Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2303/16.3T9BRG-E.G1
Relator: MADALENA CALDEIRA
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
PRINCÍPIO DO PEDIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - As decisões judiciais de decretamento e/ou alteração de uma providência de arresto preventivo (art.º 228.º, do CPP), com vista à garantia do pagamento do valor das vantagens decorrentes da prática de crime, estão condicionadas ao princípio do pedido, a que obedece esta medida de garantia patrimonial.
II - O tribunal está impedido de manter um arresto preventivo quando o dominus do impulso processual solicite o respetivo levantamento (total ou parcial), por força da sua vinculação ao princípio do pedido e às decorrências do mesmo.
III - Se o Ministério Público, no âmbito de um arresto antes decretado a seu impulso processual, manifesta concordância com um pedido de levantamento parcial de um arresto deduzido por um terceiro, tal concordância tem os mesmos efeitos de um pedido por si deduzido nesse mesmo sentido, caso em que o tribunal está obrigado a levantar o arresto, sem questionar as razões para tanto invocadas.
Decisão Texto Integral:
Processo: 2303/16.3T9BRG-E.G1 (arresto preventivo),
Tribunal Judicial da Comarca de Braga
Juízo Central Criminal de Braga – Juiz ...

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

I.1. No processo número ......-D foi proferido despacho pelo Tribunal Central de Instrução Criminal de Braga – Juiz ..., com o seguinte teor, na parte mais relevante:
Vale isto por dizer que a circunstância de não ter sido deduzida acusação contra o arguido AA não é suficiente para que se proceda ao requerido levantamento do arresto relativamente ás viaturas da requerente.
Por outro lado, não se vislumbra a alegação de factos concretos que permitam ao Tribunal concluir que o prejuízo resultante do arresto para a sociedade agora requerente excede consideravelmente o crédito que com ele se pretende acautelar.
Por último, não foi requerida prestação de caução para o levantamento do arresto quanto às viaturas em causa.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefiro o requerido a fls. 301 e 302 e a fls. 367.
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I.2. Recurso da decisão

Inconformada, a sociedade “EMP01... Unipessoal, Lda.” interpôs recurso do despacho, tendo extraído da sua motivação as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):

1. Em 6 de março de 2020, em sede de inquérito, veio o Ministério Público requerer o decretamento do arresto preventivo de quatro veículos de uso comercial da Recorrente.
2. A providência requerida veio a ser decretada por alegadamente entre 2016 e 2019 os suspeitos BB, CC, AA e DD ser gerirem de direito e de facto a Recorrente e, bem assim, por se mostrarem verificados os requisitos necessários ao seu decretamento.
3. Do referido arresto teve a Recorrente conhecimento em setembro de 2023, desconhecendo, até então, que havia sido ordenado um arresto preventivo sobre os veículos automóveis.
4. Anteriormente, em março de 2023 foi proferido despacho de arquivamento do inquérito contra AA, por sucumbirem indícios suficientes da sua participação nos factos em investigação.
5. Do término do inquérito levado a cabo não resultou para a Recorrente a dedução de acusação, não se verificando assim a possibilidade da prática do crime ou a sua (com)participação por qualquer via.
6. Na sequência despacho de arquivamento do inquérito contra AA, veio o mesmo requerer o cancelamento do registo do arresto quanto aos imóveis inscritos na matriz sob os artºs ...14... e ...15º urbanos da freguesia ..., sua propriedade e quanto ao numerário propriedade da sociedade comercial, EMP01... UNIPESSOAL, Lda apreendido em sua casa, no âmbito do inquérito.
7. Este cancelamento foi determinado por despacho proferido em 24 de abril do ano transato, sob a referência número ...09, por não se justificar a sua manutenção em face do despacho de arquivamento quanto ao arguido AA.
8. Por ser entendimento da Recorrente não se mostrarem verificados os pressupostos necessários à manutenção da vigência do arresto decretado há cerca de três anos, sobre os veículos sua propriedade e atentos os prejuízos decorrentes da referida medida cautelar requereu o seu cancelamento.
9. Foi proferido despacho no sentido de indeferir o seu cancelamento, com fundamento, em suma, na factualidade indiciada no inquérito.
10. O arresto preventivo serve para garantir patrimonialmente determinados pagamentos que são devidos ao Estado ou que sejam devidos ao lesado e é aplicável a bens propriedade dos arguidos ou de pessoas jurídicas civilmente responsáveis e serve para garantir o cumprimento efetivo de obrigações patrimoniais que venham a constar da decisão final.
11. No que aqui respeita à Recorrente não resultaram suspeitas, presunções, sinais ou indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é a Recorrente o responsável por ele.
12. Não houve a imputação à Recorrente de quaisquer condutas proibidas e punidas por lei, nem tampouco o seu relacionamento com os demais arguidos.
13. A Recorrente não é, portanto, arguida nem demandada civil nos autos de processo crime a que esta providência cautelar é apensa.
14. Pese embora não tenha havido constituição da requerida do arresto preventivo como arguida no prazo de 72 horas após o mesmo ser decretado, não existiu despacho devidamente fundamentado que, eventualmente, dispensasse tal constituição, nos termos do artigo 192º do C.P.P.
15. Pelo que também por aqui não pode subsistir a manutenção da medida cautelar preventiva.
16. Os fundamentos/factualidade dados como indiciariamente provados para o decretamento do arresto acabaram por cair, no final do inquérito.
17. Finda a investigação, o titular da ação penal não deduziu acusação contra a recorrente, nem contra aquele que havia atuado em sua representação.
18. Nem tampouco a relacionou na factualidade constante da acusação, não resultando, por isso, qualquer possível envolvimento da sociedade Recorrente com os arguidos acusados.
19. É certo que, em sede de inquérito, dos factos dados como indiciariamente demonstrados resultava um envolvimento da Recorrente com os demais sujeitos processuais. Contudo, é igualmente certo, que não se verificou a comprovação judicial desses factos.
20. Não pode o tribunal a quo fundamentar a sua pretensão de indeferimento do cancelamento do arresto preventivo com base nos factos dados como indiciariamente demonstrados em sede de inquérito ignorando in totum a acusação proferida,
21. Da qual não resulta qualquer consequência para a Recorrente, pois que não resultaram factos que tornem provável a sua responsabilização penal.
22. Da mesma forma que não resultou da prova recolhida que os bens objeto do arresto estão no domínio patrimonial dos demais arguidos.
23. Assim e na medida em que a aplicação das medidas de garantia patrimonial está sujeita aos princípios da legalidade e da necessidade, consagrados nos artigos 191.º, 1, e 193.º, 1, do C.P.P., o arresto preventivo só pode ser aplicado em função das exigências processuais de natureza cautelar que o legislador prevê no artigo 227.º do CPP.
24. O arresto preventivo serve para garantir o cumprimento efetivo de obrigações patrimoniais que venham a constar da decisão final condenatória proferida em processo penal e só pode ser decretado sobre bens que estão, ou estiveram, na titularidade do requerido da diligência, o que também não se verifica nos presentes autos.
25. A Recorrente não é suspeita, nem arguida dos crimes em investigação nem tampouco responsável civil, pelo que em face de tudo o quanto aqui se deixa expendido, não se encontram preenchidos os pressupostos necessários à manutenção no arresto preventivo decretado em 2020.
TERMOS EM QUE: admitindo e concedendo provimento ao presente recurso, revogando a decisão proferida, farão V. Exas, a habitual e sempre esperada J U S T I Ç A!
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I.3. Resposta ao recurso

