Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
110/21.0GAVNH.G1
Relator: LUÍSA OLIVEIRA ALVOEIRO
Descritores: CRIME DE HOMICÍDIO NEGLIGENTE
ESCOLHA DA PENA PRINCIPAL
MEDIDA DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
DANOS SOFRIDOS PELA VÍTIMA
DANOS FUTUROS DO CÔNJUGE SOBREVIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. No crime de homicídio por negligência, as exigências de prevenção geral são muito elevadas, atenta a elevada sinistralidade rodoviária nacional expressa num elevado número anual de vítimas mortais, e tornam premente a necessidade de os crimes rodoviários serem punidos com severidade, sobretudo aqueles que têm consequências mais gravosas para a vida e integridade física.
II. Ainda que as exigências de prevenção especial (necessidade de induzir o arguido a evitar a prática de futuros crimes e a adotar um comportamento correto) sejam medianas, é de concluir, face à dimensão grave do próprio caso, que a pena de multa não cumpre com as exigências legais dos fins da pena, concretamente de prevenção geral, pois fica aquém do ponto comunitariamente suportável da tutela do bem vida humana.
III. Para que a pena acessória de proibição de conduzir cumpra a finalidade preventiva tem de importar um qualquer sacrifício para o condenado e uma censura suficiente dos factos até porque as expectativas comunitárias não se compadecem com uma pena acessória simbólica, impondo-se, inclusive, que previna a reincidência do arguido.
IV. O dano intercalar, que medeia entre o momento em que ocorre o ato lesivo e a morte da vítima resultante do mesmo, abrange o sofrimento, designadamente pela perceção da eminência da própria morte e dores físicas sentidas pela vítima durante o período em causa. Os valores indemnizatórios devem ser calculados em função do caso concreto e de acordo com juízos de equidade, ponderando, designadamente, a gravidade das lesões sofridas, a intensidade das dores sofridas, o período de tempo durante a qual as dores se prolongam e eventual pressentimento da morte.
V. A indemnização pela frustração dos alimentos (enquanto dano futuro) deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não receberá do falecido e que se extingue, no caso do cônjuge, no termo do período que, provavelmente, viveria, não fora o acidente que o vitimou.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

No Processo nº 110/21.0GAVNH.G1 do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo Local Criminal de Bragança, consta da parte decisória da sentença datada de 17/05/2024, o seguinte:
“Em face de todo o exposto o Tribunal decide:

Da lide criminal:
1. Julgar provada a prática pelo arguido AA de um crime de homicídio negligente, com negligencia consciente, p. e p. pelos artigos 137.º e 13.º e 15.º, al. a), todos do CP, em concurso aparente, por consunção, com a prática das contraordenações p. e p. 24.º, ns.º 1 e 3 e 13.º, ns.º 1, 4 e 5, ambos do CE.
2. Em consequência aplicar-lhe uma pena de 1 ano e 1 mês de prisão.
3. Suspender a pena de prisão referida no ponto antecedente, pelo período de 3 anos, mediante a sujeição do arguido a regime de prova, nos concretos termos do plano a elaborar pela DGRSP, mas que contemple acções destinadas a sensibilizar o arguido para a problemática dos acidentes de viação e das suas consequências.
4. Aplicar-lhe ainda a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. no artigo 69.º,n,º 1, al a) do Código Penal pelo período de 10 meses.
Da lide cível:
5. Julgar parcialmente procedente por parcialmente provado os pedidos cíveis formulados pelas demandantes BB e CC e em consequência condenar a demandada COMPANHIA DE SEGUROS EMP01... SA a pagar-lhes as seguintes quantias, acrescidas de juros de mora à taxa legal em vigor desde a data da notificação do pedido de indemnização cível até efectivo e integral pagamento:
- 85.000 euros pelo dano morte sofrido pela vítima;
- 4.000 euros pelo sofrimento psicológico da vítima antes de falecer;
- 4.000 euros pelo sofrimento físico da vítima antes de falecer;
- 5.143,15 euros a título de danos patrimoniais;
- à demandante BB:
i) o valor de 20.000 euros a título de compensação pelo dano não patrimonial próprio sofrido pela perda do seu marido aqui vítima;
ii) a quantia de 120. 000 euros a título de dano patrimonial futuro, na vertente de alimentos;
- à demandante CC o valor de 20.000 euros a título de compensação pelo dano não patrimonial próprio sofrido pela perda do seu pai aqui vítima;
- absolvendo a demandada de tudo o demais pedido por estas demandantes a título indemnizatório e compensatório nestes autos.
6. Julgar totalmente procedente, por totalmente provado, o pedido de reembolso deduzido pelo ISS contra a demanda EMP01... COMPANHIA DE SEGUROS SA e em consequência condenar esta última a pagar àquela o valor de 8.081,70 euros, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde a data da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento, a deduzir aos valores em que nos termos supra foi condenada a pagar às demandantes BB e CC”.
*
Inconformada veio a demandada cível EMP01... – Companhia de Seguros, SA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“1ª- A demandada recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida quanto aos montantes de indemnização atribuídos a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima e ao montante arbitrado à viúva a título de dano patrimonial futuro;
Assim,
2ª- Os montantes compensatórios a este título devem ser fixados exclusivamente segundo juízos de equidade, mas equidade não significa discricionariedade, antes exige uma particular ponderação e de igualdade.
3ª-Por isso os padrões de fixação deste tipo de danos deve obedecer a um critério de tendência uniforme e não disparidade, criando situações de profunda desigualdade.
4ª- Por isso, devemos socorrer-nos de critérios justos e equilibrados e servir-nos de padrões normalmente seguidos, designadamente tendo em conta os critérios doutrinais e jurisprudenciais normalmente seguidos.
Por isso,
5ª- Salvo o devido respeito, entendemos que o montante de 8.000,00 €, atribuído a título de danos morais físicos e psicológicos sofridos pela infeliz vítima DD, nos parece excessivo e injustificado.
6ª- Desde logo, não se vai compensar a vítima de tais sofrimentos, dado que tal montante não é atribuído à própria vítima, mas é dado para os seus legais herdeiros, pois que quem deveria beneficiar faleceu.
7ª- Relativamente a este aspecto no caso concreto temos o que resultou provado no ponto 29 dos factos provados da douta sentença e o que consta na “Motivação da matéria de facto”:
“As testemunhas EE, FF, GG, HH asseveraram que encontraram a vítima inconsciente instantes após o acidente e as próprias demandantes asseveram que a vítima estava inconsciente no momento em que chegaram ao local do acidente, ainda antes do CODU e da GNR, pelo que a hora da declaração de óbito constante do documento assinado pelo médico do CODU não comprova a hora do óbito da vítima.”
8ª- E de facto todos os depoimentos foram efectivamente nesse sentido, de que logo com o embate a vítima ficou inconsciente e faleceu imediatamente, sendo que o óbito só foi declarado mais tarde, como explicado, quando compareceu o médico do INEM, pois os enfermeiros/bombeiros não declaram, ou podem, declarar o óbito, reservado aos médicos.
9ª- Assim, parece-nos que o montante parece-nos excessivo e injustificado, separar sofrimento físico e sofrimento psicológico, incorrendo-se até in casu numa duplicação, pois foi tudo tão instantâneo, que o falecido ficou logo inconsciente, pelo que praticamente não se apercebeu dos factos e não teve sofrimento físico e ou psicológico.
10º- Desta forma, estando inconsciente não podia sentir sofrimento, quer físico, quer psicológico, pelo que deve ser indemnizado pelo impacto inicial, e como tal o valor correto a arbitrar deverá ser de 2.500,00 €, dado que foi por escassos segundos que se deparou com o acidente e a trágica consequência.
11ª- Relativamente à segunda questão objecto do presente recurso, quanto à indemnização arbitrada à viúva a título de dano patrimonial futuro, no que neste aspecto interessa temos os factos provados sob os pontos 36, 41, 42, 43 e 65 dos factos provados da douta sentença;
12ª- Destes factos provados facilmente concluímos que:
- A Demandante tinha à data do acidente 54 anos,
- O falecido tinha à data do acidente 58 anos,
- O falecido auferia anualmente líquida a quantia de 13.813,44 €,
- A demandante por óbito de seu marido recebe do ISS/CNP a respectiva pensão de sobrevivência no montante mensal de cerca 232,00 €.
13ª- Como se refere na douta sentença, e é comummente aceite, que o falecido, ou qualquer outra pessoa, despenda consigo próprio cerca do 1/3 do que aufere , o que in casu se traduz, deduzido 1/3 , que o rendimento do agregado era de cerca de 9.200,00 € anuais.
14ª- Porém, não podemos olvidar que este rendimento anual não era todo destinado à viúva ou cônjuge, mas antes um rendimento do casal, pelo que apenas metade, ou seja, cerca de 4.600,00 € se destinavam ou pertenciam à viúva, e só este valor pode reclamar.
15ª- Por outro lado, e ao contrário do defendido na douta sentença, o falecido não iria trabalhar até aos 78 anos, que corresponde à esperança média de vida.
16ª- Como é normal e da experiência comum, reformar-se-ia aos 66 anos e teria uma vida activa até aos 70 anos, o que também seria normal e expectável.
17ª- Pelo que durante estes 12 anos (70-58 anos), a metade que seria destinado à viúva ou cônjuge sobrevivo rondaria a quantia de 55.200,00 €;
18ª- Contudo temos de ter em linha de conta que a viúva se irá reformar aos 66 anos, e aufere já uma pensão de sobrevivência da ISS/CNP por óbito de seu marido de cerca de 232,00 / mês, ou seja 3.248,00 € anuais ( 232,00 x 14 meses), como resulta da douta sentença e documentos juntos, em consequência da morte do marido;
19ª- Bem como não podemos ignorar que recebe tal quantia de uma só vez, o que se traduz no denominado “beneficio de antecipação”, e na rentabilidade que tal quantia lhe pode trazer.
20ª- Assim, sopesando todos estes fatores, ou seja, a idade da vítima e da viúva, o rendimento anual potencialmente destinado à viúva de 4.600,00 € até ao fim da vida activa do falecido de 70 anos, a reforma do falecido aos 66 anos, a reforma que a viúva irá auferir aos 66 anos, a pensão de sobrevivência que já recebe actualmente de cerca de 3.248,00 €, o facto de receber uma indemnização e o benefício de antecipação, consideramos que a título de dano patrimonial futuro se deve ter por adequada e justa a quantia de 50.000,00 €.
21ª- Por isso, a douta sentença recorrida ao atribuir os montantes referidos fez errada interpretação e aplicação do disposto nos arts dos artigos 483º, 496º e 566º do CC”.
*
Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

