Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2077/22.9T8MTS.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
FASE CONCILIATÓRIA
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Havendo desacordo na fase conciliatória apenas relativa à questão da incapacidade, o interessado deve apresentar requerimento solicitando marcação de junta médica no prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 119.º, sob pena de o juiz proferir decisão sobre o mérito, nos termos do nº 2 do artigo 138º do CPT.
Apresentando-se tal situação e tendo o juiz, ao invés de proferir decisão de mérito, declarado, por essa razão, a suspensão da instância, considerando aplicável ao caso o nº 4 do artigo 119º do CPT, decisão que transitou em julgado, a suspensão assim decretada apenas com a alteração do circunstancialismo que lhe serve de fundamento pode cessar.
A força do caso julgado formal impõe que se respeitem as consequências processuais do despacho proferido e transitado.
Em tal situação, apenas com a entrada do requerimento requerendo junta médica, ou requerimento do sinistrado dela desistindo, assim alterando os pressupostos do despacho proferido, pode cessar a suspensão, por força do caso julgado.
Dando o sinistrado entrada a requerimento solicitando a junta médica, cessa a suspensão devendo ser marcada a solicitada junta médica.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

Na presente ação especial emergente de acidente de trabalho em que é sinistrado AA, e entidade responsável “Companhia de Seguros EMP01..., S.A.”, conforme decorre da tentativa de conciliação, as partes não se conciliaram, divergindo apenas do resultado do exame médico no que toca ao grau de incapacidade, por discordância do sinistrado.
- A tentativa de conciliação foi deprecada pelo tribunal de trabalho ... ao juízo do trabalho ..., e neste realizada a 12/1/2023. O sinistrado declarou, nos termos do art. 15º, nº4 do CPT, “que pretende que o processo de acidente de trabalho corra termos no Juízo de Trabalho ...”
No final da diligência foi proferido o seguinte despacho, “Uma vez que não foi alcançada a conciliação das partes, remeta a CP à deprecante.”
- Devolvida a deprecada a 24-1-2023, por despacho de 7/2/2023 foi determinada a remessa dos autos ao juízo de ... por ser o competente nos termos do nº 1 do artigo 15º do CPT.; remessa efetuada a 22/2/2023.
- Por despacho do Srº Juiz de 21/3/2023 foi proferida decisão nos seguintes termos:
“ Uma vez que, conforme auto de tentativa de conciliação, foi o sinistrado que não aceitou a IPP atribuída no exame pericial, e não tendo junto o requerimento do artigo 117º, n.º 1, b) do CPT, declaro suspensa a instância – artigo 119º, n.º4. “
- O despacho foi notificado ao sinistrado e à requerida –certificação citius de 23-3-2023, não tendo sido objeto de recurso.
-   Por requerimento de 24-4-2023 O Mº Pº em representação do sinistrado veio requerer a junta médica, referindo: “requerer a realização de perícia por junta médica (só nesta data, por o signatário, face às vicissitudes processuais, só agora teve conhecimento do estado dos autos”).
- Por despacho de 11.5.2023 foi marcada a realização de junta médica na especialidade de ortopedia para o dia 5-6.
- Notificada a requerida por registo de 15-5-2023, veio esta a 19-5-2023 e invocando a falta de apresentação do requerimento de junta médica dentro do prazo legalmente fixado, pedir o indeferimento do mesmo.
- Ouvido o Mº Pº invocou este o transito em julgado do despacho que determinou a suspensão da instancia, referindo que “O Ministério Público só teve conhecimento do estado do processo com a notificação do despacho a determinar a suspensão da instância. A partir da suspensão da instância, os autos ficam a aguardar o prazo de 1 ano. Deste despacho, a seguradora não interpôs recurso. Assim, afigura-se-nos, atenta a tramitação legal, que o sinistrado, patrocinado pelo Ministério Público, apresentou o requerimento dentro do prazo legal, atento o estado do processo.”
- Por despacho de 31/5/2023 foi considerado extemporâneo o pedido de junta médica, dando sem efeito o despacho que designou data para a mesma, referindo-se que “não podemos dar acolhimento às vicissitudes processuais invocadas pelo Ministério Público, em representação do sinistrado, sendo certo que vicissitudes (processuais ou outras) sempre decorrerão da prática de qualquer ato para além do termo do prazo legal.” Refere que a suspensão sempre seria inócua. 
- Foi de seguida proferida sentença nos termos do artigo 138, 2 do CPT.
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Inconformado o autor interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:

I por despacho proferido em 21-03-2023, foi determinada a suspensão da instância, com fundamento em o requerimento para junta médica não ter sido apresentado no prazo legal.
II Este despacho foi notificado à seguradora, em 24-03-2023, que sobre ele nada disse, não se opôs nem dele interpôs recurso, conformando-se com os seus efeitos.
II Por força do despacho referido em I., a instância ficou suspensa, até à entrada do requerimento do sinistrado, datado de 24-04-2023, a requerer a realização de exame por junta médica.
III Posteriormente, por despacho de 11-05-2023, o tribunal marcou data para a realização da junta médica – implicitamente admitindo que o requerimento que desencadeou este despacho – era tempestivo.
IV A decisão proferida em 31-05-2023, sob recurso, que declarou nulo o despacho referido em III, além de carecer de fundamento legal, revoga explicitamente este último despacho, que não foi objeto de recurso e, implicitamente o despacho referido em I, ambos transitados em julgado.
V Proferida sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz  quanto à matéria da causa – nº 1, do artº 613º, do CPC
VI O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se com as necessárias adaptações aos despachos – nº 3, do citado artigo.
VI O tribunal a quo, ao decidir declarar nulo o despacho de 11-05-2023, revogando-o, sem qualquer fundamento legal e, implicitamente alterando e revogando o despacho de 21-03-2023, violou o princípio da extinção do poder jurisdicional previsto no artº 613º, nº 1, e 621º, ambos do CPC.
VII Esta decisão e subsequente sentença, por ilegais (violação de caso julgado) devem ser revogadas e substituídas por outra que determine o prosseguimento dos autos, com marcação de nova data para a realização de exame por junta médica.
Termos em que, nestes e nos demais de direito, deve julgar-se procedente o presente recurso, revogando-se a decisão que declarou nulo o despacho que marcou data para a realização de exame por junta médica e, implicitamente, revogou o despacho de 21-03-2023, que declarou suspensa a instância, e substituindo-se por outro que determine o prosseguimento dos autos, com marcação de nova data para a realização de exame por junta médica
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Sem contra-alegações.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos há que conhecer do recurso.
A factualidade é a decorrente do precedente relatório.
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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
No caso importa saber se o processo deveria prosseguir com marcação da junta médica, o que se volve na apreciação dos efeitos do despacho que declarou suspensa a instância.
Refere o artigo 138º do CPT:
Requerimento de junta médica

2 - Se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 119.º; se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º
E o artigo 119.º
Petição inicial
1 - Não se tendo realizado o acordo ou não tendo este sido homologado e não se verificando a hipótese prevista no artigo 116.º, o Ministério Público, sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, quanto ao dever de recusa, e no artigo 9.º, assume o patrocínio do sinistrado ou dos beneficiários legais, apresentando, no prazo de 20 dias, a petição inicial ou o requerimento a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 117.º

4 - Findo o prazo referido no n.º 1 ou a sua prorrogação nos termos do n.º 2, o processo é concluso ao juiz, que declara suspensa a instância, sem prejuízo de o Ministério Público dever apresentar a petição logo que tenha reunido os elementos necessários.
Resulta da factualidade que aquando da prolação do despacho de suspensão da instância já havia decorrido o prazo de 20 dias para apresentar o requerimento a que alude o artigo 117º, 1, b) e 119º, 1, parte final do CPT. 
Assim, ao invés de se ter suspendido a instância, deveria ter sido proferida decisão nos termos do artigo 138º, nº 2 do mesmo diploma.
A prolação do despacho a suspender a instância será inócuo para o efeito? Podia o juiz após apresentação do requerimento de junta médica dar sem efeito a marcação da mesma, e proferir decisão, considerando irrelevante para o efeito aquele despacho que suspendeu a instância?
A questão volve-se na apreciação do âmbito do caso julgado do aludido despacho, independentemente do mérito do mesmo, já que transitou em julgado.
O instituto do caso julgado visa conceder a segurança e certeza necessárias às decisões dos tribunais, para que se possam impor com a obrigatoriedade e prevalência constitucionalmente previstas. Pretende-se assim a salvaguarda da “segurança jurídica e da paz social”, definindo e resolvendo de forma definitiva os conflitos. O caso julgado gera também expetativas que não devem ser esquecidas, ainda que se trate de decisões em “erro de direito”. Com o caso julgado o conteúdo da decisão torna-se indiscutível.
Refere Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 304, o caso julgado formal consiste na força obrigatória que os despachos e as sentenças possuem relativamente à relação processual, sendo excluídos os que pela sua natureza não consentem recurso. Consiste na “preclusão dos recursos ordinários (irrecorribilidade, não impugnabilidade)”.
No caso estamos em face de um caso julgado formal, por respeitar a questão relativa à relação processual. Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma questão processual; cuja resolução dependa de certos pressupostos e implique a aplicação de norma ou normas legais (adjetivas); tenha sido resolvida, e não tenha sido objeto de recurso, sendo pela sua natureza recorrível, salvo irrecorribilidade estranha à sua natureza, como por exemplo por força do valor da causa ou de norma especial. Excetuados estão os despachos de mero expediente.
Tratando-se de questão processual, o respeito pelo caso julgado implica que devem ser respeitados os efeitos processuais da decisão tomada, impondo-se estes ao tribunal e às partes, conforme artigos 613º, nºs 1 e 3, e 620º do CPC.

O art. 620º do Código de Processo Civil dispõe:

“1. As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força, obrigatória dentro do processo.
2. Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630”
O despacho em causa era recorrível, já que a sua prolação depende da apreciação de determinadas circunstâncias factuais, de índole ou com rebate processual, e aplicação de norma, no caso o nº 4 do artigo 119º do CPT. Veja-se a previsão do artigo 79-A, 2, al. c) do CPT.
O caso julgado formal não tem o condão, ou, não visa tornar imutáveis os despachos proferidos no processo, mas antes impedir que uma decisão proferida sobre determinada questão e com determinados pressupostos, seja alterada, mantendo-se o quadro de circunstâncias. Não ocorre essa imodificabilidade, quando por exemplo a lei atribui ao juiz o poder de alterar a decisão, ou quando os pressupostos se alteraram, ou novas circunstâncias possam justificar legalmente a alteração.
Importa saber qual o âmbito do caso julgado formal. A compreensão do caso julgado implica que se tome em linha de conta os respetivos fundamentos.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o novo Processo Civil, Lex, pág. 578ss, “…Não é a decisão enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão…”. MS. Ac. STJ de 27/4/04, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 04A1060; Ac. STJ de 18/5/04, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 04B4286; Ac de 30/9/04, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 05B602.
Abrangidos serão aqueles fundamentos que se contenham de acordo com a natureza das coisas e a lógica do silogismo judiciário, na resposta dada à questão.
No caso o despacho de suspensão da instância foi proferido porque o sinistrado, não tendo aceite a IPP atribuída no exame pericial, não juntou “requerimento do artigo 117º, n.º 1, b) do CPT”.
O julgador resolveu questão processual, o que fazer em caso de não acordo quanto à IPP e face à falta de requerimento para junta médica no prazo legal?
A razão de ser, o motivo da suspensão, foi a não apresentação do requerimento.
Sabemos que a resposta à questão colocada e resolvida com a suspensão da instância, está no artigo 138º, 2 do CPC, que determina que em face de tais circunstâncias processuais, o juiz profere decisão, mas não foi isso que se fez.
O julgador, entendeu aplicável à situação que se lhe apresentava o nº 4 do artigo 119º, e assim decidiu. Erradamente, mas o erro não obsta ao trânsito da decisão. E pouco importa que o prazo para apresentar o requerimento já na ocasião estivesse esgotado, é que é essa questão, precisamente, que o despacho pretende resolver, decidindo-se pela suspensão da instância.
Ora, a suspensão dos autos ao abrigo da norma do nº 4 do artigo 119º do CPC, apenas termina com a prática do ato cuja falta determina a suspensão, na previsão da norma a “petição inicial”, por força do despacho proferido e para efeitos deste processo, também, o requerimento a solicitar junta médica.
Só nestas condições poderia ser dado sem efeito o despacho, ou então, com base num quadro de pressupostos diferente, como por exemplo requerimento do interessado, no caso o sinistrado, solicitando a prolação da sentença, desistindo de requerer junta médica.
O que não pode é, sem a prática do ato, ou, o que é o mesmo, desconsiderando o ato que afinal poria termo à suspensão, cessar esta, e proferir decisão nos termos do nº 2 do artigo 138º do CPT, como se o despacho não tivesse qualquer efeito processual.
O despacho de 31/5/2023 em que se considerou extemporâneo o pedido de junta médica, dando sem efeito o despacho que designava data para a mesma, viola os efeitos processuais do caso julgado formado, pelo que não pode manter-se; afetando os atos posteriores; devendo os autos prosseguir com a marcação da junta médica.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho e 31/5/2023, devendo os autos prosseguir com marcação da junta médica.
Custas pelo recorrido

26/10/23

Antero Veiga
Leonor Barroso
Vera Sottomayor