Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO (RELATORA) | ||
Descritores: | JUNTA MÉDICA DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO ÂMBITO DO ACORDO NA TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 03/03/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO SOCIAL | ||
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Sumário: | Se na fase conciliatória a seguradora não aceita a IPP, os peritos na junta médica são livres na atribuição de diferentes sequelas e na fixação do grau de incapacidade para o trabalho, operações incindíveis. As sequelas apenas têm de se relacionar com a lesão/dano (traumatismo no punho) e a causalidade e evento (queda de escadote) anteriormente aceites na tentativa de conciliação. Os peritos da junta médica, pese embora emitam opinião unânime, não deixam de estar vinculados a fundamentar devida e acrescidamente o relatório pericial quando há indicadores de que a desvalorização da sequela (no polegar) não é uma questão linear. O que acontece quando na fase conciliatória a seguradora a referenciou (dano no polegar), quando a mesma foi atribuída por outro perito médico, quando o sinistrado não apresenta patologia anterior, quando a sequela de que se queixa é passível de interferir significativamente no posto de trabalho caracterizado nos autos e quando não constem meios de diagnóstico complementares ou pareceres especializados em ortopedia suficientes à caracterização ou afastamento da sequela. É de deferir a reclamação apresentada pelo sinistrado ao relatório pericial por deficiente fundamentação, pelo que importa anular a decisão proferida e repetir a diligência com requisição de exames/pareceres que se revelem necessários. Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso | ||
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Decisão Texto Integral: | I. RELATÓRIO AUTOR/SINISTRADO: J. A.. RÉ: X INSURANCE, PLC. - SUCURSAL EM PORTUGAL. ACÇÃO - especial emergente de acidente de trabalho. A acção iniciou-se por participação da seguradora após alta clínica, referente a acidente ocorrido em 16-06-2019 (queda de escadote com fractura do punho esquerdo) do qual resultou incapacidade permanente. Previamente, o sinistrado foi seguido na seguradora na especialidade de ortopedia em diversas consultas, além de medicina geral e familiar, e fez sessões de fisioterapia. INQUÉRITO PROFISSIONAL E ESTUDO DO POSTO DE TRABALHO: Nele consta: na actividade principal do estabelecimento ”Aluguer, fabricação, tendas para eventos”; na profissão do sinistrado “Indiferenciado”; nas “ferramentas” utilizadas “chave de fendas, chave beta, martelo, aparafusadora”; nos materiais utilizados “alumínio, madeira, ferro, alcatifa e lona” PERÍCIA MÉDICA SINGULAR - 105º, 106º CPT: O senhor perito médico concluiu por uma IPP de 10,4100%, com inclusão de factor de bonificação de 1.5 devido à idade, ITA de 15-06-2019 a 16-08-2019 e IPT de 20% 17-08-2019 a 18-10-2019, data de consolidação médico-legal das lesões. No auto consta: (i) Na “HISTÓRIA DO EVENTO”: “…o examinando tinha 55 anos de idade e é montador de tendas”, “terá caído de um escadote”, “do evento terá(ão) resultado fractura do punho esquerdo”; (ii) Como “LESÕES E/OU SEQUELAS RELACIONÁVEIS COM O EVENTO”: “ membro superior esquerdo: mobilidade do punho sem limitação mas com dor no ângulo máximo de supinação e da extensão. Polegar com primeira falange em flexão e tumefação na metacarpo falângica”. As lesões/sequelas foram enquadradas na TNI nas rubricas I.7.2.2.1.a. e I.8.1.5.1.c. (iii) Na rubrica “LESÕES E/OU SEQUELAS SEM RELAÇÃO COM O ACIDENTE”: “o examinando nunca padeceu de lesões ou sequelas”. (iv) Na rubrica “ANTECEDENTES” “Não refere antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes para a situação em apreço” (v) Na rubrica “QUEIXAS”: “Manipulação e preensão: refere alguma dificuldade para posicionar a mão esquerda e pegar em pesos” (vi) Na rubrica “VIDA PROFISSIONAL OU DE FORMAÇÃO”:” refere maior dificuldade em pegar em pesos, desapertar parafusos…mas precisa de ajuda para algumas tarefas…” TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO – 108º e 112º CPT Frustrou-se por falta de acordo da seguradora, a qual não aceitou a IPP atribuída. Na parte que releva ao recurso, consta da acta o seguinte: Quanto à Descrição do acidente: “No dia -.06.2019, pelas 