm assumido, uma grosseira manifestação de má fé.
XII. Se as rendas foram pagas ao senhorio ou terceiros, a verdade é que nunca existiu qualquer ação de despejo por parte de quem poderia invocar a respetiva falta de pagamento, ao longo de sessenta anos, pelo que mais nada há a fazer senão assumir o seu pagamento e, nesse aspeto, mais um, andou muito bem o tribunal recorrido.
XIII. Relativamente ao pagamento das rendas, foi proferido prova testemunhal e prova documental, com a junção de recibos de comprovativo de pagamento da renda estipulada entre a proprietária e os arrendatários.
XIV. Mais devemos considerar o depoimento das testemunha, EE (... (entre os minutos 01.40 a 15:35 da gravação 20220603112428_5979490_2870591), de FF (entre os minutos 00.42 a 07.10 da gravação 20220603143354_5979490_2870591), assim como as declarações prestadas pelo Réu (entre os minutos 05.39 a 23.50, gravações 20220603095857_5979490_2870591).
XV.Por tudo o ora exposto, acrescido ao douto teor da fundamentação de facto vertida na sentença, entende o Recorrido que inexiste qualquer fundamento para alterar a factualidade proada no facto 24.
XVI. O facto provado 30 diz-nos que “A razão invocada para o depósito foi a recusa da aceitação das rendas”.
XVII. A decisão quanto à prova de tal facto assentou na prova documental produzida, nomeadamente recibos de depósito de rendas na Banco 1..., das informações prestadas pela Banco 1... e por extratos bancários.
XVIII. Neste sentido, a prova documental não pode ser refutada, visto que a informação prestada pela Banco 1... é essencial para a prova do facto mencionado, para além de que é uma prova realizada de uma entidade financeira imparcial, relativamente à questão discutida.
XIX. Estes mesmos factos provados de forma documental corroboram os depoimentos das testemunhas mencionadas anteriormente e do próprio Réu relativamente ao pagamento das rendas do imóvel em questão.
XX. Também aqui devemos valorar o depoimento das testemunhas EE (entre os minutos 01.40 a 15:35 – gravações 20220603112428_5979490_2870591), FF (entre os minutos 00.42 a 07.10, gravações 20220603143354_5979490_2870591) e, ainda, as declarações prestadas pelo Réu (entre os minutos 05.39 a 23.50, gravações: 20220603095857_5979490_2870591).
XXI. E das regras da experiência decorre que as contas bancárias como as que subjazem aos presentes autos, e cujos documentos foram juntos, são criadas precisamente para os casos em que os senhorios não aceitam os pagamentos das rendas, sendo certo que, dos documentos juntos na audiência de discussão e julgamento, em 28 de junho, decorre essa mesma informação.
XXII. Se é verdade que tais documentos foram impugnados, não menos verdade é que a prova testemunhal corrobora o seu conteúdo, assim como as já aludidas regras da experiência pelo que, ainda que impugnados, os documentos revestem um meio de prova, a ser livremente apreciado elo tribunal, que foi o que sucedeu nos presentes atos.
XXIII. Os Recorrentes discordam da douta apreciação levada a cabo pelo tribunal mas essa discordância não é, nem pode ser, imperativa, sendo certo que, também aqui o Recorrido acompanha a douta decisão quanto à matéria de facto, entendendo inexistir qualquer fundamento, muito menos os invocados pelos Recorrentes, para que seja tal facto dado como não provado.
XXIV. O Recorrido é admitido provar o contrato de arrendamento, através da exibição de recibos de renda, quer pela produção da prova testemunhal, ou por qualquer outra forma admitida em direto.
XXV. Assim o fez, demonstrando a existência de um primitivo contrato de arrendamento, celebrado pelos pais, há bem mais de sessenta anos, estribado na prova testemunhal, por declarações e documental produzida.
XXVI. A propósito de legitimar a transmissão do contrato de arrendamento, após a morte da sua mãe, para o réu, deve ter-se por base o regime legal aplicável à data da morte da mesma, .../.../2004, nomeadamente o RAU - DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
