Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
936/21.5T8VVD.G1
Relator: PEDRO MAURÍCIO
Descritores: RECURSO
VALOR DA CAUSA
OFENSA DE CASO JULGADO
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O legislador consagrou no art. 629º/1 do C.P.Civil de 2013 uma limitação à faculdade de recurso, impondo para a sua admissibilidade a verificação cumulativa de dois requisitos (ambos necessários, mas cada um deles insuficiente por si mesmo): 1) que a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre, sendo que a alçada constitui o limite (definido em regra pelo valor da causa) dentro do qual um tribunal julga sem possibilidade de recurso ordinário; b) que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal que proferiu a decisão de que se recorre, sendo que a sucumbência (decaimento) constitui o prejuízo ou desvantagem que a decisão implicou para uma parte (que ficou, total ou parcialmente, vencida).
II - Relativamente ao regime das regras gerais de admissibilidade do recurso consagrado no nº1 do art. 629º, o legislador consagrou alguns casos de excepção, uns no sentido da admissibilidade do recurso ocorrer fora daquelas regras gerais, e outros no sentido do seu impedimento ou limitação, casos que estão sempre relacionados com a política legislativa, sendo um dos casos de excepção precisamente aquele que está estatuído na alínea a) do nº2 do art. 629º [“Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento (…) na ofensa de caso julgado (…)”].
III - Porque a sentença que se pretende impugnar não apreciou nem julgou a questão da verificação ou não do caso julgado, porque tal questão foi objecto de decisão autónoma e distinta (despacho de 27/10/2023) e porque essa decisão não é objecto do presente recurso (impugnação), então, no caso concreto, relativamente à sentença (única decisão que efectiva e concretamente impugnada no recurso) não é aplicável o fundamento previsto na (parte final) alínea a) do nº2 do art. 629º e, por via disso, a mesma é irrecorrível.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães[1]

1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Reclamada

Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo comum, que AA instaurou contra BB e CC, no âmbito da audiência prévia realizada na data 03/05/2021, foi proferido despacho a fixar o valor da presente ação em € 4.897,00.
Na data de 05/01/2024, foi proferida sentença cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e da qual se transcreve o respectivo decisório: “Face ao exposto, julga-se a acção parcialmente procedente, por provada, e em consequência: a) Condena-se os Réus BB e CC a pagar ao Autor AA, a quantia de € 1 350,00 (mil trezentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal e anual de 4,00% (ou outra que venha a estar em vigor), desde a citação até efetivo e integral pagamento; b) Absolve-se os Réus do demais peticionado”.
Em 17/01/2024, a Ré apresentou requerimento (ref. Citius «15606891») no qual consignou “porque se não pode conformar com a sentença proferida nos autos uma vez que a julga nula por violação da lei, dela vem interpor Recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães”, tendo junto as respectivas alegações, as quais termina consignando que “Viola, assim, a sentença, o disposto nos artigos 576 nº1, 577 ai. i), 580, 615 nº1 ai. a) do CPC e 317 do Código Civil, pelo que requer seja julgada nula e substituída por Acórdão que absolva a Ré do pedido” e formulando as seguintes conclusões:
“A. A exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior", acrescentando ainda que "quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando da ação, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior.
B. 1. Na presente acção as partes são as mesmas rigorosamente que na acção nº 624/20.....
2. Na presente acção a causa de pedir é rigorosamente igual na acção referida supra.
3. Os pedidos são os mesmos.
4. As circunstâncias de facto e de direito são as mesmas.
C. Há, assim, a verificação da excepção do caso julgado e autoridade de caso julgado.
D. Numa acção, porém, a Ré, aqui recorrente é absolvida, na presente acção é condenada pelas mesmas razões e fundamentos.
E. E Ré beneficia da presunção do pagamento quer porque o referiu quer porque o Autor confessa o recebimento.
F. O Autor confessa ter recebido nos presentes autos e nos autos 363/20.... um valor largamente superior ao dos honorários peticionados, que, aliás, havia reduzido para € 1.100,00, em requerimento que foi aceite”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Na data de 04/04/2024, o Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso nos seguintes termos: “Por ser legalmente admissível (artigo 629.º, n.º 2, alínea a) do Código Processo Civil), ter sido interposto tempestivamente (artigo 638.º, n.º 1 e 7 do mesmo Código) e ter a recorrente legitimidade (artigos 631.º, n.º 1 do mesmo Código), admite-se, ao abrigo do artigo 641.º, n.º 1 n.º 2 “a contrario”, do Código de Processo Civil, o recurso interposto pela Ré, o qual é de apelação (artigo 644.º, n.º 1, alínea a) do mesmo Código), a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo”.
Distribuído o recurso neste Tribunal da Relação, na data de 10/04/2024, foi proferido o seguinte despacho:
“A Ré interpôs recurso relativamente à sentença proferida em 05/01/2024, mas no respectivo requerimento de interposição não indicou o normativo ao abrigo do qual é admissível recurso da decisão.
Ora, verifica-se que, no âmbito da audiência prévia realizada na data 03/05/2021, foi proferido despacho a fixar o valor da presente ação em € 4.897,00.
Logo, a sentença que se pretende impugnar não é recorrível por não preencher o requisito legal da sua admissibilidade consistente em que «a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre, sendo que a alçada constitui o limite (definido em regra pelo valor da causa) dentro do qual um tribunal julga sem possibilidade de recurso ordinário» (cfr. art. 629º/1 do C.P.Civil de 2013). Relembre-se que, nos termos do art. 44º/1 e 3 da LOSJ (Lei nº62/2013, de 26/08), em matéria cível, a alçada dos tribunais de primeira instância é de € 5.000,00.
Mais acresce que, uma vez que na sentença se condena a Ré a pagar ao Autor «a quantia de € 1 350,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal e anual de 4,00% (ou outra que venha a estar em vigor), desde a citação até efetivo e integral pagamento», a mesma também não é recorrível por não preencher o requisito legal da sua admissibilidade consistente em que «a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal que proferiu a decisão de que se recorre, sendo que a sucumbência (decaimento) constitui o prejuízo ou desvantagem que a decisão implicou para uma parte (que ficou, total ou parcialmente, vencida)» (cfr. art. 629º/1 do C.P.Civil de 2013). Recorde-se que, actualmente, o valor mínimo da sucumbência, para efeito de recurso relativamente a uma decisão proferida por Tribunal de 1ªInstância para Tribunal da Relação, é de € 2.500,01.
Porém, nas alegações de recurso, a Ré invoca que «a sentença viola o caso julgado e a autoridade do caso julgado», o que poderia consubstanciar a excepção ao regime de admissibilidade do recurso estatuído no nº1 do referido art. 629º, nomeadamente a que está prevista na alínea a) do nº2 do mesmo preceito [“Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento (…) na ofensa de caso julgado (…)”].
Aliás, no despacho de admissão do recurso (proferido em 04/04/2024) menciona-se tal preceito, mas este despacho de admissão proferido pelo Tribunal da 1ªInstância não vincula este Tribunal da Relação nem constitui caso julgado (cfr. art. 641º/5 do C.P.Civil de 2013).
Sucede que, como a Ré bem sabe, nem contestação apresentada pelos Réus, nem em qualquer outro articulado/requerimento, foi suscitada a questão da presente acção constituir uma violação de um caso julgado (ou da autoridade do caso julgado), designadamente o formado no âmbito do processo judicial indicado nas alegações de recurso (624/20....).
Não tendo sido invocado (e não se vislumbrando que o Tribunal a quo pudesse estar em condições de concluir no sentido da sua existência, o que, aliás, nem sequer é inovado em sede de recurso), obviamente que a sentença (que se pretende impugnar através do presente recurso) não teve nem tem como objecto a apreciação da verificação ou não da existência de caso julgado (ou de autoridade de caso julgado) formado no aludido proc. nº624/20...., sendo certo que o seu objecto se limita à apreciação da existência de serviços (judiciais e extrajudiciais) de advocacia prestado pelo Autor aos Réus e à determinação do seu valor, e à apreciação da excepção peremptória da prescrição presuntiva invocada pelos Réus (única excepção efectivamente invocada nos autos).
Nestas circunstâncias, uma vez que a sentença ora recorrida não tem como objecto a apreciação da verificação ou não da existência de caso julgado (ou de autoridade de caso julgado) formado no citado proc. nº624/20...., mostra-se inaplicável o regime de excepção previsto na (parte final) alínea a) do nº2 do art. 629º do C.P.Civil de 2013 e, por via disso, a sentença revelar-se-á irrecorrível.
Porém, uma vez que tal fundamento de irrecorribilidade não foi suscitada e apreciada no Tribunal a quo, antes deste Tribunal ad quem proferir decisão sobre a efectivamente recorribilidade/irrecorribilidade, deverá ser ouvida a Recorrente, nos termos da parte final do nº1 do art. 655º do C.P.Civil de 2013 (não se ouvem o Autor/Recorrido e o Réu uma vez que aquele nem sequer apresentou contra-alegações e este não apresentou recurso).
Face ao exposto, determina-se a notificação da Ré/Recorrente) para, no prazo de 10 dias, querendo, se pronunciarem sobre a questão ora suscitada.”

Na sequência, através de requerimento apresentado em 11/04/2024 (ref. citius «48579618»), a Ré veio dizer e requerer:
“1° Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso com fundamento na ofensa do caso julgado - art. 629, nº 2 aI. a) "in fine" do Código do Processo Civil.
2.° Assim, mesmo que o valor da casa seja inferior ao valor da alçada do Tribunal da Relação de Guimarães, e o valor da sucumbência tão só de € 1.350,00 acrescido de juros, a verdade é que o recurso é interposto com fundamento da ofensa do caso julgado.
3.° Dispõe o art. 639, nº 2 do CPC que versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar as normas jurídicas violadas.
4.° E, dispõe. também, a lei. que quando se não tenham procedido às especificações a que alude o número dois do artigo referido, " ... o relator convida o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las. no prazo de cinco dias ... " - nº 3 do art. 639 do CPC.
5.° Nesse sentido, quer a recorrente dizer que por mero lapso não indicou que as normas jurídicas violadas foram as normas constantes dos artigos 619, nº 1,620 e 621 do CPC,
Porém,
6.° a questão fundamental que no despacho se levanta é a de a questão da violação do caso julgado (ou da autoridade do caso julgado) não ter sido suscitada nem na Contestação nem em qualquer articulado/requerimento.
Ex.mo Sr. Doutor Juiz Desembargador,
7.0 cremos que não assiste razão a V. Exa. Logo na primeira sessão, na primeira audiência de julgamento a Ré formulou requerimento nesse sentido e apontando designadamente o processo judicial referido (624/20....).
8.° A Meritíssima Juiz recebeu o requerimento e na audiência final, na sessão seguinte pronunciou-se longamente sobre o requerimento, indeferindo-o. Está tudo comprovado nos autos.
Assim,
9.° na audiência de 11 de Setembro de 2023, o mandatário da Ré requer seja verificada a excepção do caso julgado - doc. ... (Acta de Audiência de Julgamento, pág. 2).
10.° Na mesma Acta consta que a Meritíssima Juiz ordena a junção da sentença referida pelo mandatário da Ré ao abrigo do princípio do inquisitório - dr. doc. ... (pág. 2).
11.0 Na Acta de Audiência de Julgamento de 27 de Outubro de 2023 a Meritíssima Juiz proferiu o despacho que está exarado na Acta a propósito da invocação pela Ré da excepção do caso julgado - doc. ..., Acta de Audiência de Julgamento, págs. 2 a 6.
12.0 Trata-se de um largo despacho em que a Meritíssima Juiz declara, a final. improcedente a excepção do caso julgado e da excepção da autoridade do caso julgado.
Meritíssimo Senhor Juiz Desembargador
13.0 Cremos. com o devido respeito, que a matéria de excepção não é matéria nova e que tendo sido violada a excepção do caso julgado é sempre admissível o recurso.
Termos em que requer a V. Exa o prosseguimento dos autos com a correcção feita no seguimento do convite ao aperfeiçoamento por V. Exa.”
Na data de 10/03/2022, foi proferida decisão singular pelo relator com o seguinte decisório:
“Face ao exposto, nos termos do art. 652º/1b) do C.P.Civil de 2013, por não ser legalmente admissível, decide-se não admitir o presente recurso de apelação interposto pela Ré/Recorrente através do requerimento apresentado em 17/01/2024 (ref. Citius «15606891») relativamente à sentença proferida na data de 05/01/2024”.
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1.2 Da Reclamação para a Conferência

Inconformada com a decisão singular, a Ré deduziu reclamação para a conferência nos termos do art. 652º/3 do C.P.Civil de 2013, alegando que:

“O recurso de qualquer decisão, independentemente do valor da causa e da sucumbência é sempre admissível com fundamento na ofensa do caso julgado.
Ora, tal princípio consta da norma - aI. a) "in fine" do n? 2 do art. 629 do CPC.
Recebida a sentença pela recorrente, de que foi notificada em 8 de Janeiro de 2024, interpôs recurso no prazo de 10 dias com fundamento na violação do caso julgado.
Não se coloca aqui a questão do valor da causa ou da sucumbência, mas sim a ofensa do caso julgado. E,
como do recurso resulta, outra acção com os mesmos sujeitos, no mesmo juízo do mesmo Tribunal, com idêntico pedido e igual causa de pedir foi julgada anteriormente em sentido diverso.
É, assim, errada, no nosso modesto entender, a decisão singular porque, desta forma, nunca haveria ofensa do caso julgado nas acções em que o valor seja inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação.
As duas acções foram intentadas no mesmo dia,
as duas acções foram intentadas no mesmo Tribunal,
as duas acções acabam por ter decisões em tempos diferentes face à instrução dos processos, e, por tal facto, em nenhuma das contestações se poderia alegar a violação do caso julgado porque no momento não havia qualquer decisão ainda.
Por tal facto, o requerimento relativo à violação do caso julgado foi apresentado na primeira sessão de audiência de julgamento da presente acção.
Se a sentença sobre tal se não debruçou e nada diz é mais uma razão para a admissibilidade do recurso porque o deveria ter feito.
A tomar por boa a presente decisão singular achado está o caminho (melhor, o atalho) para a violação sem escrutínio da excepção do caso julgado.”
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Notificado da presente reclamação, o Autor nada disse.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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2. OBJECTO DA RECLAMAÇÃO E QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do art. 652º/3 do C.P.Civil de 2013, a parte que se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão, devendo o relator submeter o caso à conferência. Perante a configuração prevista neste preceito legal, a parte pode limitar-se a manifestar a vontade de que a matéria em causa seja levada à conferência:  a lei prevê simplesmente que a parte prejudicada requeira que sobre o despacho em causa «recaia um acórdão», sem exigir qualquer justificação/fundamentação para essa iniciativa, sendo que o facto de ter sido proferido despacho sobre qualquer questão processual ou material delimita suficientemente o objecto do posterior acórdão, dispensando outros desenvolvimentos[2], tanto mais que, como se decidiu no Ac. do STJ de 17/10/2019[3], “As reclamações apresentadas ao abrigo do disposto no art. 652.º, n.º 3, do CPC, não podem servir para aditar novos fundamentos ou questões”.
Neste “quadro”, o objecto da “reclamação para a conferência” é delimitado pelo âmbito do despacho do relator que não admitiu o recurso e, por via disso, é apenas uma a questão que incumbe apreciar e decidir por esta conferência: o recurso interposto pela Ré é admissível, devendo ser revogada a decisão singular de não admissão do recurso?
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que revelam para a presente decisão são os que se encontram descritos no relatório que antecede.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Na decisão singular, da qual agora se reclama para a presente conferência, o Relator consignou a seguinte fundamentação:
«Constituindo uma forma de impugnação de uma decisão judicial desfavorável, o recurso pressupõe a possibilidade de reapreciação da questão jurídica ou de facto por um tribunal de nível superior ao que a proferiu. Mas nenhum sistema comporta em si, realisticamente, a possibilidade ilimitada de interposição de recurso de toda e qualquer decisão judicial, sendo necessário estabelecer limites à possibilidade de interposição de recurso, fixando critérios[4].
Como refere António Abrantes Geraldes[5], “Tal como existem pressupostos processuais cujo preenchimento condiciona a prolação de uma decisão de mérito, também a possibilidade de um tribunal superior se debruçar sobre o objecto do recurso depende da verificação de determinados requisitos formais… Sendo a alçada o «limite de valor até ao qual o tribunal julga sem recurso ordinário», em princípio, a parte vencida apenas poderá recorrer de decisão se o valor do respectivo processo exceder a alçada do tribunal que a proferiu e se, além disso, se verificar o seu decaimento em medida que exceda metade dessa alçada”.
Efectivamente, estatui o art. 629º/1 do C.P.Civil de 2013: “O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.
O legislador consagrou neste normativo uma limitação à faculdade de recurso, impondo para a sua admissibilidade a verificação cumulativa de dois requisitos (ambos necessários, mas cada um deles insuficiente por si mesmo): 1) que a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre, sendo que a alçada constitui o limite (definido em regra pelo valor da causa) dentro do qual um tribunal julga sem possibilidade de recurso ordinário; b) que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal que proferiu a decisão de que se recorre, sendo que a sucumbência (decaimento) constitui o prejuízo ou desvantagem que a decisão implicou para uma parte (que ficou, total ou parcialmente, vencida).
Como se refere no Ac. do STJ de 17/10/2019[6], “A apreciação da condição de recorribilidade prevista no art. 629º, 1, do CPC impõe que a admissibilidade de recurso esteja dependente da verificação cumulativa de dois pressupostos jurídico-processuais (requisito duplo): a título principal ou geral, o valor da causa tem de exceder a alçada do tribunal de que se recorre; a título complementar, a decisão impugnada tem de ser desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que decretou a decisão que se impugna (sucumbência mínima). Nunca poderia a questão decidenda da admissibilidade do recurso ser dirimida apenas com a referência ao “valor da sucumbência”, mesmo que este fosse preenchido, uma vez falhado o “valor da causa”; não é necessário, porque prejudicado, nem suficiente, porque incompleto, para a resolução dessa questão decidenda suscitar o “valor da sucumbência” se falha o primeiro requisito (principal) do art. 629º, 1, do CPC”.
Nos termos do art. 44º/1 e 3 da LOSJ (Lei nº62/2013, de 26/08), em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de € 5.000,00, sendo que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção.
Da conjugação do art. 629º/1 do C.P.Civil de 2013 com o art. 44º/1 e 3 da LOSJ, conclui-se que, actualmente, o valor mínimo da sucumbência, para efeito de recurso relativamente a  uma decisão proferida por tribunal de 1ªInstância para tribunal da Relação, é de € 2.500,01.
Mas a lei omite a forma de cálculo da sucumbência (limita-se àquela indicação genérica que deve ser superior a metade da alçada do tribunal de que se recorre), tendo-se suscitado a controvérsia sobre se a perda ou desvantagem do vencido devia ser analisada numa perspectiva subjectiva (a medida do prejuízo da sucumbência é a da pretensão não atendida, como diferença entre o valor do pedido, ou do recurso, e o valor da decisão - sucumbência meramente formal ou processual) ou numa perspectiva objectiva (há sucumbência quando, independentemente das pretensões deduzidas e das posições adoptadas pela parte no processo ou recurso, a decisão judicial a colocar em situação jurídica pior do que aquela que tinha antes da decisão de que pretende recorrer - sucumbência material ou substantiva).
Esta controvérsia foi resolvida através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº10/2015 do STJ[7], no qual se decidiu que “Conformando-se uma parte com o valor da condenação na 1ª instância e procedendo parcial ou totalmente a apelação interposta pela outra parte, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1ª instância e no acórdão da Relação”, explicando-se que “O interesse em recorrer é, pois, o interesse na remoção e eliminação (ou redução) desse dano em que consiste a sucumbência… e o titular da respectiva legitimidade é, naturalmente, a parte que o sofreu (parte vencida)… A sucumbência relevante para aferir a recorribilidade consiste, portanto, numa diferença entre as situações jurídicas delimitadas pela decisão de que se pretende recorrer (antes e depois dela), ou seja, numa modificação negativa (para pior…) da situação jurídica pré-existente à decisão que se pretende impugnar” (consagrou-se, por esta via, a referida perspectiva objectiva).
Explicando o tipo de limitação da faculdade de recurso aqui em causa, refere António Abrantes Geraldes: “Como sucede com a generalidade das opções no campo do direito processual civil e da orgânica judiciária, com a regulação da recorribilidade em função do valor ou da sucumbência o legislador visou compatibilizar o interesse da segurança jurídica potenciado por múltiplos graus de jurisdição, com outros ligados à celeridade processual, à racionalização dos meios humanos e materiais ou à dignificação e valorização da intervenção dos Tribunais Superiores. Se, em abstracto, a multiplicação de graus de jurisdição é susceptível de conferir mais segurança às decisões judiciais, não deve servir para confrontar Tribunais Superiores, de forma massificada, em processos cujo valor ou sucumbência não excedam determinado montante” [8], sendo que “essa exigência complementar relacionada com o valor da sucumbência foi introduzida na reforma processual de 1985, concretizando a necessidade de concentrar energias naquilo que é mais importante, a premência na erradicação de instrumentos potenciadores da morosidade da resposta judiciária ou o interesse em dignificar a actividade dos Tribunais Superiores”[9].
A limitação legal (por lei ordinária) do direito ao recurso em sede de processo civil mostra-se conforme com a C.R.Portuguesa, uma vez que, ao contrário do que sucede no processo penal (cfr. art. 32º/1), não impõe o direito ao recurso, cabendo ao legislador ordinário definir os casos e os termos em que o recurso é admissível.
Sobre esta matéria, pronunciou-se, de forma exaustiva, o Ac. da RG de 21/03/2019[10], para o qual se remete, e aqui apenas se transcreve a parte que entendemos ser essencial: “… «a Constituição não exige a consagração de um sistema de recursos sem limites ou ad infinitum (Ac.nº125/98) A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos “patamares” de recurso (Acs. Nºs 72/99, 431/02 e 106/06)»… este Tribunal tem entendido, e continua a entender…, que, prevendo a Constituição a existência de tribunais de recurso na ordem dos tribunais judiciais, admite implicitamente um sistema de recursos judiciais, pelo que se impõe, como conclusão, que «o legislador ordinário não pode suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos», mas goza, neste domínio, de ampla liberdade de conformação, desde que não vá até ao ponto de limitar de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se tivesse de concluir que os recursos tinham sido suprimidos. «Respeitados estes limites…, o legislador ordinário poderá ampliar ou restringir os recursos civis, quer através da alteração dos pressupostos de admissibilidade, quer através da mera actualização do valor das alçadas» (Ac. nº 106/2006, de 07.02.2006, do TC… O Tribunal considerou, então, que, com ressalva da matéria penal, atendendo ao que dispõe o n.º 1 do art. 32.º da Constituição, tal direito não é um direito absoluto - irrestringível. Diferentemente, o que se pode retirar, inequivocamente, das disposições conjugadas dos arts. 20.º e [atual] 210.º da Constituição, em matérias diversas da penal, é que existe um genérico direito de recurso dos atos jurisdicionais, cujo preciso conteúdo pode ser traçado, pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude. Ao legislador ordinário estará vedado, exclusivamente, abolir o sistema de recursos in toto ou afetá-lo substancialmente… Conclui-se, assim, que a irrecorribilidade fundada na relação entre o valor da acção e a alçada dos tribunais não viola a Constituição, máxime, o direito de acesso aos tribunais consagrado no seu art. 20º, n.º 1: o legislador ordinário goza de ampla margem de conformação do direito ao recurso em processo civil, domínio em que a Constituição não consagra o direito a um duplo grau de jurisdição, salvo - segundo algumas opiniões -, em matéria de direitos, liberdades e garantias (conforme Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 44/2008… a ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade, e do regime, dos recursos reconhecida ao legislador ordinário em processo civil, tem como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º202/99, de 6 de Abril de 1999…)…” (os sublinhados são nossos).
No caso em apreço, tendo sido fixado o valor da presente ação em € 4.897,00, a sentença que se pretende impugnar não é recorrível por não preencher o requisito legal da sua admissibilidade consistente em que «a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre» (como supra se referiu, em matéria cível, a alçada dos tribunais de primeira instância é de € 5.000,00).
Mais: uma vez que a sentença condena a Ré a pagar ao Autor «a quantia de € 1 350,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal e anual de 4,00% (ou outra que venha a estar em vigor), desde a citação até efetivo e integral pagamento», a mesma também jamais seria recorrível por não preencher o requisito legal da sua admissibilidade consistente em que «a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal que proferiu a decisão de que se recorre» (como supra se referiu, o valor mínimo da sucumbência, para efeito de recurso relativamente a uma decisão proferida por Tribunal de 1ªInstância para Tribunal da Relação, é de € 2.500,01)
Nestas circunstâncias, conclui-se que não estão preenchidos os requisitos da recorribilidade relativos ao valor da alçada e ao valor da sucumbência.
Porém, na motivação e nas conclusões do recurso, a Ré invoca que «a sentença viola o caso julgado e a autoridade do caso julgado».
Relativamente ao regime que supra se descreveu das regras gerais de admissibilidade do recurso consagrado no nº1 do art. 629º, o legislador consagrou alguns casos de excepção, uns no sentido da admissibilidade do recurso ocorrer fora daquelas regras gerais, e outros no sentido do seu impedimento ou limitação, casos que estão sempre relacionados com a política legislativa.
Um dos casos de excepção é precisamente o estatuído naquela alínea a) do nº2 do art. 629º [“Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento (…) na ofensa de caso julgado (…)”], relevando aqui a situação relativa à ofensa do caso julgado formal ou material.
Explica António Abrantes Geraldes[11], “estão (…) excluídas desta previsão especial as situações em que se afirme a existência de caso julgado (ou absolvendo o réu da instância) ou se assumam os efeitos da autoridade de caso julgado emergente de outra decisão. Efectivamente, nestes casos não se verifica qualquer violação do caso julgado, antes a prevalência de outra decisão já transitada em julgado, situação que fica sujeita às regras gerais sobre a recorribilidade (art. 629.º, n.º1) e oportunidade de impugnação (arts. 644.º e 671.º)”
Daqui decorre, desde logo, que a invocação de que «a sentença viola a autoridade do caso julgado» não se subsume à previsão da alínea a) do nº2 do art. 629º e, por isso, não constitui um fundamento válido para o presente recurso ser admitido sem o cumprimento das regras gerais. 
Resta a invocação de que «a sentença viola o caso julgado».
Ora, analisando integralmente o teor da sentença que se pretende impugnar, verifica-se sem margem para quaisquer dúvidas que a mesma não teve nem tem como objecto a apreciação da verificação ou não da existência de caso julgado eventualmente formado no aludido proc. nº624/20...., sendo certo que o seu objecto se limitou e limita à apreciação da existência de serviços (judiciais e extrajudiciais) de advocacia prestado pelo Autor aos Réus, à determinação do seu valor, e à apreciação da excepção peremptória da prescrição presuntiva invocada pelos Réus, assinalando-se que na mesma não consta sequer a fixação de quaisquer factos relativos à matéria do alegado caso julgado. Ou seja, a existência ou não de caso julgado não constituiu nem constitui uma das questões que foram objecto de apreciação e decisão (sendo certo que, no recurso, também não se invoca que tenha havido alguma omissão de pronúncia quanto a tal questão).
Esta realidade não foi minimamente colocada em causa, ou contrariada, pela Ré no seu requerimento apresentado em 11/04/2024 (ref. citius «48579618»), através do qual exerceu o respectivo contraditório relativamente ao despacho deste Tribunal ad quem de 10/04/2024 e do qual deu nota da inexistência do fundamento de recurso previsto no art. 629/2a).
Muito antes pelo contrário já que, nesse requerimento apresentado em 11/04/2024 (ref. citius «48579618»), a Ré vem precisamente confirmar que a sentença ora impugnada não apreciou nem julgou qualquer questão sobre o caso julgado, uma vez que tal questão (bem como a questão da autoridade do caso julgado) foi apreciada e julgada por uma outra decisão proferida nestes autos (totalmente distinta da sentença) e que corresponde ao despacho proferido no final da sessão da audiência final realizada em 27/10/2023, e que aqui se transcreve parcialmente:
“Na sessão anterior da audiência final, vieram os Réus invocar a exceção de caso julgado, alegando, para tanto, que no dia 4/10/2020 deram entrada dois processos neste tribunal, com as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir: um deles é esta ação e o outro é o processo 624/20.... a correr termos neste tribunal.
(…)
No caso, importa apreciar apenas se existe identidade em relação ao pedido e à causa de pedir.
Na outra ação, o Autor pedia a condenação da Ré no pagamento do montante de € 1 302,00, acrescido de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento.
Para fundamentar o seu pedido, alegou que no exercício da sua atividade de advogado, a Ré, sua irmã, lhe outorgou procuração forense para que o mesmo lhe prestasse os serviços jurídicos melhor descriminados na nota de honorários junta com a petição inicial no valor de € 4 302,00 e que aquele só lhe pagou a quantia de € 3 000,00.
Na nota de honorários junta com naqueles autos, consta que o Autor lhe prestou serviços no processo de contra-ordenação da autoridade tributária de ... e outros serviços extrajudiciais, tais como contestação de multa via verde, requerimento na camara municipal de ..., negociação e acordo final com o Banco 1... no âmbito do processo executivo n.º 1572/10.7TBVVD, termo de autenticação de procuração com registo e correspondência diversa para ... e ....
Por sua vez, na presente ação, o Autor vem pedir a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 4 897,00 acrescida de juros vincendos à taxa legal até efetivo e integral pagamento, sustentando o seu pedido no seguintes factos: que no exercício da sua profissão de advogado prestou serviços aos Réus, mais concretamente, no processo comum n.º 2150/16...., no processo comum n.º 350/16...., requereu a notificação judicial avulsa no âmbito do processo n.º 827/15...., pagou as taxas de justiça no âmbito daqueles processos, bem como os honorários devidos à Senhora Doutora DD e uma peritagem extra judicial.
Ora, embora nas duas ações, o Autor venha peticionar, em ambas, quantias (distintas) a título de honorários, a causa de pedir numa e noutra é completamente distinta, já que o pedido emerge de serviços distintos.
(…)
Ora, verificamos, pela leitura desta petição inicial e da sentença junta aos autos procferida no âmbito do outro processo, que os serviços alegados numa e noutra são distintos, tanto mais que foram prestados no âmbito de processos judiciais distintos.
Assim, não se verifica exceção dilatória de caso julgado, por não serem as causas de pedir idênticos.
(…)
Relativamente à decisão proferida no processo n.º 624/20...., foi julgada improcedente e a Ré absolvida dos pedidos, por se ter julgado procedente a exceção de prescrição presuntiva invocada. Nesta ação é também invocada a mesma exceção, todavia assenta em pressupostos factuais diversos (nomeadamente serviços distintos executados noutras datas).
Assim, não há dúvidas que a decisão a proferir nestes autos não irá afetar em nada o juízo de mérito proferido naquela ação.
Face ao exposto, julgo a exceção dilatória da exceção de caso julgado e a exceção inominada da autoridade de caso julgado improcedentes”.
Tal decisão foi proferida na sequência do mandatário dos Réus ter requerido, na sessão da audiência final realizada em 11/09/2023, “que seja verificado a exceção de caso julgado, uma vez que, no dia 4/10/2020 deram entrada dois processos neste tribunal, com as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, um deles é esta ação e o outro é o processo 624/20.... a correr termos neste tribunal, requerendo a junção aos autos da sentença proferida neste último” (assistindo aqui razão à Ré quando, no aludido requerimento de  apresentado em 11/04/2024, alegou que tal excepção do caso julgado foi invocada nos autos, não sendo, portanto, correcto o segmento do nosso despacho de 10/04/2024 em que se afirmou que tal excepção nunca foi invocada, mas tal incorrecção não tem qualquer repercussão no que aqui se decide).
Como é consabido, por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[12] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[13]).
Atento quer o teor do requerimento de interposição de recurso, quer o teor das conclusões formuladas, é inequívoco que a Ré limitou o objecto do recurso à sentença, isto é, que apenas pretendeu impugnar e apenas impugnou efectiva e concretamente a sentença proferida em 05/01/2024, não pretendendo impugnar e não tendo efectivamente impugnado qualquer outra decisão, nomeadamente, a constante do aludido despacho proferido no final da sessão da audiência final realizada em 27/10/2023, a qual, para além do mais, julgou improcedente a excepção dilatória do caso julgado eventualmente decorrente/formado no citado proc. nº624/20....: assinale-se que, no requerimento de interposição de recurso e ao longo de todas as alegações, a Ré não produziu uma única referência mínima (fosse directa ou indirecta) àquela decisão/despacho de 27/10/2023. Portanto, o presente recurso não teve nem tem como objecto a decisão apreciou e julgou a excepção do caso julgado
Neste “quadro”, duas conclusões se impõem extrair:
- uma no sentido de que, não tendo a sentença que se pretende impugnar, apreciado e julgado qualquer questão relativa à verificação ou não excepção do caso julgado conexionado com o citado proc. nº624/20.... (e nem sequer contendo a fixação de factos relativamente a esta matéria que permitissem oficiosamente apreciar tal questão, sendo certo que, no recurso interposto, não invoca a deficiência da decisão de facto por falta de fixação de tal factualidade), não pode ser impugnada (recorrida) ao abrigo do regime de excepção previsto na (parte final) alínea a) do nº2 do art. 629º (ou seja, com o fundamento de que viola o caso jugado);
- e outra no sentido de que, tendo a questão da verificação da excepção do caso julgado conexionado com o citado proc. nº624/20.... sido invocada pelos Réus em momento posterior ao do despacho saneador e tendo tal questão sido objecto de apreciação e de julgamento por decisão autónoma e distinta da sentença, então era relativamente àquela decisão (despacho de 27/10/2023) que a Ré devia ter interposto recurso (e não da sentença), sendo essa decisão (e não esta sentença) que estava abrangida pela regime de excepção de recorribilidade previsto alínea a) do nº2 do art. 629º (tendo julgado improcedente a excepção e visando o recurso alterar o sentido da decisão, então estaríamos perante um recurso com fundamento na ofensa do caso julgado e admissível independentemente do valor da causa e do valor da sucumbência).
Ora, apesar do presente recurso assentar apenas discordância da falta de declaração da verificação da excepção dilatória do caso julgado conexionado com o citado proc. nº624/20.... (a questão da invocada nulidade da sentença por contradição entre a fundamentação e a decisão não integra, manifestamente, o regime de excepção de recorribilidade previsto alínea a) do nº2 do art. 629º), certo é que, no presente recurso, a Ré não impugnou o despacho de 27/10/2023 (decisão que julgou improcedente tal excepção), isto é, não incluiu no objecto do recurso tal decisão (antes pelo contrário, já que restringiu o objecto da impugnação apenas à sentença).
E tal recurso tem que ser obrigatoriamente interposto segundo o regime previsto no nº3 (“As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º1”) ou no nº4 (“Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão”), ambos do art. 644º do C.P.Civil de 2013, isto caso não se entenda que o requerimento formulado pelo mandatário dos Réus na sessão da audiência final realizada em 11/09/2023 constitui um articulado (superveniente), pois nesta situação o recurso já devia há muito ter sido interposto por força do estatuído na alínea d) do nº2 do mesmo art. 644º.»
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, porque não estão preenchidos os requisitos de recorribilidade relativos ao valor da alçada do Tribunal e ao valor da sucumbência exigidos pelo nº1 do art. 629º, porque a sentença que se pretende impugnar não apreciou nem julgou a questão da verificação ou não do caso julgado, porque tal questão foi objecto de decisão autónoma e distinta (despacho de 27/10/2023) e porque essa decisão não é objecto do presente recurso (impugnação), então, no caso concreto, relativamente à única decisão que esta efectiva e concretamente impugnada no presente recurso (a sentença) não é aplicável o fundamento previsto na (parte final) alínea a) do nº2 do art. 629º e, por via disso, a sentença impugnada é irrecorrível.
Consequentemente, impõe concluir-se, de forma tão inequívoca quanto manifesta, que o recurso em apreciação é legalmente inadmissível, pelo que, nos termos do art. 652º/1b) do C.P.Civil de 2013, não deve ser admitido (sendo que o despacho de admissão do recurso proferido pelo Tribunal da 1ªInstância não vincula este Tribunal da Relação nem constitui caso julgado - cfr. art. 641º/5 do C.P.Civil de 2013).»
Salvo o devido respeito, o alegado pela Ré quer no requerimento apresentado em 11/04/2024 (de resposta à questão suscitada pelo despacho proferido por este Tribunal da Relação na data de 10/04/2024), quer agora no requerimento da presente reclamação para a conferência, é absolutamente insusceptível de colocar em causa o entendimento (e respectiva fundamentação) perfilhado pelo relator
Com efeito, embora no requerimento da presente reclamação para a conferência não se questione o primeiro fundamento invocado na decisão singular («a sentença objecto do recurso não apreciou nem julgou qualquer questão relativa à verificação ou não excepção do caso julgado conexionado com o citado proc. nº624/20....»), a presente Conferência considera como efectivamente essencial e relevante para a presente decisão o segundo fundamento indicado.
Com efeito, não se questiona nem se coloca em causa que a questão da verificação da excepção do caso julgado conexionado com o citado proc. nº624/20.... foi invocada pelos Réus em momento posterior ao do despacho saneador e foi objecto de apreciação e de julgamento por decisão autónoma e distinta da sentença (cfr. despacho de 27/10/2023), donde decorre que era relativamente àquela decisão que a Ré devia ter interposto recurso (e não da sentença), por ser essa decisão (e não a sentença) que estava abrangida pela regime de excepção de recorribilidade previsto alínea a) do nº2 do art. 629º, nem se questiona nem se coloca em causa que, no recurso que interpôs, a Ré não impugnou o despacho de 27/10/2023 (decisão que julgou improcedente tal excepção), isto é, não incluiu no objecto do recurso tal decisão, e muito antes pelo contrário, já que restringiu o seu objecto apenas à sentença.
            Não tendo sido impugnados/contestados este fundamento que alicerça e sustenta a decisão singular reclamada, verifica-se que inexiste qualquer razão juridicamente válida e fundada para concluir no sentido de estar preenchido algum dos pressupostos legais de recorribilidade da sentença.
            Acresce que várias das alegações insertas no requerimento de reclamação para a conferência se relevam absolutamente infundadas e mesmo destituídas de qualquer sentido lógico:
-  invoca-se que «é errada a decisão singular porque, desta forma, nunca haveria ofensa do caso julgado nas acções em que o valor seja inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação», quando na decisão reclamada está expressamente afirmado e explicado que, caso a Ré tivesse interposto recurso (o que não fez) da decisão que apreciou e julgou a excepção do caso julgado (despacho de 27/10/2023), independentemente do valor da causa e da sucumbência, tal decisão seria recorrível precisamente ao abrigo do regime de excepção de recorribilidade previsto alínea a) do nº2 do art. 629º;
- invoca-se que «se a sentença sobre tal se não debruçou e nada diz é mais uma razão para a admissibilidade do recurso porque o deveria ter feito», quando tendo a execpção do caso julgado sido apreciada e julgada em despacho prévio e autónomo da sentença (despacho de 27/10/2023), ficou esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo sobre tal questão pelo que jamais poderia ser a mesma novamente apreciada e julgada na sentença por já estar formado caso julgado na matéria (cfr. arts. 613º/1 e 620º/1 do C.P.Civil de 2013);
- e invoca-se que «a tomar por boa a presente decisão singular achado está o caminho (melhor, o atalho) para a violação sem escrutínio da excepção do caso julgado», quando se verifica uma situação precisamente contrária; com efeito, se se aderisse à “tese” da Ré, isto é, se se admitisse a recorribilidade de uma decisão que não preenche os requisitos de admissibilidade de recurso previstos no art. 629º/1 apenas porque se invoca como fundamento de recurso a «ofensa do caso julgado», então sim estar-se-ia a «abrir caminho» para se recorrer de toda e qualquer decisão, incluindo as que são legalmente irrecorríveis; acresce que, no caso em apreço, o que efectivamente sucede é que a Ré não impugnou a decisão proferida nos autos e que teve como objecto a concreta apreciação da excepção do caso julgado, e pretendia agora impugnar uma sentença cujo objecto de apreciação é completamente diverso dessa questão, e fazendo-o com o aproveitamento de um regime excepcional de recurso que apenas se aplica (e só se pode aplicar) a decisões que têm por objecto tal questão.             
Nestas circunstâncias e sem necessidade de demais considerações, impõe concluir-se inexiste qualquer fundamento legal para, no contexto dos autos, deferir a presente pretensão da Ré/Reclamante uma vez que, pelas razões explanadas na decisão singular, a sentença em causa não é recorrível.
Consequentemente, deverá improceder a presente reclamação para a conferência e manter-se integralmente a decisão singular do Relator.
Improcedendo a reclamação, porque ficou vencida, deverá a Ré/Reclamante suportar as respectivas custas - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
* *
5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente reclamação para a conferência deduzida pela Ré/Reclamante e, em consequência, em manter a decisão singular do Relator.
Custas da reclamação pela Ré/Reclamante.
* * *
Guimarães, 29 de Maio de 2024.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator – Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ªAdjunta - Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade;
2ºAdjunto – José Carlos Pereira Duarte.


[1]A presente decisão é redigida segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, mas respeita-se, no caso das transcrições, a grafia utilizada nos textos originais.
[2]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 302.
[3]Juíza Conselheira Maria do Rosário Morgado, proc. nº8765/16.1T8LSB.L1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[4]Cfr. Ac. RG de 13/06/2019, Juiz Desembargador José Cravo, proc. nº7444/18.0T8VNF-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[5]In Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 45.
[6]Juiz Conselheiro Ricardo Costa, proc. nº255/10.2T2AVR-J.P1-A.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[7]Datado de 14/05/2015 e publicado no DR, 1ª Série, de 26/06/2015.
[8]In obra referida, p. 46.
[9]In obra referida, p. 48.
[10]Juíza Desembargadora Maria João Matos, proc. nº4954/18.2T8VNF-C.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[11]In obra citada, p. 54.
[12]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[13]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.