Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
933/23.6T8VCT.G1
Relator: MARIA LEONOR BARROSO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
VÍCIOS DE NULIDADE
SUSPENSÃO DO PROCESSO
QUESTÃO PREJUDICIAL
SANÇÃO ACESSÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- No recurso de contraordenação, o tribunal da Relação tem apenas poderes de cognição da matéria de direito, não havendo recurso sobre a decisão de facto, sem prejuízo da existência de vícios da sentença, os quais devem ser manifestos e aferidos pelo texto da decisão, sem necessidade de recorrer a outros meios - 410º, 2, CPP.
II- Não ocorrem os vícios de falta de fundamentação quanto aos factos, direito e sanções aplicadas, nem de contradição entre os fundamentos e a decisão. No regime contraordenacional o juiz pode limitar-se a remeter para os fundamentos da decisão administrativa, sem que tal signifique omissão de fundamentação. A arguida fica igualmente inteirada das razões da decisão.
III- A decisão de não suspensão do processo de contraordenação não sofre de vício de falta de fundamentação, pois contém as premissas de facto e de direito em que assentou. A discordância da arguida respeita ao mérito do decidido.
IV- Não se justifica a suspensão do processo de contraordenação respeitante a inexistência de seguro de acidentes de trabalho por pendência de acção emergente de acidente de trabalho onde se discute também a existência e validade de seguro, face ao princípio da suficiência do processo e na medida em que a questão de inexistência de seguro é questão contraordenacional e pode ser neste convenientemente resolvida, podendo a arguida apresentar prova relativamente à questão.
V- A arguida na impugnação judicial não colocou à apreciação do tribunal a quo a questão da dispensa da aplicação da sanção acessória de publicidade e, embora tal não limite os poderes de cognição do tribunal da Relação, as circunstâncias do caso que permanecem alteradas (mormente o período em que a arguida manteve o trabalhador sem estar abrangido por seguro de acidentes de trabalho) não apontam para um menor grau de culpa e ilicitude que justifiquem a sua aplicação.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

“EMP01..., S.A.”  apelou da sentença (art. 39º RGCLSS[1]) que confirmou a decisão da ACT que lhe aplicou a coima de €3.450,00, acrescida da sanção acessória da publicidade da decisão condenatória, sendo solidariamente responsável pelo pagamento da coima AA, pela prática da contraordenação muito grave, derivada da não transferência através de contrato de seguro da responsabilidade por danos emergente de acidente de trabalho, p.p. pelos artºs 79º, 1, 171º, 1, da Lei 98/2009, de 4/9.
Na impugnação judicial a arguida havia alegado, em síntese, que  a autoridade administrativa não podia ter dado como provado o vertido nas alíneas h), i) e j) da decisão, pois assentou em erro notório nos pressupostos de facto e omite a questão essencial que se encontra em apreciação no processo nº 2134/20....;  o processo de contraordenação deve ser suspenso até prolação da decisão final no aludido processo, que é causa prejudicial uma vez que ali se encontra em discussão a existência de apólice de seguro de acidente de trabalho reportada à data da contratação. Pede a procedência da impugnação, a revogação da decisão, assim como a suspensão dos autos de contraordenação até prolação final no processo judicial de acidente de trabalho.