XXVII. Neste sentido, o Artigo 85º n.º 1 b) da disposição mencionada anteriormente refere: ““1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;”.
XXVIII.Não existe dúvida que estão preenchidos os requisitos para a transmissão do contrato de arrendamento visto que o Réu viveu com os progenitores toda a sua vida, e a situação ainda perdurava à data da morte do pai e, depois, da mãe.
XXIX.É certo que para a transmissão do contrato de arrendamento, nos termos do RAU, mais concretamente o Artigo 89º, o transmissário deve comunicar ao senhorio, por carta registada com aviso de receção, a morte do primitivo arrendatário, acompanhada dos documentos autênticos ou autenticados que comprovem o sucedido.
XXX. Como se observa pela prova produzida, a comunicação referida foi realizada pelo Recorrido, nos termos legais exigido, sendo certo que a eventual falta de comunicação a que alude o Artigo 89º da RAU, não conduziria à caducidade do direto de transmissão.
XXXI.Ainda que se considere o invocado pelos Recorrentes, no que respeita à eventual denúncia do contrato de arrendamento pela ante possuidora, há alguns aspetos a esclarecer.
XXXII. Em primeiro lugar, não se tratará de matéria confessória na medida em que tal facto não está relacionado com os temas de prova; depois, há a considerar que, ainda que tivesse ocorrido tal denúncia, que não veio comprovada, passaram-se dezassete anos desde a morte da mãe do Recorrido até à propositura da ação.
XXXIII. Durante este tempo, o Recorrido esteve no imóvel, à vista de tudo e de todos, sem qualquer oposição de facto por parte da senhoria, o que significará que, ainda que consideremos que a mesma terá procedido à denúncia, é inequívoco que se conformou com a realidade e aceitou a manutenção do contrato de arrendamento.
XXXIV. Se o fez por descuido ou por efetiva aceitação, não sabemos nem nunca saberemos, mas sabemos, com toda a certeza, que as suas ações ou omissões criaram no Recorrido a legítima expectativa de que o contrato se mantinha em pleno vigor, como efetivamente se manteve.
XXXV.Vir, agora, invocar o inverso, configuraria um claro e manifesto abuso de direito.
XXXVI. Por cautela de patrocínio, não podemos deixar de referir que os pedidos formulados na petição inicial dos Recorrentes, são incompatíveis, pelo menos para os efeitos pretendidos.
XXXVII. É que o reconhecimento do direito de propriedade nunca esteve, sequer, em discussão: o Recorrido sempre aceitou essa condição irrefutável; e o reconhecimento propriedade do imóvel, só por si, não determinaria o direito à sua restituição, não quando existem outros fundamentos para a sua legítima ocupação, fundamentos que os Recorrentes conheciam não só à data da celebração do negócio mas, principalmente, quando deram entrada da presente ação.
XXXVIII. Ousamos dizer que a petição inicial é inepta, pelo menos se atendermos ao segundo pedido, absolutamente incompatível com a causa de pedir invocada: o reconhecimento do direito de propriedade dos Recorrentes, não implica necessariamente a obrigação de restituição do prédio.
XXXIX. Deve ter-se em conta, que o direito de propriedade, consagrado constitucionalmente, não é garantido em termos absolutos, mas sim, atendendo à sua função social, dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da CRP.
XL. Para se observar a procedência de uma ação de revindicação devem ser demonstradas três condições: os autores serem titulares do direito real de gozo invocado, o Réu ter a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor e este não provar que é titular de um direito que lhe permita ter a coisa consigo.
XLI.Como foi devidamente comprovado no decurso deste processo, e relembrado nestas alegações, tais requisitos não estão preenchidos, como tal a ação não pode ser procedente neste pedido.
XLII. Para além do mencionado, urge mencionar que a fundamentação da ação de reivindicação, servia antes para uma possível ação de despejo, visto que questiona o pagamento de rendas, mas nunca para uma ação de reivindicação.
XLIII. Por tudo o exposto, a douta sentença recorrida não merecerá qualquer juízo de censura, devendo ser mantida”