10:00 horas, em Vila …, em Santarém quando estava a trabalhar por conta da patronal, encontrava-se em cima de um escadote e ao descer, escorregou, caindo sobre o braço esquerdo, o que lhe originou as lesões descritas na perícia médico-legal de fls. 50 e 51 verso, para as quais remete e cujo teor aqui dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, bem como os períodos de IT`s aí referidos, tendo sido considerado pelo perito médico afectado de uma IPP de 10,4100%, a partir de 18.10.2019, data da cura clínica, o que aceita….” Posição da seguradora: “A sua representada aceita a existência do acidente nas precisas circunstâncias descritas neste acto pelo sinistrado e a sua caracterização como acidente de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente e a responsabilidade pelo acidente com base nas seguintes remunerações….Não aceita a IPP de 10,4100%, porquanto o médico da seguradora considera-o com uma IPP de 1,5%.” REQUERIMENTO DE JUNTA MÉDICA – 138º,2, CPT. A seguradora requereu exame pericial por junta médica, formulando quesitos: 1º. – Quais as lesões que o sinistrado sofreu no acidente de que foi vítima em -/06/2019? 2º. – Apresenta o sinistrado sequelas em consequência dessas mesmas lesões? 3º. – Na afirmativa, quais? 4º. – São essas sequelas aptas a determinarem-lhe Incapacidade Permanente para o trabalho? Na afirmativa, de que grau? PERÍCIA POR JUNTA MÉDICA – 139º CPT: Foi determinado a realização de junta médica “generalista” Os peritos responderam por unanimidade do seguinte modo (transcrição total): “Quesito 1-Fractura distal do rádio esquerdo” Quesito 2- sim. Quesito 3 – Rigidez na dorsiflexão do punho esquerdo. O sinistrado apresenta uma instabilidade da metacarpofalangica do polegar esquerdo que os peritos não consideram resultante do acidente dos autos, após ouvir a descrição exaustiva do mecanismo lesional por parte do sinistrado (traumatismo directo do antebraço esquerdo”. Quesito 4 – Sim, IPP de 1,5 já com factor de bonificação de 1.5% incluído, conforme o quadro em anexo.” As lesões/sequelas foram enquadradas na TNI na rubrica I.7.2.2.1.a. O sinistrado apresentou requerimento opondo-se a que os senhores peritos desconsiderem a “instabilidade da metacarpofalângica do polegar esquerdo”, sobre a qual diz ter existido acordo na tentativa de conciliação (lesão e causalidade). Os peritos apenas teriam de se pronunciar sobre a IPP a atribuir. Mais solicitou que os senhores peritos viesse a prestar esclarecimentos sendo ouvidos sobre o motivo pelo qual foi desconsiderada a lesão do polegar, limitando-se aqueles a “uma resposta singela”, sem demonstrar “reflexões, bases em qualquer outro meio complementar de diagnóstico e conclusões fundamentadas”. DESPACHO INTERLOCUTÓRIO ALVO DE RECURSO: Foi proferido despacho sustentando-se que o acordado na tentativa de conciliação “não abrange as lesões e não limita o exame por junta médica relativamente a esta matéria” e que “a resposta dos senhores peritos médicos foi suficientemente fundamentada “. Concluiu-se indeferindo-se o requerido. Este despacho é agora alvo de recurso. DECISÃO A FIXAR A INCAPACIDADE PARA O TRABALHO - 140º/1, CPT: Foi proferido o seguinte despacho, tendo por base uma IPP de 1,5%, segundo despacho ora alvo de recurso: “Pelo exposto, decido: 1.Condenar a seguradora a pagar à autora a pensão anual e vitalícia de € 94,23, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde o dia seguinte ao da alta até integral pagamento;2.Esta quantia é devida desde o dia seguinte ao da alta e obrigatoriamente remida no correspondente capital de remição;3.Condenar a seguradora a pagar à autora a quantia de €15,00, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a tentativa de conciliação até integral pagamento e podendo esta quantia ser paga juntamente com o capital de remição. Nos termos do art. 120º nº1 do Cód. de Processo do Trabalho, fixo à causa o valor de € 1.170,17. Custas a cargo do sinistrado, sem prejuízo da isenção de que beneficia.” FOI INTERPOSTO RECURSO PELO SINISTRADO. CONCLUSÕES: I - O Tribunal a quo ao indeferir a Reclamação e Esclarecimentos da Junta Médica (despacho de 28/9/2021) teve uma posição menos avisada pois o Sinistrado é confrontado com uma avaliação radicalmente contrária ao do Gabinete de Medicina Legal, fundamentada em considerações conclusivas e genéricas. II - Não obstante o carácter eminentemente técnico da prova, cabia ao Tribunal a quo permitir que o sinistrado pudesse questionar esta perícia, para além de haver uma vinculação temática por o nexo causal entre lesões e acidente não poder ser objecto da avaliação. III - E mesmo que não se entendesse concordar com a referida vinculação temática, sempre deveria por precaução processual estar o Tribunal a quo na posse de todas as possibilidades interpretativas para uma ponderação do juízo decisório. IV - Tendo-se registado acordo quanto ao nexo de causalidade entre as lesões e sequelas descritas pelo GML e o acidente não podia, salvo melhor opinião, indagar-se sobre aquele. V - Ocorre que quando a seguradora aceita a existência do nexo de causalidade, fê-lo reportado a factos concretos e à descrição seja do acidente, seja do relatório médico constante dos autos e devidamente identificado e reproduzido pelo sinistrado. VI - Em momento algum, a Apelada discorda da existência de lesões ou de que estas não decorreriam do acidente em termos de causalidade adequada. VII - O Apelante discorda da douta Sentença seja em matéria de facto, seja em matéria de direito. VIII - A Sentença recorrida foi para além do objecto do processo pronunciando-se – ao “beber” o 2.º relatório pericial na íntegra – sobre questão que não devia, redundando em nulidade nos termos do que dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea e) do CPC e que aqui se invoca! IX - Encontra-se incorrectamente julgado o ponto 3 dos factos provados. X - Do ponto 5 apenas se discorda enquanto verte uma IPP, a de 1,5%, mas está correcto por expressar – apenas – o que aqueles peritos atribuíram. XI - Deveria constar nos Factos Provados a lesão que o 1.º Relatório considerou e foi excluída pela Junta médica em termos de nexo de causalidade, bem como o IPP aí atribuída. XII - A exclusão do nexo causal da lesão (instabilidade da metacarpofalângica do polegar esquerdo) com o acidente, para além de não ser tema de avaliação não está minimamente fundamentada, logo insindicável para mais atento o indeferimento de esclarecimentos. XIII - Repetindo-se – aqui como além – que não se pode discutir nesta sede o nexo de causalidade entre as lesões sofridas (e que foram aceites) e o acidente tal qual apresentado a montante pelo sinistrado e, igualmente, aceite pela Apelada – cfr. recente Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa (15/9/2021) in www.dgsi.pt. XIV - E assim, porque existe avaliação (Relatório Médico inicial do GML) que fixa uma IPP, considerando todas as lesões aceites pela Seguradora em termos de nexo de causalidade, deve considerar-se a mesma pois que, no que contende com a IPP da lesão considerada pela Junta Médica, é similar, assim se traduzindo aquela em 10,4100% e que deve no global prevalecer. NESTES TERMOS, - Deve a douta Sentença ser revogada, fixando-se a IPP de 10,4100% fixada em Relatório médico ou, se assim não se entender, procedendo a impugnação de despacho interlocutório determinar-se nova avaliação e esclarecimentos solicitados pelo Sinistrado…” CONTRA-ALEGAÇÕES DA SEGURADORA: não foram apresentadas. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: defende-se a improcedência dos recursos. O sinistrado respondeu, mantendo a posição anterior. O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC. QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, sem prejuízo das questões de natureza oficiosa (1)): a) Recurso interlocutório do despacho que indefere a reclamação ao relatório pericial; b) Recurso sobre o despacho que fixa a IPP (nulidade e fixação de incapacidade para o trabalho). I.I FUNDAMENTAÇÃO FACTUALIDADE Os factos a considerar são os constantes do relatório do acórdão. DESPACHO PROFERIDO EM 28-09-2021 ONDE SE INDEFERIU O PEDIDO DE ESCLARECIMENTOS JUNTO DOS PERITOS: Insurge-se o sinistrado contra o despacho que indeferiu o seu pedido de esclarecimentos aos peritos da junta médica e que considerou que esta era livre na fixação das lesões/sequelas do sinistrado. Quanto ao objecto da perícia: No que se refere ao objecto da perícia carece o sinistrado de razão quando se opõe a que a junta médica considere sequelas diferentes das tidas em conta na fase conciliatória do processo. Cita-se erradamente certa jurisprudência desta Relação, que na verdade se alicerça em