O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):

1. Na análise efectuada ao património da família EE (em que o patriarca é o arguido BB) foram considerados os eventuais responsáveis pelas várias empresas do EMP02... (pai e filhos), bem como os respectivos cônjuges e dependentes/filhos, entre os quais AA, conforme descrito no artigo 232º dos factos demonstrados da decisão que ordenou o arresto preventivo;
2. Relativamente às sociedades do grupo verifica-se que existe património associado à família e às instalações principais do EMP02..., que está registado na posse da sociedade imobiliária EMP03..., detida e administrada por membros da família, mas também de outras sociedades, entre as quais a aqui requerente “EMP01... Unipessoal, Lda.”, conforme descrito nos artigos 233º e 234º dos factos demonstrados da referida decisão.
3. Nessa senda, entendeu-se na referida decisão que «(…) existe forte risco de, atentas as normais delongas do processo, existir perda de garantia patrimonial, na medida em que, os suspeitos não têm bens em nome próprio e diligenciaram por dissimular os bens que adquiriram e os que já possuíam, registando-os em nome da sociedade EMP03..., Lda. E atenta a natureza volátil da mesma, é previsível a impossibilidade de assegurar o pagamento do valor das vantagens que obtiveram. O que se denota do comportamento dos suspeitos é a preocupação em ocultar o património pessoal e das sociedades que geriam, ao adquirirem sociedade com o único propósito de registar em seu nome todo o património do EMP02..., para assim iludirem as autoridades e terceiros na obtenção de garantia dos seus créditos, bem como, de o subtrair da responsabilização criminal pelos actos ilícitos em que indiciariamente incorreram».
4. Ou seja, na decisão de arresto assumiu-se, e bem, que os bens aí descrito seram pertença dos arguidos nos autos principais, sobretudo de BB, e se encontravam na posse ou registados em nome de indivíduos ligados à família EE ou sociedades na orbita da mesma como forma de dissimular a sua titularidade e, consequentemente, obstar à satisfação de créditos de terceiros.
5. Os bens a que se refere a recorrente “EMP01... Unipessoal, Lda.” encontram-se, precisamente, nessa situação.
6. Não se verifica, por isso e neste momento, motivo para que se proceda ao cancelamento do arresto dos veículos que se encontram registados em seu nome, por o risco de dissipação ser perfeitamente actual.
7. Em todo o caso, a remissão contida no artigo 228º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para os “termos da lei do processo civil”, refere-se à verificação dos pressupostos previstos nos artigos 391º e 392º do Código de Processo Civil - aparência do direito e perigo da dissipação do património – como condições essenciais do decretamento do arresto preventivo, à ineficácia de todos e quaisquer actos de disposição, transmissão ou oneração dos bens arrestados, nos termos do artigo 819º, do Código Civil e aos modos de impugnação da decisão – interposição de recurso, ou dedução de oposição.
8. Por isso, depois de transitada em julgado a decisão que determina o arresto preventivo, tal decisão não está sujeita ao princípio rebus sic standibus.
9. Uma vez que o arresto preventivo é decretado perante a séria e real possibilidade de os bens seu objecto virem a ser declarados perdidos a favor do Estado, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 374º, n.º 3, alínea c), e 178º, n.º 7, do Código de Processo Penal, quer o bem pertença ao arguido, quer esteja na titularidade de terceiro e, dada a natureza das quantias pecuniárias cujo cumprimento visa assegurar, só depois de proferida a decisão final, condenatória ou absolutória, é que é possível apurar se e em que medida o património (lícito) do arguido deve ser colocado à disposição das finalidades patrimoniais do processo penal, no tocante ao confisco das vantagens do crime, ou ao cumprimento integral da responsabilidade penal e civil emergente do facto criminoso, de resto, em linha de coerência com as previsões contidas nos artigos 111º, n.º 2 e 4 e 130º, n.º 2, do Código Penal.
10. Essa a razão, pela qual, uma vez transitada em julgado a decisão que determina o arresto preventivo, só a prestação de uma caução em substituição poderá dar lugar à sua revogação, nos termos previstos no artigo 228º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
11. No caso dos autos não foi requerida a prestação de caução para o levantamento do arresto quanto às viaturas em causa.
12. Nada há, por isso, a censurar à decisão recorrida.
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I.4. Parecer do Ministério Público