II- Objeto do recurso

É questão a conhecer neste acórdão da existência de um contrato de arrendamento para habitação oponível aos Autores. Para tanto, face às conclusões apresentadas, é mister conhecer:
.1- Se deve ser alterada a matéria de facto no sentido pugnado pelos Recorrentes, verificando se foi feita correta avaliação da prova;
2- se é aplicável ao caso o disposto no artigo 1069º nº 2 do Código Civil e em qualquer caso se se pode considerar demonstrada a existência de um contrato de arrendamento verbal.

III - Fundamentação de Facto

Segue-se o elenco dos factos dados como provados e não provados nos autos.

Factos provados:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...08, da freguesia ..., um prédio urbano, sito em ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...85, composto de casa de habitação de ... com quintal.
2. Pela ap. ...95 de 2021/01/04 foi registada a aquisição, por compra, do prédio referido em 1 a favor dos autores.
3. Tal prédio adveio ao domínio dos autores através de escritura pública de compra e venda outorgada no dia 4 de janeiro de 2021, por compra a JJ, KK e DD.
4. O prédio atrás identificado integrava a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, de quem os vendedores foram sucessores. 5. As autores estão, por si e seus ante possuidores, há mais de 30, 50, 100 e mais anos, na posse pública, pacífica, contínua e com boa fé do prédio identificado em 1.
6. Sempre os autores e ante possuidores, têm usufruído e detido materialmente tal prédio, com o ânimo de donos exclusivos.
7. Em seu exclusivo proveito, dele retirando todas as utilidades e interesses correlativos, suportando todos os encargos a ele inerentes, como contribuições e beneficiações, efetuando obras de conservação, celebrando contratos, conscientes de não ofender quaisquer direitos total ou parcialmente incompatíveis sobre o mesmo bem.
8. Atuando como titulares de um direito real sobre a propriedade e não um mero poder de facto sobre ela, agindo, desta forma, convictos de que são titulares do direito real correspondente.
9. Atos que exercem de forma pública e ostensiva, sem interrupção temporal ou oposição de quem quer que seja, fazendo-o à vista de todos e com o ânimo de quem sempre exerceu um direito próprio.
10. Os autores tiveram conhecimento do anúncio de venda do imóvel através da Imobiliária ..., sita na Av. ..., em ....
11. Correspondendo o imóvel às expectativas dos autores estes contactaram a referida imobiliária e encetaram negociações em vista à aquisição daquele.
12. Uma vez que os autores encontram-se imigrados na ... pediram que um dos funcionários da imobiliária realizasse uma visita virtual através de videochamada.
13. Quando uma funcionária da imobiliária se deslocou ao imóvel foi surpreendida com a presença do réu no interior do imóvel.
14. Até à constatação referida em 13, quer a funcionária da imobiliária, quer os vendedores, quer os autores desconheciam por completo a ocupação do imóvel por parte do réu.
15. Após a formalização da aquisição do imóvel pelos autores, estes procederam ao envio de interpelação escrita ao réu, solicitando que procedesse à entrega voluntária do imóvel.
16. No entanto, o réu, apesar de instado, recusa-se a entregá-lo voluntariamente.
17.  Em 4 de agosto de 2021, os autores, que estavam de férias em Portugal, decidiram deslocar-se ao imóvel pretendendo visitá-lo, porém o réu recusou-se a deixa-los entrar, tendo aqueles, inclusive, solicitado o auxílio das forças policiais, mas sem lograrem sucesso na sua pretensão.
18. O exterior do prédio encontra-se em mau estado de conservação (paredes, janelas), bem como o seu logradouro, o qual está votado ao abandono e ocupado por ervas e silvado.
19.  Constituindo um perigo para a saúde de quem o ocupa, como também para os vizinhos dos prédios confinantes.
21.  O réu casou em .../.../1980. O casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 06/07/1983, transitada em julgado em 16/07/1983, proferida pelo Tribunal Judicial ....
22.  Após o divórcio, o réu regressou a casa dos pais, com quem passou a viver, desde então.
23.  À vista de tudo e de todos.
24.  O prédio foi dado de arrendamento aos pais do réu há mais de sessenta anos.
25.  A mãe do réu faleceu em .../.../2004.
26.  À data da aquisição do prédio, os autores sabiam que o réu ali residia.
27.  Existe uma conta de depósito de rendas n.º ...50 na Banco 1..., co-titulada por CC e DD.
28.  O primeiro depósito foi efetuado em 05/08/2004 pelo valor de 1,18 € e o último depósito em 24/04/2017 pelo valor de 2,36 €.
29.  Não se verificaram quaisquer levantamentos na conta referida em 27.
30.  A razão invocada para o depósito foi a recusa da aceitação das rendas.
31. Em 05/01/2015 foi inscrita no Serviço de Finanças ... 2 a herança aberta por óbito de DD, em 21/02/1986, e identificados como seus herdeiros DD e LL.

Factos não provados

i) Os autores obteriam pelo arrendamento do prédio uma quantia mensal não inferior a 200 €, atenta a sua área global, o estado de conservação e os valores de mercado de arrendamento praticados na zona em que aquele se situa.
ii) O referido em 22 ocorreu com o conhecimento e consentimento dos proprietários do prédio referido em 1.
iii) O réu respondeu à interpelação referida em 15.

III- Fundamentação de Direito

A- Da impugnação da matéria de facto

Verificam-se de forma suficiente cumpridos os ónus previstos no artigo 640º do Código de Processos, sem haver que os escalpelizar, por aceites também por ambas as partes.
Cumpre, pois, analisar a prova testemunhal e documental apresentada, para verificar da prova de todas as alíneas da matéria de facto não provada, como pretendem os Recorrentes.

a- Dos critérios para a apreciação da impugnação da matéria de facto

Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância -, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas.
É à luz desta ideia que deve ser lido o disposto no artigo 662º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada.
Como explanado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2012 no processo 649/04.2TBPDL.L1.S1, (sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt) “A reapreciação das provas que a lei impõe ao Tribunal da Relação no art. 712.º, n.º 2, do CPC, quando haja impugnação da matéria de facto que haja sido registada, implica que o tribunal de recurso, ponderando as razões de facto expostas pelos recorrentes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, forme a sua prudente convicção que pode coincidir ou não com a convicção do tribunal recorrido (art. 655.º, n.º 1, do CPC).
A reapreciação da prova não se reduz a um controlo formal sobre a forma como o Tribunal de 1.ª instância justificou a sua convicção sobre as provas que livremente apreciou, evidenciada pelos termos em que está elaborada a motivação das respostas sobre a matéria de facto.”
 Visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador.
A mesma impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, estribando-se em critérios de razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.
A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal asserção, havendo sempre a possibilidade de duvidar de qualquer facto.
“Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1.
A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de+ apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova por declarações e a fragilidade deste meio de prova.
Igualmente importa a “acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” (mesmo Acórdão).
Assim, cumpre analisar a prova produzida, tendo em conta estes princípios, para se poder alcançar se a análise cuidada e ponderada dos elementos apresentados levam á conclusão, com a segurança necessária, de que se verificaram os factos dados como não provados.

