Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4854/22.1T8GMR-B.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: VALOR DA CAUSA
VALOR DO ATO JURÍDICO
DOAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Estando em causa na presente ação a apreciação da validade de um ato jurídico consubstanciado na doação de um prédio misto, o valor da ação corresponde ao valor pelo qual os aí outorgantes declararam doar e aceitar a doação, conforme critério legal especial enunciado no artigo 301.º, n.º 1 do CPC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

No Juízo Central Cível de Guimarães - Juiz ... - AA intentou ação declarativa sob a forma de processo comum, contra BB, formulando as seguintes pretensões:

a) Se declarada nula, por força do disposto nos artigos 257º, 280º, nº(s) 1 e 2, 281º e 282º, do Código Civil, a doação de CC e DD a BB, efectuada em ../../2013, do prédio misto, composto por casa e quintal destinada a habitação e terreno junto, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...76 e inscrito na matriz sob os artigos ...4 urbano e ...47 rústico, com os valores patrimoniais atribuídos de 28.410,00 € e 1.367,21 €, celebrada através de escritura pública no Cartório Notarial de EE, na cidade ..., lavrada a folhas 77 a 78 no livro de notas parta escrituras diversas nº 159-G.
b) Ser ordenado o cancelamento de todos os registos de aquisição da propriedade do prédio supra referido, efectuados a favor do Réu, BB, na Conservatória do Registo Predial ....
Na petição inicial, a autora atribuiu à ação o valor de 60.000,00 €.
O réu contestou, defendendo-se por exceção, impugnando parte dos factos alegados na petição inicial e pugnando pela improcedência da ação, não se pronunciando relativamente ao valor da causa atribuído pela autora.
Notificada para o efeito, veio a autora pronunciar-se quanto às exceções deduzidas pelo réu na contestação, nos termos que constam do requerimento apresentado a 18-01-2023 (com a ref. ª ...67), no qual, entre o mais, alegou o seguinte:
“(…)
 6. Quanto à questão suscitada no despacho, citamos «quanto à invocada simulação pronunciar-se sobre a ineptidão, por não estar alegado o conluio e o intuito de prejudicar, em termos que permitam a pretendida decisão de mérito», a autora no artigo 37º, da petição inicial, não invocou nem pretende invocar o vício da simulação previsto no artigo 240º, do Código Civil.

A autora entende, que o valor atribuído à doação é contrário à lei e por isso nulo o negócio jurídico (doação), nos termos do disposto no artigo 280º, nº 1 do Código Civil”.
No requerimento apresentado a 18-01-2023 (com a ref. ª ...67) a autora declarou corrigir o pedido formulado, na al. a), nos seguintes termos:
«Nestes termos e nos melhores de direito deve a presente acção ser julgada provada e procedente por consequência:
Ser declarada nula, por força do disposto no artigo 280º, nº 1 e 2, do Código Civil, e anulada, por força do disposto nos artigos 257º e 282º, nº 1, do mesmo código, a doação de CC e DD a BB, efectuada em ../../2013 do prédio misto, composto por casa e quintal destinada a habitação e terreno junto, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...76 e inscrito na matriz sob os artigos ...4 urbano e ...47 rústico, com os valores patrimoniais atribuídos de 28.410,00 € e 1.367,21 €, celebrada através de escritura pública no Cartório Notarial de EE, na cidade ..., lavrada a folhas 77 a 78 no livro de notas parta escrituras diversas nº 159-G».
Foi admitida a intervenção principal, do lado ativo, de FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL e MM e citados os chamados nos termos do disposto no artigo 319.º do CPC.
Após, foi proferido despacho (de 04-03-2024) a fixar o valor da ação em 29.777,00 €, nos seguintes termos: «Valor da acção: Face ao disposto no art.º 296.º, n.º 1, e 301.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, fixo o valor da acção em € 29.777,00», o qual precedeu o despacho saneador, a identificação do objeto do litígio e a seleção dos temas da prova.