pressupostos fácticos diferentes. Comecemos pela tentativa de conciliação: nela as partes devem tomar posição expressa sobre os principais elementos em que se decompõe o acidente de trabalho- 111º e 112º CPT. Do artigo 8º da Lei 98/2009, de 4-09 (NLAT) (2) extrai-se que são elementos do conceito de acidente de trabalho: a existência de uma relação laboral; o evento em sentido naturalístico (acidente); a lesão, perturbação funcional ou doença (dano); a redução na capacidade de trabalho/ganho ou a morte; o nexo de causalidade entre o evento e a lesão; o nexo de causalidade entre a lesão e a sequela geradora de redução na capacidade de trabalho/ganho ou morte. Não existindo acordo na tentativa de conciliação, as partes terão de se pronunciar sobre os factos atinentes à existência e à caracterização do acidente, ao nexo causal entre a lesão e o acidente, à retribuição do sinistrado, à entidade responsável e à natureza e grau da incapacidade atribuída- 111º CPT. O objectivo é reduzir a litigiosidade das fases subsequentes e encaminhar a tramitação posterior dos autos. Se a discordância se resumir à fixação da incapacidade para o trabalho a fase posterior é mais simples. Não há lugar a audiência de julgamento, mas somente a perícia por junta médica e, eventualmente, à requisição de outros exames, pareceres complementares e técnicos que se mostrem necessários– 139º CPT. É o caso dos autos, em que a frustração do acordo foi motivada por não aceitação da incapacidade para o trabalho atribuída pelo perito da fase conciliatória. Há que saber o que é fixar a incapacidade para o trabalho, qual a sua abrangência, qual a margem de liberdade de que os senhores peritos dispõem e qual a matéria a que têm de se ater. O que implica destrinçar os conceitos de lesão em sentido amplo, de sequela e de graduação da incapacidade permanente para o trabalho. E distinguir diferentes causalidades: entre o acidente e lesão, por um lado, e entre esta e a sequela e a incapacidade para o trabalho, por outro lado. A lesão é o efeito causado pelo acidente (evento). “Em medicina, lesão é um termo não específico usado para descrever qualquer dano ou mudança anormal no tecido de um organismo vivo. Tais anomalias podem ser causadas por doenças, traumas ou simplesmente pela prática de esportes, por exemplo.”- Wikipédia, online. Em regra, a lesão manifesta-se logo a seguir ao acidente. Casos há que pode demorar algum tempo a aparecer. O que importa é que haja um nexo de causalidade entre o acidente e a lesão corporal - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Profissionais, Almedina, 2ª ed., p. 39. A lesão pode deixar sequelas. Mas também pode redundar num estado de “cura” em sentido comum, sem patologias. A sequela é, pois, o efeito permanente da lesão. Segundo a - Wikipédia, online “….é uma alteração anatómica ou funcional permanente, sendo causada por uma doença ou um acidente, ou seja, não é congénita”. Pode até acontecer que a sequela coincida com a lesão, o que acontece quando o dano sofrido após o acidente permanece inalterado (por exemplo, movimento de esforço que provoca lombalgia súbita, a qual se mantém ao longo do tempo). O acidente é uma cadeia de factos sucessivamente interligados de forma ininterrupta, obedecendo a uma ordem lógica em que cada um dos referidos elos se sucedem aos outros. A lesão, perturbação ou doença terá de resultar do evento naturalístico. A sequela terá de resultar da lesão/doença, sendo um seu efeito permanente causador da incapacidade para o trabalho. As partes podem aceitar todos, apenas alguns ou nenhum destes elementos. Pode aceitar-se a lesão em sentido amplo e que esta decorre do acidente (causalidade) e, simultaneamente, não aceitar a sequela, a qual está mais intimamente ligada à fixação da incapacidade para o trabalho. Parece-nos difícil cindir a avaliação da incapacidade (se existe e qual o grau) da definição da sequela. Este conceito tem mais a ver com a fixação da incapacidade, estando interligado. Caso contrário, também os senhores peritos veriam o seu campo de acção dramaticamente diminuído e reduzido à tarefa quase burocrática de atribuição de coeficientes dentro das rubricas da TNI (as sequelas estão identificadas por rubricas com percentagens mínimas e máximas de incapacidade passíveis de serem atribuídas). Quando se diz, como acontece