b- Concretização

Pretendem os Recorrentes que se considerem como não provados os pontos 24 e 30 da sentença, onde se lê: “O prédio foi dado de arrendamento aos pais do réu há mais de sessenta anos.” e “A razão invocada para o depósito foi a recusa da aceitação das rendas.”
Por um lado, fundam-se na deficiente apreciação da prova produzida e por outro no regime legal que impõe restrições à prova dos contratos de arrendamento verbais.
Comecemos pela primeira questão.

- Análise da prova produzida em audiência, confrontada com a prova documental

Ouvida a prova é inegável que se demonstrou de forma clara que o Réu viveu a maior parte da sua vida no prédio. Tal é referido de forma clara e sem dúvidas por todas as testemunhas que o conhecem: EE, sobrinha do Réu, MM, também sua sobrinha, GG, Presidente da Junta de Freguesia ... e ....
O depoimento desta última testemunha, sem qualquer vínculo ao Réu, é particularmente seguro neste aspeto ao mencionar que sempre o conheceu naquela habitação.
Da mesma forma, as testemunhas com mais ligação ao local (EE e MM) asseguram que os pais do Réus, já falecidos, foram viver para o prédio há mais 60 anos e que pagavam renda às suas proprietárias, umas senhoras de ..., na pessoa do seu feitor, o Sr. NN e depois na “Contribuinte”. Mais afirmam que o Réu foi para tal prédio quando teria três ou quatro anos, na companhia de seus pais, que dela fizeram a sua habitação, e para onde voltou, após ter vivido por curto período com o seu sogro, após o seu divórcio.
Os Autores pretendem retirar credibilidade a estes depoimentos com base em pormenores e pequenas contradições que não nos parecem suficientes para o efeito, atento o tempo já decorrido e os normais enganos que a memória traz relativamente a minudências a que se não deu importância.
Vejamos.
O Réu refere que a senhoria dos pais era BB, não que o contrato fora celebrado com ela (o Réu teria à data da celebração do contrato cerca de 3 anos). É normal que refira o nome da senhoria mais antiga com que lidou, a qual era a herdeira da proprietária do imóvel há 60 anos atrás. Nada de estranho há no facto de ser referida esta herdeira como a proprietária do prédio e não a referida D. DD, falecida há mais de três décadas. O mesmo ocorre no que toca aos depoimentos das testemunhas EE e MM quando só àqula se referem e não à sua antecessora, que tinha um feitor no local, com quem os seus pais lidaram e a quem pagaram a renda.
É certo, também, que as testemunhas EE e MM não assistiram a quaisquer negociações que levaram à celebração do contrato, mais que não fosse porque o mesmo teve lugar há cerca de 69 anos e estas ainda não seriam nascidas à data. Mas têm todos os sinais ou “vestígios” que deixou a celebração do contrato de arrendamento, traduzida na habitação da casa e o pagamento das rendas, primeiro ao feitor, depois à “Contribuinte” (sociedade que se dedicava, entre o mais, a tal função de receber as rendas) e por fim à Banco 1..., sempre acompanhada da contínua e exclusiva utilização do locado, sem oposição dos seus legítimos proprietários.
O Réu explicou como deu conhecimento à senhoria de que sua mãe faleceu e como passou a depositar as rendas na Banco 1.... E, efetivamente, os depósitos efetuados na Banco 1... têm início no mesmo trimestre da morte de sua mãe.
II apenas conheceu a vendedora do imóvel por volta de 2014 e só entra em cena em 2016, sendo os factos agora em debate muito anteriores, não podendo esclarecer de forma cabal sobre os mesmos.
Afirmam os Recorrentes que “o facto de o imóvel estar ocupado pelos pais do R. e essa ocupação se ter prolongado no tempo, daí não se presume que a mesma seja conhecida e consentida pelos legítimos proprietários, nem que tenha ocorrido ao abrigo de um contrato de arrendamento verbal.” Dificilmente se consegue conceber que a habitação de uma casa por uma família durante mais de 60 anos possa ser efetuada às escondidas dos seus legítimos proprietários e que ela pudesse prolongar-se por tão longo período sem, pelo menos, o assentimento daqueles.
Este facto, somado à existência de depósitos da renda e à indicação de como era anteriormente efetuado tal pagamento da renda, com a concreta identificação do feitor da herdeira da primeira senhoria do imóvel, seguida da indicação da sociedade onde era efetuado o pagamento, de forma credível e isenta, conduz a que se dê credibilidade á existência de um contrato de arrendamento verbal e ao efetivamente pagamento das rendas, poucas vezes atualizadas, atento o seu valor irrisório.
Não há contradição entre as declarações do Réus e o depoimento das testemunhas EE e MM no que toca à passagem de recibo pela “Contribuinte”: o primeiro afirma que “eles escreviam num livrinho”, as testemunhas que passavam um recibo, porquanto podiam ocorrer ambas as coisas. É comum haver livros de recibos, em forma de “livrinho”, em que se aponta no “canhoto” (do lado esquerdo) o que se escreve no recibo, o qual é destacado, por o papel se encontrar picotado, ficando o emitente com o registo e entregando o recibo. Assim, a escrita no livrinho e a entrega do recibo são, em muitos casos, as duas faces do mesmo ato.
 Em habitações menos salubres ocorre com mais facilidade a perda e estragos de recibos e papéis, sendo frequente as pessoas singulares não fazerem arquivos de recibos dos seus gastos particulares, o que explica naturalmente a inexistência de tais recibos, face à sua vetustez (seriam anteriores a 2004).