NA APELAÇAO SÃO FORMULADAS AS SEGUINTES CONCLUSÕES (412º CPP por remissão do art. 50º, 4 e 51º do RPCLSS):
...
C) .. a decisão que ora se recorre enferma de diversas nulidades a quais levam a que a decisão afinal seja alterada.
D) Ademais, e quanto a esta questão se olharmos para a decisão que se impugna verificamos uma insuficiência na fundamentação no que respeita à decisão da causa prejudicial, uma vez que, em nenhum momento o tribunal “a quo”, explicita o motivo pelo qual julga a inexistência de causa prejudicial, pelo que, não se afigura possível a não procedência da suspensão dos presentes autos.
E) Ainda padece a sentença que ora se recorre de vicio de falta de fundamentação no que concerne à determinação da medida da coima e à possibilidade de ser a aqui Arguida dispensada da sanção acessória de publicidade, prevista no artigo 563.º do Código do Trabalho, uma vez que em momento algum o Tribunal a quo motivou a sua decisão relativamente ao quantum da coima, bem como em nenhuma circunstância este equacionou a possibilidade de dispensa da sanção acessória de publicidade.
....
K) ...a aqui arguida preenche todos os pressupostos para a aplicação da dispensa da sanção acessória de publicidade, uma vez que, esta liquidou a coima e não tem antecedentes criminais nem contraordenacionais.
L) Acresce que, a Recorrente é uma sociedade comercial que sempre pautou a sua atividade pelo estrito cumprimento das normas legais, no que concerne à inscrição de trabalhos junto da companhia de seguros.
M) Tendo adoptado um comportamento igual ao que sempre havia procedido com a contratualização e inscrição de trabalhadores, oncretizava no envio das folhas de salários dos trabalhadores para a mediadora de seguros “EMP02...” e esta tratava da subscrição do seguro na respetiva seguradora, in casu, a “EMP03..., S.A.”
N) Ao que também proceder aquando da contratação do trabalhador BB.
O) Isto porque, a decisão que se recorre deu como provados os factos constantes das alíneas j) e k), mormente que,- “corre termos neste ... Juízo do Tribunal de Trabalho ..., ação especial de acidente de trabalho sob o n.º 2134/20...., em que é sinistrado CC” (facto j) dado como provado pelo Tribunal a quo), e k), “nesta ação discute-se, além do mais, se o trabalhador tinha seguro de acidentes de trabalho à data do sinistro” (facto k) dado como provado pelo Tribunal a quo).
P) Ora, a decisão administrativa assenta em meras presunções e conjeturas como são aquelas que resultam da parte da decisão denominada Motivação, designadamente, no parágrafo 3.º da pág. 10, quando se refere que “O que está em causa neste auto é, exatamente, o facto de a entidade empregadora não ter transferido, no tempo legalmente previsto, a responsabilidade pela reparação de acidentes de trabalho para entidade legalmente autorizada para o efeito”, e que “Não é, de todo, matéria do presente auto o Acidente de Trabalho do trabalhador, BB.”;
Q) Existindo, uma situação controvertida, e a própria decisão administrativa retira meras ilações por um lado, e por outro, tendo sido admitida naqueles autos a intervenção da companhia de seguros EMP03... no processo de acidente de trabalho, poderia o tribunal proferir a decisão que proferiu;
R) Desta feita, andou mal, o tribunal a quo ao considerar que não se encontram verificados os pressupostos da suspensão do processo, uma vez que a decisão daqueles autos e os presentes autos estão intimamente ligados, uma vez que, do resultado do processo de averiguação da existência de acidentes de trabalho faz depender a existência de tipo de ilícito contraordenacional.
S) Tanto mais que, olvida a decisão que se recorre do consagrado no a artigo 7.º do do Código de Processo Penal (aplicado ex vi regime geral das contraordenações “RGCO”) que “o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”.
T) Estabelecendo, o princípio da suficiência que, o tribunal penal assume competência própria para decidir todas as questões penais e não penais que interessarem à decisão da causa.
U) No entanto, este princípio admite exceções, nomeadamente “quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente”.
V) Uma vez que a sentença a proferir pelo tribunal “não penal” ou a decisão sobre a “questão prejudicial”, é imprescindível para fixar um pressuposto do procedimento:
 W) Assim, a questão da existência e validade de seguro de acidentes de trabalho (questão a decidir pelo tribunal não penal) é necessária para a verificação da existência de contraordenação, dependente de decisão autónoma, revelando-se de tal forma relevante e de um modo tão específico que não pode ser convenientemente decidida no processo penal.
X) Pelo que, o processo de contraordenação deveria ser suspenso até à prolação da decisão final do processo judicial 2134/20....;
Y) Ora, naqueles autos está em discussão o reconhecimento da existência e validade de apólice de seguros à data do sinistro, a produzir efeitos à data da contratação do trabalhador;
Z) Resulta ali alegado, justamente que “existiu sempre um procedimento nunca posto em causa por qualquer das partes, relativamente à existência e formalização de um seguro de acidentes de trabalho de todos os trabalhadores contratados; Consistente na atualização dos trabalhadores por ele abrangidos realizada periodicamente, Assumindo sempre a seguradora todos os trabalhadores contratados durante aquele hiato de tempo, com efeitos retroativos, isto é, reportados à data da contratação efetiva.”;
AA) A Recorrente naquela ação, não só sustenta a existência de uma prática habitual com a seguradora em causa, como que com base nessa prática a seguradora assumiria os trabalhadores que lhe fossem participados durante o hiato de tempo decorrido entre a sua entrada e o pedido da sua inclusão, “com efeitos retroativos, isto é, reportados à data da contratação efetiva.”;
BB) Ora, esta evidência esbarra frontalmente com a conclusão retirada na decisão aqui em crise a que se fez referência, pois o que se discute naqueles autos é também a questão da existência de apólice de seguros de acidente de trabalhos válida e eficaz nos termos ali defendidos, com efeitos reportados à data da contratação;
CC) Ora, a não a decisão que se impugna ao ter conhecida da existência de causa prejudicial, poderá levar á situação caricata contradição de jugados que resultará em claro prejuízo da arguida;
DD) A única forma de evitar a contradição de jugados passará suspensão dos presentes autos de contraordenação, até decisão final quanto a esta questão, a proferir pelo tribunal judicial.
****
Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso e em consequência ser revogada a decisão que se impugna, com as demais consequências legais.”