Notificado do despacho proferido em 04-03-2024, veio a autora, por requerimento apresentado em 18-03-2024, requerer a alteração do valor da ação para 60.000 €, nos termos seguintes:
«(…)
I- Do Valor da Acção
1.
No iten “Valor da acção”, do despacho, foi fixado o valor em 29.777,00 €, ora trata-se certamente de um lapso de escrita, pois à acção foi atribuído o valor na petição inicial de 60.000, 00 €, sem controvérsia pelas restantes partes, sendo certo que a manter-se o tribunal seria incompetente em razão do valor.
Muito embora o valor 29.777,00 corresponda ao valor atribuído à doação em causa, nos autos, o certo é que o valor dos imóveis é muito superior ao indicado na escritura pública, que de resto só tem interesse para efeitos fiscais.
Pelo exposto requer a alteração do valor da acção para 60.000 €».
Após o que foi proferido despacho (de 22-04-2024) - a indeferir o requerido, mantendo inalterado o valor atribuído à ação no despacho de 04-03-2024 - com o seguinte teor:
«Ref.ª ...80, de 18.03.2024 - Inexiste qualquer lapso de escrita no despacho que fixou o valor da acção. 
Conforme dispõe o art.º 306.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes”.
Por sua vez, o art.º 308.º, do mesmo código, estabelece que “Quando as partes não tenham chegado a acordo ou o juiz o não aceite, a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar” - realce nosso.
Explicando a evolução histórica do regime processual relativo à fixação do valor da causa, referem J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, Almedina, 2018, págs. 615 e 616, que:
As partes podem ter expressamente acordado no valor da causa, ou pode o valor oferecido pelo autor não ter tido impugnação (…). Considerava-se então, em princípio, que esse era o valor da causa e só quando entendesse que o valor daí resultante era clara ou substancialmente divergente do resultante da aplicação dos critérios legais (“flagrante oposição com a realidade”) é que o juiz fixava o valor adequado até ao despacho saneador (sob pena de o valor logo se fixar na quantia acordada) ou, não havendo lugar a este, até à sentença.    
Com o DL 303/2007, passou o juiz a ter sempre de fixar o valor da causa, não ficando nunca dispensado de examinar a objetividade decorrente do acordo das partes, expresso ou tácito (como se dizia na redação anterior do n.º 1). Daí que, quando não o faça no despacho saneador ou na sentença, em violação do dever que os nºs 1 e 2 lhe impõem, o deva fazer ainda posteriormente, designadamente, havendo recurso, no despacho que o admite. Para o efeito, pode o juiz ordenar as diligências probatórias (máxime, a avaliação e a requisição de documentos) que sejam necessárias”.
No mesmo sentido, escrevem António S. A. Geraldes et al., in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, 2020, pág. 375, que “A determinação do exato valor do processo constitui uma questão marginal no quadro do objeto do processo definido pelas partes. Ainda assim, tendo em conta os diversos efeitos associados ao valor da causa, e sem prejuízo da sua impugnação por banda do réu, prescreve-se, de forma sistemática, uma intervenção oficiosa do juiz no sentido de assegurar a correção em face dos critérios legais aplicáveis ao caso. Com isso se pretende evitar a manipulação do valor processual, nuns casos (aumento), para potenciar a recorribilidade das decisões em diversos graus, noutros casos (redução), para evitar o pagamento das taxas de justiça que correspondam efetivamente à aplicação dos critérios legais, mas que se estende também a outros campos, onde domina a racionalização dos recursos cuja admissibilidade dependa do (correto) valor processual ou da sucumbência (art. 629º, nº 1)”.
Decorre do acima exposto que impende sobre o juiz o dever de fixação do valor da causa em conformidade com os critérios legais, ainda quando o réu/demandado não impugne o valor indicado pelo autor/demandante. Sem que se concorde necessariamente com o juízo que parece implícito nos termos empregues, a esse propósito, pelos últimos autores citados, é indesmentível que a correcta fixação do valor da causa é exigida por razões de interesse público, mormente, atinentes à sua relação com a recorribilidade das decisões, que não pode ser ilimitada.