O Réu explicou como deu conhecimento à senhoria de que sua mãe faleceu e como passou a depositar as rendas na Banco 1.... Mais relatou como a senhoria, a quem deu conhecimento da morte sua mãe, não queria a continuação do contrato e até lhe enviou um cheque, que ele não levantou, com a promessa de lhe entregar outro tanto, quando ele deixasse o imóvel. A testemunha EE também confirma a existência desse cheque.
E é por força dessa não aceitação da continuação do pagamento da renda que consta nos comprovativos dos depósitos de renda juntos na audiência de julgamento aposto o motivo “senhoria não aceitar renda”, “recusa do senhorio em aceitar a renda”, “causa da senhoria em não aceitar a renda”.
A prova dos pagamentos efetuados no período de tempo em que os pais dos Réus eram arrendatários funda-se nas declarações do Réu e daquelas testemunhas, por referência à “Contribuinte” e ao “feitor HH” e do próprio Réu, credibilizadas, aliás, pelo decurso de tão longo período de tempo sem qualquer ação dos senhorios perante uma eventual falta de pagamento de renda ou ocupação ilegal, caso esta tivessem ocorrido e no facto de prontamente o Réu ter continuado a depositar a renda, mal ocorreu a morte de sua mãe (o que não teria tanto sentido se esta não tivesse sido paga em períodos anteriores).
É certo, porém, que as testemunhas EE e MM parecem aceitar, na senda das perguntas que lhe vão sendo feitas, que também os avós pagavam rendas na Banco 1.... Mas esta pequena discrepância com a realidade (basta ver as datas dos depósitos e do óbito da mãe do Réu, junta que foi a certidão de óbito) não é, só por si, suficiente para pôr em causa os pagamentos efetuados e os depósitos feitos, apenas demonstra uma pequena confusão em que incorreram as testemunhas e que não altera a sucessão dos acontecimentos, nem diminui a sua credibilidade.
Dúvidas não há que o Réu depositou a renda, consecutivamente, entre 05-08-2004 e 2006, continuando a efetuar pagamentos, embora menos regulares até 24-04-2017, como demonstra o extrato da conta bancária junta aos autos.
Pretendem ainda os Autores que se entenda que houve uma declaração confessória por parte do Réu de que o contrato foi denunciado.
No entanto, não é possível do relato do Réu chegar tão longe: este refere que a senhoria lhe deu a entender que não queria a continuação do contrato e que lhe enviou um cheque com metade da quantia que entendia que era devida e lhe prometeu a outra metade com a entrega da casa. Do seu relato não resulta qualquer declaração categórica da parte da senhoria negando a continuação do contrato, mas parece que a mesma pretendia chegar a acordo consigo, aliciá-lo e convencê-lo a celebrar determinado acordo que passava pela entrega do locado, não exercer desde logo qualquer direito potestativo sem obter previamente o seu consentimento.
Aliás, não se percebe que, a ter efetuado tal denúncia e envio de cheque, utilizando em seu proveito benefício legal, a então proprietária do imóvel não ficasse com prova de que tinha recorrido a tal faculdade. E dela não se fizesse beneficiar nos cerca de quinze anos que ainda viveu. Não teria qualquer sentido declarar por escrito que denunciava o contrato e oferecer o pagamento da devida indemnização e não ficar com prova dessa declaração e pagamento e dela não se fazer valer, após. Com efeito, o recurso a expediente legal por parte do senhorio, segundo as regras da experiência comum, implica que este usou dos mais básicos cuidados que alguém com alguma cultura jurídica tem ao usar da faculdade concedida, que seria ficar com cópia e comprovativos do envio das missivas e pagamentos (e ás quais os seus herdeiros teriam acesso para delas se fazerem valer). E mais: que iniciado o processo, com entrega de quantias para o efeito, o levasse até ao fim, para não perder os gastos efetuados.
Este elemento permite a interpretação das declarações do Réu, sendo, pois, patente que apesar deste expressar que a senhoria estava renitente na continuação do contrato, não afirmou que esta o denunciou. E justifica o imediato depósito da renda na Banco 1..., que à cautela, passou a fazer, por esta a não querer aceitar, nas declarações do Réu, por esta lhe ter afirmado que não valia a pena efetuar o pagamento de quantia tão irrisória.
Assim, não se encontra aqui qualquer declaração confessória a apontar, mas a demonstração e explicação da recusa da aceitação da renda pela locadora.
Assim, pode-se de toda a prova retirar, com a necessária segurança, que a proprietária do imóvel, por si ou pelo seu feitor, acordou com os pais do réu, há mais de 60 anos que estes poderiam passar a habitar no prédio dos autos, com a sua família, mediante o pagamento de uma renda, o que veio a ocorrer, pagando estes a renda acordada primeiro ao feitor e anos depois a uma sociedade conhecida por “Contribuinte”.
Mais se pode concluir que na sequência da morte da mãe do Réu, já no estado de viúva, este passou a depositar a renda na Banco 1..., nos termos constantes do ponto 28 da matéria de facto provada, após lhe ter comunicado esse óbito e esta lhe ter afirmado que não pretendia continuar a receber as rendas.
Assim o referiu o Réu, e foi confirmado, em parte, pelas suas sobrinhas EE e MM, em conformidade com o teor da cópia dos comprovativos dos depósitos juntos aos autos, com os dizeres supra relatados.
Dúvidas razoáveis não temos, pois, quanto à prova do ponto 30 da matéria de facto provada.