RESPOSTA EM 1ª INSTÂNCIA (413º, 1, CPP) - O Ministério Público junto da primeira instância sustenta que o recurso não merece provimento.

PARECER - O Ministério Público junto deste tribunal de apelação sustenta que o recurso não merece provimento (417º, 1, 2, CPP).
A recorrente não respondeu (417º, 2, CPP).
O recurso foi apreciado em conferência (art. 419º, CPP).

Objecto do recurso:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente[2], as questão a decidir são:  nulidades de sentença; suspensão do processo de contraordenação até à decisão do processo de acidente de trabalho 2134/20....; aplicação da dispensa da sanção acessória de publicidade.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS
FACTOS PROVADOS:
a) A arguida EMP04... S.A., é uma pessoa coletiva, com o NIPC/NIF ....
b) Exerce a atividade de auxiliar dos transportes terrestres (CAE sz2t3).
c) Tem sede na Zona Industrial, 1ª fase, lote ...,... ....
d) No dia 10 de janeiro de 2020, pelas 1h45m, ocorreu um acidente de trabalho no parque de estacionamento da empresa "EMP05..., Unipessoal, Lda." (cliente da empresa "EMP01..., S.A,") do qual resultou a fratura do crânio, entre outras lesões, do trabalhador CC. e) À data, o trabalhador CC, era trabalhador da arguida, com a categoria profissional de Motorista de pesados, tendo sido admitido em 05/11/2019.
f) Em 23/09/2022, a entidade empregadora foi notificada para apresentar vários documentos, entre outros, a apólice de seguro de acidentes de trabalho.
g) A arguida procedeu ao envio da apólice de seguro ..., contratada na modalidade de prémio fixo à EMP03..., de onde consta que tem início em 01/07/2015, para o período de 11/01/2020 a 01/07/2020 e próxima renovação em 01/07/2020.
h) O trabalhador DD só foi incluído na apólice de seguro de acidentes de trabalho da empregadora no dia 11/01/2020.
i) A companhia de seguros declinou a responsabilidade decorrente do acidente ocorrido no dia 10/01/2022.
j) Corre termos neste ... Juízo do Tribunal de Trabalho ..., acção especial de acidente de trabalho sob o nº 2134/20.... em que é sinistrado DD.
k) Nesta acção discute-se, além do mais, se o trabalhador tinha seguro de acidentes de trabalho à data do sinistro.