Ora, no caso dos autos, está em causa a apreciação da validade da doação outorgada no dia 18 de Setembro de 2013, pela qual os aí outorgantes declararam doar e aceitar a doação de um prédio misto e à qual atribuíram o valor de € 29.770,21.
Dispõe o art.º 301.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que “Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes”.
O n.º 3 do artigo citado permite que o Tribunal fixe à acção um valor distinto do estipulado pelas partes no acto jurídico subjacente à causa de pedir apenas se a acção tiver por objecto a anulação do contrato fundada na simulação do preço. Não é o que sucede no caso em apreço.
Veja-se que, não obstante a Autora tenha alegado que o valor total declarado de € 29.777,20 não correspondia ao valor real dos bens, depois de notificada para o efeito, veio a mesma esclarecer que “não invocou nem pretende invocar o vício da simulação previsto no artigo 240º, do Código de Civil” - vide, artigo 6.º da Resposta com a ref.ª ...67, de 18.01.2023.    
Pelo exposto, indefiro o requerido, mantendo inalterado o valor atribuído à acção no despacho de 4.03.2024».

Inconformada com o assim decidido, a autora apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação da sentença, terminando as alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem):
«1.
No âmbito do despacho saneador, documento com a referência ...04, pelo tribunal recorrido foi proferido o seguinte despacho, quanto ao valor da acção:

Valor da acção:
Face ao disposto no artº 296º, nº 1 e 301º, nº 2, do Código de Processo Civil, fixo o valor da acção em € 29.777,00 €.
…”
2.
Por requerimento, com a referência ...80, a Autora, não se conformando com o valor atribuído, reclamou do mesmo, nos seguintes termos:
“…
I- Do Valor da Acção
1.
No iten “Valor da acção”, do despacho, foi fixado o valor em 29.777,00 €, ora trata-se certamente de um lapso de escrita, pois à acção foi atribuído o valor na petição inicial de 60.000, 00 €, sem controvérsia pelas restantes partes, sendo certo que a manter-se o tribunal seria incompetente em razão do valor.
Muito embora o valor 29.777,00 corresponda ao valor atribuído à doação em causa, nos autos, o certo é que o valor dos imóveis é muito superior ao indicado na escritura pública, que de resto só tem interesse para efeitos fiscais.
Pelo exposto requer a alteração do valor da acção para 60.000 €.
…”
3.
Por despacho com a referência ...51, o tribunal recorrido indeferiu o requerido pela Autora e manteve o valor atribuído de 29.777,00 €.
4.
Refere o despacho recorrido, citando a sagesse jurídica de S. A. Geraldes que: “ … é indesmentível que a correcta fixação do valor da causa é exigida por razões de interesse público, mormente, atinentes à sua relação com a recorribilidade das decisões, que não pode ser ilimitada.
5.
Ora, é nossa opinião, que este entendimento é manifestamente errado e contrário à lei, é que para além de indiciar fraude à lei, na medida em que retira o direito ao recurso, por via da fixação do valor, também indicia a violação do princípio civilizacional da separação dos poderes, quanto ao regime dos recursos, na medida em que se substitui ao legislador, pela simples via de despacho. Rosseau não estará certamente sossegado na tumba.
6.
A Autora intentou a presente ação, suscitando ao tribunal a apreciação da validade de um contrato de doação, dos pais a um filho, ora réu, atribuindo à causa o valor de 60.000,00 €.
7.
O réu não impugnou o valor indicado, aceitando-o, tal como prescreve o artigo 305º, nº 3 do Código de Processo Civil.
8.