- Da inaplicabilidade ao caso do disposto no artigo 1069º nº 2 do Código Civil

No que toca à prova do ponto 24 entendem os Recorrentes que não se pode considerar que foi efetuada prova do arrendamento verbal, porque não se demonstrou que os pagamentos efetuados pelos inquilinos originais decorreram por um período de seis meses, nem que o Réu não a podia pagar diretamente ao locador, em vez de a depositar.
Fundam-se para tanto na aplicação ao caso do disposto no artigo 1069º nº 2 do Código Civil, norma também aplicada pela sentença em apreço, a qual dispõe “2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.”
Como é sabido, a regra geral quanto à aplicação das leis no tempo no que diz respeito à forma do contrato retira-se do artigo 12º nº 2 do Código Civil, primeira parte: “Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos”.
Tem-se entendido que o mesmo princípio é aplicável às leis sobre prova: “«em matéria de negócios jurídicos, as regras de prova não são um guia para o juiz apenas, mas são-no também para as partes; pois é certo que estas, na constituição duma SJ [situação jurídica], tomam em conta as exigências de provas formuladas pela lei da mesma forma que tomam em conta as exigências legais relativas às condições de validade». (cf Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, págs. 277)
«Neste domínio, as leis de prova podem legitimamente influir sobre a conduta das partes (levando-as a adotar certas precauções ou diligências com vista a assegurar os meios de prova no momento da constituição da situação jurídica). Por essa razão, isto é, porque nesse caso a aplicação imediata da Lei Nova a situações jurídicas constituídas anteriormente seria suscetível de frustrar as previsões e legítimas expectativas, sustenta-se que a Lei Nova sobre a prova apenas deve ser aplicável às situações jurídicas novas, leia-se, às situações jurídicas constituídas depois da entrada em vigor da Lei Nova.” - cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/04/2018, no processo 1272/16.4T8SNT.L1.S1 , (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano), citando Baptista Machado e Joana Nunes Vicente.
Todavia é sabido que no arrendamento tem havido sempre maiores ingerências da lei na livre disponibilidade dos seus interesses pelas pessoas. Atentos os valores em causa (o parque imobiliário e a habitação), tem sido objetivo da lei, muitas vezes contra as expetativas de alguns dos seus destinatários, impor soluções que visam obter determinados fins económicos ou sociais, estipulando-se-lhes força retroativa.
Isto é patente no que toca ao arrendamento urbano e em particular no que versa sobre o arrendamento para habitação: razões de politica social e económica levaram à criação de uma sucessão de regras especiais, nomeadamente criando a possibilidade de demonstrar arrendamentos que não se sujeitavam à forma estipulada para o tempo em que foram celebrados, ora restringindo os meios de prova admissíveis para tal afirmação.
Assim, neste campo, em que a força do princípio da irretroatividade da lei não tem o mesmo peso do que noutros ramos do Direito (como no penal), há que analisar as concretas normas, dentro do sistema jurídico, para perceber se as mesmas têm ou não vocação para serem aplicadas retroativamente (Defendendo a retroatividade do artigo 1069º nº 2 do Código Civil, cf o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/04/2021 no processo 24466/18.3T8PRT.P1.
Também aqui se pode dizer que “Essa é uma problemática do conflito de leis no tempo, cuja resolução se deve buscar em primeiro lugar pela aplicação e interpretação das disposições transitórias de cada uma das leis com a qual a relação jurídica manteve contacto e, na sua ausência, pelo recurso aos princípios enunciados no artigo 12º do Código Civil cfr. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 229 e ss.” como se escreveu no acórdão desta relação no processo 1102/19.5T8BRG.G1, de 05/07/2020, sobre matéria que esta se cruza, como infra se reforçará, com nova citação.
À data da celebração do arrendamento aqui em disputa o arrendamento não estava sujeito a qualquer forma especial se não fosse por período excedente a um ano ou a 4 anos, consoante houvesse ou não antecipação de renda (artigo 1622º do Código Civil de 1867), podendo ser meramente verbal.
O mesmo continuou a ocorrer após a entrada em vigor do atual Código Civil (de 1966).
Só pelo artigo 14º do DL 445/74 de 12 de setembro se estipulou a necessidade da forma escrita: o contrato devia constar de documento assinado por ambos os contraentes.