B) ANOMALIAS DA MATÉRIA DE FACTO/VÍCIOS DA SENTENÇA

São arguidos vícios de nulidade de sentença por:
(i) Falta de fundamentação quanto à medida da coima, dispensa da sanção acessória de publicidade e decisão de não suspensão do processo de contraordenação;
(ii) Contradição entre a matéria dada como provada e a fundamentação de direito, aludindo-se à pendência de processo de acidente de trabalho onde se discute a existência de apólice de seguro de trabalho.

Preliminarmente há que rebater a afirmação da ré de que teria transferido a responsabilidade emergente de acidente de trabalho para uma seguradora. Esta é uma afirmação sem sustento na fundamentação da sentença.
Dos pontos g) e h) da matéria provada resulta que a arguida não tinha celebrado contrato de seguro relativamente ao trabalhador em causa.
O recurso não tem por objecto a decisão sobre a matéria de facto. Ainda que a arguida expressasse abertamente tal intenção, o recurso não seria admissível, na medida em que nos ilícitos de mera ordenação social aquele restringe-se à matéria de direito, sendo a matéria de facto inatingível, aparentando-se o tribunal da Relação a uma instância de Revista - 51º, 1, RPCOLSS[3].
É certo que o tribunal da Relação, ainda que conheça apenas matéria de direito, poderá analisar anomalias em termos de matéria de facto.

Entremos, pois, na matéria dos vícios da decisão:

A propósito refere o artigo 410º CPP -fundamentos do recurso:
“2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”