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto juntou parecer com fundamentação relevante, nomeadamente nos seguintes excertos:
4. Manifestando a nossa posição sobre o recurso, por forma absolutamente breve, devemos dizer e sempre com maior respeito por posição diversa, mormente a veiculada pelo magistrado do MºPº na 1.ª instância na sua resposta, que o recurso merecerá provimento.
Não por virtude da apreciação específica das considerações argumentativas que foram trazidas pela recorrente no seu recurso, mas por uma especial circunstância que decorre da tramitação processual e que apela naturalmente à lógica, racionalidade e harmonia das decisões judiciais.
Explanando.
Inexiste qualquer dúvida que a recorrente “EMP01... Unipessoal, Lda”, como resulta dos autos, foi seu gerente o então arguido AA. Este além de gerente era o titular da totalidade do seu capital social. Daí a sua designação “Unipessoal”.
A 15/03/2023 foi encerrado o inquérito com dedução de acusação contra uns arguidos e com o seu arquivamento em relação a outros. E nessa data, foi então decidido: “Atendendo que foi proferido despacho de arquivamento quanto ao arguido AA, não se justifica a manutenção da apreensão das quantias em dinheiro que lhe foram apreendidas na residência, pelo que notifique o mesmo, nos termos do artigo 186.º, n.º 1 e 3 do CPP, para proceder ao levantamento da quantia de 1.090,00 € que lhe foi apreendida na sua residência.”
E a 06/04/2023, o referido AA apresentou requerimento onde adiantou “requerer o levantamento da quantia de € 1090,00 (mil e noventa euros), em numerário, apreendida no âmbito do presente Inquérito, nos termos do artigo 186º do CPP, a qual pertence à Sociedade EMP01... Unipessoal, Lda., da qual o arguido é atual gerente.”, pedindo, igualmente, “b) O cancelamento do registo de arresto sobre a moradia que constitui a residência do arguido”.
A 12/04/2023 a Ex.ma Procuradora da República ordenou no inquérito “Req. fls. 3036: Proceda à devolução da quantia de 1090 €, de acordo com o despacho de 2951 – verso.”.
E do mesmo passo promoveu “Quanto aos imóveis inscritos na matriz sob os artigos ...36..., ...14... e ...15º da freguesia ..., em ..., registados em nome do arguido AA, assiste razão ao requerido, pois que, tendo os autos sido alvo de arquivamento quanto a tal arguido não se justifica a manutenção do arresto do seu património.
Nessa medida, promovo se determine o cancelamento do arresto preventivo de tais imóveis, ao abrigo do disposto no artigo 228.º, n.º 6 do CPP.” – sublinhado nosso.
E a M.ma JIC, a 21/04/2023, deferiu o promovido, decidindo: “Quanto aos imóveis inscritos na matriz sob os artigos ...36..., ...14... e ...15º da freguesia ..., em ..., registados em nome do arguido AA, determina-se o cancelamento do respetivo arresto preventivo, ao abrigo do disposto no art. 228, ns. 6 e 7 , do CPPenal, porquanto tendo os autos sido alvo de arquivamento quanto a si não se justifica a sua manutenção”.
Este despacho judicial transitou em julgado.
Sendo esta a linha processual relevante, dúvidas não existem que o património do AA, por decisão judicial passada em julgado, e na sequência da percepção do Ministério Público, deixou de garantir o “pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime”, de garantir o valor da “perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto”, e de garantir o pagamento “do valor a estes correspondente” – art.º 227, n.º1 do CPPenal.
É o próprio Ministério Público que assevera, sem quaisquer reservas, que “não se justifica a manutenção do arresto do seu património”, do património de AA. De notar, que o seu pedido judicial se acomodou ao nível da denominada “perda clássica”, e que lhe foi deferido, assim se apresentou: “Seja decretado arresto preventivo dos bens que de seguida se identificam, com vista a assegurar o pagamento do valor das vantagens que não é possível apropriar em espécie, nos termos do disposto no art. 110°, n.° 3 e 4, do Código Penal, no art. 228°, do Código de Processo Penal, e nos art.s 391° a 393°, do Código de Processo Civil”.
Neste contexto preciso, importará saber, então, qual o património do AA que foi objecto de acções cautelares.
Sem margem para dúvidas, e como decorre do acima exposto, foram os seguintes: os imóveis supra referidos - artigos ...36..., ...14... e ...15º da freguesia ..., o dinheiro atrás mencionado - 1090 €, e os 4 veículos que estavam em nome da sociedade recorrente, da EMP01... Unipessoal, Lda, e da qual aquele é titular e gerente -2 ..., um ... e um ....
Incontornavelmente, os referidos 4 veículos afinal integram o património do citado AA. Todos os bens e direitos da recorrente, da mencionada sociedade integram o património daquele.
Se judicialmente já foi ordenada a desoneração do património imobiliário, e ainda do dinheiro daquele, nenhuma razão há para que não se desonerem os 4 veículos cujo cancelamento do arresto a sociedade recorrente pretende. Insiste-se, o seu capital social, porque unipessoal, é pertença exclusiva do AA e só dele.
Então, as razões que levaram ao levantamento da apreensão do dinheiro e ao levantamento do arresto preventivo dos imóveis, naturalmente que valem para o levantamento do arresto dos veículos que, então, e por uma questão lógica e racional, como acima dizíamos, deverá ser ordenado revogando-se o despacho colocado sob sindicância.
5.  Em conclusão: o recurso da sociedade interveniente ocasional deverá ser julgado procedente porquanto sendo o capital social desta sociedade de uma só pessoa, porque de uma sociedade unipessoal se trata, e sendo ela titulada por AA em relação ao qual o Ministério Público determinou a entrega de uma quantia em dinheiro que havia sido apreendido no decurso do inquérito e promoveu o levantamento do realizado arresto preventivo do seu património expressando-se objectivamente que “não se justifica a manutenção do arresto do seu património”, pedido que viu deferido por decisão já transitada em julgado, os 4 veículos registados em nome da sociedade recorrente e que foram objecto de arresto preventivo integram, incontornavelmente, o património do referido AA; e assim ocorrendo, não há razão lógica para tratar este último património de forma diversa do que já foi desonerado, honrando até o caso julgado já firmado sobre a questão e a imprescindível harmonia decisória que é tributária da justiça.
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I.5. Resposta ao parecer.

 Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.
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I.6. Foram colhidos os Vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1.  Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre, por exemplo, com os vícios previstos nos artigos 410.º, n.º 2, ou 379.º, n.º 1, ambos do CPP (cf. art.ºs 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP).

Delimitando o thema decidendum:
 - Saber se o despacho que indeferiu o pedido de levantamento do arresto preventivo de 4 veículos de que a Recorrente se diz titular deve ser revogado e substituído por outro que determine o levantamento do arresto.
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II.2. Decisão Recorrida:

Em 19.12.2023 (notificado a 21.12.2023) foi proferido o despacho recorrido (que aqui se transcreve integralmente):
Req. de fls. 301 a 302, fls. 367 e promoção que antecede:
Veio a sociedade EMP01... Unipessoal, Lda.” requerer o cancelamento do arresto dos veículos de sua propriedade sustentando, para o efeito e em suma, que:
- Foi proferido despacho de arquivamento do inquérito relativamente a AA, que foi legal representante e funcionário da sociedade requerida;
- A única relação da referida sociedade com os autos do processo a que o procedimento cautelar está apenso seria através do arguido AA, contra quem não foi deduzida acusação;
- As viaturas propriedade da requerida e apreendidas nos autos são viaturas com condições para transportar os produtos do comércio da requerida, por essa razão dificilmente substituíveis;
- A apreensão das viaturas está a impedir a requerida de exercer a sua actividade e a causar-lhe avultados prejuízos.
O Digno Magistrado do Ministério Público veio opor-se ao assim requerido, nos termos constantes de fls. 371 e 372.
Cumpre apreciar e decidir.
Entre o mais, no despacho de 09-03-2020, determinou-se o arresto preventivo das viaturas automóveis ali identificadas que se encontram registas em nome da ora requerente, EMP01... Unipessoal, Lda..

Esse arresto foi fundamentado, designadamente, nos seguintes factos:
1 – O suspeito BB reside com FF, e são pais de CC, que reside com GG, de AA, residente com HH, e de DD, residente com II.
2- Os suspeitos BB, CC, AA e DD, em data não concretamente apurada, mas anterior a 2014, aproveitando os contactos familiares que tinham entre si, em conjugação de esforços e de intenções, na qualidade de gerentes e representantes de diversas sociedades, nomeadamente, a EMP04..., Lda. e, posteriormente, a EMP05..., Lda., criaram um estratagema, a fim de obterem benefícios fiscais ilegítimos.
3 – Tal esquema consistia em adquirir mercadoria a fornecedores em ..., não directamente pelas sociedades EMP04..., Lda. e, posteriormente, EMP05..., Lda., mas através de sociedades “de fachada” que criaram ou adquiriram, para as quais designaram um mero gerente de direito (vulgo testa-de-ferro), mas que eram geridas pelos próprios suspeitos, com o propósito destas declararem as aquisições intracomunitárias, sem que entregassem o respectivo imposto, ou omitindo totalmente a aquisição intracomunitária.
4 – Posteriormente, tais sociedades vendiam a mercadorias às sociedades EMP04..., Lda. e, mais tarde, à EMP05..., Lda., que também geriam, solicitando a devolução do IVA referente a tais aquisições.
5- De seguida, vendiam a mercadoria a outras sociedades que também geriam ou para outros clientes, omitindo à administração Tributária a declaração de tais vendas.
36 – A sociedade EMP01... Unipessoal, Lda. é uma sociedade por quotas (…), encontrando-se registada no Serviço de Finanças (…), na actividade de comércio por grosso de carne e produtos á base de carne (CAE 56320).
37 – Em 19.02.2016, data da constituição da sociedade, foi JJ nomeada gerente da referida sociedade, contudo, foram sempre os suspeitos quem exerceram a gerência da referida sociedade.
38 – Entre 2016 e 2019, eram os suspeitos BB, CC, AA e DD quem a geriam, de direito e de facto, tomando ambos as decisões relativas ao seu normal funcionamento, representando-a perante clientes e fornecedores, incluindo as que se reportam ao preenchimento das declarações fiscais, bem como au apuramento e pagamento de todos os impostos devidos por tal sociedade.
39 – Em termos declarativos, a EMP01... tem cumprido as suas obrigações fiscais, contudo, nas declarações periódicas de IVA é apurado crédito de imposto ou montantes reduzidos de imposto a pagar, o que constitui indicio de manipulação do IVA dedutível ou omissão de vendas.
232 – Na análise efectuada ao património da família EE foram considerados os eventuais responsáveis pelas várias empresas do EMP02... (Pai e filhos), bem como os respectivos cônjuges, nos termos identificados no artigo ...32. da decisão que decretou o arresto.
- Relativamente ás sociedades do grupo verifica-se que existe património associado à família e às instalações principais do EMP02..., que está registado na posse da sociedade imobiliária EMP03..., detida e administrada por membros da família, mas também de outras sociedades, entre as quais a aqui requerente, conforme descrito nos artigos ...33 e ...34 da decisão que decretou o arresto.
No que respeita á fundamentação de direito da referida decisão referiu-se, além do mais, “que existe o risco de, também na pendência dos presentes autos de processo crime, os suspeitos virem a dispor dos bens cujo arresto se requer”, mais se adiantando que “o cometimento dos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais evidenciam um elevado perigo de dissimulação do património, por forma à ocultação do mesmo com o objectivo de evitar o seu confisco”.
A requerente pretende o levantamento do arresto alicerçando o seu pedido essencialmente na circunstância de que a única relação dela com os autos ser através do referido AA, contra quem não foi deduzida acusação.
Sucede, porém, que esta afirmação não é totalmente correcta.
Corresponde à verdade, com efeito, que não foi deduzida acusação contra AA.
No entanto, dos factos dados como indiciariamente demonstrados resulta que os arguidos que foram acusados mantiveram/mantêm relação com a sociedade requerente.
É isso que deriva, designadamente, dos pontos 36 a 38 da matéria de facto indiciariamente dada como apurada da decisão que decretou o arresto preventivo (matéria essa que não foi, até ao momento, afastada no âmbito do presente procedimento cautelar).
Vale isto por dizer que a circunstância de não ter sido deduzida acusação contra o arguido AA não é suficiente para que se proceda ao requerido levantamento do arresto relativamente ás viaturas da requerente.
Por outro lado, não se vislumbra a alegação de factos concretos que permitam ao Tribunal concluir que o prejuízo resultante do arresto para a sociedade agora requerente excede consideravelmente o crédito que com ele se pretende acautelar.
Por último, não foi requerida prestação de caução para o levantamento do arresto quanto às viaturas em causa.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefiro o requerido a fls. 301 e 302 e a fls. 367.

Ainda com relevo, de acordo com os elementos constantes do processo, apura-se:
i). Em sede de inquérito o Ministério Público deduziu pedido de arresto preventivo (ao abrigo do disposto no art.º 228.º, do CPP) para garantia do pagamento do valor das vantagens dos crimes fiscais indiciados.
ii). Por decisão datada de 09.03.2020, foi deferido o pedido.
iii). Entre os bens arrestados encontram-se 4 veículos automóveis que constam como sendo propriedade da Recorrente “EMP01... Unipessoal, Lda.”, a saber:
- Matrícula ..-SD-.., marca ..., modelo ...;
- Matrícula ..-IU-.., marca ..., modelo ...;
- Matrícula ..-RO-.., marca ...; e
- Matrícula ..-..-VP, marca ..., modelo ....
iv). De acordo com a decisão de arresto (art.ºs 36 a 38), a “EMP01... Unipessoal, Lda.” foi constituída em 19.02.2016 e tinha como gerente formal KK.
Entre 2016 e 2019 eram os suspeitos BB, CC e outros quem a geriam, de facto e de direito.
v). No âmbito do inquérito a “EMP01... Unipessoal, Lda.” nunca foi constituída arguida.
vi). Em 15.03.2023 o Ministério Público proferiu despacho de encerramento do inquérito, no qual a “EMP01... Unipessoal, Lda.” não foi acusada, nem consta mencionada no despacho de arquivamento.
vii). No despacho de acusação faz-se menção à “EMP01... Unipessoal, Lda.” nos artigos 136 (ano de 2016), 159 (ano de 2017), 182 (ano de 2018), 198 (ano de 2019), 212 (ano de 2020), enquanto entidade compradora de mercadorias à(s) sociedade(s) arguida(s) EMP04... e/ou EMP05... e/ou BB Lda., sem emissão de faturas, apesar do pagamento das mercadorias pela ora Recorrente.
viii). Na referida acusação o Ministério Público liquida o valor das vantagens da prática dos crimes fiscais acusados e faz referência ao património arrestado para garantia do pagamento de tal valor, nomeadamente aos 4 veículos automóveis.
ix). Foi proferido despacho de arquivamento relativamente ao arguido AA, por falta de indícios da prática de crime.
x). Na sequência de uma busca à residência de AA foi apreendida, em sede de inquérito, a quantia de €1.090,00.
xi). No despacho de encerramento do inquérito consta, quanto a esta quantia, o seguinte:
“Atendendo que foi proferido despacho de arquivamento quanto ao arguido AA, não se justifica a manutenção da apreensão das quantias em dinheiro que lhe foram apreendidas na residência, pelo que notifique o mesmo, nos termos do artigo 186.º, n.º 1 e 3 do CPP, para proceder ao levantamento da quantia de 1.090,00 € que lhe foi apreendida na sua residência.”
xii). Em 06.04.2023 AA requereu:
 “o levantamento da quantia de € 1090,00 (mil e noventa euros), em numerário, apreendida no âmbito do presente Inquérito, nos termos do artigo 186º do CPP, a qual pertence à Sociedade EMP01... Unipessoal, Lda., da qual o arguido é atual gerente.”
xiii). A 12.04.2023 a Ex.ma Procuradora da República determinou que se procedesse à devolução de tal quantia.
xiv). Na decisão de arresto aludida em ii) determinou-se, também, o arresto de 3 imóveis pertença de AA.
xv). No mesmo requerimento de 06.04.2023 AA solicitou, ainda:
 “b) O cancelamento do registo de arresto sobre a moradia que constitui a residência do arguido”.
xvi). Face a este pedido o Ministério Público promoveu:
“Quanto aos imóveis inscritos na matriz sob os artigos ...36..., ...14... e ...15º da freguesia ..., em ..., registados em nome do arguido AA, assiste razão ao requerido, pois que, tendo os autos sido alvo de arquivamento quanto a tal arguido não se justifica a manutenção do arresto do seu património.
Nessa medida, promovo se determine o cancelamento do arresto preventivo de tais imóveis, ao abrigo do disposto no artigo 228.º, n.º 6 do CPP.”
xvii). Relativamente a esse pedido, foi proferido despacho pelo JIC, datado de 21.04.2023, com o seguinte teor:
“Quanto aos imóveis inscritos na matriz sob os artigos ...36..., ...14... e ...15º da freguesia ..., em ..., registados em nome do arguido AA, determina-se o cancelamento do respetivo arresto preventivo, ao abrigo do disposto no art. 228, ns. 6 e 7 , do CPPenal, porquanto tendo os autos sido alvo de arquivamento quanto a si não se justifica a sua manutenção”.
xviii). AA consta como atual gerente da “EMP01... Unipessoal, Lda.”.
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II.3. Da análise dos fundamentos do recurso:
II.3.1. Saber se o despacho que indeferiu o pedido de levantamento do arresto preventivo de 4 veículos de que a Recorrente se diz titular deve ser revogado e substituído por outro que determine o levantamento do arresto.
Por simples requerimento, a sociedade “EMP01... Unipessoal, Lda.” deduziu pedido de levantamento do arresto dos quatro veículos automóveis registados em seu nome, basicamente por insubsistência dos pressupostos que levaram ao seu decretamento.
Tal pedido mereceu despacho de indeferimento.
É contra este despacho que a Recorrente se insurge, sustentando-se nos seguintes argumentos recursivos:
- Teve conhecimento do arresto apenas em setembro de 2023;
- Em março de 2023 foi proferido despacho de encerramento do inquérito, do qual não resultou a dedução de acusação contra a Recorrente;
- Não é arguida, nem demandada civil, nem tão pouco aquele que havia atuado em sua representação (AA);
- A Recorrente não foi constituída arguida no prazo de 72 horas após o arresto ter sido decretado, nem há despacho fundamentado a dispensar essa constituição, com o que foi violado o art.º 192.º, do CPP, em razão do que não pode subsistir a manutenção do arresto;
- No decurso do inquérito dos factos dados como indiciariamente demonstrados resultava o envolvimento da Recorrente com os demais sujeitos processuais, contudo não se verificou a comprovação desses factos; e
- Não resultou da prova recolhida que os veículos estejam no domínio patrimonial dos arguidos acusados.
Já nesta Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto manifestou-se a favor da pretensão da Recorrente, por entender que, em face do levantamento da apreensão da quantia de €1.090,00 e do arresto dos imóveis pertença de AA, não há razão lógica para manter o arresto dos veículos, registados em nome de sociedade unipessoal, da qual é dono o mesmo AA.
Vejamos.
A sociedade “EMP01... Unipessoal, Lda.”/Recorrente é mera interveniente acidental no incidente de arresto preventivo, por ser terceira não interveniente no incidente e quatro veículos automóveis, registados em seu nome, terem sido arrestados.
Em causa está a figura do arresto preventivo (art.º 228º, do CPP), no âmbito da chamada perda clássica, com vista à garantia do pagamento do valor das vantagens decorrentes da prática de crimes, no caso fiscais.
O arresto preventivo, a par da caução económica (227.º, do CPP), é uma medida de garantia patrimonial.
Visa a garantia de pagamento futuro de pena pecuniária, das custas do processo, de qualquer dívida ao Estado, do valor dos instrumentos, produtos ou vantagens geradas pela prática de crime/ilícito típico (quando estes não possam ser apreendidos em espécie) e de indemnizações civis derivadas dessa mesma prática de crime/ilícito típico.
Em matéria de iniciativa processual do pedido de arresto preventivo, a lei atribui legitimidade ao lesado para deduzir tal pedido para garantia de futura liquidação de indemnizações civis (art.º 228.º, n.º 1, do CPP).
  Relativamente a todos os restantes pedidos de arresto preventivo, o impulso processual está exclusivamente atribuído ao Ministério Público (art.ºs 194.º, n.º 1, 1ª parte, em sede de inquérito, e 228º, n.º 1, do CPP).
Vale dizer que, nestes casos, compete ao Ministério Público, e só a ele, requerer a aplicação de tal medida cautelar de garantia patrimonial.
Quando assim atua, o Ministério Público fá-lo na veste de representante do Estado, em defesa (no caso preventiva e garantística) da exequibilidade de um expectável futuro crédito do Estado.
Este poder/dever do Ministério Público de representação do Estado e de defesa dos interesses que a lei determina, entre os quais os patrimoniais do Estado, está previsto nos artigos 219.º, n.º 1, da CRP, 2º e 4º, n.º 1, do Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto).
A aplicação da medida de garantia patrimonial de arresto preventivo é da competência exclusiva dos tribunais, considerando a restrição de direitos fundamentais decorrentes do seu decretamento (vide art.º 268.º, n.º 1, al. b), do CPP, no que respeita ao juiz de instrução, quando o arresto é pedido em sede de inquérito).
Na verdade, o arresto preventivo traduz-se numa medida provisoriamente restritiva do ius utendi, fruendi et abutendi  inerente, no caso, ao direito de propriedade - apesar de não afetar o direito real em si mesmo -, o que, previsivelmente, causa sérios danos aos visados.
Sem prejuízo, a atuação do tribunal em matéria de arresto preventivo está condicionada ao princípio do pedido, a que obedece essa medida de garantia patrimonial.
Este princípio postula, sinteticamente, que o processo só se inicia sob o impulso da parte, é a parte que circunscreve o thema decidendum, o tribunal não pode condenar em quantidade superior, nem em objeto distinto do que foi pedido (princípio da correspondência entre o pedido deduzido e a decisão, que é uma vertente do princípio do pedido).
Transposto para a medida de garantia patrimonial que nos ocupa, tal significa que a atuação do juiz está limitada em várias vertentes, a saber:
- Não pode aplicar medida de garantia patrimonial para defesa antecipada dos interesses patrimoniais do Estado sem um pedido do Ministério Público (art.ºs 194.º, n.º 1, 1ª parte, em sede de inquérito, e 228º, n.º 1, do CPP);
- Não pode aplicar medida de garantia patrimonial mais gravosa do que a que consta do pedido, sob pena de nulidade (art.º 194.º, n.º 3, do CPC);
- Não pode determinar uma forma mais gravosa de execução da medida de garantia do que a requerida, sob pena de nulidade; e
- Não pode aplicar medida de garantia patrimonial com base em materialidade distinta da invocada pelo Ministério Público (sem prejuízo da sua liberdade quando aos fundamentos de direito da decisão), sendo o Ministério Público quem delimita o objeto do incidente.
Estes condicionalismos impõem ao tribunal uma amplitude de ação limitada e até algo passiva.
             
O que nos conduz para outra subquestão, que é a de saber se está na disponibilidade do juiz a manutenção de uma medida de arresto quando o Ministério Público (ou o lesado, quando deu o impulso processual ao incidente) solicita o seu levantamento, total ou parcial.
Entendemos que o tribunal está impedido de manter uma medida de garantia patrimonial com vista a garantir a exequibilidade de um crédito do Estado, quando o Ministério Público requer o seu levantamento, independentemente das razões invocadas para o efeito e da posição que o tribunal possa ter quanto às mesmas.
É que a limitação da intervenção judicial decorrente do princípio do pedido prescrita no número 3 do art.º 194.º, do CPP, não se restringe ao despacho inicial onde se decreta a medida de garantia patrimonial, tratando-se de uma disposição geral aplicável também a todos os despachos/decisões em que se apreciem pedidos posteriores de modificação/extinção de garantias patrimoniais.
Mal se compreenderia que o tribunal tivesse inicialmente a sua ação condicionada ao pedido do Ministério Público e pudesse, em momento ulterior, manter uma medida de garantia patrimonial contra a vontade do dominus do impulso processual da aplicação dessa mesma medida.
Visto por outro prisma, também não cabe ao tribunal imiscuir-se no papel do Ministério Público enquanto representante do Estado, na defesa dos interesses patrimoniais do mesmo.
Aqui chegados, tendo em conta as considerações supra, cumpre questionar como interpretar e valorar a posição do Ministério Público que, embora não seja o requerente do levantamento do arresto, manifeste concordância com esse levantamento.
É, precisamente, o caso dos autos, no que concerne à posição assumida pelo Ministério Público nesta Relação.
 Dito de outro modo, se, face à concordância do Ministério Público no sentido de ser levantado o arresto de bens, é permitido ao tribunal a manutenção do arresto.
Negligenciando, obviamente, a posição processual em que intervém, uma tomada de posição por parte do Ministério Público num incidente suscitado por um visado de um arresto, em que manifesta dever ser levantado o arresto de certos bens (em consonância com o pedido), equivale a um pedido de modificação parcial do arresto por si requerido.
Ou seja, para a matéria que nos ocupa, a concordância do Ministério Público com um pedido de levantamento parcial do arresto deduzido por terceiro terá de ser valorada com os mesmos efeitos de um pedido deduzido diretamente pelo Ministério Público nesse mesmo sentido.
Na verdade, ao concordar com o levantamento do arresto, o Ministério Público está, na veste de representante dos interesses patrimoniais do Estado, embora sujeito a princípios de legalidade, a prescindir manter o arresto para garantia futura do crédito do Estado.
Ao fazê-lo, o tribunal não está em posição de negar essa pretensão, por força das limitações legais dos seus poderes, derivadas da vinculação ao princípio do pedido e às decorrências do mesmo.
A ser assim, o recurso terá de proceder, sem necessidade de entrarmos nos argumentos de fundo que animaram as conclusões do recurso da Recorrente.

Como quer que seja, chegar-se-ia ao mesmo resultado por outro caminho.
É apodítico estarem as medidas de garantia patrimonial sujeitas aos princípios gerais da legalidade, da necessidade, da adequação, da proporcionalidade e da precariedade (art.º 193.º, n.º 1, do CPP).
O princípio da adequação, em articulação com o da precariedade, postula que as medidas de garantia patrimonial (tal qual as medidas de coação) têm de ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer, sendo impostas e/ou alteradas com base na situação de facto existente em cada momento.
As restrições ao ius utendi, fruendi et abutendi, ainda que provisórias (mas que podem perdurar por muitos e longos anos), decorrentes do decretamento do arresto devem ser reduzidas ao justo ponto, embora sem fazer perigar outros interesses perseguidos pelo Estado, como seja o impedir a apropriação de vantagens decorrentes da prática de crimes/ilícitos típicos e da promoção do bem comunitário comum.
Havendo alterações na situação de facto que fundamentou a aplicação de uma medida de garantia patrimonial, a ponto de essa medida se ter tornado inadequada para acautelar as exigências processuais (o que vale em dois sentidos, tanto para o reforço da medida, como para a sua redução ou extinção), impõe-se ajustar a providência às novas exigências - a pedido do Ministério Público, ou do visado no caso da redução, e tendo por limite esse pedido -, sob pena de violação do princípio da adequação.
Ora, o entendimento veiculado nos autos junto deste tribunal pelo Ministério Público traz implícita a consideração do desajuste superveniente da manutenção do arresto dos quatro veículos automóveis para garantia das referidas exigências processuais que o caso atualmente requer (in casu, por ser excessiva), pelo que, também por esta outra via se chegaria à mesma conclusão.

Termos em que se julga procedente o recurso.

III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pela sociedade “EMP01... Unipessoal, Lda.”.

Em consequência:
- Revogar o despacho recorrido.
- Determinar o levantamento do arresto preventivo dos veículos:
- Matrícula ..-SD-.., marca ..., modelo ...;
- Matrícula ..-IU-.., marca ..., modelo ...;
- Matrícula ..-RO-.., marca ...; e
- Matrícula ..-..-VP, marca ..., modelo ....
- Determinar o cancelamento dos registos de tais arrestos.
Sem custas (artigo 521º, n.º 2, a contrario, do CPP).
Notifique e D.N.