No entanto, à data da celebração deste acordo vigorava norma que limitava a prova do contrato de arrendamento, pelo arrendatário, á exibição de recibo de renda - o artigo 36º nº 1 da Lei 2030 de 22/6/1948. Limitação esta que se manteve no então novo Código Civil: o artigo 1088º do Código Civil, na sua redação original, dada pelo Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, afirmava: “Se o arrendamento for válido independentemente de título escrito e este não existir, o arrendatário só pode provar o contrato desde que exiba recibo de renda.” (Na jurisprudência considerava-se que a confissão do senhorio e a declaração do arrendamento junto do fisco tinham o mesmo efeito probatório).
Embora só formalmente removida do Código pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, na prática, esta norma foi revogada, no âmbito dos arrendamentos de que cuidamos, pelo Decreto-Lei artigo 2º nº 1 do DL 188/76, de 12 de março, que admitia ao locatário a faculdade de demonstrar a “existência do contrato por qualquer meio de prova admitido em direito, desde que não haja invocado a nulidade”, mesmo para os arrendamentos pré-existentes, concedendo-lhe, pois, expressamente, força retroativa.
Enfim, até então, embora o senhorio pudesse provar o contrato por qualquer meio, o arrendatário só o podia provar desde que exibisse recibo de renda, mesmo que o contrato fosse válido independentemente de título escrito, situação que esta norma veio alterar. Desde então, como é sabido, esta matéria tem sofrido um amplo conjunto de alterações.
Também o Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de janeiro, no seu artigo 1º, sobre o arrendamento para habitação, determinava que este seria sempre reduzido a escrito e que a falta de contrato escrito se presumia imputável ao senhorio e a respetiva nulidade só era invocável pelo arrendatário. No nº 3 estipulava-se que o arrendatário podia provar a existência do contrato por qualquer meio de prova admitido em direito, desde que não houvesse invocado a nulidade e no nº 4 que “O disposto no número anterior é aplicável aos arrendamentos já existentes à data da entrada em vigor do presente diploma.”
Esta solução foi salvaguardada pelo artigo 6º das normas preambulares do Decreto-Lei 321-B/90: “Invalidades mistas de pretérito - O disposto nos artigos 7.º e 8.º do Regime do Arrendamento Urbano não prejudica os precisos efeitos que os artigos 1.º do Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de janeiro, e 1029.º, n.º 3, do Código Civil reconheciam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma.”
Esta norma não foi revogada pelo Lei 6/2006, de 27.02, como tão bem se explanou no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 05/07/2020, no processo 1102/19.5T8BRG.G1: “ A norma revogatória do nº 1 do artigo 60º da Lei 6/2006, de 27.02, abrange tão só o específico regime civilístico do arrendamento urbano (RAU) aprovado pelo DL 321-B/90, e não as suas normas preambulares, designadamente a do artigo 6º, que manteve os efeitos do nº 3 do art. 1029º do Código Cívil introduzido pelo DL 65/75 relativamente aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor.
Assim, entende-se que se aplica à prova deste contrato o disposto no artigo 1º nº 3 do Decreto-Lei nº 13/86, de 23 de janeiro que estipulava que o arrendatário podia provar a existência do contrato por qualquer meio de prova admitido em direito, desde que não haja invocado a nulidade.
O nº 2 do artigo 1069º do Código Civil foi introduzido pela Lei 13/2019. O artigo 14º, nº 2,  desta Lei, veio estipular que esta norma se aplica a arrendamentos existentes à sua data de entrada em vigor. No entanto, é certo que o disposto no artigo 14º nº 2 da Lei 13/2019 não implica que o nº 2 do artigo 1069º se aplique a todos os arrendamentos existentes à data de entrada em vigor: necessário é que estejam preenchidos os seus pressupostos e a sua facti specie.
Esta norma visa salvar os arrendamentos nulos por não terem sido reduzidos a escrito, quando a mesma não seja imputável ao arrendatário. Tal decorre da sua inserção sistemática – o nº 1 do artigo 1069º nº 1 estipula que o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito, o nº 2 o que ocorre se tal norma não for observada. Assim, o mesmo não se aplica aos casos em que o contrato observou a forma legal à data da sua celebração.
Também a interpretação teleológica e subjetiva do diploma que a criou conduz a essa conclusão, onde se escreveu que esta visava “corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade”. Com efeito, é claro que o diploma não pretendeu trazer maiores entraves aos arrendatários em provar contrato de arrendamento que fosse válidos quanto à forma.
Assim, o mesmo não é aplicável aos casos abrangidos pelo citado artigo 1º nº 3 do Decreto-Lei nº 13/86, que os regula.
Nada obsta a que se considere provado o contrato de arrendamento.