A Autora teve dois motivos para na petição inicial indicar o valor de 60.000,00 €, o primeiro porque o valor real dos prédios objecto da doação é muitíssimo superior ao valor atribuído no contrato pelos intervenientes, ou seja, na escritura pública, estando em causa praticamente a transmissão de todo o património dos doadores a um único filho, quando são 10 os descentes e herdeiros legitimários, e por outro lado porque sendo as questões jurídicas suscitadas na acção controversas na jurisprudência, seria incauto o processo ter alçada para eventual recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
9.
E, é bem claro que não estando a presente causa, no rol daquelas que têm o privilégio de serem apreciadas em revista pelo Supremo Tribunal de Justiça, independentemente do valor da causa, a autora em função do valor fixado pelo juiz da 1ª instância, estará inibida de exercer o direito de recurso de revista face ao valor fixado em 29.777,00 €.
10.
Valor este manifestamente infundado face ao lacónico despacho:
“…
Valor da acção:
Face ao disposto no artº 296º, nº 1 e 301º, nº 2, do Código de Processo Civil, fixo o valor da acção em € 29.777,00 €.
…”
11.
Ora, sabendo o tribunal recorrido, que o valor da alçada para o Supremo Tribunal de Justiça é de 30.000,01 €, sabe também, que ao fixar o valor de 29.777,00 €, está a retirar à Autora e também ao Réu o direito de recurso para o Supremo.
12.
No nosso entender, seria sensato que o tribunal recorrido tivesse ouvido previamente as partes sobre o assunto, ou promover diligências probatórias, sendo certo que a boa-fé, os deveres de colaboração, o contraditório, e tudo o mais, tal como preceituam, os artigos 3º, 6º, 7º e 8º do Código de Processo Civil, não é de respeito exclusivo das partes.
13.
É evidente que à Autora e ao Réu é-lhes coartado um direito constitucionalmente consagrado que é o direito ao recurso, vertente do acesso ao direito e aos tribunais, como preceitua o artigo 20º, nº 1 da Constituição.
14.
O despacho recorrido viola as seguintes disposições legais, artigos: 303º, nº 3, 6º, 7º, 296º, nº 1, 306º, nº 1 do Código de Processo Civil e artigo 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE DEVE A APELAÇÃO SER PROCEDENTE E O DESPACHO RECORRIDO SER REVOGADO, MANTENDO-SE O VALOR DA CAUSA ACEITE PELAS PARTES EM 60.000,00 €».

Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido como apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, tendo o recurso sido admitido nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, importa apreciar se existe fundamento para revogar a decisão recorrida por ser incorreto/ilegal o valor fixado à ação e por violação do princípio do contraditório.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra.
2. Apreciação sobre o objeto do recurso.
Em sede de recurso a apelante não discute que é incumbência do juiz fixar o valor da causa, em conformidade com os critérios legais, ainda quando o réu/demandado não impugne o valor indicado pelo autor/demandante, tal como entendeu o Tribunal a quo na decisão recorrida e resulta de forma inequívoca do disposto nos artigos 306.º, n.º 1, e 308.º do CPC.
Contudo, a apelante insurge-se contra a decisão recorrida por considerar, entre o mais, que «seria sensato que o tribunal recorrido tivesse ouvido previamente as partes sobre o assunto, ou promover diligências probatórias, sendo certo que a boa-fé, os deveres de colaboração, o contraditório, e tudo o mais, tal como preceituam, os artigos 3º, 6º, 7º e 8º do Código de Processo Civil, não é de respeito exclusivo das partes».
Prevê o artigo 3.º, n.º 3 do CPC que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
No âmbito da determinação do valor do processo, o artigo 308.º do CPC prescreve que, quando as partes não tenham chegado a acordo ou o juiz o não aceite, a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar.
Este preceito constitui uma concretização do princípio do inquisitório, expressamente consagrado no artigo 411.º do CPC, segundo o qual, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Por seu turno, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 do CPC, com a epígrafe Dever de gestão processual, cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. 
Comentando o regime emergente do citado artigo 6.º do CPC, em anotação ao referido preceito, referem Paulo Ramos de Faria/Ana Luísa Loureiro[1]: «Gestão Processual é a direção ativa e dinâmica do processo, tendo em vista, quer a rápida e justa resolução do litígio, quer a melhor organização do trabalho do tribunal. Mitigando o formalismo processual civil, assente numa visão crítica das regras, a satisfação do dever de gestão processual destina-se a garantir uma mais eficiente tramitação da causa, a satisfação do fim do processo ou a satisfação do fim do ato processual.
Do dever de gestão processual decorrem, para o juiz, os imperativos de providenciar pela sanação das irregularidades da instância (ou convidar as partes a praticarem os atos a tanto indispensáveis), de promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, de adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa, de adaptar o conteúdo e a forma dos atos ao fim que visam atingir e de garantir que não são praticados atos inúteis, cabendo-lhe ainda fazer uso dos mecanismos de agilização processual que a lei prevê».
Neste domínio, releva ainda o princípio da adequação formal, previsto no artigo 547.º do CPC, segundo o qual, o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.
O dever de adequação formal inscreve-se no dever de gestão processual previsto no artigo 6.º, antes citado, surgindo a oportunidade do exercício daquele poder/dever, em regra, depois dos articulados, ainda que não esteja afastada a possibilidade de antecipação quando o juiz se confronte (ou seja confrontado) com a necessidade de intervenção ou quando seja promovida a sua intervenção, tendo por critério a inadequação da tramitação processual tipificada ou da forma do ato processual às exigências do caso[2].
Porém, o princípio da adequação formal comporta limites.
Assim, «as garantias e os princípios gerais do processo civil constituem sempre limites intangíveis da gestão processual (…).
A existência de uma forma legal preexistente, a seguir por regra, e não por exceção, constitui, pela previsibilidade do rito processual que oferece, uma garantia das partes.
(…)
Finalmente, como terceira ordem de limites à gestão processual, há a referir os interesses públicos indisponíveis, expressos em normas imperativas. Ainda que com o acordo das partes, não pode a gestão processual agredir disposições que tutelam interesses mais vastos do que os discutidos na ação concreta»[3].
Em contexto idêntico, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa[4], assinalam que:
«a) A tramitação alternativa tem que ser equitativa, o que implica a observância da igualdade das partes (art. 4º), da proibição da indefesa, do contraditório (art. 3º), da imparcialidade, da fundamentação das decisões, da publicidade do processo, da proibição de decisões surpresa, bem como a obtenção de decisão dentro de prazo razoável;
b) Deve respeitar a segurança jurídica quanto aos atos processuais consumados e quanto ao plano de tramitação sucedânea previamente definido, tal como deve respeitar as regras de aquisição processual de factos e da admissibilidade de meios probatórios e o princípio do dispositivo, não podendo reportar-se a factos não admissíveis nos termos do art. 5º;
c) Tem de respeitar regras processuais imperativas, tais como as que fixam prazos perentórios para o exercício de direitos ou as atinentes aos pressupostos processuais;
(…)».
Conforme decorre da análise do regime processual atinente à verificação do valor da causa, a lei consagra critérios gerais para a fixação do valor da causa, conforme plasmados no artigo 297.º do CPC, ao dispor que, se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício (n.º 1); Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos (n.º 2); No caso de pedidos alternativos, atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, ao pedido formulado em primeiro lugar (n.º3).

Porém, para certas categorias de ações, o legislador optou por fixar critérios especiais relativamente ao valor da causa, como é o caso do artigo 301.º do CPC (Valor da ação determinado pelo valor do ato jurídico), com a seguinte redação:

1 - Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
2 - Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se em harmonia com as regras gerais.
3 - Se a ação tiver por objeto a anulação do contrato fundada na simulação do preço, o valor da causa é o maior dos dois valores em discussão entre as partes.

Ora, como decorre da análise deste preceito, o mesmo «cobre todos os casos em que a decisão se deva pronunciar sobre a existência, a validade, o cumprimento, a modificação ou a resolução de um negócio jurídico, sendo o valor da ação determinado por referência ao valor do ato.
(…)
O valor do ato (e, assim, o valor da ação) apura-se por uma de duas vias: pelo preço fixado ou pelo próprio valor que as partes deram aos bens sobre que versa o negócio (…).
Quanto ao valor estipulado, mais restritamente, respeita a casos em que, importando embora a disposição de bens, não há uma contrapartida (doação) ou a contrapartida é igualmente em bens (permuta), pelo que o valor do negócio (e, assim da ação) decorre do valor atribuído pelas partes»[5].
Assim, «[é] valor (diverso do preço) estipulado pelas partes aquele que, numa escritura de doação ou troca, elas atribuem aos bens objeto do negócio jurídico celebrado»[6].
Na presente ação está em causa a apreciação da validade da doação outorgada no dia 18 de setembro de 2013, pela qual os aí outorgantes declararam doar e aceitar a doação de um prédio misto e à qual atribuíram o valor de 29.777,21 €.
Deste modo, e porque não foi invocada a anulação do contrato fundada em simulação do preço, mostra-se concretamente aplicável o critério previsto no artigo 301.º, n. º1 do CPC, pelo que o valor da ação não pode ser outro senão o valor atribuído à doação pelos outorgantes, conforme entendeu o Tribunal recorrido.
Considerando que o aludido critério legal especial enunciado no artigo 301.º, n.º 1 do CPC não permite que se atenda a eventual desfasamento entre o valor estipulado pelas partes no ato jurídico e o valor real ou de mercado do bem objeto do mesmo, não se justificava a auscultação das partes sobre o valor a fixar à ação e/ou sobre a necessidade de realização de outras diligências para determinar o valor da causa, pelo que não pode ser imputada ao despacho recorrido qualquer derrogação do princípio do contraditório, nem se vislumbra que o mesmo viole o dever de gestão processual, o princípio da cooperação, o dever de boa fé processual e/ou do princípio do inquisitório.
Nos termos expostos, afigura-se-nos inteiramente correto o decidido no despacho recorrido.
A apelante argumenta ainda que, sabendo o tribunal recorrido, que o valor da alçada para o Supremo Tribunal de Justiça é de 30.000,01 €, sabe também, que ao fixar o valor de 29.777,00 €, está a retirar à autora e também ao réu o direito de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Sucede que, como já vimos, a decisão recorrida fez uma correta aplicação e interpretação dos preceitos legais aplicáveis, sendo certo que a existência de limites à possibilidade de interposição de recurso de todas as decisões até à última instância é perfeitamente conforme à Constituição da República Portuguesa, encontrando-se pacificamente aceite há muito[7].
Por conseguinte, também não se vislumbra qualquer restrição ao direito de acesso ao direito e à tutela judicial efetiva por parte da recorrente, garantido pelo artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Daí que improcedam integralmente as conclusões da apelação.
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1 do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada improcedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu decaimento.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
Guimarães, 24 de outubro de 2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Afonso Cabral de Andrade (Juiz Desembargador - 1.º adjunto)
Joaquim Boavida (Juiz Desembargador - 2.º adjunto)



[1] Cf. Paulo Ramos de Faria/Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, Coimbra, Almedina, 2013, p. 256.
[2] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pg. 484.
[3] Cf. Paulo Ramos de Faria/Ana Luísa Loureiro - obra citada -, p. 44.
[4] Obra citada, p. 599.
[5] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, obra citada, pgs. 349-350.
[6] Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 1.º Volume, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 609.
[7] Cf., por todos, os acórdãos do STJ de 22-06-2021 (relator: Luís Espírito Santo) p. 90/19.2T8PRG.G1-A. S1; de 06-10-2016 (relator: Orlando Afonso) p. 89/13.2TBMAC-A. E1. S1; ambos disponíveis em www.dgsi.pt.