O citado número 2, do artigo 410º, CPP, refere-se a vícios da sentença muito específicos e exigentes. Entre os quais se destaca o erro notório na apreciação da prova, ou a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão. Tais vícios terão de resultar de forma evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum - 410º, 2, CPP, ex vi 41º, 1, RGCO, ex vi 60º do RPACLSS. Repisa-se que estas anomalia decisórias da matéria de facto terão de ressaltar e de ser apreensíveis pela simples leitura do texto da sentença, sem recurso a outros elementos, designadamente depoimentos de testemunhas ou documentos[4].
Ora, tal não acontece no caso.
No que releva para a apelação está em causa a não celebração pela empregadora de contrato de seguro de acidentes de trabalho que abrangesse o trabalhador em causa ao tempo do acidente.
O tribunal a este propósito referiu que se baseou nos documentos juntos aos autos “nomeadamente no processo administrativo” e que sendo “a questão suscitada na impugnação exclusivamente de direito, as declarações do legal representante da arguida revelam-se inócuas. “
Donde, neste particular, há fundamentação de facto suficiente e congruente com o direito:
Primeiro, considerou-se provado o facto “inexistência de apólice” abrangendo o trabalhador, a qual só foi celebrada no dia subsequente ao acidente. Portanto, não há carência de factos que suportem a decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa. Frisa-se que não se trata aqui de rastrear se há prova suficiente para dar o facto como provado, na medida em este último tipo de avaliação respeita a recurso sobre a matéria de facto, que aqui não é de todo admissível, como vimos;
Segundo, consta que se chegou a tal conclusão pela prova decorrente da documentação junta ao processo administrativo (mormente doc. ...) sendo irrelevantes nesta matéria as declarações orais e provindas de parte interessada, o legal representante da ré, ademais versando sobre questões de direito. Também, nos termos assinalados, não cabe aqui rastrear o bem fundado da prova, porque essa é actividade ligado a impugnação da decisão sobre os factos, vedada ao tribunal da Relação nos recursos de contraordenação (embora em bom rigor a arguente não ponha em causa a documentação, nem tão pouco as datas nela constantes, pretende é que seja relevada uma suposta prática de a mediadora/seguradora aceitar a data de comunicação como sendo a data do seguro);
Terceiro, coerentemente considerou-se preenchido o ilícito contraordenacional de inexistência de seguro de acidente de trabalho (171º, 1, NLAT) e confirmou-se a aplicação de coima e medida acessória.  Note-se que a contradição que é pressuposto de nulidade reporta-se a uma desarmonia meramente lógica entre a previsão (fundamento) e a conclusão (decisão). Como por exemplo ocorre quando se afirma que não se provaram os elementos integrantes de um qualquer contrato e depois, contraditoriamente, se condena a parte a cumpri-lo. Nada disso se passa nos autos.
É pouco compreensível a arguição de nulidade por contradição relacionada com o pedido de suspensão do processo de contraordenação dada a pendência de acção emergente de acidente de trabalho.
O vício de nulidade reporta-se a um “defeito formal” da própria sentença que ocorre nos termos acima citados. O indeferimento do pedido de suspensão do processo de contraordenação é atacável através de recurso sobre a matéria de direito, por expressar discordância sobre o mérito de decisão. No mais, a decisão de indeferimento concorda com as suas premissas (de que o processo contraordenacional é suficiente para decidir a questão).
Sustenta o apelante que o vício de nulidade se estende “às sanções aplicadas”, por falta de fundamentação da decisão.
Ora, a este propósito refere-se na sentença que se concorda “na íntegra com a decisão administrativa, quer no que se refere ao direito aplicado quer no que se refere às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, mantém-se essa decisão condenatória, declaração que é efectuada nos termos do artº. 39, nº. 4, da Lei 107/09, de 14 de Setembro.”
Ou seja, a própria norma citada permite que a decisão judicial seja fundamentada por simples remissão para a decisão da autoridade administrativa no que respeita aos factos, direito e circunstâncias da medida da sanção. O que se justifica pela natureza “administrativa” do ilícito contraordenacional, maior simplicidade e agilidade que a sua tramitação deve revestir. Mas a decisão judicial, por remissão, não deixa de estar fundamentada. Não há agressão ou limitação do direito de defesa. A arguida fica conhecedora das razões da decisão, quer elas sejam replicadas na sentença, quer se faça simples remissão para a anterior decisão administrativa. Em boa verdade, embora esta não seja a nossa prática judicial, só se justifica escrever de novo se não se escrever do mesmo. Se a decisão administrativa está certa e fundamentada, não há razão para redundância.