- Da análise da prova face ao disposto no artigo 1069º nº 2 do Código Civil

No entanto, mesmo que se seguisse a posição tomada pelos Recorrentes e pela sentença e se entendesse que para se considerar provada a celebração do contrato haveria que ter por demonstrados os pressupostos a que alude o atual artigo 1069º nº 2 do Código Civil, por este ter imediata aplicação a todo e qualquer contrato, mesmo que abrangido pela ressalva legal do artigo 6º do preambulo do DL 321-B/90, se alcança a mesma conclusão positiva quanto à prova do contrato.
Com efeito, é, em abstrato, ainda possível entender que o citado artigo nº 2 artigo 14º da Lei n.º 13/2019 levou o alargamento de aplicação do atual nº 2 do artigo 1069º do Código Civil a todos os caso sem que o contrato não tenha sido reduzido a escrito, mesmo que o mesmo a tanto não estivesse sujeito à data da sua celebração (Neste sentido veja-se David Magalhães (“Algumas alterações do regime jurídico do arrendamento urbano (Leis n.º 12/2019 e 13/2019, de 12 de Fevereiro) – O recrusdecer do vinculismo”, in BFDUC, Vol. XCV, Tomo I, pág. 565),: «Significa que todos os contratos de arrendamento existentes, independentemente da época da sua celebração, passam a ser disciplinados pelo artigo 1069.º/2 CC, cujo regime prevalece sobre as normas anteriormente incompatíveis».apud acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 03/25/2021, no processo 11189/18.2T8LSB.L1.S1.)
Dispõe esta norma: Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.
Tem-se considerado, para a aplicação desta norma, que cabe ao inquilino a prova de não lhe ser imputável a falta de redução a escrito do contrato (embora esta questão seja discutível, nomeadamente por vir à revelia de todas as normas do sistema que estipulavam presunções de imputabilidade ao senhorio, baseado em regras da experiência), bem como que utiliza o locado sem oposição do senhorio e que efetuou o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.
Diga-se desde já que produzida prova que demonstrou cabalmente estes três elementos, permitindo que se desse como provada a celebração do contrato de arrendamento.
Como vimos, não só temos como demonstrado que os primitivos arrendatários pagaram rendas por mais de seis meses – primeiro a um feitor e depois na “Contribuinte”, como se provou que o Réu depositou a renda por a senhoria se ter recusado a receber a mesma e tal ocorreu durante mais de seis meses (pontos 28 e 30 da matéria de facto provada).
Tanto bastaria para se considerar demonstrada a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento da renda mensal por um período de seis meses, exigida por esta norma para que se supra a falta de título por o arrendamento não ter sido reduzido a escrito por ato não imputável ao arrendatário.
A não imputação aos arrendatários da culpa pela não redução a escrito vem de ser claro o que a determinou: o facto de, à data, a forma do contrato ser consensual, não se prevendo que fosse reduzida a escrito. Recorrendo também a este raciocínio veja-se o já citado acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 03/25/2021, no processo 11189/18.2T8LSB.L1.S1.
Por outro lado, “a questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico morte do arrendatário.” (cf acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/16/2015, no processo 403/14.3TBGDM.P1).
A morte do último dos primitivos arrendatários ocorreu em .../.../2004, na vigência do DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, que dispunha no artigo 85º n.º 1 b) “1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano”. À data o Réu vivia no arrendado há mais de um ano.
É certo que artigo 89º deste diploma estipulava que o transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por carta registada com aviso de receção, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, enviada nos 180 dias posteriores à ocorrência. O nº 3 deste artigo dispunha “A inobservância do disposto nos números anteriores não prejudica a transmissão do contrato mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão.”  Apesar deste nº 3 ter sido revogado, o Tribunal Constitucional, pelo acórdão Nº 54/97, julgou inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea h) da Constituição, a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de agosto, na parte em que elimina o nº 3 do artigo 89º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de outubro. Pelo que dúvidas não nos restam quanto à transmissão do contrato.
      Enfim, o disposto no nº 2 do artigo 1069º do Código Civil não obsta a que se dê como demonstrada a celebração do contrato sob a forma verbal como foi vertido no ponto 24 da matéria de facto provada.
Há, pois, que sufragar a conclusão tirada na sentença e confirmar a decisão sob recurso.

V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente apelação, e, em consequência, mantêm a sentença proferida.
Custas pelos Recorrentes (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil).

Guimarães, 10-02-2023


Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves