Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
282/18.1T8VPA.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
DIREITO DE PROPRIEDADE
INDEMNIZAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Na fundamentação da matéria de facto, para além de especificar os meios de prova que foram decisivos para a convicção do julgador, o tribunal tem de proceder à análise crítica das provas, ou seja, tem de explicar as razões que foram decisivas para a resposta dada à matéria de facto (provada e não provada).
II- O Tribunal da Relação, ao analisar a matéria de facto impugnada pelo Recorrente, realiza sobre a mesma um novo julgamento, com a reapreciação dos elementos probatórios que se mostrem acessíveis, e com base nos quais forma a sua própria convicção, de uma forma autónoma, baseado apenas na sua livre apreciação, tal como foi feito no tribunal recorrido. Mantêm-se, no entanto, em vigor nesse novo julgamento, os princípios da imediação, da oralidade, e da concentração, pelo que, perante depoimentos contraditórios, ou perante a fragilidade da prova, o uso pela Relação dos poderes/deveres de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
III- Na impugnação da matéria de facto deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida.
IV- Na cumulação de pedidos a cumulação é real quando se formula mais do que um pedido de caráter substancial, isto é, mais do que um pedido a respeito de relação jurídica material ou substancial; a cumulação é aparente quando a multiplicidade de pedidos é de caráter processual, ou seja, quando o pedido é um só sob o ponto de vista substancial porque fundado numa única relação jurídica, mas se indicam as várias operações ou as várias espécies de atividade que o tribunal tem de desenvolver para atingir o fim último da ação.
V- À luz do art.º 1366º nº1 do CC, não existe qualquer impedimento a que a ré tenha plantado no seu terreno (ou alguém anteriormente a ela) as árvores ali existentes, junto à estrema do mesmo, assim como não assiste ao A o direito de as mandar abater, a não ser exercendo o seu direito, como proprietário do prédio vizinho, de cortar os ramos dos pinheiros que sobre ele propenderem (contanto que não ultrapasse a linha perpendicular divisória de ambos os prédios), se os RR, interpelados judicial ou extrajudicialmente para o efeito, o não fizerem dentro de três dias.
VI- À luz do mesmo preceito legal não assiste também ao A qualquer direito a indemnização pelos alegados danos sofridos com a invasão dos ramos sobre a sua propriedade.
VII- A questão do “Abuso de direito” é de conhecimento oficioso, mas a sua apreciação pressupõe que tenham sido alegados e provados os competentes pressupostos legais.
VIII- Não é abusivo o exercício do direito pelos RR, de manterem as árvores (pinheiros) plantadas junto à estrema do seu prédio, as quais lançam sobre o quintal do prédio do A caruma, e projetam sombra sobre o mesmo nas primeiras horas da manhã.
IX- Pode o A convocar em defesa da sua pretensão normas legais, destinadas essencialmente a defender interesses públicos, mas também interesses particulares, alegadamente como normas restritivas ao direito de plantação de árvores no terreno da ré.
X- A legislação sobre a proteção e defesa da floresta contra incêndios - DL n.º 124/2006, de 28 de Junho (aplicável ainda ao caso dos autos) -, contém procedimentos a seguir pelos lesados com o seu incumprimento, cujo processo deve ser seguido junto das respetivas Câmaras municipais, não sendo a via judicial a adequada para o efeito.
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

F. M., residente no Bairro ... nº .., no lugar de ..., freguesia de ..., concelho e comarca de Vila Pouca de Aguiar, e com residência também na Rue … nº … Luxemburgo, intentou a presente ação de processo comum contra M. A., casada com J. F. (cuja identificação foi retificada na sentença de habilitação de herdeiros de 28.3.2022), residentes na Rua …, Vila Nova de Gaia, peticionando a condenação dos Réus:

“a) A reconhecer o A. como legítimo e exclusivo proprietário do prédio urbano identificado em 1º e ss. da P.I.;
b) A reconhecerem que os pinheiros, propriedade dos RR, invadem parcialmente o prédio do A., na forma e dimensão descritas nos artigos 12º a 19º da presente P.I. e que existe risco iminente de incêndio;
c) Condenar-se os RR a proceder ao corte dos referidos pinheiros pelas razões descritas na presente P.I, cumprindo a distância de segurança prevista legalmente à habitação do A; e
d) A indemnizar o A. pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais originados por tal invasão dos ramos, raízes, e ramos dos pinheiros, propriedade dos RR sobre o prédio do A., e pelo facto de aqueles não procederem ao corte e impedirem os AA. de o fazerem por sua iniciativa, e que vierem a ser liquidados em execução de sentença, mas nunca inferior a €1.500,00”.
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Alega para tanto e em síntese que é dono e legítimo proprietário de um prédio urbano composto de casa de habitação e quintal, sito no Bairro ... nº .., no lugar de ..., Freguesia de ..., Concelho de Vila Pouca de Aguiar, inscrito na matriz respetiva sob o art.º ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº .../20071214, por si adquirido (ainda como prédio rústico) no ano de 1997, o qual confina no lado norte com um prédio dos RR, constituído por um lote para construção, existindo a dividir os prédios um muro de pedra de granito, pertencente ao A.
Sucede que os RR plantaram no seu lote vários pinheiros resinosos junto à estrema do seu prédio, a escassos centímetros do muro e da habitação do A, não tendo observado, no entanto as exigências legais impostas para o plantio de tais árvores, nomeadamente no que concerne à distância que os mesmos deviam observar para o efeito, de acordo com o disposto no art.º 1366º nº 2 do CC e leis especiais respetivas, nomeadamente o disposto no DL nº 17/2009, de 14.1. e suas alterações.
Acrescenta que os referidos pinheiros põem seriamente em risco, quer a propriedade quer a segurança do A, que teme que eles possam cair e causar danos patrimoniais na sua habitação, assim como teme o risco iminente de incêndio e a sua própria segurança.
Acresce ainda que tais árvores invadem a sua propriedade, com a introdução na mesma de ramos, raízes e troncos, assim como ocupam toda a área do espaço aéreo sobrejacente ao seu prédio, deitando diretamente para o seu terreno e para o telhado da sua casa agulheta, o que demanda que seja necessário efetuar quinzenalmente a limpeza dos mesmos.
A existência de tais árvores afeta também de forma crescente as condições de habitabilidade e qualidade de vida do A, por diminuírem a captação direta de radiação solar no seu prédio, fazendo também muita sombra no mesmo.
Tudo isto tem causado ao A incómodos, arrelias e ansiedade permanente, que demandam reparação.
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A Ré M. A. deduziu contestação, impugnando os factos alegados pelo Autor, dizendo ainda que o seu lote, com a área de 1.520 m2 está demarcado pelo lado sul pelo prédio do A, pelo lado norte pelo prédio urbano pertencente a A. C., pelo lado nascente pela estrada florestal, e pelo lado poente pela estrada municipal, pelo que não se trata, nem de um espaço florestal, nem de um terreno agrícola, para efeitos de aplicação do disposto no DL nº 124/2006 de 26.6.
Acrescenta ainda que tais árvores, que descreve, nasceram naturalmente no aludido lote há mais de 60 anos, cresceram naturalmente, e atingiram a idade adulta há sensivelmente 35 anos, já ali existindo quando o A construiu a sua casa de habitação, tendo à época a mesma altura que hoje apresentam.
Concluiu pela improcedência da ação.
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Tramitados regularmente os autos, foi proferida, a final, a seguinte decisão:

“Pelo supra exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:
A) Condenar a Ré (…) a reconhecer que o Autor (…) titula o direito de propriedade com referência ao prédio urbano descrito em 1) dos factos provados;
B) Absolver a Ré (…) do demais peticionado;
C) Condenar a Ré (…) e o Autor (…) no pagamento das custas processuais em função do respetivo decaimento, fixando-se a quota-parte da Ré em 19/20 avos e a do Autor em 1/20 avos…”.
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A ré M. A. faleceu após a prolação da decisão, mas antes de a mesma ter transitado em julgado, tendo sido habilitados na ação, para nela prosseguirem na qualidade de RR, o seu marido, J. F., e os seus três filhos, H. M., F. C., e L. C..
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio o A interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1- O Tribunal recorrido deu como não provados os factos vertidos nos pontos 16, 17, 18, 19 e 21º dos factos não provados.
2- Tais factos estão, salvo o devido respeito, incorrectamente julgados, dado que, a prova produzida nos autos impunha decisão diversa da recorrida, conforme adiante se vai demonstrar, incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento.
3- Da prova produzida nos autos, nomeadamente, da prova testemunhal, dos documentos e relatório pericial resulta evidente que, os pinheiros dos RR., invadem o espaço aéreo do prédio do A., que os ramos e galhas das árvores caem no logradouro e telhado do prédio do A., e que o Autor, por via disso necessita de proceder à limpeza quinzenal do prédio, o que lhe tem trazido ansiedade permanente e tristeza.
4- É entendimento do A., salvo devido respeito e melhor opinião, que tal factualidade dada como não provada nos pontos 16, 17, 18, 19 e 21, deve ser dada como provada.
5- A prova testemunhal e o relatório pericial, contrariam cabalmente esta matéria dada como não provada, referindo a testemunha P. M., de forma categórica, que os ramos, agulheta caem para o prédio do A, e que há risco de incêndio, que é necessário proceder á limpeza, e que viu o A., as terceiras pessoas a mando deste, procederem á limpeza, e ainda, que o A., tem estado muito preocupado e ansioso com medo do que venha a suceder.
6- Não entende o ora apelante, como pode o Meritíssimo Juiz a quo, ter dado como não provados os factos supra mencionados, quando quer da prova testemunhal quer da prova documental junta aos autos, resulta clarividente a matéria factual dada como não provada.
7- Do relatório pericial, nomeadamente, da resposta ao quesito 22) apresentado pelo A., resultam danos patrimoniais e não patrimoniais ao A., referindo o Sr. Perito que as árvores provocam diminuição da captação directa da radiação solar, e consequentemente, sombreamento do prédio do A.
8- Na resposta ao quesito 21º, 28º, 29º e 30º apresentado pelos RR., o Sr. Perito respondeu que não existe risco eminente de queda destas árvores, mas que não se pode excluir essa possibilidade. Em caso de queda podem atingir a casa do autor.
9- Pelos motivos expostos, resultou demonstrada a factualidade dada como não provada pelo Tribunal a quo nos pontos 16, 17, 18, 19 e 21º, pelo que, no conjunto da prova e pelas regras da experiência comum, estes documentos e a prova testemunhal supra mencionada, servem para dar como provados tais factos, nos termos expostos e impugnados no presente recurso.
10- Esta interpretação dada pelo Tribunal a quo está eivada de qualquer fundamentação, pelo que, enferma a mesma de nulidade, salvo melhor opinião, na medida em que, o Tribunal, não especificou os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão a que chegou, e decidiu além do peticionado.
11- A fundamentação de facto não deve limitar-se à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo antes, revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo Juiz, ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto;
12- Quando se trata de meios de prova suscetíveis de avaliação subjetiva, como acontece com a prova testemunhal, é indispensável, para atingir tal objetivo de revelação das razões da decisão, que seja efetuada uma apreciação critica da prova, traduzida na indicação das razões porque se deu ou não valor probatório a determinados elementos de prova em prejuízo de outros, relativamente aos factos face aos quais essa apreciação é necessária.
13- O apelante não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por em seu entender consubstanciar uma menos correcta interpretação e aplicação do direito ao caso em apreço, como adiante se vai tentar demonstrar.
14- O Tribunal a quo, entendeu que naufragou a demonstração de que as raízes, os ramos, e os troncos das árvores ínsitas no prédio do R., tenham invadido o prédio do A.,
15- Salvo devido respeito, tal não é verdade, porquanto, foi dado como provado no ponto 10 da matéria dada como provada que as copas de pinheiros bravos propendem a mais de 15 metros de altura cerca de 1,50 metros para o espaço aéreo do quintal do prédio do A. e em 12 que a sexta árvore apresenta uma ligeira inclinação para o prédio do A., impondo-se a aplicação do preceituado no artigo 1366º/1 do Código Civil, dando como procedente o peticionado em b) e c) do petitório, bem como ficou demonstrado os danos patrimoniais e não patrimoniais com a prova testemunhal e relatório pericial.
16- O que faria, desde logo, ser dada a acção como totalmente procedente, o que se espera.

Termos em que, e nos melhores de direito (…), deve ser dado provimento ao presente recurso, e, por via disso, revogada a Douta Decisão, tudo com as legais consequências, devendo, a acção ser julgada totalmente procedente por provada…”.
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J. F., réu habilitado, apresentou Resposta ao recurso interposto pelo A, na qual pugna pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:

- A de saber se a decisão proferida é nula por alegada falta de fundamentação da matéria de facto;
- Se a matéria de facto deve ser alterada, nos termos pretendidos pelo recorrente; e
- Se mesmo perante a matéria de facto dada como provada deve ser alterada a decisão em conformidade com a mesma.
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:

“1. Pela ap. 5 de 2007/12/14, afigura-se registada a aquisição a favor de F. R. do prédio urbano composto por habitação e com quintal, sito em Bairro ..., ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o n.º .../20071214 e inscrito na matriz sob o artigo ....
2. Há mais de 20 anos que o Autor tem habitado a casa existente no prédio indicado em 1), cultivado o quintal do mesmo, nomeadamente, plantando macieiras e pereiras, plantando flores, sem interrupção temporal, à vista de toda a gente, na convicção de quem exerce um direito próprio e ignorando lesar quaisquer legítimos direitos de terceiros.
3. O prédio referido em 1) confina a norte com um “lote para construção” com cerca de 1.520 m2 sito em Bairro ..., ..., freguesia de ....
4. O prédio referenciado em 3) confronta a nordeste com A. C., a sudoeste com o prédio enunciado em 1), a sudeste pela estrada florestal e a noroeste pela estrada municipal.
5. Há mais de 20 anos que a Ré e antecessores têm procedido à limpeza do prédio descrito em 3) e 4) e à poda dos pinheiros existentes no mesmo à vista de toda a gente, na convicção de quem exerce um direito próprio e ignorando lesar quaisquer legítimos direitos de terceiros.
6. Na área de confinância dos prédios indicados em 1) e 3) existe um muro divisório implantado no prédio enunciado em 1), composto por alvenaria de granito, com uma largura de cerca de 0,25 m e a altura que varia entre 0,75 m e 1,90 m.
7. Num troço do sobredito muro, apoia uma estrutura composta por balaústres em granito com a altura de 0,75 m.
8. No prédio indicado em 3) e 4), junto ao muro referido em 6), estão implantados cinco pinheiros bravos, um pinheiro manso e uma pseudotsuga em “fila” no sentido noroeste/sudeste e numa faixa de terreno com 14 metros de comprimento e 5 metros de largura.
9. No sentido poente/nascente (para quem está de frente para o lote a partir da estrada municipal), a primeira árvore que se avista com referência às árvores referenciadas em 8) é um pinheiro bravo que se encontra implantado a 2,95 metros do antedito muro divisório e a 8 metros, na diagonal, da esquina norte/nascente da casa indicada em 1), a segunda árvore é um pinheiro bravo que se encontra implantado a 2,90 metros do muro divisório, a terceira árvore é um pinheiro bravo implantado a 1,40 metros do muro divisório, a quarta árvore é uma pseudotsuga e está implantada a 5,70 metros do muro divisório, a quinta árvore é um pinheiro manso e está implantado a 2,70 metros do muro divisório, a sexta árvore é um pinheiro bravo e está implantado a 3,40 metros do muro divisório e a sétima árvore é um pinheiro bravo e está implantado a 3,95 metros do muro divisório.
10. As preditas árvores têm uma altura que varia entre 17 metros e 18 metros, apresentam troncos quase direitos e rijos, que têm entre 35 a 60 centímetros de diâmetro, e estão desramados entre 5 a 10,50 metros acima do solo, sendo que as copas dos pinheiros bravos propendem a mais de 15 metros de altura cerca de 1,50 m para o espaço aéreo do quintal do prédio citado em 1).
11. As sobreditas árvores atingiram a idade adulta há 15/20 anos, encontram-se em bom estado sanitário e com vigor vegetativo.
12. A sexta árvore descrita em 9) apresenta uma ligeira inclinação para o prédio citado em 1).
13. Em consequência do referenciado em 9), caiem no logradouro do prédio mencionado em 1) agulhetas das anteditas arvores.
14. As árvores enunciadas em 9) provocam diminuição da captação direta da radiação solar e, consequentemente, sombreamento no quintal e na casa do prédio indicado em 1) às primeiras horas da manhã”.

E foram dados como não provados os seguintes:

“15. O limite do tronco da terceira árvore mencionada em 9) está situado a cerca de 30 cm do muro divisório e a cerca de 2 metros da habitação indicada em 1).
16. Os referidos pinheiros invadem toda a referida área do espaço aéreo sobrejacente ao prédio enunciado em 1).
17. Em consequência do referido em 9) e 15), caiem no logradouro e no telhado da habitação do prédio mencionado em 1) ramos ou galhas das anteditas arvores, o que pode provocar risco de incêndio.
18. As raízes das preditas árvores invadem o solo e subsolo do prédio enunciado em 1).
19. Em consequência do indicado em 13) e 17), o Autor necessita de proceder à limpeza quinzenal do prédio mencionado em 1).
20. As árvores descritas em 8) e 9) foram plantadas pela Ré.
21. Em consequência do referenciado em 8) a 19), o Autor sente ansiedade permanente e tristeza”.
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Da invocada nulidade da decisão:

Invoca o Recorrente a nulidade da decisão (nas conclusões 10,11e 12), com o fundamento de que “…o Tribunal não especificou os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão a que chegou, e decidiu além do peticionado”, acrescentando que “A fundamentação de facto não deve limitar-se à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo antes revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo Juiz, ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto; Quando se trata de meios de prova suscetíveis de avaliação subjetiva, como acontece com a prova testemunhal, é indispensável, para atingir tal objetivo de revelação das razões da decisão, que seja efetuada uma apreciação critica da prova, traduzida na indicação das razões porque se deu ou não valor probatório a determinados elementos de prova em prejuízo de outros, relativamente aos factos face aos quais essa apreciação é necessária”.
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Embora não se socorra de nenhum preceito legal para sustentar a sua pretensão, cremos que o recorrente faz apelo à nulidade prevista na alínea b) do art.º 615º do CPC - no qual se preceitua que “É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto (…) que justificam a decisão”.
Mas sem razão, como é bom de ver, pois a sentença recorrida não padece, de todo, de falta de fundamentação.
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Começamos por dizer que concordamos inteiramente com o A quando afirma que não basta ao tribunal indicar na sentença os meios de prova de que se serviu para dar determinada matéria de facto como provada; é necessário ainda que faça uma análise crítica dos mesmos, dando a conhecer às partes a razão da sua convicção, pois se é certo que o tribunal é livre na valoração das provas (daquelas que estão sujeitas à sua livre apreciação), não fica dispensado de expor, de uma forma racional e lógica, a razão pela qual valorou positivamente um determinado meio de prova e não outro; no fundo, por que razão se convenceu de uma determinada versão dos factos e não de outra.
Isso mesmo tem sido reiteradamente afirmado, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, de que “a decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, tem de proceder à análise crítica das provas. Isto significa que o juiz deve esclarecer quais as provas que o levaram a formar a sua convicção (…), mas deve ainda analisar criticamente as provas produzidas, explicando os motivos que o levaram a optar por uma determinada resposta…” (Ac. RL de 14-03-2013, disponível em www.dgsi.pt).
Para Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 653), “além do mínimo traduzido na menção especificada dos meios de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova”.
Também Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o novo Processo Civil, pág. 348) refere que “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”.
Outrossim Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, 2004, pág. 545, em anotação ao artigo 653º nº 2 do CPC anterior) escreveu que “… a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, provada e não provada, deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador – só assim se realizando verdadeiramente uma “análise critica das provas…” (no mesmo sentido se pronunciou o acórdão nº 55/85 do Tribunal Constitucional - BMJ 360 (Suplemento), pág. 195, citado por Lopes do Rego, na ob. e loc. citados).
Muito interessante se nos afigura a observação de Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2ª edição, pág. 660) ao especificar que “Quando a prova é gravada, a sua análise crítica constitui complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento”.
O Ac. desta RG de 02-11-2017 (disponível em www.dgsi.pt), citando Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655) estatuiu também que “livre apreciação da prova” não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto».
E citando Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325), esclarece-se no mesmo acórdão: «É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial, ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)»
Apelando mais uma vez à doutrina consagrada, Ana Luísa Geraldes (Impugnação e Reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 591) refere que «…o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância».
Finalmente, José Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 281), sintetiza que este esforço exigido ao Juiz, de fundamentação e de análise crítica da prova produzida, «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional».
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É de facto unânime a posição atual, quer da doutrina, quer da jurisprudência, no sentido de que é imperativo que o tribunal proceda a uma devida fundamentação da matéria de facto, fazendo a análise crítica das provas de que se serviu para alicerçar a sua convicção.
Mas como deixamos dito acima, a sentença recorrida não padece, de todo, de falta de fundamentação.
Como se pode constatar pela análise da mesma, na parte relativa à motivação, e na análise da prova testemunhal produzida – meio de prova que o recorrente enfatiza -, faz-se uma análise crítica da mesma nos termos que reproduzimos: “no que se refere à testemunha P. M., num primeiro plano de análise, efectivou declarações minimamente objetivadas, aduzindo a respectiva razão de ciência, a qual se prefigurou contextualmente sustentada relativamente ao prédio do Autor (…), procedendo a uma descrição historicamente sedimentada da mesma, v.g., aflorando a construção da casa, a existência de um quintal e a tipologia do muro divisório com referência ao terreno da Ré, curando-se de matéria admitida pela mesma (…). Concomitantemente, numa segunda vertente de aferição, relativamente às árvores existentes no terreno da Ré, a testemunha afigurou-se genérico, proclamatório e desprovido de concreção fática, limitando-se a enunciar que há ramos das mesmas que ocupam o terreno do Autor, o que se configura elidido pelo relatório pericial. Ademais, a testemunha indicou sumariamente que os ramos caem no terreno do Autor e que já o viu e igualmente três pessoas a procederem à limpeza do mesmo, porém, atascou-se num manto de generalidades, não aduzindo circunstâncias concatenadas e passíveis de sustentar a índole e periodicidade de tais ocorrências, sendo que não foram produzidas quaisquer outras provas suscetíveis de corroboram o propalado pelo autor…”
Como se vê, contrariamente ao aduzido pelo A, o tribunal recorrido não se limitou a indicar os meios de prova – nomeadamente a prova testemunhal –, em que se estribou para formar a sua convicção. Bem pelo contrário: além de identificar a testemunha em causa - P. M. -, fez uma análise crítica do seu depoimento, justificando o motivo da valoração do mesmo quanto à descrição do prédio do A e a sua confrontação com o prédio da ré - que considerou ser uma descrição historicamente sedimentada. O mesmo já não aconteceu no que respeita aos alegados danos provocados pelas árvores existentes no terreno da Ré, sobre o prédio do A, considerando o tribunal que o depoimento da testemunha se afigurou genérico, proclamatório e desprovido de concreção fática, considerando que a testemunha se limitou a enunciar que há ramos das mesmas que ocupam o terreno do Autor, o que se configurou elidido pelo relatório pericial (ao qual deu mais credibilidade). Concretizou ainda o tribunal que a testemunha indicou sumariamente que os ramos caíam no terreno do Autor, e que já o tinha visto, assim como a três pessoas a procederem à limpeza do mesmo. Porém, considerou o tribunal que a testemunha se atascou num manto de generalidades, não aduzindo circunstâncias concatenadas e passíveis de sustentar a índole e periodicidade de tais ocorrências.
Cremos, pois, que ficou bem expressa na motivação da matéria de facto, cujo trecho reproduzimos acima, a análise crítica do meio de prova em causa, sendo bem percetível objetivamente o iter cognitivo seguido pelo tribunal, que o levou a não valorar positivamente o depoimento da testemunha P. M., no que respeitou aos alegados danos que as árvores implantadas no prédio da ré causavam ao prédio do A.
Concluímos assim do exposto que o tribunal recorrido cumpriu o seu dever legal de fundamentação, e que essa fundamentação se apresenta, a nosso ver, consistente, bem perceptível e esclarecedora, donde não ocorrer a invocada nulidade da decisão por falta de fundamentação, como pretende o A.
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Da Impugnação da Matéria de facto:

Considera também o recorrente que foram incorrectamente dados como não provados os factos constantes dos pontos 16, 17, 18, 19 e 21 da matéria de facto.
Diz que tais factos foram incorretamente julgados “…dado que a prova produzida nos autos impunha decisão diversa da recorrida. Da prova produzida nos autos, nomeadamente, da prova testemunhal, dos documentos e relatório pericial resulta evidente que, os pinheiros dos RR., invadem o espaço aéreo do prédio do A., que os ramos e galhas das árvores caem no logradouro e telhado do prédio do A., e que o Autor, por via disso necessita de proceder à limpeza quinzenal do prédio, o que lhe tem trazido ansiedade permanente e tristeza. A prova testemunhal e o relatório pericial, contrariam cabalmente esta matéria dada como não provada, referindo a testemunha P. M., de forma categórica, que os ramos, agulheta caem para o prédio do A, e que há risco de incêndio, que é necessário proceder á limpeza, e que viu o A., as terceiras pessoas a mando deste, procederem á limpeza, e ainda, que o A., tem estado muito preocupado e ansioso com medo do que venha a suceder. Do relatório pericial, nomeadamente, da resposta ao quesito 22) apresentado pelo A., resultam danos patrimoniais e não patrimoniais ao A., referindo o Sr. Perito que as árvores provocam diminuição da captação directa da radiação solar, e consequentemente, sombreamento do prédio do A. Na resposta ao quesito 21º, 28º, 29º e 30º apresentado pelos RR., o Sr. Perito respondeu que não existe risco eminente de queda destas árvores, mas que não se pode excluir essa possibilidade. Em caso de queda podem atingir a casa do autor”.
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São os seguintes os artigos em questão (que o tribunal deu como “não provados”):

“16. Os referidos pinheiros invadem toda a referida área do espaço aéreo sobrejacente ao prédio enunciado em 1).
17. Em consequência do referido em 9) e 15), caiem no logradouro e no telhado da habitação do prédio mencionado em 1) ramos ou galhas das anteditas arvores, o que pode provocar risco de incêndio.
18. As raízes das preditas árvores invadem o solo e subsolo do prédio enunciado em 1).
19. Em consequência do indicado em 13) e 17), o Autor necessita de proceder à limpeza quinzenal do prédio mencionado em 1).
21. Em consequência do referenciado em 8) a 19), o Autor sente ansiedade permanente e tristeza”.
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Prende-se a discordância do recorrente basicamente com a posição do tribunal recorrido sobre os factos por si alegados na p.i., de que as árvores (essencialmente pinheiros) plantadas no terreno da ré – cujas características e local de implantação agora não contesta –, invadem o espaço aéreo do seu prédio, assim como as suas raízes invadem o solo e o subsolo do mesmo; que os ramos e galhas das árvores caem no logradouro e telhado do seu prédio; que o Autor, por via disso, necessita de proceder à limpeza quinzenal do mesmo; e que tudo isso lhe tem trazido ansiedade permanente e tristeza.
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Vejamos:

Relativamente ao facto descrito em 16) – que “Os referidos pinheiros invadem toda a referida área do espaço aéreo sobrejacente ao prédio enunciado em 1)”- a resposta de “não provado” dada àquele art.º é aceite genericamente pelo A/recorrente, ao aceitar como provado o facto descrito em 10) de que “As preditas árvores têm uma altura que varia entre 17 metros e 18 metros (…), sendo que as copas dos pinheiros bravos propendem a mais de 15 metros de altura cerca de 1,50 m para o espaço aéreo do quintal do prédio citado em 1)”.
Ou seja, é o próprio A que aceita que os pinheiros implantados no prédio da ré não invadem toda a área do espaço aéreo sobrejacente ao seu prédio, mas apenas 1,5 m do espaço aéreo do seu quintal.
Aliás, isso mesmo é por ele referido no corpo das suas alegações, ao mencionar que peticionou a condenação da ré (b) a reconhecer que os pinheiros, propriedade dos RR, invadem parcialmente o seu prédio, na forma e dimensão descritas nos artigos 12º a 19º da p.i. e que existe risco iminente de incêndio.
Não merce, por isso, apreciação, para além do que fica dito, a impugnação do ponto em questão.
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Relativamente aos factos descritos em 17 e 19), não acompanhamos a posição do A/recorrente, de que a prova produzida nos autos tenha sido suficientemente forte para dar como provado o por si alegado de que “caiem no logradouro e no telhado da habitação do seu prédio ramos ou galhas das anteditas arvores, o que pode provocar risco de incêndio; e que, “por causa dessa queda, o Autor necessita de proceder à limpeza quinzenal do seu prédio”.
Socorre-se o A das declarações prestadas pela testemunha P. M. para afirmar a veracidade de tais afirmações. Auditadas no entanto as mesmas delas pudemos apenas inferir que a testemunha se referiu sempre à queda de agulheta (vulgo caruma) que cai dos pinheiros e se deposita no solo e no telhado do prédio do A. - não à queda de ramos ou galhas.
Aliás, na sequência da pergunta que lhe foi feita pela ilustre mandatária do A: “A agulheta, ramos caem no terreno do Senhor F.?”, a testemunha respondeu, de forma lacónica: “Sim, também”. E novamente instado pela ilustre mandatária, agora especificamente sobre se “o Sr. F. costuma limpar essa agulheta? Já o vi lá?”, a testemunha respondeu: “Já, já. Já o vi lá a limpar as caleiras e também já vi outras pessoas. Quando não está cá também vi, não só ele, mas outras pessoas a limpar (…). Cada vez que vem cá limpa e num ano já vi pelo menos três vezes a ser limpo as caleiras e telhado”. Questionado novamente pela ilustre mandatária do A se “Ele quando não está cá, uma vez que vive no Luxemburgo (…) se ele manda limpar”, a testemunha respondeu que “Sim, como referi, já vi ele e três pessoas a limpar”.
Infere-se assim das respostas dadas pela testemunha (e também das perguntas que lhe foram formuladas pela ilustre mandatária do A), que a questão que se colocou sempre à testemunha foi sobre a queda de agulheta no terreno do A e sobre a limpeza da mesma - sem se especificar, no entanto, a frequência com que a limpeza era feita (quinzenalmente, na alegação do A).
Essa realidade é de resto confirmada pelo que ficou a constar do facto descrito em 13) da matéria de facto provada, de que “…caem no logradouro do prédio mencionado em 1) agulhetas das anteditas arvores” – o que é também consentâneo com as regras da experiência – de que pinheiros bravos, altos e frondosos como os que existem no terreno da ré deixem cair agulhetas da sua copa, vulgo caruma, a qual invade o solo, que por sua vez demanda limpeza, quando essa queda ocorre em cima de telhados, pátios e logradouros.
quanto à queda de ramos e galhas das aludidas árvores, a testemunha não se referiu à queda dos mesmos de forma específica (dizendo que sim à queda de ramos e agulhetas, de uma forma genérica e indiferenciada), o que nos permite concluir, como se fez na decisão recorrida, que relativamente a esta matéria o depoimento da testemunha foi muito lacónico e pouco circunstanciado, e daí o dar-se essa matéria como não provada.
E o mesmo se passou quanto ao risco de incêndio, que no facto 17) vem relacionado com a queda de ramos ou galhas, mas que à testemunha foi perguntado em sentido diferente pela ilustre mandatária do A: “Se houver algum incêndio a casa está em risco?” ao que a testemunha respondeu: “Sim se os pinheiros acabarem por cair em chamas podem danificar a casa”-, referindo-se a testemunha a um potencial incêndio no terreno da ré que levasse à queda dos pinheiros em chamas para cima da casa do A. Ou seja, a testemunha refere-se a uma situação hipotética, relacionada com um potencial incêndio, e com a queda das árvores, e não à queda de ramos e galhas em concreto dessas mesmas árvores no terreno do A que fossem suscetíveis, por elas apenas, de causar incêndio.
Essa mesma resposta foi dada também pelos srs. Peritos (no relatório pericial junto aos autos, no âmbito da perícia efetuada) – e também relacionada com a eventual queda das árvores -, de que não existe risco eminente de queda destas árvores (que apelidaram de árvores adultas, em bom estado sanitário e com vigor vegetativo), mas que não se pode excluir essa possibilidade, e que em caso de queda podem atingir a casa do autor. Mais uma vez responderam os srs. peritos à questão colocada (do risco da queda das árvores) como uma pergunta hipotética, pouco real, de forma também hipotética (embora não excludente), o que nunca poderia levar, como pretende o A/recorrente a dar como provado que a sua casa e o seu terreno está em risco de incêndio.
Quanto ao ponto 21, relacionado com o estado anímico do A, se o mesmo sente ansiedade permanente e tristeza, foi perguntado pela ilustre mandatária do A à testemunha P. M. se “o Sr. F. tem andado arreliado ou com medo que aconteça alguma coisa a si ou à sua família?”, ao que o mesmo respondeu: “Numa conversa que já tivemos sobre isso ele mostra-se bastante preocupado que aconteça alguma coisa quando não está cá e mesmo estando podemos, imaginando que ele está cá e que caia, há um vendaval ou assim, ele por acaso mostra-se bastante preocupado com essa situação”.
Consideramos a resposta dada pela testemunha muito vaga, incidente mais sobre a preocupação do A por não estar em casa permanentemente (devido a viver no estrangeiro), e mesmo estando cá, que haja uma queda das árvores, um vendaval ou algo do género, ou seja, que ocorra algum fenómeno natural anormal que lhe danifique a casa, e aos quais estão sujeitos, no fundo, todos os cidadãos em geral, sendo essa preocupação transversal a todos os moradores que vivam em zonas arborizadas.
Além disso, a testemunha referiu-se apenas ao estado de preocupação do A, que é muito diferente (e muito menos grave) do seu alegado estado de ansiedade permanente e tristeza - sentimentos aludidos no facto 21 -, esses já do foro da saúde física e mental das pessoas.
Consideramos por isso também aqui, como se fez no tribunal recorrido, que o depoimento da testemunha foi muito vago e pouco circunstanciado.
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Claro que retiramos a nossa convicção apenas do que ouvimos do depoimento da testemunha, ou seja, das suas palavras, e do seu tom de voz, que nos pareceram muito vagas e pouco convincentes.
Temos a dizer quanto a este ponto que seguimos a orientação doutrinária e jurisprudencial, cremos que unânime atualmente, de que o Tribunal da Relação, ao analisar a matéria de facto impugnada pelo Recorrente, realiza sobre a mesma um novo julgamento, com a reapreciação dos elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes), com base nos quais forma a sua própria convicção, de uma forma autónoma, baseado apenas na sua livre apreciação, tal como foi feito no tribunal recorrido (artºs 607º nº 5, 662º nº1 e 663º nº2 do CPC).
Importa porém não esquecer que se mantêm em vigor nesse novo julgamento – e nessa reapreciação dos elementos probatórios -, os princípios da imediação, da oralidade, e da concentração (princípios que pressupõem um contacto direto e imediato do tribunal com a prova, sobretudo com a prova testemunhal), e que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, donde, o uso pela Relação dos poderes/deveres de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto (previstos no art.º 662º nº1 do CPC) só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada (como fizemos), conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Como bem refere Ana Luísa Geraldes (Impugnação e Reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 609) “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
É esse também, cremos, o sentido a retirar da conjugação das normas ínsitas nos artºs 607º nº 5 e 663º nº 2 do CPC, ao determinar que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto…”
Ora, a nossa prudente convicção, perante a fragilidade da prova produzida, leva-nos a manter a decisão da primeira instância sobre aqueles pontos da matéria de facto impugnada pelo A/recorrente.
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Já relativamente ao ponto 18 - de que “as raízes das preditas árvores invadem o solo e subsolo do prédio enunciado em 1)”, nenhuma referência foi feita pela testemunha a essa matéria, nem foi também produzida qualquer prova nesse sentido. Aliás, a avaliação pericial certifica concludentemente que as raízes das árvores não invadem o prédio do Autor.
Sempre se dirá ainda que o próprio recorrente não alude de forma expressa a qualquer meio de prova, suscetível de dar como provado este concreto facto impugnado, como lhe impunha o disposto no art.º 640º nº 1, alínea b) do CPC.
Efetivamente, lê-se no art.º 640º, n 1 do C.P.C. que, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: “a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; e b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida”. Precisa-se ainda que, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados”, acresce àquele ónus do recorrente, “sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (art.º 640º, nº 2, al. a) citado).
Logo, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida. Estas exigências, nos dizeres de Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129) vêm na linha do reforço do ónus de alegação, por forma “a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo (Ac. desta RG de 02-11-2017, disponível em www.dgsi.pt).
Mas dever-se-á ir ainda mais longe, na ótica de alguma doutrina e jurisprudência: se o dever constitucional e processual civil impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha o mesmo dever ao recorrente, o qual, ao impugná-la, deve apresentar também a sua própria análise crítica. Ou seja, deverá ele apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as (…) localizando-as no processo, e (…) em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (Ac. da RP, de 17.03.2014, também disponível em www.dgsi.pt).
Ana Luísa Geraldes (Impugnação e Reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, p. 595) defende também que é irrecusável e imperativo que, “tal como se impõe que o tribunal faça a análise critica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve seguir semelhante metodologia”, não bastando nomeadamente para o efeito “reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos”.
Resumindo: ainda que com naturais oscilações - nomeadamente, entre a 2ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça - (muito bem sumariadas nos Acs. do STJ de 09.06.2016 e de 11.02.2016, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), vem sendo firmada orientação jurisprudencial no sentido de que não cumprindo o recorrente os ónus impostos pelo art.º 640º nº 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art.º 639º nº 3 do C.P.C. (Ac. da RG, de 19.06.2014); dever-se-á usar de maior rigor na apreciação do cumprimento do ónus previsto no nº 1 do art.º 640º (ónus primário ou fundamental, de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus previsto no seu nº 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes - Ac. do STJ, de 29.10.2015).
Toda esta argumentação pretende apenas salientar o facto de que caberia ao recorrente indicar os meios de prova de que se serve para ver dado como provado o facto descrito em 18), o que não fez, pelo que não se conhece da impugnação quanto a esse facto, para além do que se disse logo de início quanto a esse ponto (decorrente da prova pericial).
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Concluímos assim de todo o exposto que a decisão da matéria de facto não merce ser alterada, sendo com base nela que se irá apreciar a questão de direito, que o recorrente também põe em causa.
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Da questão de direito:

Considera também o recorrente que a sentença recorrida efectuou uma menos correcta interpretação e aplicação do direito ao caso em apreço, porquanto entendeu que naufragou a demonstração de que as raízes, os ramos, e os troncos das árvores ínsitas no prédio do R tenham invadido o prédio do A, mas que tal não é verdade, porquanto foi dado como provado no ponto 10) da matéria provada que as copas dos pinheiros bravos propendem a mais de 15 metros de altura, cerca de 1,50 metros para o espaço aéreo do quintal do prédio do A, e em 12), que a sexta árvore apresenta uma ligeira inclinação para o seu prédio, impondo-se a aplicação do preceituado no artigo 1366º/1 do C.C., dando-se como procedente o peticionado em b) e c) do petitório.
Que ficou também demonstrada a existência de danos patrimoniais e não patrimoniais, o que faria ser dada a ação como totalmente procedente.
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Começamos por dizer que nas suas alegações de recurso o A inflete ligeiramente no pedido formulado relativamente ao por si alegado na p.i, ao invocar agora o disposto no art.º 1366º nº1 do CC e não o disposto no nº 2 daquele preceito, como o havia feito anteriormente, para ver dada como procedente a ação.
Pode tê-lo feito na sequência do que ficou a constar do final da decisão proferida (onde vem referido aquele enquadramento legal). Mas também é certo que em termos de ónus impostos ao recorrente quando o recurso verse sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) as normas jurídicas violadas, e o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas (art.º 639º nº 2 do CPC), e a essa luz, poderia ser entendido que o recorrente pretende ver agora efetuada por via de recurso uma subsunção jurídica dos factos provados àquele normativo (ao art.º 1366º nº1). Não se compreende no entanto a sua vinculação aos pedidos formulados nas alíneas b) e c) da p.i., continuando a pedir a condenação dos RR a proceder ao corte dos pinheiros pelas razões descritas na p.i., cumprindo a distância de segurança prevista legalmente à habitação do A. Ou seja, mantendo a mesma fundamentação jurídica (com o apelo ao disposto no nº 2 do art.º 1366º do CC).
Seja como for, e apesar de a lei impor aquele ónus ao recorrente, o tribunal não está vinculado às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º nº 3 do CPC), pelo que se fará a subsunção jurídica mais adequada à matéria de facto provada.
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Vejamos então se perante a matéria de facto dada como provada o A tem direito a ver satisfeitos os pedidos que enuncia nas alíneas b) e c) da p.i.
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A forma como o A. formulou os pedidos na ação merece-nos, desde logo, um prévio reparo.
O A peticionou na ação a condenação dos RR: a) A reconhecerem o A. como legítimo e exclusivo proprietário do prédio urbano identificado em 1º e ss. da P.I.; b) A reconhecerem que os pinheiros, propriedade dos RR., invadem parcialmente o prédio do A., na forma e dimensão descritas nos artigos 12º a 19º da presente P.I. e que existe risco iminente de incêndio; c) Condenar-se os RR. a proceder ao corte dos referidos pinheiros pelas razões descritas na presente P.I, cumprindo a distância de segurança prevista legalmente à habitação do A; e d) A indemnizar o A. pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais originados por tal invasão dos ramos, raízes, ramos dos pinheiros, propriedade dos RR., sobre o prédio do A., e pelo facto de aqueles não procederem ao corte e impedirem os AA. de o fazerem por sua iniciativa, e que vierem a ser liquidados em execução de sentença, mas nunca inferior a €1.500,00.
Trata-se, sem dúvida, de uma cumulação de pedidos feita pelo A.
Refere o art.º 555º nº 1 do CPC que “Pode o A deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação”. A cumulação de pedidos pressupõe que o A se propõe fazer valer simultaneamente contra o réu vários pedidos ou várias pretensões. Estamos perante uma simultaneidade ou multiplicidade de pretensões; o autor quer que o réu seja condenado a satisfazer, ao mesmo tempo, mais do que uma pretensão.
Mas não é esse o caso dos autos.
Embora a lei o não refira, cremos que têm aqui plena validade os ensinamentos de José Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º Coimbra Editora, Coimbra 1946, pag. 147 e 148, citando Paulo Cunha - Processo comum de declaração, 1º,2ª ed., pag. 208) de que se torna necessário distinguir a cumulação real de pedidos da cumulação aparente.
E explica aquele ilustre processualista que há cumulação real quando se formula mais do que um pedido de caráter substancial, isto é, mais do que um pedido a respeito de relação jurídica material ou substancial; e há cumulação aparente quando a multiplicidade de pedidos é de caráter processual, esclarecendo que a acumulação é real quando os pedidos se fundam em relações jurídicas distintas sob o ponto de vista substancial (por exemplo, contrato de empréstimo e contrato de compra e venda); e é aparente quando o pedido é um só sob o ponto de vista substancial porque fundado numa única relação jurídica, mas se indicam as duas operações ou as duas espécies de atividade que o tribunal tem de desenvolver para atingir o fim último da ação. E cita (entre outros) o exemplo da ação de reivindicação, na qual o A pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um determinado prédio de que o réu tem a posse, e pede a sua condenação a entregar-lho. Aqui a acumulação é aparente, porque sob o ponto de vista substancial o pedido é um só. A ação de reivindicação é uma ação de condenação, mas toda a condenação pressupõe uma apreciação prévia, de natureza declarativa. De maneira que ao pedir-se o reconhecimento do direito de propriedade (efeito declarativo) e a condenação na entrega (efeito executivo) não se formulam dois pedidos substancialmente distintos; unicamente se indicam as duas espécies de atividade que o tribunal tem de desenvolver para atingir o fim último da ação.
A cumulação real de pedidos implica acumulação de ações ou de pretensões; ora, quando se pede a declaração do direito e a consequente condenação do réu não se acumulam duas ações; a ação é uma só; simplesmente ao proferir a sentença o juiz começa por exercer uma atividade declarativa e acaba por emitir uma providência condenatória.
Para se ter como certo que no caso apontado - da Ação de Reivindicação - a cumulação de pedidos é aparente, diz José Alberto dos Reis (ob. e local citados) que basta considerar que o autor conseguiria precisamente o mesmo resultado se houvesse formulado um único pedido. Imagine-se que o A tendo alegado o seu direito de propriedade sobre o prédio se limitava a pedir que o réu fosse condenado a entregar-lho. As coisas passar-se-iam exatamente da mesma maneira: o tribunal, para proferir a condenação pedida teria necessariamente de apreciar se o direito de propriedade pertencia ao A (o mesmo se passa, segundo aquele autor, nos pedidos de custas e no de litigância de má-fé).
Ora, olhando nessa perspetiva para os vários pedidos formulados pelo A, em bom rigor só existe a cumulação real de dois pedidos, os da alínea c) e d): a condenação da ré a proceder ao corte dos referidos pinheiros; e a condenação da mesma a indemnizar o A pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, e que vierem a ser liquidados em execução de sentença. Os pedidos formulados nas alíneas a) e b) – “A reconhecer o A. como legítimo e exclusivo proprietário do prédio urbano identificado em 1º e ss. da P.I.” e “A reconhecer que os pinheiros, propriedade da R, invadem parcialmente o prédio do A., na forma e dimensão descritas nos artigos 12º a 19º da P.I. e que existe risco iminente de incêndio” - são pedidos meramente aparentes, no sentido de que apenas se destinam a indicar ao tribunal as duas operações ou as duas espécies de atividade que o tribunal tem de desenvolver para atingir o fim último da ação – que é a condenação da ré a proceder ao corte dos pinheiros e a indemnizá-lo pelos prejuízos sofridos.
Limitar-nos-emos então a apreciar os pedidos formulados pelo A nas alíneas c) e d).
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Alega o A. na p.i para justificar os pedidos formulados que o seu prédio confina no lado norte com um prédio dos RR, constituído por um lote para construção, existindo a dividir ambos os prédios um muro de pedra de granito, pertencente ao A, acrescentando que os RR plantaram no seu lote vários pinheiros resinosos junto à estrema do seu prédio, a escassos centímetros do muro e da habitação do A, não tendo observado no entanto as exigências legais impostas para o plantio de tais árvores, nomeadamente no que concerne à distância que os mesmos deviam observar para o efeito, de acordo com o disposto no artº 1366º nº 2 do CC e leis especiais respetivas, nomeadamente o disposto no DL nº 17/2009, de 14.1. e suas alterações.
Acrescenta depois que os referidos pinheiros põem seriamente em risco, quer a propriedade, quer a segurança do A, pois teme que eles possam cair e causar danos patrimoniais na sua habitação, assim como teme o risco iminente de incêndio e a sua própria segurança.
Mais alega que tais árvores invadem a sua propriedade, com a introdução na mesma dos seus ramos, raízes e troncos, assim como toda a área do espaço aéreo sobrejacente ao mesmo prédio, com a queda direta para o solo de agulheta, ramos e galhas, quer no telhado da casa de habitação, quer no quintal, originando que seja necessário efetuar quinzenalmente a limpeza dos mesmos, e que a existência de tais árvores afeta também de forma crescente as sua condições de habitabilidade e qualidade de vida, por diminuírem a captação direta de radiação solar, fazendo sombra no seu prédio.
E que tudo isto lhe tem causado incómodos, arrelias e ansiedade permanente.
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Com utilidade para a pretensão do A ficou apenas provado nos autos que as copas de pinheiros bravos propendem a cerca de 1,50 metros para o espaço aéreo do quintal do prédio do A; que a sexta árvore apresenta uma ligeira inclinação para o prédio do A; que caem no logradouro do prédio do A agulhetas das anteditas arvores; e que as árvores enunciadas provocam diminuição da captação direta da radiação solar e, consequentemente, sombreamento no quintal e na casa do prédio do A às primeiras horas da manhã.
Vejamos então se a matéria de facto provada é de molde a dar como procedente a pretensão deduzida na ação pelo A, e que se resume, no fundo, à condenação dos RR a abaterem as árvores plantadas no seu prédio.
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É inegável, face à matéria de facto provada, conjugada com o disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que o Autor é proprietário do prédio descrito nos pontos 1 e 2 da matéria de facto provada (como de resto tal lhe foi já reconhecido na 1ª instância), assim como a falecida ré era proprietária do prédio descrito nos pontos 3, 4 e 5 da mesma matéria de facto. Trata-se de prédios confinantes, com um muro de granito a dividi-los, sendo certo que o prédio do A é um prédio urbano, composto de casa de habitação e quintal, e o prédio da ré é um prédio rústico, composto por um lote destinado à construção, com cerca de 1.520 m2 de área.
E é com base nessa qualidade de proprietário pleno do seu prédio que o A. se arroga o direito de o usar plenamente, obrigando a ré a proceder ao corte dos pinheiros existentes no seu prédio, pelas razões descritas na p.i. (e que acima sumariamos), assim como a ré se recusa a fazê-lo, apelando ao mesmo direito pleno de propriedade sobre o seu prédio – o aludido lote de terreno, e sobre tudo o que nele tem implantado, incluindo as referidas árvores.
Movemo-nos aqui no domínio das regras dos direitos de propriedade, mais concretamente da propriedade de imóveis, e das regras relativas à plantação de árvores e arbustos, previstas nos artºs 1366º e ss. do CC, sendo à luz desses princípios e regras que deverão ser apreciados os direitos respetivos de ambas as partes.
Dispõe o art.º 1305.º do Código Civil, que “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”. Em se tratando de imóveis, o art.º 1344º define os seus limites materiais dizendo que “A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico”.
Como direito subjetivo que realiza a afetação jurídica plena das utilidades de uma coisa aos fins de uma pessoa, o direito de propriedade concede, pois, a globalidade dos poderes sobre a mesma, ou seja, na vertente positiva, os poderes de uso, fruição, disposição e transformação da coisa e, na vertente negativa, o ius excludendi, o poder de excluir os demais do seu gozo – por isso é que se trata de um direito exclusivo (Menezes Cordeiro -Direitos Reais, pág. 630).
Todavia, do teor do art.º 1305.º do Código Civil, decorre também que, não obstante gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, o proprietário está sujeito a limites e restrições no exercício de tais direitos, limites e restrições justificadas por razões de interesse público ou de interesse particular. Da análise da 2.ª parte deste preceito resulta claro o propósito do legislador em colocar as faculdades inerentes ao direito de propriedade dentro dos limites da lei, e com observância das restrições por ela impostas, o que se reconduz ao denominado conteúdo negativo do direito de propriedade, correspondente às posições jurídicas passivas através das quais o exercício da função conhece limitações e restrições (Rui Pinto e Cláudia Trindade, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 86).
Segundo aqueles autores, o referido conteúdo negativo do direito de propriedade comporta de facto um vasto universo de situações jurídicas de que o titular é sujeito passivo e que podem ser classificadas e separadas entre limitações e restrições ao direito real.
Assim, enquanto as limitações são exceções impostas à permissão normativa de afetação do bem de que beneficia o titular do direito real, podendo ser gerais ou especiais, consoante derivem de princípio gerais de direito ou de normas jurídicas expressas, as restrições são em regra permissões conferidas a terceiros em relação à mesma coisa/objeto da permissão de aproveitamento de que beneficia o titular do direito real, configurando exceções à regra geral de não interferência na afetação de uma coisa a outrem, própria da absolutidade do direito real. Corporizam-se, normalmente, em direitos daqueles terceiros (Rui Pinto e Cláudia Trindade, ob. cit., p. 89).
Entre as diversas restrições a que está sujeito o direito de propriedade encontram-se aquelas que se fundam na necessidade de prevenir e solucionar conflitos entre direitos. Como ensina J. Oliveira Ascensão (As Relações Jurídicas Reais, págs. 109 a 110) “Os conflitos de direitos são em qualquer caso redutíveis a conflitos de interesses. Mas constituem no seio destes uma categoria bem definida, caracterizada por o conflito derivar directamente do antagonismo de posições jurídicas em que os titulares foram investidos. Dá-se, por assim dizer, um conflito de segundo grau. Num primeiro momento, o direito terá atendido ao entrechocar de interesses que se opera na vida social para estabelecer a sua regulação. Fá-lo através da outorga de direitos e da imposição de deveres. Mas essas situações perceptivas, assim surgidas, podem ser por sua vez a causa de novos conflitos de interesses. E o Direito terá de proceder, acessoriamente, à sua regulamentação. Na verdade, se a Ordem Jurídica se limitasse a reconhecer direitos, sem cuidar da composição dos conflitos que a erupção desses direitos pode trazer, quando postos em contacto com os direitos já existentes, o resultado da intervenção da lei seria catastrófico. O conflito indiferenciado de interesses, anterior à repartição dos bens, seria substituído por um conflito muito mais exacerbado entre aqueles que se arrogassem direitos no todo ou em parte incompatíveis entre si. As afectações, formalmente reconhecidas por lei, seriam negadas na prática pela actuação lícita dos outros sujeitos (...). Por isso (...) o Direito não se limita à mera atribuição de bens. Acompanha esta do estabelecimento de relações adequadas a prevenir a eclosão de conflitos entre os sujeitos beneficiados”.
Ora, os conflitos entre direitos reais podem ser, seguindo a classificação adotada pelo autor citado (ob. cit., págs. 127 a 128): “…conflitos de vizinhança, derivados da característica espacial da vizinhança entre as coisas, objeto dos direitos em causa; conflitos de sobreposição, quando sobre o mesmo objeto sobrepõem-se uma propriedade e uma servidão, por exemplo; conflitos entre direitos a partes da coisa, que resultam de um parcelamento jurídico da coisa entre vários sujeitos (…). A vizinhança dos prédios cria uma situação de conflito de interesses entre os titulares respetivos (...). Se o proprietário pudesse fazer tudo o que lhe apetecesse in suo, desinteressando-se das consequências que isso traria à propriedade vizinha, isso equivaleria ao esvaziamento do direito alheio; mas se o proprietário tivesse de abster-se de toda a actividade que tivesse repercussões desfavoráveis sobre o prédio vizinho, então seria o seu próprio direito que se revelaria uma ilusão”.
Numa primeira abordagem da questão, interessam-nos particularmente as restrições ao direito de propriedade da ré, decorrentes da confinância do seu prédio com o prédio do A, que se traduzem nos conflitos de vizinhança a que se refere o Ilustre Professor. Prédios vizinhos são, desde logo, aqueles que são contíguos (José Alberto González, Restrições de Vizinhança (de interesse particular), pág. 44), como são os prédios dos autos.
Ora, o art.º 1366.º n.º 1 do Código Civil regula uma restrição especial derivada da relação de vizinhança entre prédios, ao determinar que “É lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios; mas ao dono do prédio vizinho é permitido arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele propenderem, se o dono da árvore, sendo rogado judicialmente ou extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias”.
O preceito transcrito mantém o regime que já constava do art.º 2317.º do Código de Seabra, no qual se dispunha que “Será lícita a plantação de árvores ou arbustos a qualquer distância, que separar do prédio vizinho aquêle em que a plantação fôr feita; mas o dono do prédio vizinho poderá arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno, e os ramos que sobre êle propenderem, contanto que não ultrapasse, arrancando e cortando essas raízes ou ramos, a linha perpendicular divisória, e se o dono da árvore, sendo rogado, o não tiver feito dentro de três dias”.
Sobre o regime consagrado naquele preceito legal escrevia Cunha Gonçalves (Tratado de Direito Civil, Volume XII, Coimbra, 1937, págs. 50 a 52) o seguinte: “O direito romano estabelecia que as árvores só podem ser plantadas a certa distância da linha divisória do prédio vizinho, distância que era de nove pés para as oliveiras e figueiras e cinco pés para as outras. Estes preceitos eram baseados na longa experiência de que a sombra das árvores é nociva à vida das plantas de menor porte, sobretudo aos cereais, às hortaliças e às fruteiras (…). Além disso, as raízes, penetrando no prédio vizinho, prejudicam as culturas e as nascentes de águas. As raízes das oliveiras, que se estendem horizontalmente, chegam a dez metros de distância. As dos eucaliptos são fortes sugadoras da água do subsolo. Por isso, o direito romano dispunha, também, que nenhuma árvore deve ser plantada a menos de dez pés de aqueduto alheio. Os praxistas ensinavam sem hesitar a doutrina romana, que foi adoptada em vários Códigos estrangeiros (…) O nosso legislador, porém, permitindo a plantação a qualquer distância dessa linha, implicitamente admite que essa plantação se pode fazer, até, junto da mesma linha, por exemplo, é permitido ter uma parreira junto do muro divisório, plantar renques de limoeiros dos dois lados deste muro, e até plantas trepadeiras que, estendendo-se sobre arames fixados na crista dêsse muro, evitam o excessivo devassamento das casas pelos vizinhos. Como única defesa, o art.º 2317.º, na sua segunda parte, dispõe que «o dono do prédio vizinho poderá arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e os ramos que sobre ele propenderem, contanto que não ultrapasse, arrancando e cortando essas raízes e ramos, a linha perpendicular divisória». Êste direito pode ser exercido ainda que as raízes e os ramos pendidos nenhum prejuízo causem ao proprietário vizinho, porque o corte ou arranco dumas e doutros pode ser medida preventiva. Em todo caso, o proprietário vizinho não tem de apresentar outra justificação da sua pretensão, além do facto de terem as raízes ou ramos invadido o seu terreno ou o seu espaço superjacente”.
Ora, como explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, Coimbra editora, págs. 230 e 231), a redação do art.º 1366.º n.º 1 do Código Civil atual apenas efetua algumas alterações de forma ao art.º 2317.º do Código anterior, mantendo, no essencial o mesmo regime. Assim, segundo aqueles autores a lei “diz «até à linha divisória» e não «a qualquer distância da linha divisória», para mostrar que as árvores ou arbustos podem ser plantados mesmo contíguos à mesma, sem necessidade de qualquer interstício, encostados ao muro divisório, se o houver, ou até mesmo sobre todo o muro, no caso de este pertencer apenas a um dos proprietários”.
E justificam a solução legal referindo que “… qualquer solução restritiva do direito de propriedade podia trazer inconvenientes graves de ordem económica, designadamente nas regiões, como o Minho, onde a propriedade rústica se encontra muito dividida. Haja em vista, por exemplo, as plantações de videiras junto às estremas dos prédios. A possibilidade de corte dos ramos e das raízes que se introduzirem em terreno alheio, independentemente da prova de que estejam a causar prejuízo, pareceu ser medida suficiente para impedir a plantação de certas árvores em condições de causarem prejuízo. Trata-se de um caso de autotutela, embora sujeito a condição, que em regra chegará para solucionar os casos de conflitos mais vivos de interesses”.
Ora, à luz do que dispõe o preceito legal citado (art.º 1366º nº1 do CC), parece claro não existir qualquer impedimento a que a ré tenha plantado (ou alguém anteriormente a ela) as referidas árvores dentro do seu lote de terreno até à estrema do mesmo, assim como não assiste qualquer direito ao A de as mandar abater, a não ser exercendo o seu direito, como proprietário do prédio vizinho, de cortar os ramos dos pinheiros que sobre ele propenderem (contanto que não ultrapasse a linha perpendicular divisória de ambos os prédios), se os donos das árvores, interpelados judicial ou extrajudicialmente, o não fizerem dentro de três dias. Isto, quer relativamente às copas dos pinheiros bravos que propendem a cerca de 1,50 metros para o espaço aéreo do quintal do seu prédio, quer para a árvore (a sexta) que apresenta, segundo a matéria de facto provada, uma ligeira inclinação para o prédio do A (e que não ficou provado se a mesma invade ou não o espaço aéreo do prédio daquele).
Esse nos parece ser o único direito que assiste ao A relativamente à presença das árvores no prédio dos RR, face ao que se dispõe no nº1 do art.º 1366º do CC e face à matéria de facto provada.
Excluída fica também a possibilidade do A exigir que o corte seja feito pelo dono das árvores, uma vez que a regra consagrada no n.º 1 do art.º 1366.º (e que existia já no Código anterior) não lhe atribui tal direito (Ac. desta RG, de 22.03.2006, disponível em www.dgsi. pt.), o mesmo se passando com o direito à indemnização peticionada por eventuais danos sofridos (e que no caso dos autos nem sequer ficaram demonstrados).
Essa é também a opinião de Dias Ferreira (Código Civil Anotado, vol. III, pag. 25), ao referir que “…enquanto o tronco, ramos e raízes se encontram no prédio do dono das árvores, não responde este por qualquer prejuízo que eles venham a causar ao vizinho com a sombra que projectem ou com as folhas que vão cair sobre os telhados, já que quem exerce um direito não é responsável pelo seu normal exercício…”.
Isso mesmo defendem também Pires de Lima e Antunes Varela (ob e local citados), de que “Tal como já se entendia anteriormente, parece claro que o artigo 1366.º não atribui ao vizinho, prejudicado com as árvores, o direito de pedir uma indemnização ao dono delas (até porque o direito de corte ou de arranque não está dependente da existência do dano em concreto e pode, por conseguinte, ser exercido, em princípio, antes de tal dano se verificar), ou de obrigar este a fazer os cortes”.
Henrique Mesquita (Direitos Reais - Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, pág. 159), refere também que “Em face desta regulamentação parece seguro que o proprietário cujo prédio seja atingido por ramos ou raízes de árvores alheias não tem direito a indemnização pelos prejuízos que daí lhe advenham. Ele pode evitar tais prejuízos exercendo a faculdade que a lei lhe confere”.
Também na jurisprudência se formou uma corrente concordante com essa posição, considerando-se que o artigo 1366.º n.º 1 do Código Civil não atribui ao proprietário vizinho, prejudicado com as árvores, o direito de pedir uma indemnização ao dono delas. Assim, no Acórdão da Relação de Coimbra (de 6.07.1982: CJ, 1982, t. IV, pág. 33) refere-se que “Entre nós, na ausência de lei expressa, começou por seguir-se a orientação do direito romano - cfr., Coelho da Rocha, Instituições de Direito Civil Português, ed. 1844, II § 578.º, 393; Dias Ferreira, CC Anotado, 2.ª ed., IV, 255 - mas o Código de Seabra, no seu art. 2317.º, contrariamente ao que prescrevia no projecto primitivo, veio a consagrar o outro dos pontos de vista enunciados, instituindo o que Cunha Gonçalves, Tratado, XXI, I, 65, chamou de um caso de «justiça privada» e P. de Lima e A. Varela, CC Anotado, III, 210, vieram a apelidar de autotutela. E foi esta a orientação que permaneceu no vigente CC (…). Comparando este texto legal com o correspondente do Código de 1867 e tendo presentes as dúvidas de interpretação que este suscitara - necessidade de notificação judicial, possibilidade de o corte se estender ao tronco, etc. - julgamos seguro poder afirmar-se ser o transcrito preceito vigente interpretativo do anterior - cfr. P. de Lima e A. Varela, Anotado, III, 211: J. R. Bastos, «Direito das Coisas», II, 59. E bem se compreende que assim seja, até porque, como é sabido, os respectivos trabalhos preparatórios foram da autoria de P. de Lima - cfr. Boletim 123, 225 e segs. - e este ilustre civilista que, na sua docência não aduzira qualquer crítica à orientação adoptada pelo Código de Seabra - cfr. Lições de Direito Civil (Direitos Reais), 4.ª ed., 258 e segs., publicadas por D. A. Fernandes - veio inequivocamente a segui-la, como se alcança do respectivo articulado por ele proposto, o qual foi aceite nos ante projectos resultantes das duas revisões ministeriais e, por último, no texto vigente - cfr. os termos das fontes acabadas de citar em J. R. Bastos, ob. cit. 58-59. Do que se acaba de dizer resulta valerem sobre a interpretação do n.º 1 do art. 1366.º do C.C. os ensinamentos produzidos na doutrina e na jurisprudência face ao artigo 2317.º do Código de Seabra”. (no mesmo sentido se pronunciou também o Ac. RL, de 22.09.1992: CJ, 1992, t. IV, pág. 148).
Concluímos assim do exposto que perante o que se dispõe no nº1 do art.º 1366º do CC não assiste ao A o direito de mandar abater as árvores existentes no prédio dos RR, nem de ser indemnizado por eventuais prejuízos sofridos, uma vez que assistia à ré, face ao disposto no art.º 1366º nº1 do CC, o direito de as plantar no local onde elas se encontram.
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E nem pela via do instituto do Abuso do Direito consideramos que a pretensão do A teria acolhimento.
Ou seja, olhando para a matéria de facto provada – de que caem no logradouro do prédio do A agulhetas das anteditas arvores (vulgo caruma), e que as mesmas provocam diminuição da captação direta da radiação solar e, consequentemente, sombreamento no quintal e na casa do A às primeiras horas da manhã -, poder-se-ia ainda equacionar a hipótese de os RR estarem a exercer o seu direito de forma abusiva e, portanto, ilegítima.
Esta questão, a do “Abuso de direito”, embora não invocada pelo A, e apenas agora por nós equacionada na sequência do raciocínio seguido, poderia ainda ser conhecida, porque se trata de uma questão que é de conhecimento oficioso (como tem vindo a ser defendido, cremos que de forma pacífica, na doutrina e na jurisprudência - Acs. do STJ de 25.11.99 e de 17.11.2020, e desta RG de 04/10/2018, todos disponíveis em www.dgsi.pt), desde que tenham sido alegados e provados os competentes pressupostos legais (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, página 373).
Considera-se que estando em jogo, no abuso de direito, um princípio de interesse e ordem pública, não depende da invocação das partes saber se quem exercita o direito que se arroga age motivado e sob condicionantes que tornem o seu exercício ilegítimo. Essa aferição pode e deve ser apreciada pelo tribunal, em qualquer das instâncias.
Agora, também tem sido pacificamente aceite que é necessário que tenham sido alegados e provados os factos que levam à sua aplicação. Ou seja, mesmo que se considere que esse fundamento (abuso de direito) é de conhecimento oficioso, será sempre necessário que esteja demonstrada a respetiva factualidade para que o mesmo possa ser apreciado (Acs. do STJ de 4/02/2010 e de 28/11/2013, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Daí que, face à materialidade alegada e provada nos autos não possamos afirmar a existência de Abuso de Direito por parte da ré, de modo a poder ser convocado o disposto no art.º 334º do CC.
Preceitua de facto aquele art.º que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como sustenta Orlando de Carvalho (Teoria Geral do Direito Civil – Sumários desenvolvidos, Coimbra, 1981, pag. 44), o que importa averiguar é se o uso do direito subjetivo obedeceu ou não aos limites de autodeterminação, poder esse que existe, tão somente, para se prosseguirem interesses e não para se negarem interesses, sejam eles próprios ou alheios, e o abuso de direito “é justamente um abuso porque se utiliza o direito subjectivo para fora do poder de usar dele”.
Ainda segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu (Abuso de Direito, pag. 43) verifica-se o abuso de direito “quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrem”.
Muito significativo é o facto de que, nos dizeres da lei, o exercício de um direito só é abusivo quando o seu titular exceda de forma manifesta os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, o que, segundo Manuel de Andrade (Teoria Geral das Obrigações, Coimbra, Almedina, 1963, pág. 63) ocorre apenas quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ou, como também se costuma dizer, quando ofende o sentimento jurídico socialmente dominante. Mesmo antes do atual C.C. já o ilustre Mestre defendia (em Teoria Geral das Obrigações, pag. 63), que se verifica a existência de abuso de direito apenas quando este se mostra “gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na colectividade”.
Ora, como é bom de ver, não podemos dizer que, face ao preceito legal citado e às conceções doutrinais mencionadas, tenha aplicação ao caso dos autos a situação de Abuso de Direito por parte da ré.
Começa desde logo o art.º 334º do CC por dispor que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé…”, sendo que a boa fé se traduz numa cláusula geral de proteção da confiança legitimamente criada. Ou seja, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos, se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.
Ora, segundo as próprias alegações do A, o seu prédio foi por si adquirido (ainda como prédio rústico) no ano de 1997, e as árvores existentes no prédio da ré atingiram a idade adulta há 15/20 anos (por referencia ao ano de 2020, quando foi proferida a sentença), o que significa que elas já existiam no prédio da falecida ré (em 2000) quando o A comprou o seu prédio, ainda de natureza rústica, e ali implantou a sua habitação, donde não se poder falar aqui de proteção de uma qualquer confiança criada pelo A relativamente à situação que hoje vivencia.
Por outro lado, perante a matéria de facto provada e a situação visualizada – em que a existência das árvores apenas provocam a queda de caruma no quintal do A (em quantidade que não foi sequer apurada nem a frequência com que o A necessita de proceder à limpeza da mesma), e que projetam sombra sobre parte do prédio nas primeiras horas da manhã -, não se pode também dizer que o direito dos réus, pelas consequências que o mesmo tem na vida do autor, fere as regras de convivência civilizada entre vizinhos, ou que excede manifestamente os limites impostos pelos bons costumes.
Quanto ao fim social ou económico a que se refere o art.º 334º do CC, o direito invoca, segundo Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, págs. 352 a 355) uma determinada construção historicamente situada, marcadamente antiliberal: a doutrina funcional, segundo a qual o direito subjetivo é concedido com uma determinada função – a realização de utilidades para o titular ou para a sociedade, conforme o enfoque; o abuso ocorreria com o desrespeito por essa função.
Ainda segundo o mesmo autor (António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 1997, págs. 853 a 860), a boa fé permite também evitar a generalidade das situações em que o titular atua no âmbito formal da permissão normativa, que constitui o seu direito, em termos de não retirar qualquer benefício pessoal, mas a causar dano considerável a alguém, bem como situações de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.
Ora também nada ficou apurado nos autos sobre o benefício pessoal ou económico retirado pelo RR do seu terreno e das árvores nele plantadas, a ponto de se poder aferir e/ou afirmar que eles estão a exceder manifestamente o fim social ou económico do seu direito em contraponto com os “incómodos causados ao A”.
Concluímos assim do exposto que não consideramos abusivo o direito exercido pelos RR sobre o seu terreno e as respetivas árvores nele plantadas.
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Da aplicação ao caso dos autos do DL nº 17/2009, de 14.1 (e suas alterações).
Para fundamentar os pedidos formulados, alega ainda o A que os RR plantaram no seu lote vários pinheiros resinosos junto à estrema do seu prédio, a escassos centímetros do muro e da habitação do A, não tendo observado no entanto as exigências legais impostas para o plantio de tais árvores, nomeadamente no que concerne à distância que os mesmos deviam observar para o efeito, de acordo com o disposto no art.º 1366º nº 2 do CC e leis especiais respetivas, nomeadamente o disposto no DL nº 17/2009, de 14.1.e suas alterações.
A essa alegação respondeu a ré na sua contestação, dizendo que o seu lote, com a área de 1.520 m2 está demarcado pelo lado sul pelo prédio do A, do lado norte pelo prédio urbano pertencente a A. C., do lado nascente pela estrada florestal, e do lado poente pela estrada municipal - factos que logrou provar (factos 3 e 4 da matéria provada) -, pelo que não se trata nem de um espaço florestal nem de um terreno agrícola para efeitos de aplicação do disposto no DL nº 124/2006 de 26.6.
Vejamos:
Já analisamos acima o pretenso direito do A, de mandar abater as árvores existentes no prédio da ré, face ao disposto no art.º 1366º do CC, concluindo-se que não lhe assiste tal direito, à luz do nº 1 do normativo analisado.
Mas acrescenta o nº 2 daquele mesmo normativo que “o disposto no número antecedente não prejudica as restrições constantes de leis especiais relativas à plantação ou sementeira de eucaliptos, acácias ou outras árvores igualmente nocivas nas proximidades de terrenos cultivados, terras de regadio, nascentes de água ou prédios urbanos, nem quaisquer restrições impostas por motivos de interesse público”.
Efetivamente, do nº 2 do art.º 1366º constam dois tipos de restrições ao direito dos proprietários, de efetuarem plantações no seu prédio até à estrema do mesmo (direito que lhes é genericamente concedido pelo disposto no nº 1): são as restrições constantes de leis especiais relativas à plantação ou sementeira de eucaliptos, acácias ou outras árvores igualmente nocivas nas proximidades de terrenos cultivados, terras de regadio, nascentes de água ou prédios urbanos; e quaisquer outras restrições impostas por motivos de interesse público.
Alega o A que não foram observadas pela ré as exigências legais impostas para o plantio de tais árvores, nomeadamente no que concerne à distância que os mesmos deviam observar para o efeito, de acordo com o disposto no art.º 1366º nº 2 do CC e leis especiais respetivas, nomeadamente o disposto no DL nº 17/2009, de 14.1.e suas alterações.
Começamos por dizer que a alegação do A foi feita em termos pouco rigorosos (referindo-se sempre ao plantio das árvores e a uma legislação criada muito posteriormente, cuja aplicação nunca poderia ser feita quanto à plantação das mesmas, em homenagem ao princípio geral previsto no art.º 12º nº1 do CC, de que a lei só dispõe para o futuro).
Depois, como é evidente, o A não se quer referir ao primeiro grupo de restrições constantes de leis especiais, uma vez que não existem plantadas no prédio da ré aquele tipo de árvores (eucaliptos, acácias, ou outras árvores especialmente nocivas) nem o Decreto-Lei n.º 17/2009, de 14 de Janeiro (que procedeu à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho) se refere àquele tipo de plantações.
Trata-se de um diploma que estabelece as medidas e ações a desenvolver no âmbito do Sistema de Defesa da Floresta contra Incêndios, a inserir nas restrições impostas por motivos de interesse público previstas no nº2 do art.º 1366º do CC (e cujo regime legal poderá ser convocado para aplicação às árvores já existente no prédio dos RR).
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, vol. III, 2ª edição, Coimbra editora, pag. 237 e 238, em anotação ao art.º 1366º nº2 do CC), “Pelo que respeita às restrições de direito público, têm especial importância as limitações impostas ao plantio de vinha e de produtores diretos americanos…” (citando vária legislação aplicável sobre essa restrição). E acrescentam: “Outras restrições de direito público dizem respeito ao corte das árvores ou dos ramos que pendem sobre a via pública ou constituam um perigo para o trânsito…” (e citam também vários diplomas reguladores dessa matéria quanto às estradas nacionais e caminhos municipais), acrescentando ainda que a resinagem de pinheiros está também sujeita a restrições (citando também a legislação respetiva), assim como as oliveiras, sobreiros e azinheiras (mencionando também vária legislação relativa a esse tipo de árvores).
Ou seja, trata-se naquele segundo grupo de restrições, de plantações que apesar de inseridas em terrenos privados, e que à partida estariam apenas sujeitas às restrições impostas pelas relações de vizinhança, interferem com áreas públicas, cujo interesse (público, ou da coletividade), se sobrepõe aos meros interesses particulares.
E consideramos de facto que os condicionalismos legais emergentes do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho, podem ser vistas como restrições de direito público ou visando satisfazer predominantemente interesses públicos.
Não desconhecemos a divisão jurisprudencial dos nossos tribunais superiores, no que respeita à possibilidade da invocação direta de limitações legais ditadas por razões de interesse público no âmbito da tutela de interesses particulares, tratando-se de questão que tem recebido respostas divergentes na jurisprudência do STJ (divisão que vem devidamente elucidada no Ac. TRE de 08-03-2007 – disponível em www.dgsi.pt -, e no qual vêm citados vários arestos daquele tribunal, representativos das correntes mais significativas sobre esta matéria).
Ora, no âmbito daquela divisão jurisprudencial importa salientar a orientação que vem sendo seguida em diversos arestos do STJ, e da qual é exemplo o Ac. do STJ de 11-03-2010 (também disponível em www.dgsi.pt), cujo entendimento perfilhamos, de que “o círculo de interesses tutelados por determinados preceitos de direito público (…), pode envolver a atribuição aos particulares lesados, pela violação de tais normas, de verdadeiros direitos subjectivos ou, pelo menos, de interesses juridicamente tutelados, podendo a respectiva violação originar infracção de norma legal destinada a proteger interesses alheios (…), mesmo que se não mostre preenchida a «fattispecie» de algum dos preceitos do CC que disciplinam as relações jurídicas reais de vizinhança entre imóveis”.
Também o Ac. do STJ de 14-02-2017 (disponível também em www.dgsi.pt) segue a mesma orientação, ao estatuir que “cada vez mais se acentua a evidência de que a situação de vizinhança de prédios implica limitações ao exercício do direito de propriedade – que não se quedam pelas explicitamente prevenidas no CC (…) através da ponderação dos direitos conexos com essa relação de vizinhança, para fundar um direito à protecção do proprietário através da responsabilização do proprietário do prédio vizinho por todas os actos ou omissões que provoquem uma ruptura do equilíbrio imobiliário existente e que exprimam ou realizem a violação de um dever geral de prevenção do perigo…”.
Seguindo esta linha de orientação, era legítimo ao A, em tese, convocar para a defesa da sua pretensão o DL nº 17/2009, de 14/01 (assim como o que o antecedeu – o DL 124/2006, de 28/06), como um diploma que consagra essencialmente normas de interesse público, mas que também impõe restrições aos proprietários confinantes, como era o seu caso e o da ré.
Aliás, o DL nº 124/2006 consagra medidas estruturais e operacionais relativas à prevenção e proteção das florestas contra incêndios, a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios – essencialmente a defesa do interesse público -, mas tem prevista também, no seu âmbito normativo, a proteção de pessoas e bens, ou seja, a defesa de interesses particulares.
Consta efetivamente do seu preâmbulo (aplicável na altura à situação dos autos) o seguinte: “…A floresta é um património essencial ao desenvolvimento sustentável de um país. No entanto, em Portugal, onde os espaços florestais constituem dois terços do território continental, tem-se assistido, nas últimas décadas, a uma perda de rentabilidade e competitividade da floresta portuguesa. Conscientes de que os incêndios florestais constituem uma séria ameaça à floresta portuguesa, que compromete a sustentabilidade económica e social do País, urge abordar a natureza estrutural do problema. A política de defesa da floresta contra incêndios, pela sua vital importância para o País, não pode ser implementada de forma isolada, mas antes inserindo-se num contexto mais alargado de ambiente e ordenamento do território, de desenvolvimento rural e de proteção civil, envolvendo responsabilidades de todos, Governo, autarquias e cidadãos, no desenvolvimento de uma maior transversalidade e convergência de esforços de todas as partes envolvidas, de forma direta ou indireta. Importa reconhecer que a estratégia de defesa da floresta contra incêndios tem de assumir duas dimensões, a defesa das pessoas e dos bens, sem protrair a defesa dos recursos florestais. Estas duas dimensões, que coexistem, de defesa de pessoas e bens e de defesa da floresta, são o braço visível de uma política de defesa da floresta contra incêndios que se traduz na elaboração de adequadas normas para a protecção de uma e de outra, ou de ambas, de acordo com os objectivos definidos e uma articulação de acções com vista à defesa da floresta contra incêndios, fomentando o equilíbrio a médio e longo prazos da capacidade de gestão dos espaços rurais e florestais. O sistema de defesa da floresta contra incêndios agora preconizado identifica objectivos e recursos e traduz-se num modelo activo, dinâmico e integrado, enquadrando numa lógica estruturante de médio e longo prazos os instrumentos disponíveis, nos termos do qual importa: Promover a gestão ativa da floresta; Implementar a gestão de combustíveis em áreas estratégicas, de construção e manutenção de faixas exteriores de proteção de zonas de interface, de tratamento de áreas florestais num esquema de mosaico e de intervenção silvícola, no âmbito de duas dimensões que se complementam, a defesa de pessoas e bens e a defesa da floresta…” (negrito nosso).
Como se vê, a defesa de pessoas e bens é uma das vertentes do âmbito de proteção das normas do citado diploma legal, constando expressamente do seu art.º 15º nº 2, intitulado “Redes secundárias de faixas de gestão de combustível”, que “Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edifícios inseridos em espaços rurais, são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante, numa faixa com as seguintes dimensões: a) Largura não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais; b) Largura definida no PMDFCI (Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios), com o mínimo de 10 m e o máximo de 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, quando a faixa abranja exclusivamente terrenos ocupados com outras ocupações”.
Ou seja, resulta do preceito legal transcrito, que a gestão de combustíveis, da responsabilidade dos proprietários, em torno das edificações inseridas em espaços rurais, consubstancia uma obrigação legal, imposta em função da titularidade do direito de propriedade, incidente sobre terreno confinante a edifícios inseridos em espaços rurais, de acordo com os restantes requisitos, e com as normas constantes do mencionado DL.
Concretizando os comandos enunciados naquele preceito, a alínea n) do nº1 do art.º 3º) do citado DL define “Gestão de combustível” como a “criação e manutenção da descontinuidade horizontal e vertical da carga combustível nos espaços rurais, através da modificação ou da remoção parcial ou total da biomassa vegetal, nomeadamente por pastoreio, corte ou remoção empregando técnicas mais recomendadas com a intensidade e frequência adequadas à satisfação dos objetivos dos espaços intervencionados”.
Em termos simples, entende-se por gestão de combustíveis a redução de material vegetal e lenhoso, de modo a evitar a ignição, e a dificultar a propagação do fogo na vertical (do estrato herbáceo para os matos e destes para as copas) e na horizontal (ao longo dos diferentes estratos). Em síntese, significa cortar as ervas, os arbustos e as árvores, em algumas áreas, de forma a minimizar o risco face aos incêndios.
Ou seja, do que se trata essencialmente nos diplomas legais citados é da limpeza dos solos, removendo deles a matéria orgânica suscetível de provocar a criação e/ou a propagação de incêndios.
Ora, com base nos preceitos legais citados, não está excluída em absoluto ao A, a possibilidade de fazer valer o seu direito contra os RR, proprietários do terreno confiante, obrigando-os a proceder à Gestão de combustível ao redor da sua habitação, em ordem a prevenir e defender a sua propriedade contra incêndios. Questão é que demonstre a verificação dos requisitos legais para acionar tal direito.
Além disso, os diplomas legais citados contêm a tramitação a seguir, em caso de incumprimento da obrigação legal a cargo dos seus responsáveis, em que as respetivas Câmaras Municipais podem executar os trabalhos de limpeza a expensas dos proprietários do terreno. Antes dessa providência existe, no entanto, todo um processo administrativo a seguir – e que se desconhece se ele foi ou não acionado pelo A.
Sempre se dirá, no entanto, que um dos fatores determinantes da obrigação legal dos RR, é a natureza do seu terreno, para que lhe seja imposta a obrigação de Gestão do combustível à volta da casa do A.
Efetivamente, refere-se o art.º 15º nº 2 acima transcrito a terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais (alínea a); e terrenos ocupados com outras ocupações (alínea b).
O art.º 3.º, n.º 1, al. j), define “floresta” como “…o terreno, com área maior ou igual a 0,5 hectares e largura maior ou igual a 20 metros, onde se verifica a presença de árvores florestais que tenham atingido, ou com capacidade para atingir, uma altura superior a 5 metros e grau de coberto maior ou igual a 10 /prct.”.
Por sua vez, Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes (Florestas – Algumas Questões Jurídicas, Almedina, 2018, pág. 47), esclarecem que o Inventário Florestal Nacional define “floresta”, “matos” e “pastagens” nos seguintes termos: “Floresta: terreno onde se verifica a presença de árvores florestais que tenham atingido, ou que pelas suas características ou forma de exploração venham a atingir, uma altura superior a 5 m, e cujo grau de coberto (definido pela razão entre a área da projecção horizontal das copas das árvores e a área total da superfície de terreno) seja maior ou igual a 10%; Matos: terreno onde se verifica a ocorrência de vegetação espontânea composta por matos (por exemplo: urzes, silvas, giestas, tojos) ou por formações arbustivas (exemplo: carrascais ou medronhais espontâneos) com mais de 25% de coberto e altura superior a 50 cm. As árvores eventualmente presentes têm sempre um grau de coberto inferior a 10%, podendo estar dispersas, constituindo bosquetes ou alinhamentos. Os matos com altura superior a 2m são designados por matos altos. Exclui: vegetação espontânea em zonas húmidas; Pastagens: terreno ocupado com vegetação predominantemente herbácea semeada ou espontânea, destinada ao pastoreio in situ, mas que acessoriamente pode ser cortada em determinados períodos do ano”.
Ora, de acordo com a matéria de facto provada, o terreno da ré não se insere em nenhuma das categorias mencionadas na alínea a) do preceito legal transcrito - floresta, matos ou pastagens naturais. Trata-se, segundo a matéria de facto provada, de um “lote para construção” com cerca de 1.520 m2, sito em Bairro ..., ..., freguesia de ..., a confrontar a nordeste com A. C., a sudoeste com o prédio enunciado em 1), a sudeste pela estrada florestal e a noroeste pela estrada municipal.
Não se demonstrou, por outro lado, qual a largura da faixa definida pelo Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios, para os fins do disposto na alínea b) daquele preceito – para terrenos ocupados com outras ocupações (onde se poderá eventualmente inserir o terreno dos RR).
Cumprirá então ao A, se assim o entender e reunir os requisitos legais para o efeito, ativar o processo administrativo previsto no diploma legal por si mencionado para responsabilizar os RR pela gestão do combustível na área do terreno confiante ao seu, não sendo a via judicial a adequada ao caso.
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Decisão:

Por todo o exposto, Julga-se Improcedente a Apelação e confirma-se, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas da Apelação pelo recorrente.
Notifique
Guimarães, 6.10.2022.

Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: Dr. José Manuel Alves Flores
2ª Adjunta: Drª. Sandra Maria Vieira Melo