Consultada a decisão administrativa a mesma contém fundamentação relativamente a todos estes aspectos, aplicando aliás uma coima que se situa muito perto dos limites mínimos.
Ademais, como refere a senhora Procuradora-Geral Adjunta do seu parecer:
“O Tribunal apreciou as questões suscitadas na impugnação apresentada, que são:
- a decisão sobre os factos das alíneas h), i) e j) assenta em erro notório nos pressupostos de facto e omite a questão essencial que se encontra em apreciação em sede judicial no âmbito do processo nº 2134/20...., o que determina a sua revogação;
- o processo de contra-ordenação deve ser suspenso até prolação da decisão final no aludido processo, que é causa prejudicial uma vez que ali se encontra em discussão a existência de apólice de seguro de acidente de trabalho reportada à data da contratação.
A arguida na impugnação que apresentou não pôs em causa a sanção aplicada (quer principal quer acessória).
Nada consta da impugnação que apresentou sobre a medida da coima ou a dispensa da publicidade da decisão.
Daí que, na sentença, após a fixação da matéria de facto, que não divergiu da fixada na decisão administrativa e, após apreciação da questão suscitada na impugnação, se tenha lançado mão do disposto no art. 39º nº 4 da Lei nº 107/2009, por se concordar com a decisão administrativa, designadamente quanto à sanção aplicada e que a própria arguida não tinha impugnado.”- negrito nosso.
Quer dizer, também pelo facto de na impugnação judicial a arguida não ter suscitado tais questões, particularmente não ter  requerido a não aplicação da sanção acessória, ainda menos se justificava que o tribunal lhe desse particular atenção (e descartadas questões flagrantemente oficiosas, ou entendimento judicial diverso do proferido pela entidade administrativa não tendo a 1ª instância limites de cognição).
Assim sendo, não ocorre vício de falta de fundamentação da matéria de facto ou de contradição entre a fundamentação e a decisão.
Vício de nulidade por falta de fundamentação no que respeita à decisão da causa prejudicial que a arguida aponta:
O citado artigo 410º, 3, CPP, ressalva a possibilidade de ocorrerem outros vícios de nulidade que não só os previstos no nº 2 da norma processual penal, remetendo-se para a lei processual civil.
Assim, remetidos que estamos para o artigo 615º, 1, CPC, este refere que é nula a sentença quando “(…)b) - não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
O normativo reporta-se a vício de falta de motivação que pode atingir a sentença/decisão quando dela não conste a factualidade que suporta a decisão e/ou a interpretação e aplicação do direito - 607º/3/2, CPC. Diga-se que a nulidade da sentença por falta de fundamentação apenas ocorrerá quando o tribunal a omita totalmente no plano dos factos e/ou do direito em que ancorou a decisão de mérito.
Em especial no que se refere à fundamentação da decisão de facto, na sentença deve constar a matéria provada (os factos) e a motivação que sustenta a decisão (meios probatórios) e no direito deve constar referência ao instituto, regime e/ou norma aplicável ao caso.
Como se referiu, só a ausência total ou absoluta de fundamentação/motivação integra vício de nulidade[5]. A decisão deve ter o seu elemento principal e não ser arbitrária. Deve demonstrar quais são as suas premissas, quais as razões dadas ao caso para ser aquela a decisão e não outra. A decisão deve também adequar-se ao caso, sua simplicidade ou complexidade. Deve igualmente sopesar-se se é um despacho que incide sobre questão mais simples, ou se é a sentença que dirime a quezília principal.
No caso é apontado o vício sobre a parte da decisão que versa unicamente sobre o pedido de suspensão do processo de contraordenação que a arguida formulou na impugnação judicial, motivado pela pendência de acção especial emergente de acidente de trabalho onde se discute, entre o mais, a responsabilidade da empregadora por inexistência de seguro de acidente de trabalho. Trata-se, portanto, de aspecto lateral e não decisão de mérito sobre o tema principal que é a prática da infracção.
Vejamos sentença.
No relatório enquadrou-se a questão, constando:

A Recorrente alegou, em síntese, que:
.- a autoridade administrativa não podia ter dado como provado o vertido nas alíneas h), i) e j) da decisão, pois assentou em erro notório nos pressupostos de facto e omite a questão essencial que se encontra em apreciação em sede judicial no âmbito do processo nº 2134/20...., que corre termos neste juízo, o que determina a sua revogação;
.- o processo de contra-ordenação deve ser suspenso até prolação da decisão final no aludido processo, que é causa prejudicial uma vez que ali se encontra em discussão a existência de apólice de seguro de acidente de trabalho reportada à data da contratação. “....

Na fundamentação da sentença consta:

“No caso em apreço, considera a recorrente que a decisão administrativa tomou conhecimento de questões de que não podia, pelo que assenta em erro notório dos pressupostos de facto relativos à matéria dada como provada nas alíneas h), i) e j) uma vez que tal matéria se encontra em discussão na acção especial emergente de acidente de trabalho que está em curso.
Não nos parece que assim seja.
Na verdade, o art. 41º do DL nº 433/82 de 27/10, aplicável por remissão do art. 60º, da Lei nº 107/2009, de 14/09, manda aplicar os preceitos reguladores do processo penal e o art. 7º-1 do CPP não constitui excepção - com uma única limitação, porém, relativa aos casos em que, pelo mesmo facto, haja concurso de crime e contra-ordenação, situação em que é competente apenas o tribunal criminal e não o Tribunal do Trabalho, como bem salienta João Soares Ribeiro, Contra-Ordenações Laborais, 2ª ed., Novembro de 2003, Almedina, pags. 152, 153 e 187.
A prejudicialidade encontra-se regulada no art. 7º do C. Processo Penal que consagra o princípio da suficiência da acção penal.
Dispõe o nº 1 deste preceito que, o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.
Por sua vez, estabelece o nº 2 do mesmo artigo que, quando, para conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.
O C. Processo Penal consagra assim, um sistema misto quanto à questão da prejudicialidade: a regra é ser a questão prejudicial resolvida no processo penal; quando o juiz entenda que tal questão não pode ser convenientemente julgada no processo penal, é devolvida a sua resolução ao tribunal competente (excepção).
A possibilidade de suspensão, unicamente a título excecional e submetida a requisitos e prazos muito apertados (n.º 3 e 4), tem em vista obviar a constantes interrupções determinadas por questões acessórias, com o consequente protelamento da decisão da questão penal. Quer dizer, o princípio da suficiência tutela as exigências de concentração e continuidade processual, obviando-se à sua dilação ou paralisação, perante a existência ou a criação “artificial” de obstáculos ao exercício da ação penal e do jus puniendi do Estado.
No caso presente, constatamos, desde logo, que a arguida sustenta que existe “erro notório nos pressupostos de facto” da decisão administrativa apenas pelo facto de estar pendente a acção especial de acidente de trabalho em que se discute, entre o mais, a existência de seguro.
Ou seja, podendo valer-se dos meios probatórios de que dispõe no âmbito do processo contra-ordenacional, a arguida não se propôs fazer, e efectivamente não fez, qualquer prova, que pudesse infirmar a factualidade dada como provada na decisão administrativa impugnada, defendendo que tal prova teria de ser feita no âmbito da referida acção especial e não nesta sede.
Ora, o objecto da acção especial de acidente de trabalho não constitui questão condicionante ou prejudicial da controvertida neste processo de recurso de contra-ordenação, por estarem em causa processos com natureza diferente e porque, as regras que regem o processo contra-ordenacional e o processo laboral cível são distintas, desde logo, no que concerne, por exemplo, às garantias do processo criminal em que assenta o primeiro.
Nestas circunstâncias, cremos a questão da existência/validade do seguro podia ser convenientemente resolvida neste processo, pelo que inexiste causa prejudicial que possa determinar suspensão do processo nos termos propugnados pela arguida, à luz da norma do art. 7º do CPP.
Assim, inexistindo fundamento legal para a suspensão do processo ao abrigo do art. 7º, do CPP, sendo este o único fundamento da presente impugnação, atenta a factualidade dada como provada e por se concordar na íntegra com a decisão administrativa, quer no que se refere ao direito aplicado quer no que se refere às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, mantém-se essa decisão condenatória, declaração que é efectuada nos termos do artº. 39, nº. 4, da Lei 107/09, de 14 de Setembro.  “

Os excertos da sentença permitem, só por si, perceber o infundado da arguição nulidade. A decisão contém a explicação do motivo pelo qual foi indeferido o pedido de suspensão da instância contraordenacional.
O que acontece é que a arguida discorda da decisão. Contudo, a crítica não integra o elenco dos motivos de nulidade.

C) SUSPENSÃO DO PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO

Insiste a apelante em que a pendência dos autos de acidente de trabalho - onde se discute a validade de apólice de seguros à data do sinistro-  tem o condão de ser causa prejudicial inibidora do prosseguimento da contraordenação.
Acima já transcrevemos a fundamentação da sentença com a qual concordamos e para a qual, por isso, remetemos.
Queremos apenas destacar duas ou três ideias, como o princípio da suficiência do processo contraordenacional na resolução de todas as questões que lhe dizem respeito - 7º CPP, aplicado ao processo contraordenacional, por remissão do RGCO. Somente se justifica suspender o processo caso seja necessário julgar qualquer questão não contraordenacional e que não possa ser convenientemente resolvida naquele processo.
Ora, em primeiro lugar, está em causa a inexistência de seguro, que é precisamente uma questão contraordenacional. É, pois, neste processo que deve ser julgada.
Ademais, em segundo lugar, pode aqui ser convenientemente julgada (e deve). A arguida pôde apresentar prova respeitante à celebração de seguro de acidente de trabalho, mormente documental e testemunhal. Mas, verifica-se, inclusive, que a arguida no dia de julgamento prescindiu da única testemunha arrolada e apenas apresentou como meio de prova as declarações do seu próprio representante, com todas as limitações que tal meio acarreta.
Finalmente, a apelante não explica minimamente em que medida o prosseguimento do processo contraordenacional a prejudicou na apresentação de prova ou na resolução da questão do seguro, além de que aquele não tem menor dignidade relativamente ao processo emergente de acidente de trabalho.

D) SANÇÃO ACESSÓRIA DE PUBLICIDADE - 562º, 1, 563º CT

A matéria da dispensa de aplicação da sanção acessória de publicidade não consta da peça de impugnação judicial, não tendo sido suscitada em primeira instância. O senhor juiz concordou com os fundamentos da entidade administrativa e manteve-a.
Pese embora se admita que em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente possa suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa[6], a verdade é que perdeu a oportunidade de rebater argumentos e sobretudo carrear elementos e circunstâncias fácticas novos que abalassem os pressupostos em que baseou a sua aplicação.
Efctivamente, mantendo-se o mesmo contexto e matéria de facto, sendo a infracção classificada de muito grave[7] e nada de novo tendo sido trazido aos autos, não vemos motivo para alterar a decisão.
A publicidade da decisão condenatória que, no caso das infracção mais graves, a lei comina como sendo por regra aplicável (além da coima) pode ser dispensada se o agente tiver pago imediatamente a coima e não tiver praticado contraordenação grave ou muito grave nos cinco anos anteriores, tendo em conta as circunstâncias da infracção - 563º CT.
Ora, não estão provadas circunstâncias do caso especialmente abonatórias. Pelo contrário, quando ocorreu o acidente (10-01-2020) já tinham decorrido mais de dois meses desde a data da admissão do trabalhador (05-11-2019), sem que no decurso deste tempo a empregadora o abrangesse no seguro de acidentes de trabalho, não se aferindo menor culpa e ilicitude como o seria um esquecimento mais fugaz e não tão duradouro. É de manter o decidido.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente, fixando em três ucs a taxa de justiça.
Notifique.
Após trânsito em julgado, comunique a presente decisão à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
Guimarães, 09-11-2023

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Francisco Sousa Pereira


[1] Regime Processual das Contraordenações Laborais e da Segurança Social regulado na Lei 107/2009, de 14/09.
[2] Segundo os artigos 403º, 1, 412º, 1, CPP, aplicável ex vi artigo 50º, 4, Lei 107/2009, de 19-9 (doravante, RPACOLSS), o âmbito do recurso e a área de intervenção do tribunal ad quem é delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente e extraídas da sua motivação do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação dos vícios previstos no art. 410º, 2, CPP.
[3] Salvo se a própria lei dispuser em sentido contrário.
[4] Com interesse nesta matéria ac. RP de 22-05-2019; ac. RG de 19-04-2018, in www.dgsi.pt.
[5] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito de Processo Civil, vol. II, 2ª ed.p. 435-6.
[6] Ac. de fixação de jurisprudência de 23-05-2019, processo 13/17.3T8PTB.G1-A.S1.
[7] 171º, 1, NLAT Lei 98/2009, de 4 de setembro, 562º, 1, 563º, 1, CT.