“1ª O recurso que segue vai interposto pelo facto de a recorrente não se conformar com a sentença em crise, com particular enfase para os factos 9, 10, 13, 14, 16 a 19, 22 e 27 e incide sobre matéria de facto e a matéria de direito.
2ª Na verdade, temos a viatura MX, conduzida pelo arguido, imobilizada na via de circulação deste,
Temos elevada quantidade de fotografias donde conta a acima indicada posição do veículo, uma vez imobilizado e vestígios da pancada;
Temos uma incidência de concreta pancada/colisão da roda da frente do motociclo conduzido pela vítima a sugerir dinâmica tudo menos consonante com a acusação e, muito menos ainda, com o dado como provado na douta sentença; e,
Por último temos uma localização de imobilização da vítima nada consonante com manobra de desvio e/ou posicionamento de virar à esquerda;
E, por último, em matéria de prova testemunhal temos todas as testemunhas da acusação a dizer que não presenciaram o embate e um – obviamente presencial, a afirmar que a viragem do motociclo foi repentina, que o marido não pode fazer nada, foi um tapa olhos.
Mesmo assim, o Tribunal conseguiu desconsiderar o depoimento presencial e vislumbrar uma dinâmica que ninguém afirmou e/ou presenciou.
3ª Feita a sumula essencial, vamos passar à indicação, com mais detalhe técnico, das razões da nossa discordância, começando pela matéria de facto
4ª A Recorrente impugna a matéria de facto dada como assente, porquanto a mesma, na parte que se impugna, não possui fundamento na prova efetivamente produzida. Assim, o Recorrente considera que foram incorretamente julgados os factos constantes nos pontos 9, 10, 13, 14, 16 a 19, 22 e 27.
5ª O Tribunal a quo apoiou a sua convicção nas declarações das testemunhas II, FF, EE, JJ, KK e Eng. LL, declarações e depoimentos que reputou de “credíveis e espontâneas e comprometidas com a verdade”.
6ª Parece-nos que os depoimentos das acima indicadas testemunhas foram tudo menos lógicos e coerentes – não devendo, por isso, ser credibilizados. Pensamos que as incongruências são claras e que, só por mero lapso, poderão ter escapado ao Tribunal a quo.
7ª Vejamos.
A testemunha FF afirma que vê o ciclomotor parado, ainda que devido à pouca visibilidade, só conseguisse ver do meio do corpo do condutor para cima.
Ora, como constatável das transcrições supra vertidas cujo teor aqui se dá por reproduzido, e da participação do acidente, junto aos autos, é constatável pelos elementos constantes dos autos que durante o seu depoimento, em sede de audiência, entra em contradição com as suas próprias declarações e com as das demais testemunhas – concretamente - EE - em 09/02/2024 – minutos 01:40 a 02:03, 02:32 a 02:39 e JJ (em 09/02/2024, minutos 27:01 a 28:27.
8ª Assim, como é possível constatar, existem incongruências entre as declarações da testemunha FF, EE e JJ.
A testemunha EE afirma que estavam estacionados diversos carros no parque do restaurante, inclusive o seu jipe, que inevitavelmente, pelas suas características, impossibilitavam a visão para a estrada.
A testemunha JJ afirma que a visibilidade para a estrada seria condicionada pelos veículos estacionados no parque.
Por sua vez, tal como supramencionado, a testemunha FF dá uma versão substancialmente diferente – referindo que teria pouca visibilidade onde se encontrava e que apenas conseguia ver o condutor do motociclo do meio do corpo para cima.
9ª Pelo que, admitindo a veracidade do depoimento das testemunhas EE e JJ, a testemunha FF não poderia ter visto a infeliz vítima imobilizada, dado que existiam veículos estacionados no parque que impediam a visibilidade para a via.
A acrescer, a testemunha FF, durante o seu depoimento, afirma veementemente que vê o motociclo parado, todavia, esta versão dos factos (por si apresentada) é absolutamente oposta à versão declarada inicialmente, em momento em que presta declarações em OPC - declarações prestadas em 09-02-2024, entre as 14:29h e as 15:08h - minuto 01.41 a 01.56, 38.40 a 38.54.
10ª Assim, ao contrário do que afirmou em sede de audiência, anteriormente não fez referência ao facto de ter visto o motociclo, muito menos parado, mas sim ao facto de o ouvir a aproximar-se - cfr. auto da GNR de fls. 3.
11ª Nestes termos e tendo em consideração os depoimentos das testemunhas, parece-nos razoável que o mesmo tenha ouvido o motociclo - não que o tenha visto.
Pelo que, saliente-se, a afirmação de que viu o motociclo parado constitui clara contradição com a versão dos acontecimentos relatada aquando do depoimento prestado em sede de auto de declarações - cfr. auto da GNR.
12ª Ademais, a testemunha refere algo curioso nesse mesmo auto – encontram-se rasuradas as seguintes expressões “e esta já a virar para” - cfr. auto da GNR, fls. 08.
Salvo o devido respeito, a rasura das referidas expressões não deixa de se revelar “conveniente”, visto que as mesmas originariam, inevitavelmente, uma outra perspetiva sobre a dinâmica do acidente em apreço.
13ª Quanto à dinâmica do acidente – no que respeita ao local de imobilização do MX após o acidente, as testemunhas EE, KK e JJ, apresentam, todas elas, versões distintas entre si, sendo certo que nenhuma é coincidente com aquele que foi, objetivamente, o local de imobilização do veículo, constante do auto da GNR, dos vestígios e indicado pela única testemunha efetivamente presencial – MM, ocupante do MX – ver momentos das seguintes concretas passagens: EE - declarações prestadas em 09-02-2024, entre as 15:09h e as 15:38h, minutos 03.38 a 4.31, e 05.53 a 06.10; KK, depoimento prestado em 09-02-2024, entre as 16:48 e as 17:16 - minutos 02.43 a 03.26 e 27.04 a 27.09 e JJ – depoimento prestado em 09-02-2024, entre as 16:01 e as 16:30 - minutos 18.28 a 18.53 e 23.43 a 23.50.
14ª Ademais, além de não haver a mínima coerência entre os depoimentos das testemunhas acima indicadas relativamente ao local da imobilização do MX, após o embate, todas as posições indicadas pelas mesmas se revelam desfasadas do local onde, objetivamente, o veículo se imobilizou; isto é, para estar onde foi localizado no croqui não é dinamicamente possível ter estado onde as testemunhas afirmam tê-lo visto.
15ª O único facto em que parece existir consenso entre as testemunhas – mas que não tem, obviamente, que corresponder à verdade – é o de que o arguido terá movimentado o MX do local onde dizem que o mesmo se imobilizou logo após o acidente, todavia, já diferem de forma demasiado substancial quanto ao concreto movimento e número de vezes que o terá movimentado.
– cfr. das seguintes testemunhas:
II – prestadas em 09-02-2024, entre as 11:54h e as 12:13h - minutos 12.15 a 13.06 e 17.53 a 18.08;
FF - declarações prestadas em 09-02-2024, entre as 14:29h e as 15:08h, minutos 08.04 a 08.35 e 30.07 a 30.12;
EE – declarações prestadas em 09-02-2024, entre as 15:09h e as 15:38h, minutos 11.27 a 11.58 e 16.18 a 16.39;
JJ – Depoimento prestado em 09-02-2024, entre as 16:01 e as 16:30 – minutos 06.18 a 07.03; e,
KK – Depoimento prestado em 09-02-2024, entre as 16:48 e as 17:16, minutos 04:00 a 04:30, 04:35 a 04:43, 06:29 a 06:51 e 19:26 a 19:37.
16ª Entre o teor dos depoimentos das testemunhas acima citadas existem contradições de gravidade mais do que suficiente para abalar a sua credibilidade. Cada uma delas dá versão
distinta sobre o facto de o MX ter sido movimentado do local onde teria ficado imobilizado após o embate.
O Sr. II refere que o arguido entrou dentro do veículo, mas que um “senhor” não permitiu que o mesmo movimentasse o carro.
Segundo o Sr. FF, o arguido movimentou o carro para trás e posteriormente para a frente.
Por sua vez, o Sr. EE afirma que o arguido movimentou o veículo para a frente encostando-o ao rail e depois para trás.
Por sua vez, o Sr. JJ, refere que o arguido movimentou o veículo para trás e para a frente.
Todavia, o Sr. KK, afirma que o arguido movimentou o carro para trás, para a frente e posteriormente para trás.
17ª Quanto à forma como tiveram conhecimento da colisão, apesar de ambos terem afirmado que estiveram juntos, apresentam versões distintas. Se por um lado, o Sr. KK afirma que ouviu um estrondo e, posteriormente, os gritos das pessoas tendo-se dirigido de imediato ao local do sinistro, por outro lado, o Sr. JJ afirma que não ouviu nada,, devido ao barulho que se fazia sentir dentro do restaurante, e que só teve conhecimento do sinistro após ter sido avisado pela empregada do estabelecimento.
18ª Além das testemunhas cujos depoimentos acima referimos, prestou igualmente depoimento a Sra. MM, que o Tribunal descredibilizou por completo.
19ª Com o devido respeito, o depoimento em apreço foi claro, coerente e de uma simplicidade óbvia – cfr. momentos das seguintes concretas passagens: em 03-04-2024, entre as 10:43 e as 11:39 - minutos 07.37 a 07.56, 08.16 a 08.24, 13.29 a 13.45 e 14.49 a 15.16.     
20ª Por outro lado, como que é apodítico, os vestígios/detritos resultantes da colisão encontram-se, todos eles, na hemi-faixa de rodagem em que o MX circulava.
Apesar da incongruência entre as testemunhas quanto ao local da imobilização do veículo, todas asseveram que ele se imobilizou pelo menos durante 10 minutos em momento posterior à colisão.
21ª Pelo que, atentos os vestígios/detritos e a mancha resultante da perda de fluídos por parte do MX, visíveis em (cfr. doc. 2.) e, inexistentes em qualquer outro local, não é razoável conjeturar sequer outra possibilidade a não ser que o embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem do arguido.
22ª Do direito - do depoimento da Sra. MM – esposa do arguido - parece-nos que, de duas uma – ou Tribunal concluía que o arguido seguia na sua via de circulação a uma velocidade moderada (50/60 quilómetros hora), tendo o motociclo, inopinadamente, invadido a sua hemi-faixa de rodagem, não tendo este tido oportunidade de realizar qualquer manobra para se desviar do mesmo ou até mesmo imobilizar o MX; ou,
Dadas a contradições dos depoimentos e a prova documental dava como não provada a dinâmica do evento.
23ª Aliás, observando com toda a atenção, a posição em que o MX e a vítima se imobilizaram e, por outro lado, a configuração do embate da roda da frente do motociclo contra o para-choques frontal do MX, facilmente nos parece ser de inferir o seguinte:
- que a pancada não deve ter sido consequente de um simples guinar à esquerda para aceder ao restaurante EMP02... (sentido de marcha ...); e,
- por outro lado, que a posição em que a vítima se imobilizou também se não ajusta à acima enunciada dinâmica.
Alguém que, como tudo sugere, que está a virar à esquerda, é suposto manter essa dinâmica de movimento e ir parar/cair do lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha.
Obviamente que não sabemos, com rigor, o que se passou, todavia, pela configuração da pancada e pelo local de imobilização da vítima, tudo aponta para o facto de ele, em escassas frações de segundo, ter invadido a via de circulação da esquerda e, repentinamente, ao aperceber-se do MX a vir/circular em sentido contrário, ter guinado, in extremis, para a direita, a tentar evitar a colisão.
24ª Pelo que face ao exposto, deverá o arguido ser absolvido da sua prática.
25ª Da medida da pena - no que há medida da pena diz respeito, ainda que se mantenha a decisão em crise, o que apenas por mera hipótese académica se admite, sempre terá de se considerar como exagerada, pelo que, salvo o devido respeito, parece-nos que o cumprimento das exigências de prevenção, em qualquer uma das suas vertentes, se compadece com a opção pela aplicação ao arguido de uma pena não privativa da liberdade, ou seja, de uma pena de multa de 200 (duzentos) dias à taxa diária de 5,00€.
26ª No que há medida da pena acessória diz respeito, ainda que se mantenha a decisão em crise, sempre terá de se considerar como exagerada a medida da pena acessória em que o arguido foi condenado.
Atendendo à moldura abstrata, ao circunstancialismo fáctico, ao grau de ilicitude e culpa, a ausência de antecedentes criminais e elevadas exigências de prevenção geral, a pena acessória aplicada ao arguido peca por excessiva, parece-nos que a pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, deverá ser reduzida para um período de 8 (oito) meses”.
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Os recursos foram admitidos para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho datado de 25.06.2024, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

“I- Bem andou o Tribunal “a quo”, ao condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelos artigos 137.º, n.º1 e 13.ºe 15.º, al. a), todos do CP, em concurso aparente, por consunção, com a prática das contraordenações p. e p. 24.º, ns.º 1 e 3 e 13.º, ns.º 1, 4 e 5, ambos do CE, na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na execução pelo período de 3 anos, mediante regime de prova e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 10 meses.
II- A sentença não padece de nenhum dos apontados vícios, constantes nas várias alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, sendo que apenas transparece que o recorrente pretende um novo julgamento dos factos de modo a substituir a convicção expressa pelo Tribunal a quo na douta sentença proferida quanto aos factos provados e não provados.
III- Contudo, não especificou, por referência às concretas passagens, quais os pontos de facto constantes dos pontos 9, 10, 13, 14, 16 a 19, 22 e 27 que considera incorretamente julgados e qual o (s) concreto(s) trecho(s) que impõe decisão diversa, o que sempre se diga, não se verifica.
IV- O Tribunal “a quo”, efetuou a apreciação da prova com recurso às regras de experiência, de forma objetiva e motivada, seguindo um processo lógico e racional, e explicou a razão das opções tomadas e da sua convicção; a sua lógica e raciocínio.
V- A decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, sendo que é o Tribunal de 1ª instância que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio da imediação e da livre apreciação da prova.
VI- Considerando todas as circunstâncias que militaram a favor e contra o arguido afigura-se inteiramente justa a pena principal e acessória em que foi condenado.
VII- Deverão improceder, na totalidade, os argumentos invocados pelo recorrente, porque desprovidos de qualquer fundamento, devendo a sentença manter-se, nos seus precisos termos, de facto e de direito”.
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As demandantes BB e CC apresentaram resposta ao recurso interposto pelo arguido, formulando as seguintes conclusões:

“I – Depuseram as testemunhas com clareza, objetividade, de forma espontânea, de harmonia com o conhecimento que tinham dos factos e com a preocupação de serem exatas na sua descrição da realidade.
II – Nada o arguido apresentou que de alguma forma possa abalar a credibilidade de qualquer das testemunhas.
III – Deverá, pois, manter-se intocável a factualidade tida por provada.
IV – Também nada foi carreado para os autos que sugira, aconselhe ou imponha decisão diferente na aplicação do direito aos factos.
V – Deverá, pois, ser julgado improcedente na totalidade o recurso instaurado e manter-se incólume a douta sentença recorrida”.
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As demandantes BB e CC apresentaram resposta ao recurso interposto pela demandada EMP01... – Companhia de Seguros, SA, formulando as seguintes conclusões:

“I - Cremos que da douta sentença recorrida consta uma apreciação meticulosa, cuidadosa e exaustiva da matéria de facto e que à mesma foram aplicados corretamente os preceitos legais que lhe espeitam.
II - Aliás não se aponta onde ou como erradamente possam ter sido aplicados os citados artigos 483.º, 496.º, e 566.º do Código Civil.
III - Como também não se vê em que aspeto foi feita errada ou deficiente interpretação dos mesmos preceitos.
IV - É de realçar que o tribunal a quo se debruçou sobre o dano-morte, antónimo do direito à vida, e sobre os chamados “danos intercalares” que são os danos morais e danos não materiais, ou seja, a dor moral e a dor física, e alude à duração destas para efeitos de valorização.
V - Reporta-se ao direito à vida como direito autónomo radicado no de cujus que se transmite aos herdeiros.
VI - Classifica também os “danos intercalares”, que precedem a morte e, assim, a dor moral e a dor física, de direitos autónomos que se radicam na esfera patrimonial do de cujus e se transmite aos seus herdeiros.
VII - Efetivamente, a perceção da vítima de que vai falecer causa-lhe sofrimento moral — e não pouco; causa-lhe um dano e, em consequência o direito a indemnização que, em caso de falecimento, se transmite aos seus herdeiros, como qualquer outro direito, o mesmo acontecendo com a lesão física.
VIII - É obvio que antes do falecimento da vítima ou do estado de inconsciência em que entrou houve agressão que causou a morte ou esse estado de inconsciência, pelo que o dano existe e não sem titular. De ius constituto (à face do prescrito no art. 483.º e 496.º do Código Civil) não será lícito concluir de outra forma.
IX - Cremos bem que não há qualquer ofensa ao direito desfavorável à demandada pelo que deverá ser negado provimento ao recurso na totalidade”.
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Nesta Relação, a Exma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso  do arguido AA “não deverá obter provimento”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJETO DOS RECURSOS

Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação.
Pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do C.P.Penal).
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As questões suscitadas são analisadas pela ordem de precedência lógica indicada nos art 368º e 369º do C.P.Penal, por remissão do art. 424º, nº 2 do C.P.Penal.
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, por ordem de precedência lógica, cumpre apreciar:

1. Relativamente ao recurso interposto pelo recorrente AA:
a) Erro de julgamento de facto quanto aos pontos 9, 10, 13, 14, 16 a 19, 22 e 27 da matéria de facto provada;
b) Escolha da pena (entende que deveria ser aplicada a pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 5,00);
c) Medida da pena acessória que o recorrente considera excessiva (entende que deveria ser reduzida para um período de oito meses).
2. Relativamente ao recurso interposto pela recorrente EMP01... – Companhia de Seguros, SA:
a) Indemnização atribuída a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima;
b) Indemnização atribuída à demandante BB a título de dano patrimonial futuro.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
“10. Discutida a causa resultaram os seguintes FACTOS PROVADOS:
DA ACUSAÇÃO PÚBLICA E TERMOS DE ACOMPANHAMENTO DEDUZIDOS PELA ASSISTENTE:
1. No dia 7 de Novembro de 2021, pelas 13h30m, ocorreu um acidente de viação, por colisão frontal angular, na Estrada Regional n.º ...15, ao Km 1,600, freguesia ..., concelho ..., que envolveu dois veículos, o veículo ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-MX e o ciclomotor, marca ..., modelo ..., de matrícula ..-TS-...
2. O arguido AA circulava ao volante do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-MX, de sua propriedade, na referida via, no sentido de marcha .../....
3. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, a vítima DD, circulava no ciclomotor, de matrícula ..-TS-.., de sua propriedade, no sentido de marcha ....
4. Os referidos veículos, circulavam na referida faixa de rodagem, em sentidos opostos.
5. A faixa de rodagem era composta por uma recta de 6,10m de largura, com uma extensão de cerca de 1200m, constituída por duas vias de trânsito, uma em cada sentido, delimitadas ao centro da faixa de rodagem, por uma linha descontinua (M2), separadora dos sentidos de trânsito, apresentando, cada uma, uma largura de 3,05m e as bermas, não pavimentadas, por uma linha continua (M12), e o piso, betuminoso, apresentava-se em bom estado de conservação.
6. As condições atmosféricas eram boas, o piso encontrava-se seco, não existindo obstruções ou obstáculos que impedissem uma boa visibilidade periférica.
7. O arguido circulava com o veículo de matrícula ..-..-MX, pretendendo seguir em frente.
8. A vítima DD que circulava com o ciclomotor de matrícula ..-TS-.., pretendia efectuar uma mudança de direcção à esquerda, de acesso local às instalações do restaurante “EMP02...”.
9. Para tal, DD reduziu a velocidade da marcha do ciclomotor, e foi-se abeirando da linha separadora descontinua (M2), separadora dos sentidos de trânsito, para virar à esquerda, na direcção do referido restaurante.
10. Quando se aproximou junto da linha separadora dos sentidos de trânsito, DD parou o ciclomotor, e nesse momento, o arguido que conduzia de forma desatenta e com falta de cuidado, ao meio da via, ocupando parte da hemifaixa de rodagem esquerda atento o seu sentido de marcha, não adoptando na condução o cuidado e zelo que as circunstâncias concretas exigiam, não teve antecipadamente a percepção do ciclomotor na via de trânsito, não parou o veiculo de matrícula ..-..-MX, embatendo com a frente do lado esquerdo do veiculo, na roda frontal do ciclomotor, fazendo com que a vítima embatesse com a cabeça, no canto superior esquerdo do para-brisas do veiculo ligeiro, e consequentemente fosse projectada para o lado esquerdo, atento o sentido de circulação do veiculo ligeiro.
11. O arguido submetido ao teste quantitativo de alcoolémia apresentou uma taxa de álcool de 0,364 g/l.
12. À data dos factos, no local do acidente não existiam rastos de travagem, nem de derrapagem e a circulação rodoviária era reduzida naquela artéria, fazendo-se de forma espaçada.
13. O arguido não fez qualquer manobra de evasão para evitar a colisão, não abrandou a sua marcha, não travou ou guinou o veículo que conduzia.
14. Pelo que, o embate descrito ficou a dever-se exclusivamente ao arguido, à sua falta de atenção e cuidado, que não teve atempadamente a percepção do outro veiculo na via de trânsito, não adequando a velocidade do MX de modo a que, atendendo à presença do ciclomotor e às características dos veículos pudesse, com seguridade, executar as manobras de desvio por forma a evitar o embate ou parar no espaço livre e visível à sua frente, assegurando a distância entre ele e qualquer obstáculo visível de modo suficiente para, em caso de necessidade, fazer parar o veiculo, sem ter que contar com obstáculos que lhe surgissem inopinadamente.
15. Como consequência directa da colisão, por força do embate, da projecção e da consequente queda, a vítima DD sofreu as lesões melhor descritas no respectivo relatório de autópsia médico-legal, nomeadamente lesões traumáticas encefálicas torácicas, pélvicas e vertebromedulares, que foram causa adequada, directa e necessária da sua morte, que veio a ocorrer no dia 07.11.2021, pelas 15h05m.
16. Ao agir da forma descrita, o arguido não usou do cuidado e precaução que são exigíveis a todos os que na via pública conduzem um veículo automóvel e, pela omissão de tais deveres, conduzia de forma desatenta, sem os cuidados necessários a um condutor prudente, sem causa justificativa, e que nas circunstâncias concretas se lhe impunham, e de que era capaz, por forma a evitar o embate.
17. Representou o arguido como possível que a sua conduta seria adequada e idónea a causar um acidente, do qual poderiam resultar lesões e a morte para outrem, o que o arguido podia, e devia ter previsto, mas ainda assim adoptou tal conduta, sem se conformar com o resultado que efectivamente veio a ocorrer, confiando, não devendo confiar, que ele não se verificaria.
18. Apesar dessa consciência, o arguido não tomou as precauções a que estava obrigado e era capaz, conduzindo sem o cuidado necessário ao exercício da condução e de forma desadequada às exigências de segurança que se impunham, tendo imprimido uma condução reveladora de desrespeito e indiferença pelos demais utentes da via, vindo assim a embater no ciclomotor conduzido pela vítima.
19. O arguido agiu livremente, não tendo actuado com o cuidado e a prudência com que podia e devia ter agido, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL APRESENTADO PELAS DEMANDANTES BB E CC:

20. DD era responsável e consciente na condução automóvel, cuidadoso, prudente, tido como exemplar cumpridor das regras de trânsito
21.O veículo ..-..-MX embateu com a parte da frente esquerda na frente do motociclo ..-TS-.., projetando-o pelo ar para a frente e para a esquerda para cerca de 15 metros, vindo a ficar imobilizado sensivelmente ao meio da faixa de rodagem esquerda, atravessado na mesma, depois de ter raspado, no seu trajeto, pela berma esquerda, da mesma hemifaixa, considerado o sentido do MX.
22. Simultaneamente, embateu também o MX no corpo de DD, que, ao volante do TS, estava parado na hemifaixa de rodagem direita, atento seu sentido de marcha, junto ao centro da via, com a roda da frente levemente orientada para a sua esquerda, pronto para atravessar a hemifaixa esquerda da via.
23. Foi DD violentamente atingido no seu lado anterior direito e projetado, pelo ar, para a frente do MX e lado esquerdo deste, em mais de 10 metros, depois de, no trajeto, ter sido também atingido pela parte esquerda do para-brisas e canto superior esquerdo do MX formado pelo tejadilho e parte superior da coluna da frente da porta dianteira esquerda, acabando por ficar imobilizado na berma e “parte betuminosa” da hemifaixa esquerda da via, considerado o sentido de marcha do MX, mais sobre a berma do que sobre a parte asfaltada, em sentido oblíquo à estrada e com a cabeça na berma junto à valeta.
24. Àquela hora entre a estrada e o café/restaurante EMP02... eram muitas as viaturas ali estacionadas.
25. Em qualquer dos sentidos, o ângulo de visibilidade para qualquer dos lados era total e livre de qualquer obstáculo que, por algum modo, pudesse estorvar ou implicar com o trânsito automóvel da via.
26. Para a frente, qualquer dos condutores tinha plena visibilidade.
27. Logo após o embate, o arguido saiu da sua viatura, e também, logo a seguir, reentrou nela para fazer marcha atrás e a seguir avançou para a frente para a retirar da faixa de rodagem esquerda e imobilizá-la na faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha ....
28. O impacto violento do MX contra DD causou-lhe múltiplas e graves lesões designadamente:
A) – No hábito externo:
a) escoriações na região occipital;
b) escoriações no flanco direito com 7 cm por 7 cm;
c) edema do escroto;
d) no membro superior direito, escoriação no dorso da mão com 5 cm por 4 cm, escoriação na face posterior do antebraço com 2 cm por 1 cm;
e) no membro inferior direito, ferida corto-contusa na face anterior da coxa com 9 cm, ferida corto-contusa na face interna da perna com 2 cm por 1 cm, ferida corto-contusa na face lateral interna do pé com 7 cm, e equimose na base do hálux com 3 cm por 4 cm;
f) no membro inferior esquerdo, escoriação com equimose circundante na face interna da coxa e joelho com 11 cm por 4 cm, feridas corto- contusas na face anterior da perna com 7 cm por 7 cm, e várias escoriações peri-centimétricas na face interna da perna.
B) – No hábito interno:
a) na cabeça: infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo na região occipital, hematoma subdural parieto-occipital e hemorragia subaracnoide difusa, hemorragia pericerebral;
b) no tórax: infiltração sanguínea dos músculos intercostais anteriores na base direita;
c) nas cartilagens e costelas direitas: fratura do 1.º ao 8.º arcos costais anteriores com infiltração sanguínea dos topos e tecidos moles adjacentes;
d) nas cartilagens e costelas esquerdas: fratura do 4.º ao 7.º arcos costais anteriores com infiltrações sanguíneas dos topos e tecidos moles adjacentes;
e) na pleura parietal e cavidade pleural direita: hemotórax com sangue na cavidade parietal na quantidade de 1000 cc;
f) na pleura parietal e cavidade pleural esquerda: hemotórax com sangue na cavidade parietal na quantidade de 100 cc;
g) no pulmão direito e pleura visceral: parênquima de consistência elástica, crepitante à palpação, apresenta áreas de contusão dispersas;
h) no diafragma: apresenta duas lacerações à direita, junto aos pilares, uma com 1 cm de diâmetro e outra com 2 cm;
i) no abdómen: nas paredes, infiltração sanguínea da face interna da região pélvica;
j) no peritoneu e cavidade peritoneal: infiltração sanguínea do peritoneu na região pélvica, com sangue livre na cavidade;
k) no mesentério: laceração superficial na raiz do mesentério;
l) no fígado: superfície do lobo direito com lacerações superficiais;
m) no rim direito: infiltração sanguínea da cápsula no polo superior;
n) no rim esquerdo: infiltração sanguínea da cápsula no polo inferior
o) na bacia: fratura ao nível da sínfise púbica com diástase de cerca de 1 cm, com infiltração sanguínea dos topos e tecidos moles adjacentes;
p) na coluna vertebral e medula, vértebras e estruturas articulares: fratura de D5-
D6 com afastamento dos topos e infiltração sanguínea dos topos de tecidos moles adjacentes;
q) meninges e medula: infiltração sanguínea e secção parcial da medula ao nível de D5 e D6;
r) nos membros: membro inferior direito com sinais de fratura da diáfise do fémur, com infiltração sanguínea dos topos.
29. DD reconheceu, em dado momento, que ia ser violenta e letalmente atingido pelo MX e que já nada lhe era possível fazer naquela ocasião para evitar o acidente – situação trágica que o fez sofrer, sofrimento moral a que se juntou o sofrimento físico que as lesões corporais referidas lhe causaram até ao seu decesso.
30. Foram a viúva e a filha de DD avisadas do acidente logo a seguir à sua ocorrência e de imediato compareceram no local a fim de prestarem a seu marido e pai o auxílio possível.
31. A demandante CC chorava e não se conseguiu conter à vista de seu pai.
32. As demandantes ficaram mergulhadas em profunda angústia, enorme consternação, indescritível infelicidade.
33. DD era homem saudável, feliz, alegre, com gosto pela vida, sempre bem-disposto.
34. A demandante BB amava seu marido.
35. Constituíam BB e DD um casal harmonioso, de recíproco afeto, mútua dedicação, onde reinava a paz, a alegria, a boa disposição.
36. Com o decesso de seu marido, BB, então, com a idade de 54 anos, ficou mergulhada em indescritível dor, desapoiada no seu bem-estar moral, familiar, económico, financeiro e social.
37. A demandante BB sente-se triste, amargurada, infeliz, muito só,
38. A demandante CC, única descendência em primeiro grau de DD, sempre por este foi tratada com todo o desvelo, carinho e afeição.
39. Também CC sempre foi filha dócil com seu pai, a quem sempre ouvia com atenção e por quem tinha profundo amor filial e por ídolo insubstituível.
40. Mesmo depois de a demandante CC se ter licenciado e passar a ter ocupação remunerada, continuou a viver na casa paterna, onde sempre se manteve em total estado de harmonia, de cooperação e intensa amizade recíproca.
41. Nascido DD em ../../1963, tinha 58 anos na data do acidente, encontrando-se saudável e dotado de força das suas qualidades de trabalho.
42. DD fazia trabalhos no ramo da construção civil, como prestador de serviços de eletricista, canalizador, fornecedor dos respetivos materiais de eletricidade e canalização, bem como de eletrodomésticos, aparelhos de aquecimento doméstico com respetiva aplicação, serviços em regime de avença, animador de eventos sociais, armador e operador de aparelhagens sonoras.
43. A vítima DD computava os seus trabalhos nos últimos três anos em média no valor de 46.044,82 euros anuais, dos quais auferia cerca de 30%.
44. Era DD apoiado pela ofendida BB, tendo esta ao seu exclusivo cuidado todo o serviço doméstico desde a alimentação, higiene e tratamento de roupas aos trabalhos agrícolas.
45. Residia DD em casa própria, cuja manutenção importa, em média, por mês, com IMI (no valor atual anual de 96,73 €), seguro (no valor atual anual de 195,45 €).
46. Pagavam, por mês, de energia elétrica cerca de 96,00 € (e por ano cerca de 1.152,00 €).
47. Pagavam os seguros de duas viaturas automóveis - ... e ..., com as matrículas ..-..-GH e ..-CI-.. - no valor atual anual de 403,59 € (= 165,02 € + 238,57 €) e respetivos impostos de selo dessas viaturas no valor atual anual de 65,20 € (= 21,56 € + 43,64 €), no total mensal não inferior a 39,07 € e anual não inferior a 468,79 €.
48. Em alimentação e vestuário, gastavam em média, por mês, não menos de 450,00 € e por ano não menos de 5.400,00 €.
49. Gastavam em combustível para transportes, por mês, não menos de 180,00 € e por ano não menos de 2.160,00 €
50. Todas estas despesas do casal eram custeadas por DD em virtude de a ofendida BB não dispor de réditos próprios.
51. Com o falecimento de DD, estão tais despesas cargo da requerente BB.
52. DD entregava à filha todos os meses 140,00 € desde 2019, quando nasceu sua única neta, a NN.
53. Com o decesso de DD, deixou a demandante CC de receber essa importância de 140,00 € mensais (ou 1.680,00 € anuais)
54. Com o embate do MX no TS, ficou este com a roda da frente torcida e empenada e com a maior parte dos raios, que ligam o aro à parte central da roda, arrancada; com o guarda-lamas da frente amolgado; a haste direita da forqueta amolgada e partida; o escape arrancado e amolgado; o motor partido; o quadro empenado e o depósito da gasolina furado, danos cuja reparação importa em 2.712,15 €
55. Toda a roupa que DD trazia vestida ficou inutilizada designadamente o blusão de couro no valor de 127,00 €, a camisola de lã no valor de 47,00 €, as calças no valor de 48,00 €, o cinto no valor de 72,00 €, as botas no valor de 74,00 €; e a roupa interior no valor de 22,00 €, somando o total 390,00 €.
56. Seu telemóvel, no valor de 480,00 €, ficou destruído.
57. Seu capacete, no valor de 136,00 €, também ficou inutilizado.
58. Importou o funeral em 1.425,00 €.
59. Não teriam ocorrido os mencionados danos designadamente no motociclo TS se o MX não tivesse embatido com violência contra DD e o TS.
60. DD e BB contraíram reciprocamente casamento canónico na Igreja Paroquial da freguesia das ..., do concelho ..., em 1987-12-26.
61. Deste casamento nasceu a demandante CC.
62. O arguido transferiu para a ré EMP01... - Companhia de Seguros, S. A., a responsabilidade civil emergente da circulação do MX por contrato de seguro a que respeita a apólice ...62.

DO PEDIDO DE REEMBOLSO APRESENTADO PELO ISS:
63. Face ao falecimento de DD em ../../2021, beneficiário n.º ...57, em consequência do acidente em causa nestes autos foram requeridas no ISS/CNP pela viúva BB, o subsídio por morte e as respectivas pensões de sobrevivência, as quais foram deferidas.
64. A título de pagamento de subsídio por morte o ISS/CNP pagou 1.316,44 euros à viúva.
65. O ISS/CNP pagou a título de pensão de sobrevivência à viúva da data de 12/2021 a 12/2023 perfazem o montante de 6.765,27euros.

DAS CONDIÇÕES SÓCIO-ECONÓMICAS DO ARGUIDO
66. AA, de 71 anos, reside com a cônjuge, com quem está casado há cerca de 46 anos, numa habitação própria numa zona rural na freguesia ....
67. Da relação conjugal nasceram 4 descendentes, atualmente, todos autonomizados, três deles são emigrantes, mas visitam os progenitores nas férias quando se deslocam a Portugal e os progenitores também os visitam no país que os acolhe.
68. Uma das filhas do casal, a que construiu principal retaguarda dos pais, vive no ... andar da habitação com o marido e uma filha, mantendo, contudo, diferentes económicas domésticas.
69. A dinâmica familiar é descrita como funcional, com vinculação afetiva gratificante entre os seus membros.
70. Com 4º ano de escolaridade, oriundo de um agregado constituído pelos progenitores, trabalhadores da agricultura, e 8 irmãos, AA abandonou os estudos por forma a iniciar a atividade laboral e ajudar economicamente a família.
71. Exerceu inicialmente atividade na agricultura e, posteriormente, na construção civil, em Portugal e em vários países no estrageiro. Atualmente e desde há cerca de 10 anos encontra-se reformado após ter estado cerca de 3 anos desempregado.
72. Em termos económicos, o agregado subsiste com o valor que o arguido e a esposa auferem a título de pensões de reforma, respetivamente 535,79€ e 418,77€. Como despesas fixas mensais são apresentadas as inerentes à manutenção da habitação, designadamente gás, eletricidade, em montantes variáveis, mas que rondam os 200€ mensais.
73. AA ocupa o seu tempo, essencialmente, a fazer alguns trabalhos na agricultura para consumo próprio, e esporadicamente frequenta o café da freguesia com quem convive com alguns amigos da sua faixa etária, sendo a sua rede social composta, essencialmente, pelos seus familiares, e alguns amigos.
74. Foi-lhe prescrita medicação antidepressiva, contudo o mesmo recusa-se a tomar a mesma por temer os seus efeitos secundários.
75. No meio sociocomunitário o presente processo não é amplamente conhecido, sendo arguido classificado como pessoa humilde e ajustada no relacionamento interpessoal.

DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS
76. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
77. O arguido tem averbado no seu registo contraordenacional a condenação por uma contraordenação praticada em 20.8.2018.
***
11. Discutida a causa resultaram os seguintes factos NÃO PROVADOS:
DA ACUSAÇÃO:
a. No dia 7 de Janeiro de 2021, pelas 13h30m, ocorreu um acidente de viacção, por colisão frontal angular, na Estrada Regional n.º ...15, ao Km 1,600, freguesia ..., concelho ..., que envolveu dois veículos, o veículo ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-MX e o ciclomotor, marca ..., modelo ..., de matrícula ..-TS-...

DOS PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVEIS DAS DEMANDANTES BB E CC:
b. À hora do acidente o trânsito naquela via era pouco, embora
c. Naquela ocasião, nenhum outro veículo circulava naquela via,
d. O veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-MX, a velocidade que se presume superior a 40 km/h, ocupava não menos de 50 centímetros da hemifaixa esquerda daquela artéria, considerado seu sentido de marcha.
e. O motociclo TS deslocava-se à velocidade de cerca de 20 km/h.
f. DD, apesar de clinicamente assistido logo no próprio local do acidente, sucumbiu cerca de hora e meia a duas horas posteriores ao impacto recebido.
g. A demandante CC não conseguiu ver o pai de cara ensanguentada, com sangue a escorrer pela boca, nariz e um dos olhos ou ouvido, e aspeto disforme.
h. BB sente-se sem interesse pela própria vida, caindo em completa abulia e total desprendimento de si própria.
i. As vendas de materiais de construção, eletrodomésticos e aparelhos de aquecimento, entre outros, a que procedia, representam um movimento, em média, nos últimos três anos, antecedentes ao seu falecimento, de 43.345,02 €, ou seja, de cerca de 3.612,00 € em média por mês.
j. A avença ascende em média nos últimos 3 anos, a 3.013,00 €/ano, ou 251,00 €/mês, com rédito de cerca de 80%, isto é, 200,00 €/mês - Doc. n.º 4, 5e 6.
k. Em 2017 substituíram 8 janelas, 2 portas e 2 portões (no valor de 14.600,00
l. Na ornamentação luminosa de igrejas e ruas e operador de aparelhagens sonoras, a vítima auferia cerca de 11.000,00 € por ano, o correspondente a cerca de 917,00 € por mês.
m. A quantia de 140 euros era prestada à filha pela vítima a título de alimentos.
n. DD incorporava o remanescente de 13.756,00 € no património do casal anualmente.
o. Tudo levava a crer que seus rendimentos estariam em crescimento pelo menos até aos seus 66 anos de idade, ou seja, por mais 8 anos.
p. O arguido transferiu para a ré EMP01... - Companhia de Seguros, S. A., a responsabilidade civil emergente da circulação do MX por contrato de seguro a que respeita a apólice ...88.
q. A visibilidade referida em 26 dos factos provados era em mais de 500 metros e em mais de 150 para qualquer dos lados.
r. A demandante CC sempre obedecia a seu pai.
s. A vítima e a demandante BB gastavam em média, por mês, com médico e farmácia não menos de 20,00 € e por ano não menos de 240,00 €
t. Gastavam em outros bens não discriminados não menos de 40,00 € por mês e 480,00 € por ano.
u. A habitação da vítima tinha cerca de 250 m2 de área coberta.
v. Gastavam na manutenção da residência e em assistência às duas viaturas não menos de 70,00 € por mês e 840,00 € por ano, 13 euros em despesas médicas e medicamentosas.
Da contestação da demandada:
x. O acidente ficou a dever-se à imprudência e distração da vítima p. no artigo 44.º CE, que foi exclusivamente causal do acidente.
z. O arguido conduzia o MX no sentido ..., com toda a atenção e cuidado, rigorosamente dentro da sua meia faixa de rodagem e a cerca de 50 km/h.
aa. A vítima quando se encontrava junto ao restaurante, pretendendo a este aceder, de repente e inopinadamente vira o TS para a sua esquerda atravessando-se à frente do MX, sem parar e sem qualquer sinalização, cortando a linha de marcha do MX.
bb. Nas circunstâncias referidas no ponto antecedente, o arguido ainda travou, mas não conseguiu evitar o embate com a sua frente esquerda no TS.
cc. O embate entre o MX e o TS ocorreu na meia faixa de rodagem direita atento o sentido de marcha do MX.
***
Não foram considerados os factos negativos dos factos provados, os factos meramente conclusivos e os factos desprovidos de interesse e/ou relevância para a sentença ou atinentes à matéria de direito (designadamente que o arguido violou o artigo 24.º do CE conforme imputado nos factos da acusação).
*
12. Motivação da matéria de facto:

A convicção do tribunal no que respeita aos factos provados, estribou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do C.P.P.).

Vejamos:
O arguido optou por não prestar declarações nos autos, sendo desconhecida a sua versão dos factos.
Assim sendo, que o veículo ..-..-MX era propriedade do arguido AA resulta atestado pela pesquisa documentada a fls. 206 dos autos e que o ciclomotor, de matrícula ..-TS-.. era propriedade da vítima mortal DD resulta da análise às pesquisas documentadas a fls. 209 e 210.
A ocorrência do acidente de viação entre tais viaturas na Estrada Regional n.º ...15, ao Km 1,600, freguesia ..., concelho ..., conduzidas pelos respectivos proprietários, encontra-se unanimemente adquirida nos autos e amplamente registada nos mesmos, quer pelos fotogramas neles existentes – fls. 16 a 17, 38 a40, 180 a 182, 249 a 263 e 671, quer pelo teor dos documentos de fls. 4 a 13, 22, 26, 41 a 45, 219 a 221 quer ainda dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento.
A constituição e características da via retiraram-se da análise ao relatório tático de inspecção ao local de fls. 218 a 221 e do croqui com medidas, de fls. 226.
As condições atmosféricas e do piso encontrava sem obstruções ou obstáculos que impedissem uma boa visibilidade periférica resultou do exame aos fotogramas supra descritos, tendo ainda sido confirmadas pelos depoimentos das testemunhas que se encontravam no local.
A morte do condutor do ciclomotor está atestada pela autópsia junta aos autos a fls. 117 a 125 e ainda documentada a fls. 8 e 9. A taxa de alcoolémia do condutor do MX, arguido, está comprovada pelo talão de fls. 14.
No que à dinâmica do acidente concerne, conforme se disse já o arguido não prestou declarações nos autos pelo que é desconhecida a sua versão dos acontecimentos, pelo que foi pela seguinte linha de raciocínio que este Tribunal formulou a sua convicção neste segmento: com excepção da testemunha MM, cônjuge do arguido, as demais testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento explicaram que não viram o momento em que se deu a colisão entre os veículos. Sem embargo a testemunha II, que se encontrava na esplanada do restaurante assegurou ter avistado por cerca de 20 metros a vítima conduzir o ciclomotor dentro da sua faixa de rodagem em sentido oposto àquele a que seguia o veículo automóvel conduzido pelo arguido e que ouviu a vítima reduzir a velocidade do ciclomotor; não ouviu qualquer som indiciador de travagem. Por sua vez, a testemunha FF assegurou ter visto a vítima parada com o ciclomotor, não sabendo, contudo, especificar exatamente em que ponto da via. Já a testemunha EE, chegado ao local dos factos momentos após o mesmo ter ocorrido, afirmou de modo veemente, seguro e descomprometido que o veículo conduzido pelo arguido se encontrava cerca de 50 a 60 cm com as rodas esquerdas na hemi-faixa de rodagem contrária ao seu (do MX) sentido de marcha (...), isto é, na hemi-faixa de rodagem do ciclomotor ..-TS-.., atento o seu sentido de marcha (...), o que confirmou por reporte às imagens de fls. 16, 17, 18, 247 a 264. A testemunha JJ que também esteve no local referiu que o arguido moveu o seu veículo do sítio onde o mesmo terá ficado imobilizado após o embate (em consonância com a testemunha EE atestou que o veículo automóvel terá ficado cerca de 10-15 min no local onde se imobilizou após o embate, após os quais foi, então, movido pelo arguido a contragosto dos presentes)
A testemunha KK asseverou, igualmente com veemência, que o veículo automóvel do arguido se encontrava 50/60 cm 60/70 cm dentro da hemi-faixa de rodagem do ciclomotor, que viu o MX fora de mão, e que aquele terá movido o veículo MX.
Por seu turno, a testemunha LL, professor na área das engenharias e autor do documento de fls. 506 a 512 v. dos autos explicou que de acordo com a análise dos documentos e fotografias constantes dos autos e do conhecimento que tem do local, pela análise que fez e das simulações que desenvolveu concluiu, conforme decorre do teor daquele documento, que o acidente ocorreu na hemifaixa direita sentido ... (hemifaixa do ciclomotor) perto do eixo da via e não na esquerda, isto é na hemifaixa da estrada em que seguia o veículo automóvel MX, com colisão excêntrica e frontal, estando o motociclo parado, o que ademais entronca com os depoimentos das testemunhas II – a qual atestou que a vítima reduziu a velocidade do ciclomotor – e FF – a qual afirmou que a vítima parou o ciclomotor.
Acresce que da análise ao local dos danos verificados na viatura automóvel MX, situados no lado esquerdo do para-choque- e no ciclomotor cuja roda da frente se apresenta torcida – v. fotografias 27 e 28 (fls. 261) e 15 e 16 (fls. 255), de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, resulta para nós claro que o embate entre os veículos se deu precisamente do modo indicado pela testemunha LL.
E a tal conclusão chegamos mesmo que tal dinâmica de ocorrência do acidente tenha sido frontalmente contrariada pela testemunha MM, a qual, ao contrário das demais acima apontadas, que se apresentaram credíveis espontâneas e comprometidas com a verdade, apresentou-se com um discurso fragmentário, evasivo e estanque, sempre no sentido conclusivo e genérico de que a vítima se colocou em frente ao veículo MX sem que nada o fizesse prever, nas suas palavras “foi um tapa olhos”. Acontece que esta testemunha, cujo depoimento se afiguraria importante para a descoberta da verdade material dos factos, atento o seu seguimento no veículo MX, do lado do pendura, e para a qual, depois de advertida do dever de falar com verdade e a tanto ser obrigada por lei sob pena de a ela falando cometer um crime, optou pela faculdade de depor mas não prosseguiu conforme legalmente lhe era imposto com o seu dever de falar com verdade sobre os factos aos quais assistiu. Isto porque a testemunha em questão, como já se disse, disse sistemática e repetidamente que foi o ciclomotor conduzido pela vítima que “cortou caminho” “veio contra nós” “foi um tapa olhos”, “tapou-nos o caminho” mas recusou-se sempre concretizar tais afirmações, bem como a indicar o local concreto onde se deu o embate, chegando a escudar-se na contra instância em afirmações como “fui a única que viu” “sei que se meteu à nossa frente, não sei mais nada”. Não disse ou escusou dizer claramente se o ciclomotor se encontrava todo ele dentro da hemifaixa de rodagem do MX, se estava ou não já virado na totalidade para o restaurante e como e onde efectivamente embateram os veículos. O discurso desta testemunha foi titubeante e falacioso, de facto se por um lado referiu ter visto o ciclomotor durante muito tempo a locomover-se pela recta em causa, por outro assevera que este se meteu em frente ao MX sem qualquer indiciador disso e que o fez sem qualquer redução da velocidade. Ora, como acima já se viu a testemunha II foi categórico em dizer que ouviu o ciclomotor reduzir a velocidade. Acresce que a testemunha FF viu o motociclo parado. Tais elementos contrariam frontalmente a versão desta testemunha e são para nós absolutamente dignos de credibilidade, pois que ao contrário desta última e apesar de se encontrarem no parque de estacionamento contíguo à estrada onde se deu o acidente dizem, porque assim foi, que não viram o concreto momento do embate. A testemunha II porque estava sentado e tinha um veículo a tapar-lhe o raio de visão e a testemunha FF porque desviou o olhar. Veja-se ainda que a testemunha MM disse mais do que uma vez que o marido, arguido condutor do MX, travou e não consta dos fotogramas o mínimo sinal da ocorrência de travagem do veículo, nem qualquer outra testemunha ouviu sons de travagem ou derrapagem no asfalto. De resto, de acordo com o local dos danos verificados no veículo MX e no ciclomotor e do lugar onde ficou o corpo da vítima não colhe qualquer arrimo a versão desta testemunha em abono do arguido se marido, uma vez que de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer pois que coloca o arguido a pretender virar à esquerda – para o restaurante – e ao mesmo tempo na hemifaixadireita atento o sentido de marcha do MX e de frente para este, hipóteses simultâneas que são em termos lógicos incompatíveis. De facto a versão trazida ao processo por esta testemunha MM é semelhante à reportada no croqui de fls. 45, mas como aí se pode ler o local provável do embate foi indicado pelo arguido e o mesmo em face da prova produzida, analisada e concatenada não se mostra verosímil.
No que concerne aos croquis de fls. 225 a 227 e aos fotogramas juntos aos autos dos quais se extrai que a posição do MX após o embate seria perto do eixo da via, dentro da sua hemifaixa de rodagem importa esclarecer que para nós dos depoimentos das testemunhas FF, EE e JJ resultou claro que o arguido deslocou o seu veículo automóvel do primitivo local de estagnação do mesmo e como tal não contraria o raciocínio por nós acima expendido.
Em face do exposto deu-se, então, como provados os pontos 1 a 19 da acusação, extraindo-se os elementos do foro interno do arguido relativos à sua falta de precaução e obrigação de evitar o embate como podia ter feito face ás circunstâncias pessoais e características da via.
No concernente aos demais pontos, que a vítima mortal era condutor atento responsável e consciente na condução automóvel, cuidadoso, prudente, tido como exemplar cumpridor das regras de trânsito resultou comprovado do teor das declarações prestada pela própria assistente, viúva daquela, BB, a qual, pese embora o seu interesse natural no desfecho da causa, nos mereceu credibilidade pelo modo espontâneo e fluído com que prestou as suas declarações. O mesmo raciocínio é válido para o depoimento da demandante CC que depôs de modo sincero e espontâneo, designadamente confirmado que o pai, aqui vítima era um condutor extremoso. De igual modo, atestando o condutor cuidadoso que era a vítima se pronunciaram as testemunhas FF, KK, OO (genro da vítima), PP, QQ, RR, as quais depuseram de forma equidistante e sincera (ponto 20).
Os pontos 21 a 23 retiraram-se da dinâmica do acidente acima descrita e da análise aos fotogramas juntos aos autos.
O ponto 24 a 26 retiraram-se dos depoimentos das testemunhas II E FF.
O ponto 27 resultou do acima já referido.
O exarado em 28 mostra-se documentado no relatório de autópsia junto os autos.
O ponto 29 resulta da dinâmica do acidente, objectivado do prisma das regras da experiência e da normalidade do acontecer.
Os pontos 30 a 42 e 44 foram confirmados pelas próprias demandantes e pela testemunha HH, a par das testemunhas FF, JJ, KK, PP, QQ, RR, SS e TT, estando a idade da vítima comprovada documentalmente nos autos (fls. 417).
O ponto 43 resultou da análise aos comprovativos de entrega do IRS constantes de fls. 433 a 442 v. e os pontos 45 a 47 resultam da análise aos documentos de fls. 443 a 448.
No tangente aos pontos 48 a 60 os mesmos resultaram dos depoimentos das próprias demandantes e da testemunha QQ, em conjugação com o documento de fls. 449.
Os itens 61, 62 e 63 estão atestados pelos respectivos documentos comprovativos juntos aos autos (fls. 417 a421, 474/475) e os pontos 63 a 66 resultam da análise ao teor de fls. 402 e 617.
Os factos referentes às condições sócio-económicas do arguido ressumaram da análise ao teor do seu relatório social, a ausência de antecedentes criminais resultou do escrutínio ao seu CRC junto aos autos e o antecedente contraordenacional da análise ao registo de condutor junto aos autos.
***
Os factos dados como não provados assim resultaram em consequência da ausência da sua verificação pela positiva em função de toda a prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, ou da prova do seu contrário, designadamente no que concerne aos valores alegadamente auferidos pelo arguido a título de prestação de serviços em festas e ou avenças ou noutros serviços no âmbito dos trabalhos que a vítima desenvolvia não resultaram comprovados nem a regularidade, nem o valor do benefício económico de que eventualmente a vítima deles retirava. Com especial enfoque neste segmento nem a própria viúva da vítima conseguiu esclarecer tais factos.
As testemunhas EE, FF, GG, HH asseveraram que encontraram a vítima inconsciente instantes após o acidente e as próprias demandantes asseveram que a vítima estava inconsciente momento em que chegaram ao local do acidente, ainda antes do CODU e da GNR, pelo que a hora da declaração de óbito constante do documento assinado pelo médico do CODU não comprova a hora do óbito da vítima.
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A testemunha UU mostrou-se inócua para a dilucidação dos factos”.

2. Consta da sentença recorrida, no que respeita à “escolha da pena”:
“Feita a subsunção do comportamento do arguido ao crime em análise, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar-lhe.
De acordo com o disposto no artigo 137.º, do Código Penal “1 - Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
O crime cometido pelo arguido é, assim, punível, em alternativa, com pena de prisão de um mês (artigo 41.º, n.º 1, do CP) até três anos; ou com pena de multa de 10 dias até ao máximo de 360. (artigo 47.º, n.º 1, do CP) (…).
In casu, as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir são elevadas (…).
Considerando este entendimento do qual se compartilha, ainda que as necessidades de prevenção especial denotadas pelo arguido sejam baixas, transparecendo que durante toda a sua vida adoptou um modo de vida ordeiro e conforme ao direito, sendo o caso dos autos uma situação isolada - não apresenta qualquer averbamento no seu registo criminal apenas contraordenacional- não pode deixar de determinar a escolha por UMA PENA DE PRISÃO, porquanto a pena de multa não acautela as referidas exigências, ficando aquém do ponto comunitariamente suportável da tutela dos bens jurídicos em questão, isto é da integridade física e da vida humana”.
3. Consta da sentença recorrida, no que respeita à “determinação da pena de prisão concreta”:
“(…) Há assim a ponderar as elevadíssimas necessidades de prevenção geral, na vertente positiva e negativa
O grau de ilicitude do facto é elevada.
O modo de execução do crime foi circunstancial.
A gravidade das suas consequências da conduta do arguido é capital, com o resultado morte de outra pessoa.
O grau de violação dos deveres impostos ao arguido é a nosso ver elevado.
A intensidade da negligência consciente, em face do exposto, é elevada.
O arguido não denotou arrependimento ou empatia pela vítima e seus familiares ou sequer há notícia de ter diligenciado por ajuda à vítima, antes tendo pretendido acautelar-se a si e aos seus bens.
Por outro lado, o arguido está social, familiar e profissionalmente inserido e apresenta uma situação económica estável.
E não tem antecedentes criminais registados.
Sopesando todos este factores entendemos ser justo e adequado condenar o arguido na pena de 1 ANO E 1 MÊS DE PRISÃO pela prática do crime de homicídio por negligência (consciente)”.
4. Consta da sentença recorrida, no que respeita à “pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor”:
“Nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, os crimes cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito é, ainda, punido com pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre três meses e três anos. (…)
Na determinação do período concreto da proibição de conduzir atende-se aos mesmos elementos que presidiram à escolha da medida concreta da pena principal, sem esquecer, contudo, a importância que a utilização do veículo automóvel tem na vida das pessoas e do carácter punitivo, que também a pena acessória deve ter. Com efeito, esta medida acessória traduz-se numa censura adicional pelo crime praticado, por se revelar especialmente censurável, e visa o efeito de prevenção geral de intimidação e de prevenção especial.
Neste âmbito, considerando que as penas acessórias, por imperativo constitucional não são automáticas, repristinadas todas as circunstâncias supra ponderadas para a determinação da medida concreta das penas principais, aqui igualmente valoradas, enformadas pelos factos e personalidade do arguido, entende-se que a fixação da pena acessória pelo período de 10 MESES se afigura adequada, sopesados os factores analisados supra para a pena principal”.
5. Consta da sentença recorrida, no que respeita aos “pedidos de indemnização cível conexos à prática do crime”:
“(…) Tendo em consideração estes vectores, afiguram-se-nos ajustados os valores de € 20.000,00, para demandante BB e de 20.000 euros, para a filha da vítima, CC, pelos danos não patrimoniais sofridos pelas próprias com a perda respectivamente do marido e do pai.
Entende-se, ainda, adequado o valor de 85.000 euros, acrescido de juros legais à taxa em vigor vencidos desde a notificação do pedido de indemnização cível e vincendos até efectivo e integral pagamento, a título de dano morte sofrido pela vítima, atentando na idade desta à data do seu decesso e à ausência de causas outras conhecidas concorrentes para a produção do evento, designadamente provenientes de actos imputáveis à vítima.
Também se apresenta equilibrada a indemnização de € 4.000,00 para reparar o sofrimento da vítima antes de falecer, e € 4.0000 pelador física sofrida pela vítima entre o momento do embate e o seu decesso, cujo óbito ainda foi declarado no local cerca de hora e meia depois do embate, mas sabendo-se que a vítima não se encontrava consciente quase desde o momento do embate.
No tangente aos danos patrimoniais devem as demandantes ser ressarcidas nos valores insertos nos pontos 54 a 58 dos factos provados no valor global de 5.143,15 euros.
Já no que concerne aos lucros cessantes peticionados pela cônjuge da vítima, não ficou demonstrado o alegado valor anualmente integrado no património de ambos.
No que concerne aos danos patrimoniais futuros como decorre o nº 3 do artº. 495º do CC, a indemnização pelos danos patrimoniais futuros circunscreve-se, na sua essência, à obrigação alimentar de que se viu privada a pessoa que dela beneficiava ou podia vir a beneficiar em termos previsíveis futuros (…).
A esperança média de vida dos homens em 2021 cifrava-se em 78 anos para os homens e 83 para as mulheres, tendo o de cujus à data do acidente 58 anos de idade e a viúva ora demandante 54.
Era a vítima o único que exercia uma actividade laboral remunerada e garantia o sustento do agregado, constituído pela vítima e pela esposa, ora viúva.
O montante comprovadamente auferido pela vítima era de cerca de 13.813,45 euros, e as despesas efectivamente suportadas pela demandante constam dos pontos 45 a 49, devendo ter-se em conta que as despesas com alimentação e com vestuário se reduziram por força do falecimento da vítima na proporção de metade.
O valor indemnizatório por dano patrimonial futuro, sendo indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv. pelo que considerando o exposto, por apelo à equidade, considera-se adequado atribuir a título de dano patrimonial futuro a quantia de 120 mil euros à demandante BB.
Verificando-se que a demandante CC à data dos factos já era maior, coma agregado familiar próprio constituído e não alegou carecer de alimentos não se mostra abrangida pela previsão do artigo 495.º, n.º 3.
Os valores supra referidos acrescem juros de mora à taxa legal em vigor desde a data da notificação do pedido cível até efectivo e integral pagamento, de acordo com o disposto nos artigos 805.º, 806.º e 559.º do CCiv.
O pagamento dos mesmos fica a cargo da demandada seguradora”.
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Apreciação do Recurso

1. Recurso do recorrente AA

1.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto aos pontos 9, 10, 13, 14, 16 a 19, 22 e 27 da matéria de facto provada

O recorrente defende que existe erro de julgamento quanto aos factos provados sob os pontos 9, 10, 13, 14, 16 a 19, 22 e 27 da matéria de facto provada (conclusão 4ª).
No caso da impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites legalmente impostos.
Quando se pretenda a impugnação ampla da decisão de facto, o recorrente tem de cumprir o aludido ónus de tríplice especificação, impondo-se que o recorrente, nos termos do disposto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal, especifique:
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas”.
A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida e a especificação das “provas que devem ser renovadas” implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, o que pressupõe a existência de um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do C.P.Penal (no atual quadro legal a renovação, na Relação, da prova que foi produzida em1ª instância só é admitida se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo – artº 430º do C.P.Penal).
“Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido:  «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Em síntese: para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens)” – cfr. Acórdão do TRL de 02.12.2020, proc. nº 3606/15.0T9SNT.L1-5.
Se o recorrente assim proceder pode o tribunal de recurso reapreciar a prova produzida concretamente indicada e vir a modificar a decisão quanto à matéria de facto, nos termos do artº 431º, al. b) do C.P.Penal.
Como bem refere o Acórdão do TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9: “embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (cfr. artº 428º e 431º, al. b) do C.P.Penal), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»). O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar”.
Por conseguinte, o recurso amplo da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento nem a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo de o tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do C.P.Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Nessa medida, na reapreciação da prova há que articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do C.P.Penal (nos termos do qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente), e com princípio do in dubio pro reo (postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa - que impõe a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado e constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do Tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto), princípios que valem também para o tribunal de recurso.
No entanto, nesse poder de fiscalização ou reapreciação o tribunal de recurso está condicionado pela ausência de imediação e de oralidade que acontece na grande maioria dos recursos em que tal questão é suscitada (pelo facto de não haver a produção direta da prova) e se realizam plenamente em 1ª instancia onde o tribunal “viu e ouviu o arguido, as testemunhas e os peritos, apreciou o seu comportamento não verbal, formulou as perguntas que considerou pertinentes da forma que entendeu ser mais conveniente e confrontou essas pessoas com a prova pré-constituída indicada pelos sujeitos processuais, tudo faculdades que o tribunal da Relação, pelo menos quando não é requerida a renovação da prova, não pode  não beneficiar. Por isso, e não por força do princípio da livre apreciação da prova, o tribunal da 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1ª instância, só podendo alterar o aí decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida – alínea b) do n.º3 do artigo 412.º do C.P.P.” (Acórdão do TRL de 10.10.2007, Proc. nº 8428/2007-3).
Como bem refere o Acórdão do TRL de 02.12.2020, supra referido, cumpre “não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”.
Face ao exposto e tendo presente estes princípios vejamos a impugnação de facto do recorrente.
O recorrente entende que são os seguintes os factos incorretamente dados como provados: 9. Para tal, DD reduziu a velocidade da marcha do ciclomotor, e foi-se abeirando da linha separadora descontinua (M2), separadora dos sentidos de trânsito, para virar à esquerda, na direcção do referido restaurante; 10. Quando se aproximou junto da linha separadora dos sentidos de trânsito, DD parou o ciclomotor, e nesse momento, o arguido que conduzia de forma desatenta e com falta de cuidado, ao meio da via, ocupando parte da hemifaixa de rodagem esquerda atento o seu sentido de marcha, não adoptando na condução o cuidado e zelo que as circunstâncias concretas exigiam, não teve antecipadamente a percepção do ciclomotor na via de trânsito, não parou o veiculo de matrícula ..-..-MX, embatendo com a frente do lado esquerdo do veiculo, na roda frontal do ciclomotor, fazendo com que a vítima embatesse com a cabeça, no canto superior esquerdo do para-brisas do veiculo ligeiro, e consequentemente fosse projectada para o lado esquerdo, atento o sentido de circulação do veiculo ligeiro; 13. O arguido não fez qualquer manobra de evasão para evitar a colisão, não abrandou a sua marcha, não travou ou guinou o veículo que conduzia; 14. Pelo que, o embate descrito ficou a dever-se exclusivamente ao arguido, à sua falta de atenção e cuidado, que não teve atempadamente a percepção do outro veiculo na via de trânsito, não adequando a velocidade do MX de modo a que, atendendo à presença do ciclomotor e às características dos veículos pudesse, com seguridade, executar as manobras de desvio por forma a evitar o embate ou parar no espaço livre e visível à sua frente, assegurando a distância entre ele e qualquer obstáculo visível de modo suficiente para, em caso de necessidade, fazer parar o veiculo, sem ter que contar com obstáculos que lhe surgissem inopinadamente; 16. Ao agir da forma descrita, o arguido não usou do cuidado e precaução que são exigíveis a todos os que na via pública conduzem um veículo automóvel e, pela omissão de tais deveres, conduzia de forma desatenta, sem os cuidados necessários a um condutor prudente, sem causa justificativa, e que nas circunstâncias concretas se lhe impunham, e de que era capaz, por forma a evitar o embate; 17. Representou o arguido como possível que a sua conduta seria adequada e idónea a causar um acidente, do qual poderiam resultar lesões e a morte para outrem, o que o arguido podia, e devia ter previsto, mas ainda assim adoptou tal conduta, sem se conformar com o resultado que efectivamente veio a ocorrer, confiando, não devendo confiar, que ele não se verificaria; 18. Apesar dessa consciência, o arguido não tomou as precauções a que estava obrigado e era capaz, conduzindo sem o cuidado necessário ao exercício da condução e de forma desadequada às exigências de segurança que se impunham, tendo imprimido uma condução reveladora de desrespeito e indiferença pelos demais utentes da via, vindo assim a embater no ciclomotor conduzido pela vítima; 19. O arguido agiu livremente, não tendo actuado com o cuidado e a prudência com que podia e devia ter agido, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; 22. Simultaneamente, embateu também o MX no corpo de DD, que, ao volante do TS, estava parado na hemifaixa de rodagem direita, atento seu sentido de marcha, junto ao centro da via, com a roda da frente levemente orientada para a sua esquerda, pronto para atravessar a hemifaixa esquerda da via e 27. Logo após o embate, o arguido saiu da sua viatura, e também, logo a seguir, reentrou nela para fazer marcha atrás e a seguir avançou para a frente para a retirar da faixa de rodagem esquerda e imobilizá-la na faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha ....
Alega, no essencial, a análise que o mesmo faz da prova produzida, com recurso aos depoimentos das testemunhas FF (gravação áudio 01:41 a 01:56; 03:08 a 03:37; 08:04 a 08:35; 30:07 a 30:12; 38:40 a 38:54), EE (gravação áudio 01:40 a 02:03; 02:32 a 02:39; 03:38 a 04:31; 05:53 a 06:10; 11:27 a 11:58; 16:18 a 16:39), JJ (gravação áudio 01:35 a 02:13; 06:18 a 07:0318:28 a 18:53; 20:44 a 21:16; 21:56 a 22:06; 23:43 a 23:50; 27:01 a 28:27), KK (gravação áudio 02:43 a 03:26; 04:00 a 04:30; 04:35 a 04:43; 06:29 a 06:51; 19:26 a 19:37; 20:49 a 20:57; 21:06 a 21:23; 21:25 a 21:31; 27:04 a 27:09;), II (gravação áudio 12:15 a 13:06; 17:53 a 18:08), MM (gravação áudio 07:37 a 07:56; 08:16 a 08:24; 13:29 a 13:45; 14:49 a 15:16) e ao depoimento da testemunha FF perante OPC  (conclusões 9ª a 12ª) que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, questionando a livre apreciação da prova que foi feita pelo tribunal recorrido.
Sustenta que:
- o tribunal a quo desconsiderou o depoimento da testemunha MM, única testemunha presencial, o qual foi “claro, coerente e de uma simplicidade óbvia” (conclusões 2ª, 18ª e 19ª);
- existem incongruências entre os depoimentos das testemunhas FF, EE e JJ (conclusão 8ª);
- a testemunha FF apresenta, em audiência de julgamento, uma versão oposta à prestada em sede de inquérito, perante OPC (conclusões 9ª a 12ª);
- quanto ao local de imobilização do veículo, as testemunhas EE, KK e JJ apresentam versões distintas, nenhuma delas coincidente com o local de imobilização do veículo constante do auto da GNR (conclusão 13ª);  
- quanto ao concreto movimento do veículo, desde o primitivo ponto de estagnação até ao local onde ficou imobilizado, e quanto ao número de vezes que o recorrente o terá movimentado, os depoimentos das testemunhas II, FF, EE, JJ e KK são contraditórios, assumindo tais contradições gravidade suficiente para abalar a  credibilidade de tais depoimentos(conclusões 15ª e 16ª);
- quanto à forma como tiveram conhecimento da colisão, as testemunhas KK e JJ apresentam versões distintas, apesar de terem afirmado que estiveram juntos (conclusão 17ª);
- os vestígios/detritos e a mancha resultante da perda de fluídos por parte do MX (cfr. doc. 2) demonstram que o embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de marcha do MX, o que, conjugado com o depoimento da testemunha MM, deveria ter levado o tribunal a quo a concluir que o recorrente seguia a uma velocidade moderada (50/60 Km/h), tendo o motociclo inopinadamente invadido a sua hemi-faixa de rodagem, não tendo o recorrente tido oportunidade de realizar qualquer manobra para se desviar do mesmo ou imobilizar o MX  ou a dar como não provada a dinâmica do evento (conclusão 22ª);
- atendendo à posição em que o MX e a vítima se imobilizaram, ao embate da roda da frente do motociclo no para-choques frontal do MX, é de concluir que a vítima invadiu a faixa de circulação esquerda e, ao aperceber-se do MX a circular em sentido contrário, guinou para a direita para tentar evitar a colisão  (conclusão 23ª).
O recorrente indica os pontos dos factos provados que considera incorretamente julgados mas limita-se a expor a sua pessoalíssima visão dos acontecimentos, não estabelecendo qualquer relação entre o conteúdo específico de cada meio de prova, ou conjugação de meios de prova, e o facto individualizado que considera incorretamente julgado. Tal mostra-se essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da al. b), do nº 3, do artigo 412º do C.P.Penal, a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida – a demonstração desta imposição compete também ao recorrente.
A prova é analisada conjuntamente e não basta indicar provas que permitam uma diferente convicção para alterar a decisão do tribunal sobre a matéria de facto, antes exigindo a lei provas que imponham uma convicção diferente.
Com efeito, “não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal” (Acórdão do TRP de 10.01.2024, Proc. nº 16/20.0T9STS.P1).
Desde logo, no que respeita ao depoimento da testemunha presencial MM, cônjuge do recorrente, o tribunal a quo não lhe atribuiu credibilidade baseando-se em opção assente na imediação e na oralidade nomeadamente quando adjetiva o seu discurso de “fragmentário, evasivo e estanque … titubeante e falacioso” e considera que a versão por si apresentada “não se mostra verosímil”.
Mas também considera que a versão apresentada por esta testemunha não encontra respaldo nos dados objetivos, consistentes e inquestionáveis, nomeadamente, nas características do local do embate (cfr. pontos 5 e 6 dos factos provados),  nas partes do veículo MX e do ciclomotor que ficaram danificadas em consequência do embate, nas graves lesões sofridas pela vítima (descritas no relatório de autópsia e que foram causa direta e necessária da sua morte) e na ausência de rastos de travagem.
Conclui que tais dados são demonstrativos da dinâmica e violência do embate (incompatíveis com a condução cuidada, bem como, com o surgimento inesperado da vítima na via de trânsito, nas circunstâncias descritas pela testemunha) e de que, aquando da sua ocorrência, o ciclomotor estava parado, razão pela qual não poderia ter invadido inopinadamente a faixa de rodagem destinada ao sentido de marcha do MX.
No que respeita ao local da ocorrência do embate, não obstante o teor do croquis de fls. 45, o tribunal a quo não considerou demonstrado que o embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de marcha do MX dado que, tal como dele consta, o local provável do embate foi “indicado pelo condutor do veículo nº 1” que não prestou de declarações, em audiência de julgamento, no uso de um direito que lhe é conferido por lei (prescindindo, assim, legitimamente, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal).
No que concerne aos demais meios de prova testemunhal elencados pelo recorrente importa, desde logo, sublinhar que os mesmos não podem ser analisados isoladamente, de forma segmentada, mas têm que ser apreciados concatenadamente (como o fez o tribunal recorrido), devendo ser conjugados e estabelecidas correlações internas entre todos os meios de prova produzidos, confrontando-os de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo-se inferências ou deduções de factos conhecidos, desde que tal se justifique, e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
Impõe-se destacar que as razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras não dependem do critério de cada um, mas antes do juízo de valoração livremente realizado por quem compete julgar os factos, de acordo com a imediação (que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova) e tendo por base as regras da experiência comum.
E, a imediação confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
O exposto não significa “que o tribunal de recurso não possa pôr em causa essa credibilidade através da análise dos depoimentos prestados e com base neles escrutinar a aplicação das máximas da experiência comum que estiveram na base da opção do julgador. Ou seja, o tribunal superior não pode criticar a opção pela valoração da credibilidade de um determinado meio de prova; não pode dizer que rejeita o convencimento do juiz de 1.ª instância porque este optou por um determinado depoimento por ser mais credível. Porém, já tem o dever de analisar o depoimento prestado em si mesmo considerado e concluir se a versão que apresenta é objectivável, ou seja, se qualquer um aceitaria o raciocínio explanado como compatível com o sentido comum. Não se trata de o tribunal superior se convencer do depoimento e da sua certeza mas de o considerar como uma conclusão razoável” (cfr. Acórdão do STJ de 19.12.2007, Proc. nº 07P4203).
O juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção.
Portanto, o juiz é livre, no sentido mencionado de formar a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha (ainda que familiar do arguido ou do ofendido) em detrimento de testemunhos contrários (v.g. de pessoas sem quaisquer ligações ao arguido ou ao ofendido).
Na verdade, não basta afirmar que o recorrente, outro arguido ou testemunhas fizeram (ou não fizeram) determinadas afirmações que sustentam (ou não sustentam) o que foi dado como assente, sendo necessário que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal a quo se mostra sem suporte, na análise global a realizar da prova, enunciando concretamente as razões para tal.
No fundo, exige-se que o recorrente – à semelhança do que a lei impõe ao juiz – fundamente a imperiosa existência de erro de julgamento, desmontando e refutando a argumentação expendida pelo julgador.
Assim, o que é pedido ao recorrente que invoca a existência de erro de julgamento é que aponte na decisão os segmentos que impugna e que os coloque em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas (se tal for o caso), quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quaisquer outros concretos e especificados elementos probatórios, demonstrando com argumentos a verificação do erro judiciário a que alude.
No caso vertente, uma vez que o recorrente não prestou declarações em sede de audiência de julgamento e o tribunal a quo descredibilizou fundamentadamente o depoimento da única testemunha presencial, a prova produzida relativa à dinâmica do acidente resultou da conjugação dos depoimentos das testemunhas e do teor dos documentos juntos aos autos, em obediência às regras da ciência, da lógica e da experiência.
Nessa medida, a sentença recorrida dá a conhecer como o tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada e bem assim as razões da valoração que fez relativamente às declarações e depoimentos prestados, ressaltando claro da motivação da matéria de facto que a convicção do tribunal a quo se formou, no que respeita à dinâmica do acidente, essencialmente, com base no depoimento da testemunha LL (autor do documento de fls. 506 a 512 v. do autos) articulado “com os depoimentos das testemunhas II – o qual atestou que a vítima reduziu a velocidade do ciclomotor – e FF – a qual afirmou que a vítima parou o ciclomotor” e com a análise dos danos verificados no veículo MX (situados no lado esquerdo do para-choques) e no ciclomotor (cuja roda da frente se apresenta torcida), tudo conjugado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.
Nessa sequência, o tribunal recorrido concluiu que “resulta para nós claro que o embate entre os veículos se deu precisamente do modo indicado pela testemunha LL”.
E, analisado o teor do documento de fls. 506 a 512 (em conjugação com o depoimento da testemunha Prof. LL) e ouvidos os depoimentos das testemunhas II, FF, EE, JJ e KK (para além das passagens indicadas ao longo do requerimento de recurso), desde já se adianta que as provas indicadas não impõem diferente decisão.
No que respeita à dinâmica do acidente, apesar de nenhuma destas testemunhas ter visto o concreto momento do embate, os depoimentos das testemunhas II e FF assumiram especial relevância na medida em que, porque ambas se encontravam na esplanada do restaurante, tiveram perceção de acontecimentos significativos prévios à sua ocorrência.
A primeira avistou o ciclomotor a circular dentro da sua faixa de rodagem (gravação áudio 9:20) e ouviu a vítima a reduzir a velocidade do ciclomotor, após o que ocorreu o embate (gravação áudio 2:01 e 7:00) e a segunda viu o ciclomotor a circular até ao local onde parou (“via-o do meio do corpo para cima”- gravação áudio 3:45 e 28:23), viu-o parado (gravação áudio 15:53), desviou o olhar e viu “a mota e o senhor da mota pelo ar”, tendo o carro parado mais à frente (gravação áudio 2:30).
Estes depoimentos não se mostram contraditórios entre si porquanto, apesar de ambas as testemunhas afirmarem que se encontravam na esplanada junto à parede, a testemunha II estava sentada ao pé do Dr. VV (gravação áudio 5:58) e tinha um veículo a tapar-lhe o raio de visão (“o jipe não deixou ver o embate” - gravação áudio 2:24), enquanto que a testemunha FF estava de pé (gravação áudio 29:04), o que torna perfeitamente compreensível as diferentes perspetivas de cada uma das testemunhas e a melhor visibilidade da testemunha FF.
Nem o depoimento da testemunha FF se mostra contrariado pelos depoimentos das testemunhas EE (gravação áudio 1:35) e JJ (gravação áudio 1:44)  - encontravam-se  no interior do restaurante e daí se deslocaram para o local do acidente, após a ocorrência do mesmo - que se pronunciam sobre as condições de visibilidade da esplanada para a estrada (em virtude dos veículos estacionados no parque do restaurante) pois tais afirmações, per si, não são idóneas a demonstrar o que a testemunha FF poderia ou não ter visto desde o local onde se encontrava (local este, em concreto, que as testemunhas não demonstraram conhecer) por só esta aí se encontrar (e não aquelas).
O recorrente também destaca as versões distintas apresentadas pelas testemunhas KK (estava a entrar para o restaurante com a testemunha JJ quando ouviram um estrondo, não foram alertados por ninguém, ouviram os gritos - gravação áudio 18:20-19:00 –, tendo o cunhado ficado mais para trás – gravação áudio 21:00-21:30) e JJ (não se apercebeu do embate, estava no interior do restaurante e soube da sua ocorrência por ter sido alertado pela empregada que serve à mesa – gravação áudio1:45), quanto à forma como tiveram conhecimento da colisão.
No entanto, as incongruências destacadas pelo recorrente não consubstanciam contradições evidentes e inconciliáveis entre os depoimentos, tratando-se, antes, de discrepâncias quanto a aspetos circunstanciais que não assumem a relevância por ele pretendida. É de esperar, segundo as regras da experiência comum, que depoimentos reportados a factos que ocorreram mais de dois anos antes, apresentem imprecisões, nomeadamente quanto à forma como as testemunhas souberam da colisão.
O recorrente também descredibiliza o depoimento da testemunha FF porque, segundo refere, apresenta uma versão oposta à apresentada no momento em que prestou declarações perante o OPC (conclusões 9ª a 12ª).
Cabe, contudo, salientar que as declarações prestadas em fase de inquérito, perante órgão de polícia criminal, não podem ser valoradas como prova, por não terem sido lidas ou reproduzidas em audiência de julgamento (art. 355º e 356º do C.P.Penal).
Efetivamente, o tribunal a quo considerou os depoimentos das testemunhas FF e II “absolutamente dignos de credibilidade”.
 Ora, quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum.
Por outro lado, tal como sublinhou o tribunal a quo, o local dos danos verificados no veículo MX e no ciclomotor é demonstrativo de que a colisão foi “excêntrica e frontal” (testemunha Prof. LL – gravação áudio 16:00) e ocorreu no momento em que o ciclomotor estava parado.
Para tal, fundamentou-se no teor do documento de fls. 506 a 512 e no depoimento da testemunha Prof. LL, e concluiu que decorre de tal documento que “o acidente ocorreu na hemifaixa direita sentido ... (hemifaixa do ciclomotor) perto do eixo da via e não na esquerda, isto é, na hemifaixa da estrada em que seguia o veículo automóvel MX, com colisão excêntrica e frontal, estando o motociclo parado”.
Também evidenciou o depoimento da testemunha EE que “afirmou de modo veemente, seguro e descomprometido que o veículo conduzido pelo arguido se encontrava a cerca de 50 a 60 cm com as rodas esquerdas na hemi-faixa de rodagem contrária ao seu (do MX) sentido de marcha (...), isto é, na hemi-faixa de rodagem do ciclomotor ..-TS-.., atento o seu sentido de marcha (...), o que confirmou por reporte às imagens de fls. 16, 17, 18, 247 a 264” (gravação áudio 7:00-11:08) e o depoimento da testemunha KK  que “asseverou, igualmente com veemência, que o veículo automóvel do arguido se encontrava a 50/60 cm 60/70 cm dentro da hemi-faixa de rodagem do ciclomotor, que viu o MX fora de mão” (gravação áudio 1:55, 2:45-3:02).
Com efeito, tal como explicou a testemunha Prof. LL (gravação áudio 16:00), o vinco vertical existente no para-choques frontal do veículo MX (cfr. fls. 261) foi provocado pela roda da frente do ciclomotor (cfr. fls. 259 e 260) e é demonstrativo de um embate “excêntrico e frontal”, estando assim afastada qualquer outra possibilidade, nomeadamente a do embate lateral resultante do atravessamento inopinado do ciclomotor tal como defendido pela testemunha MM.
Já quanto à posição do corpo da vítima, após projeção na sequência do embate, a testemunha Prof. LL explicou que a mesma é demonstrativa de que a vítima estava em cima de um ciclomotor parado quando este foi embatido por um veículo automóvel em movimento (gravação áudio 17:29-17:55), o que, tal como referido pelo tribunal recorrido, “entronca com os depoimentos das testemunhas II – a qual atestou que a vítima reduziu a velocidade do ciclomotor – e FF – a qual afirmou que a vítima parou o ciclomotor” e contribui também para descredibilizar o depoimento da testemunha MM.
No que respeita à posição do MX após o embate, o tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos: “no que concerne aos croquis de fls. 225 a 227 e aos fotogramas juntos aos autos dos quais se extrai que a posição do MX após o embate seria perto do eixo da via, dentro da sua hemifaixa de rodagem importa esclarecer que para nós dos depoimentos das testemunhas FF, EE e JJ resultou claro que o arguido deslocou o seu veículo automóvel do primitivo local de estagnação do mesmo e como tal não contraria o raciocínio por nós acima expendido”.
Ouvidos os depoimentos das testemunhas FF (gravação áudio 30:11), EE (gravação áudio 16:25), JJ (gravação áudio 19:29) e KK  (gravação áudio 4:14, 5:45, 19:30 e 22:40) constatamos que não são totalmente coincidentes (nomeadamente quanto ao número de vezes que veículo MX foi movimentado pelo recorrente) mas deles resulta, de forma unânime, que, após o embate, o recorrente deslocou a sua viatura e que as fotografias, com as quais foram confrontadas, não reproduzem a posição do MX logo após o embate.
A este respeito também se pronunciou a testemunha Prof. LL que concluiu (quando confrontado com o relatório fotográfico de fls. 247 a 264) que as fotografias não reproduzem a posição do veículo MX após o embate, o qual tinha que estar à frente e não atrás da mancha (gravação áudio 23:43-24:14).
Não obsta ao exposto o depoimento da testemunha II que afirmou não se ter aproximado da estrada (“não me cheguei lá” – gravação áudio 12:15) e que, quanto à movimentação do MX, demonstrou não ter tido a perceção do que efetivamente ocorreu a tal respeito (à pergunta relativa aos comentários ouvidos no local respondeu “acho… não o deixaram mudar acho que não” – gravação áudio 12:17- 15:15) afigurando-se, por isso, lógico que o tribunal  a quo não tenha referido esta testemunha quando concluiu que “resultou claro que o arguido deslocou o seu veículo automóvel do primitivo local de estagnação do mesmo”.
Assim sendo, constatamos que o recorrente retirou cirurgicamente dos depoimentos das testemunhas por si mencionadas as expressões que entre elas não são totalmente coincidentes.
Todavia, as dissemelhanças entre tais depoimentos afiguram-se-nos perfeitamente compreensíveis atenta a dinâmica dos factos, a tensão provocada pela existência de um corpo inanimado junto à berma da estrada, a existência de vários focos de interesse (o corpo da vítima, o ciclomotor, o veículo MX e o condutor deste), tudo num circunstancialismo de grande perturbação e movimentação de várias pessoas (cidadãos que se encontravam próximos do local, equipa do INEM e agentes da autoridade).
Efetivamente, não tem de haver unanimidade absoluta e total no teor dos depoimentos para que o tribunal se convença da credibilidade dos mesmos que têm de ser analisados e valorados em conjugação com as demais provas produzidas, à luz das regras da experiência e do princípio da livre apreciação da prova.
O tribunal recorrido consagrou, a tal respeito, o seguinte: ”a testemunha JJ que também esteve no local referiu que o arguido moveu o seu veículo do sítio onde o mesmo terá ficado imobilizado após o embate (em consonância com a testemunha EE atestou que o veículo automóvel terá ficado cerca de 10-15 min no local onde se imobilizou após o embate, após os quais foi, então, movido pelo arguido a contragosto dos presentes). A testemunha KK asseverou, igualmente com veemência, que o veículo automóvel do arguido se encontrava 50/60 cm 60/70 cm dentro da hemi-faixa de rodagem do ciclomotor, que viu o MX fora de mão, e que aquele terá movido o veículo MX (...) No que concerne aos croquis de fls. 225 a 227 e aos fotogramas juntos aos autos dos quais se extrai que a posição do MX após o embate seria perto do eixo da via, dentro da sua hemifaixa de rodagem importa esclarecer que para nós dos depoimentos das testemunhas FF, EE e JJ resultou claro que o arguido deslocou o seu veículo automóvel do primitivo local de estagnação do mesmo e como tal não contraria o raciocínio por nós acima expendido”.
Em suma, o raciocínio constante da motivação da matéria de facto é demonstrativo de que o grau de credibilidade atribuído aos depoimentos das referidas testemunhas se mostra irrepreensivelmente conferido, de acordo com a perceção própria permitida pelo imediatismo que acompanhou a produção daqueles meios de prova e com a articulação dos mesmos com ademais prova produzida (nomeadamente com os croquis de fls. 225 a 227 e com os fotogramas juntos aos autos), tudo articulado com as regras da experiência e com a normalidade do acontecer, pelo que, nesta parte, não encontramos qualquer anomalia na valoração judicial dos meios de prova em causa.
No caso vertente, o tribunal recorrido, na sua estrutura de fundamentação da decisão da matéria de facto, perscrutou, individualmente e em conjunto, todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento, tendo explicitado de forma razoável, lógica, racional e plausível as razões de ter dado (ou não) credibilidade a cada um deles e os motivos porque deu como provados os factos controvertidos, concluindo por uma versão dos factos que é altamente verosímil face aos elementos objetivos que resultam dos danos existentes nos veículos e demais vestígios deixados no local.
Da verificação de factos conhecidos (precisos, concordantes e incontroversos) e dos depoimentos das testemunhas que fundamentadamente considerou credíveis e concatenou entre si e com a prova documental junta aos autos, retirou ilações baseadas num juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado na lógica e em regras da experiência comum que permitiram reconstruir a dinâmica do acidente para além de toda a dúvida razoável, inexistindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente da que mereceu o acolhimento do tribunal a quo.
Assim, o recorrente não logrou demonstrar que a convicção do tribunal de 1ª instância sobre a veracidade dos factos provados acima descritos é inadmissível (não é sustentada em dados objetivos) ou que existem outras hipóteses dadas pelas provas tão ou mais plausíveis do que aquela adotada pelo tribunal recorrido.
Na verdade, o recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de 1ª instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente, que o tribunal explicou de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o recorrente adotou os comportamentos descritos na sentença recorrida, sendo da análise conjugada dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas e da prova documental disponível – mostrando-se, no essencial, os meios de prova coerentes e congruentes entre si – que retira a sua convicção.
O recorrente invocou ainda, no seu recurso, a violação do princípio in dubio pro reo (conclusão 22ª).
Tal princípio é aplicável na incerteza valorativa dos factos: constitui uma autêntica regra de decisão que opera quando, na mente do julgador e na fase de valoração da prova, surge uma dúvida – razoável, insuperável, positiva, invencível – em relação à verificação de facto.
No caso vertente, o julgador não se deparou (nem se devia ter deparado) com qualquer dúvida insanável sobre a verificação dos factos atenta a motivação acima transcrita e as considerações expendidas sobre a consistência e plausibilidade dessa motivação, pelo que não estamos perante qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Em suma, a 1ª instância decidiu bem a matéria factual impugnada. A sentença recorrida está bem fundamentada quanto à apreciação crítica que fez da prova produzida, pelas razões que evidenciámos, que soube conjugar de forma lógica e coerente, com observância das regras da experiência e da livre convicção, nos termos do art. 127. ° do C.P.Penal, além do mais de forma transparente, compreensível e convincente.
Nesta conformidade, a fundamentação não padece de qualquer erro de raciocínio ou de julgamento, e como tal não existe qualquer razão para alterar a matéria de facto provada nos pontos 9, 10, 13, 14, 16 a 19, 22 e 27.
Do que decorre a improcedência do recurso nesta parte. 
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1.2. Escolha da pena

O crime praticado pelo recorrente – crime de homicídio por negligência – é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (art. 137º, nº 1 do C.Penal).
O recorrente foi condenado pelo tribunal recorrido na pena de um ano e um mês de prisão.
No caso em apreciação, o recorrente insurge-se contra a opção pela pena de prisão pois considera que ”o cumprimento das exigências de prevenção, em qualquer uma das suas vertentes, se compadece com a opção pela aplicação ao arguido de uma pena não privativa da liberdade, ou seja, de uma pena de multa de 200 (duzentos) dias à taxa diária de 5,00€”.
Vejamos se lhe assiste razão.
O critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C.Penal nos termos do qual, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Nos termos do art. 40º do C.Penal, essas finalidades reconduzem-se à proteção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade.
A proteção dos bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, ou seja, na utilização da pena como instrumento para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração), atendendo-se sobretudo ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, como a frequência e o espaço em que o mesmo ocorre e o alarme que está a provocar na comunidade. Já a prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos.
Por seu lado, a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, reporta-se à chamada prevenção especial, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes, pretendendo-se obter a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa), atendendo-se a diversas variáveis como por exemplo a conduta, a idade, a vida familiar e profissional e os antecedentes do agente.
Como ensina Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, págs. 331 a 333), “… são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação. Bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena. (…). Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta conta a pena de prisão. E prevalência, anote-se a dois níveis diferentes: Em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas (…) Em segundo lugar, sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição … são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser eleita”.
Acrescenta que a prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição “deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização”.
E conclui que “desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”.
Também Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal”, págs. 227) refere que “a escolha das penas é determinada apenas por considerações de natureza preventiva, uma vez que as “finalidades da punição” são exclusivamente preventivas (…). O tribunal deve, pois, ponderar, apenas as necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto suscite (…). A articulação entre estas necessidades deve ser feita do seguinte modo: em princípio, o tribunal deve optar pela pena alternativa ou de substituição mais conforme com as necessidades de prevenção especial de socialização, salvo se as necessidades de prevenção geral (rectius, a defesa da ordem jurídica) impuserem a aplicação da pena de prisão (…). Esta regra vale quer para a escolha entre penas alternativas quer para a escolha de penas substitutivas”.
É, pois, ponto assente que a escolha da pena depende unicamente de considerações de natureza preventiva, na sua dupla vertente positiva, geral (de integração: a proteção dos bens jurídicos) e especial (reintegração do agente na sociedade).
A culpa, enquanto limite da pena (art. 40º, nº 2 do C.Penal), apenas funciona ao nível da determinação da sua medida concreta, como prevê o art. 71º, nº 1 do C.Penal.
As exigências de prevenção geral, no crime de homicídio por negligência, são muito elevadas, atenta a elevada sinistralidade rodoviária nacional expressa num elevado número anual de vítimas mortais, e tornam premente a necessidade de os crimes rodoviários serem punidos com severidade, sobretudo aqueles que têm consequências mais gravosas para a vida e integridade física, pois que causam ainda maior inquietação no seio da comunidade que fica abalada de forma muito significativa quando a vida de um dos seus membros é retirada.
A vida humana é o bem essencial, o valor fundamental, inviolável na expressão constitucional (art. 24º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa) e este tipo de crimes põe em causa valores nucleares da sociedade.
No caso vertente, o tribunal recorrido optou pela pena de prisão por ter entendido que: “… as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir são elevadas (…), ainda que as necessidades de prevenção especial denotadas pelo arguido sejam baixas, transparecendo que durante toda a sua vida adoptou um modo de vida ordeiro e conforme ao direito, sendo o caso dos autos uma situação isolada - não apresenta qualquer averbamento no seu registo criminal apenas contraordenacional- não pode deixar de determinar a escolha por UMA PENA DE PRISÃO, porquanto a pena de multa não acautela as referidas exigências, ficando aquém do ponto comunitariamente suportável da tutela dos bens jurídicos em questão, isto é da integridade física e da vida humana”.
Apesar das medianas exigências de prevenção especial (necessidade de induzir o arguido a evitar a prática de futuros crimes e a adotar um comportamento correto), há que considerar, para além das elevadíssimas exigências de prevenção geral, a dimensão grave do próprio caso, sendo de concluir que a pena de multa não cumpre com as exigências legais dos fins da pena (concretamente de prevenção geral) pois fica aquém do ponto comunitariamente suportável da tutela do bem vida humana.
Como bem se diz no Acórdão do TRP de 14.04.2021, Proc. nº 6928/17.1T9VNG.P1: “nos homicídios negligentes estradais a intervenção dos Tribunais, no cenário de profunda crise ditado pela pesada sinistralidade rodoviária que atinge o país há muitas décadas, tem necessariamente de reafirmar o valor da vida humana, cuja protecção exige por definição, rigor e cuidado no ato de condução, como atitude promotora do respeito pela vida dos utentes da via (e da segurança rodoviária), cujas exigências de prevenção geral a pena de multa não tem capacidade para satisfazer, excepto em quadros de gravidade distintos, onde a dimensão da culpa é menor. Com efeito, a opção pela pena de multa justifica-se em situações distintas com culpa e “ilicitude” contidas: concretamente, quando ocorrem atenuantes especiais, ou nos casos em que se apura concurso de culpas e a culpa do arguido é menor na densidade causal sobre a produção do sinistro”[1].
O sentimento de confiança e segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais seria posto em causa caso um indivíduo com o comportamento do recorrente fosse condenado a uma pena que não fosse de prisão efetiva.
Em suma, torna-se imperiosa a opção pela pena de prisão, por só desse modo serem alcançadas, de forma adequada e suficiente, as finalidades de prevenção geral e de prevenção especial que se fazem sentir no caso em apreço, as quais já não encontram resposta adequada na aplicação da pena de multa.
Improcede, por isso, também quanto a este segmento, o recurso interposto.
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1.3. Medida da pena acessória

O recorrente sustenta que a pena acessória é excessiva devendo ser reduzida para um período de oito meses (conclusão 26ª).
Ao crime praticado pelo recorrente corresponde em abstrato, a aplicação da pena acessória, prescrita pelo art. 69º do C.Penal, de proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos.
Como resulta do nº 1 do art. 69º do C.Penal, esta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor depende da aplicação de uma pena principal, ou de uma pena de substituição, na sentença condenatória[2].
Esta pena acessória “desempenha uma função preventiva adjuvante da pena principal já que como salienta Figueiredo Dias a função preventiva não se esgota com a intimidação da generalidade mas se dirige também, ao menos em alguma medida à perigosidade do delinquente” (Acórdão deste TRG de 02.05.2023, Proc. nº 557/22.5GBAVV.G1[3]).
Como bem refere, o Acórdão do STJ de 15.12.2022, Proc. nº 38/18.1GEACB-A.C1-A.S1: “entre a doutrina, podemos afirmar que esta concreta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º do Código Penal, assume natureza (usando as palavras de Maria João Antunes) de uma “verdadeira pena”. Posição essa que é seguida pela maior parte, senão praticamente por toda a jurisprudência”.
O tribunal a quo entendeu que: “repristinadas todas as circunstâncias supra ponderadas para a determinação da medida concreta das penas principais, aqui igualmente valoradas, enformadas pelos factos e personalidade do arguido, entende-se que a fixação da pena acessória pelo período de 10 MESES se afigura adequada, sopesados os factores analisados supra para a pena principal”.
No que respeita à medida da pena principal ponderou: “as elevadíssimas necessidades de prevenção geral, na vertente positiva e negativa. O grau de ilicitude do facto é elevada. O modo de execução do crime foi circunstancial. A gravidade das suas consequências da conduta do arguido é capital, com o resultado morte de outra pessoa. O grau de violação dos deveres impostos ao arguido é a nosso ver elevado. A intensidade da negligência consciente, em face do exposto, é elevada. O arguido não denotou arrependimento ou empatia pela vítima e seus familiares ou sequer há notícia de ter diligenciado por ajuda à vítima, antes tendo pretendido acautelar-se a si e aos seus bens. Por outro lado, o arguido está social, familiar e profissionalmente inserido e apresenta uma situação económica estável. E não tem antecedentes criminais registados”.
Face ao exposto e no que diz respeito ao quantum da pena acessória aplicada ao recorrente, a fixação em 10 (dez) meses (no primeiro terço da moldura abstrata) não pode, de modo algum, ser considerada excessiva e desproporcional (responde às exigências de prevenção, sobretudo geral) até porque, para que a pena acessória de proibição de conduzir cumpra a finalidade preventiva tem de importar um qualquer sacrifício para o condenado e uma censura suficiente dos factos até porque as expectativas comunitárias não se compadecem com uma pena acessória simbólica, impondo-se, inclusive, que previna a reincidência do recorrente.
De todo o modo, pequenas divergências na fixação da pena concreta, absolutamente alheias a incorreções ou distorções no seu processo de aplicação legal não devem, em princípio, ser fundamento para a sua alteração pelo tribunal de recurso que, ao contrário do tribunal a quo, não beneficiou da imediação e oralidade que também são importantes nesta sede.
Em suma, a pena acessória aplicada ao recorrente corresponde a uma pena justa, adequada e proporcional à reposição da validade das normas infringidas e não ultrapassa a medida da culpa do recorrente, pelo que é de manter, improcedendo o recurso interposto na totalidade.
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2. Recurso da recorrente EMP01... – Companhia de Seguros, SA

2.1. Indemnização atribuída a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima

A recorrente entende que o montante de € 8.000,00 atribuído a título de danos morais físicos e psicológicos sofridos pela vítima é excessivo e injustificado porque, logo após o embate, ficou inconsciente, praticamente não se apercebeu dos factos e não teve sofrimento físico ou psicológico (conclusões 5ª, 8ª e 9ª), devendo, assim, a indemnização ser reduzida ao montante de € 2.500,00 (“dado que foi por escassos segundos que se deparou com o acidente e a trágica consequência” - conclusão 10ª).

Na sentença recorrida foram fixados, a este título, os seguintes montantes indemnizatórios:
a) uma compensação pelo sofrimento da vítima antes de falecer de € 4.000,00;
b) uma compensação pela dor física sofrida pela vítima entre o momento do embate e o momento da morte de € 4.000,00.
No caso em apreço, decorre da matéria de facto provada (pontos 15, 23, 29) que:
- a vítima foi projetada pelo ar em mais de 10 metros;
- reconheceu, em dado momento, que ia ser violenta e letalmente atingido pelo MX e que já nada lhe era possível fazer naquela ocasião para evitar o acidente – situação trágica que o fez sofrer, sofrimento moral a que se juntou o sofrimento físico que as lesões corporais referidas lhe causaram até ao seu decesso;
- o embate ocorreu no dia 07.11.2021, pelas 13h30m, e a sua morte ocorreu nesse mesmo dia pelas 15h05m.
Perante tal factualidade, a sentença recorrida fixou uma indemnização pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o momento do embate e o momento da morte.
O dano intercalar, que medeia entre o momento em que ocorre o ato lesivo e a morte da vítima resultante do mesmo, abrange o sofrimento, designadamente pela perceção da eminência da própria morte e as dores físicas sentidas pela vítima durante o período em causa.
Quanto a este dano, atendível em termos compensatórios, os valores indemnizatórios devem ser calculados em função do caso concreto, ponderando, designadamente, a gravidade das lesões sofridas, a intensidade das dores sofridas, o período de tempo durante o qual as dores se prolongam e eventual pressentimento da morte (neste sentido, Acórdão do STJ de 21.03.2019, Proc. nº 20121/16.7T8PRT.P1.S1).
A compensação deve ser quantificada de acordo com juízos de equidade que não poderá (nem deve) desligar-se dos resultados que vêm fixados em casos semelhantes[4].
Considerando o que decorre da referida factualidade provada quanto à gravidade das lesões sofridas, à intensidade das dores e ao pressentimento da morte, entendemos não existir qualquer motivo para reduzir o montante de € 8.000,00, dado que o mesmo se mostra adequado e sustentado na perceção que a vítima teve da própria morte (a qual ocorreu cerca de uma hora e meia após o embate), não estando a argumentação do recorrente sustentada na factualidade provada pois aí não consta que a vítima tenha ficado inconsciente e não se tenha apercebido do sucedido.
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2.2. Indemnização atribuída à demandante BB a título de dano patrimonial futuro
A recorrente entende que o montante de € 120.000,00 atribuído à demandante BB a título de dano patrimonial futuro é injustificado (conclusões 12ª a 19º), devendo a indemnização ser reduzida ao montante de € 50.000,00 (conclusão 20ª).
Por conseguinte, não se discute, nos autos, a existência e o direito ao ressarcimento sobre tal dano mas apenas a sua quantificação indemnizatória.
Na sentença recorrida considerou-se que: “a esperança média de vida dos homens em 2021 cifrava-se em 78 anos para os homens e 83 para as mulheres, tendo o de cujus à data do acidente 58 anos de idade e a viúva ora demandante 54. Era a vítima o único que exercia uma actividade laboral remunerada e garantia o sustento do agregado, constituído pela vítima e pela esposa, ora viúva. O montante comprovadamente auferido pela vítima era de cerca de 13.813,45 euros, e as despesas efectivamente suportadas pela demandante constam dos pontos 45 a 49, devendo ter-se em conta que as despesas com alimentação e com vestuário se reduziram por força do falecimento da vítima na proporção de metade. O valor indemnizatório por dano patrimonial futuro, sendo indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv. pelo que considerando o exposto, por apelo à equidade, considera-se adequado atribuir a título de dano patrimonial futuro a quantia de 120 mil euros à demandante BB”.
Mostrando-se assente a obrigação de indemnização, a concretização do valor da indemnização a arbitrar à lesada segue a regra geral constante do art. 562º do C.Civil, segundo o qual “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
O dever de indemnizar o dano causado – que pode ter natureza patrimonial (na forma de danos emergentes ou de lucros cessantes) ou não patrimonial consoante seja ou não suscetível de avaliação pecuniária – compreende o prejuízo causado diretamente aos lesados como os benefícios que eles deixaram de obter em consequência da lesão, podendo o tribunal atender aos danos patrimoniais futuros (sofridos por perdas ou privação de rendimentos/alimentos que beneficiavam em vida da vítima) desde que previsíveis.
A indemnização relativa a danos patrimoniais futuros, por a demandante BB ser mulher da vítima, decorre do dever de assistência que abrange a obrigação dos cônjuges prestarem alimentos e de contribuírem para os encargos normais da vida familiar, enquanto durar, pelo menos, a sociedade conjugal (cfr. art. 1672º, 1675º, 1676º, 2015º, e 2009º, nº. 1 al. a) do C.Civil).
O que está em causa é a compensação (através de um juízo assente na equidade) da demandante BB de por ter deixado de usufruir, por via da morte do obrigado a alimentos, do contributo que ele prestava e presumivelmente continuaria a prestar para a economia do agregado familiar em que ambos se integravam.
O montante da indemnização medir-se-á pela diferença entre a situação (real) em que o lesado se encontra e a situação (hipotética) em que se encontraria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano (nº 2 do artº 566º do C.Civil que consagra a chamada teoria da diferença).
São conhecidas as dificuldades que existem em tal domínio (de cálculo do montante indemnizatório), devido à ausência de regras legais que enunciem objetivamente os critérios (legais) a seguir, e daí que em tais situações, e particularmente naquelas em que não possa ser averiguado o valor exato dos danos a lei mande julgar à luz da equidade, embora sem deixar de ter em conta critérios de verosimilhança e/ou de probabilidade à luz de cada caso concreto. (art. 566º, nº 3 do C.Civil).
Constitui hoje entendimento preponderante nos tribunais superiores que a indemnização pela frustração dos alimentos (enquanto dano futuro) deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não receberá do falecido e que se extingue, no caso do cônjuge, no termo do período que, provavelmente, viveria, não fora o acidente que o vitimou.
Também constitui entendimento dominante que no cálculo do capital produtor do rendimento, relativo a esse específico dano, deve atender-se, por um lado, ao período da esperança média de vida da vítima prestadora de alimentos, quer daquele que deles beneficiava, e, por outro, lado à medida da contribuição da vítima para as despesas da economia do agregado familiar, sendo que, na falta de elementos concretos, se vem presumindo/ficcionando, em termos de equidade, que essa medida se traduz em 2/3 do rendimento anual por si auferido (correspondendo o outro 1/3 àquilo que, igualmente em termos de presunção/ficção, à luz da equidade, gastaria consigo própria, isto é, em despesas pessoais) - nesse sentido, entre outros, Acórdão do STJ de 29.09.2022, Proc. nº 253/17.5T8PRT-A.P1.S1 e Acórdão do STJ de 03.03.2021, Proc. nº 3710/18.2T8FAR.E1.S.
No que respeita ao contributo económico da vítima para a economia do agregado familiar está demonstrado que todas as despesas do casal eram por ele suportadas uma vez que a BB não dispunha de rendimentos próprios (cfr. pontos 44 e 50 dos factos provados).
Na altura em que ocorreu o acidente e, em consequência deste, a morte do marido da demandante (segundo os danos estatísticos fornecidos pelo site do INE), a esperança média de vida do homem português rondava os 78 anos (mais concretamente 78,37) e a da mulher portuguesa rondava os 83 anos (mais concretamente 83,67).
Para a operação indemnizatória encontram-se consolidadas na jurisprudência as seguintes linhas orientadoras:
- A indemnização deve representar um capital produtor de um rendimento que se extinga no final do previsível lapso temporal por que perduraria o dever de alimentos a cargo da vítima;
- Ao rendimento líquido da vítima é de afetar cerca de 1/3 às suas despesas pessoais e o restante às despesas do agregado familiar;
- Pelo facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la de imediato, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem (numa percentagem que oscilaria entre os 10%, 20% ou 30% do capital antecipado ou entre 1/3 ou 1/4, tudo dependendo das situações casuísticas/concretas), sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia[5];
- O julgamento de equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não deve prescindir da expectativa média de vida, do período de vida ativa (em regra, até aos 70 anos), da evolução dos salários e das despesas alimentares.
Na determinação concreta do quantum indemnizatório a atribuir à demandante BB pelo dano patrimonial que sofreu com a morte daquele seu familiar há que atender, nomeadamente, a que:
- a vítima tinha 58 anos de idade e a demandante 54 anos de idade;
- a vítima auferia anualmente € 13.813,44.
Assim sendo, era expectável (à luz das regras da experiência da vida) que a demandante BB iria beneficiar do contributo pecuniário da vítima, para as despesas do agregado familiar até aos seus 78 anos de idade, ou seja, durante um período de mais 20 anos.
Sendo de ficcionar que 1/3 desse seu rendimento (€ 13.813,44:3= €4.600,48) era destinado à vítima, tomando por base tais elementos (€ 9.212,96x20=€ 184.259,20) conclui-se que a ficcionada perda de alimentos ao fim de 20 anos importaria o valor total de € 184.200,00 (por arredondamento).
No entanto, esta importância não é vinculativa e impõe-se o seu ajustamento nomeadamente porque se verifica uma antecipação de capital (a demandante vai receber de uma só vez o que receberia ao longo de 20 anos) que a demandante poderá de imediato aplicar e fazer render.
Na sequência do exposto, atentando na factualidade apurada e sem esquecer que o recurso a quaisquer fórmulas é meramente adjuvante e que o julgador deve considerar o critério do nº 3 do art. 566º do C.Civil, com a correção do valor assim obtido segundo juízos de equidade, é de considerar prudente e ajustada, tendo em conta a finalidade da indemnização e o juízo concreto de equidade (com o qual se concorda), a indemnização fixada pelo tribunal recorrido pelo dano decorrente da perda de alimentos para a demandante BB.
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IV- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, após conferência, em negar provimento aos recursos interpostos por AA – Companhia de Seguros, SA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 4 UCS (art. 513º, nº 1 do C.P.Penal e art. 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III).
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Guimarães, 5 de novembro 2024

Luísa Oliveira Alvoeiro (Juíza Desembargadora Relatora)
Carlos da Cunha Coutinho (Juiz Desembargador Adjunto)
Paulo Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)


[1] Também neste sentido Acórdão do TRL de 22.02.2023, Proc. nº 338/20.0GLSNT.L1-5.
[2] A lei penal fundamental prevê penas principais (a pena de prisão e a pena de multa), penas de substituição (aquelas que vão sendo previstas para substituir ou ser aplicadas em vez das penas principais, verificados determinados pressupostos) e penas acessórias (penas adjuvantes das penas principais).
[3] Também neste sentido Acórdão deste TRG de 07.05.2024, Proc. nº 488/21.6GCBRG.G1.
[4]Como se afirma no Acórdão do STJ de 11.02.2021, Proc. nº 625/18.8T8AGH.L1.S1 “como já se decidiu em muitos outros acórdãos relatados pelo ora relator e com intervenção do mesmo coletivo, assim como em numerosíssimos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, não se mostra fácil a quantificação nem sequer a justificação do valor das indemnizações, designadamente em casos de morte do sinistrado, de modo que deve servir de apoio o que tenha sido decidido de forma consistente noutros arestos semelhantes”.
[5] No entanto, tal como se considerou no Acórdão do STJ de 19.4.2018, Proc. nº 196/11.6TCGMR.G2.S1, “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva atualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzida (…), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento.”.