nos autos, que a seguradora aceita a lesão e o nexo causalidade entre esta e o acidente e que não aceita a incapacidade para o trabalho, está-se a querer significar que as sequelas não são aceites, nem a sua graduação dentro das rubricas. Aceita-se que o sinistrado sofreu um dano em resultado da queda, mas não se aceita que aquele tenha redundado na extensão pretendida. A seguradora aceitou, pois, que o sinistrado caiu de um escadote (o evento) e que sofreu fractura do punho esquerdo (a lesão) em consequência da queda do escadote (a causalidade). E somente são estes os factos considerados assentes por acordo – 112º, 117º, 1, b), 140º, 1, CPT. Ademais, as partes acordam sobre factos apreensíveis (a lesão em sentido comum) e não sobre questões técnicas que escapam ao senso comum. Ora, neste sentido, a sequela não é um facto - ac. RL de 16-06-2010 proc. 3594/08.9TTLSB.L1-4 e ac. RG de 13-07-2021, proc. 359/19.6TBRG.G1, www.dgsi.pt Conclui-se, assim, que os senhores peritos da junta médica podiam avaliar livremente as sequelas, não estando vinculados pelo conteúdo do auto de tentativa de conciliação, porque não houve acordo sobre a fixação da incapacidade para o trabalho. Diferente seria se aqueles atendessem, por exemplo, a lesão em membros inferiores ou órgãos nunca mencionados na fase conciliatória e não relacionáveis ao acidente tal como relatado e aceite na tentativa de conciliação. Quanto à necessidade de esclarecimentos da junta médica: Insurge-se, ainda, o sinistrado contra a diminuta fundamentação do relatório pericial e o facto de não ter sido deferido o pedido de esclarecimento junto dos senhores peritos. As partes têm o direito de reclamar contra o relatório pericial se entenderem que este é deficiente, obscuro ou contraditório ou se as conclusões não se mostrarem devidamente fundamentadas – 485º, 2, CPC. O que ora se invoca é deficiência e falta de fundamentação, por as respostas não permitirem alcançar o alicerce da conclusão, mormente quanto à desconsideração da sequela do polegar atribuída na fase conciliatória. No caso a junta médica apresenta um relatório que se limita a responder aos quesitos de uma forma curta e sem aprofundamento. Com excepção das curtas respostas aos quesitos acima reproduzidas, do relatório pericial, nada mais consta. Não se alude a que meios complementares de diagnóstico se recorreu. A junta médica também não requisitou quaisquer exames complementares. Em causa está a fratura do rádio que é “…o osso do antebraço, é o mais curto dos dois ossos do antebraço. Se estende anatomicamente na parte lateral do antebraço, indo do cotovelo até ao lado do punho onde se encontra o carpo.” – Wikipédia, online “O rádio é o maior dos dois ossos que formam o antebraço. A extremidade no sentido do punho é chamada de extremidade distal. Fraturas do rádio distal ocorrem quando a área do rádio próxima ao punho se quebra.” - Orthoinfo.aaos.org.pt Do processo apenas consta a radiografia ao antebraço, punho e mão, efectuada nos serviços da seguradora. Há referência na documentação da seguradora de que o sinistrado terá sido atendido inicialmente no Hospital …, onde constará, porventura, mais informação sobre o tipo de fractura do rádio distal que estará em causa. Sabe-se que a classificação da fractura distal indicia sequelas padrão, sendo um importante elemento (há fractura intra-articular, fractura extra-articular, fractura cominutiva, etc……) Sabe-se, também, que certos tipos de fractura e suas sequelas somente se identificam com recurso a meios complementares mais sofisticados, como TC. Da literatura médica resulta também que certo tipo de fractura do punho pode ocasionar sequela radiocarpal. Com data de 7-09-19 consta na informação médica junta pela própria seguradora “Défice de mobilidade na extensão 1º dedo mão esquerda e mantém dor irradiada pela face posterior antebraço até ao cotovelo…”. O perito médico de Medina Legal considerou atendível a sequela do polegar, além da do punho. O respectivo auto encontra-se bem elaborado, dedicando várias rubricas a aspectos importantes, tais como história do evento, dados documentais, antecedentes, queixas, exame objectivo, discussão e conclusão. Refere a inexistência de patologia anteriores e dificuldades nas tarefas desempenhadas que tem a ver com o uso das mãos. O inquérito profissional ao posto de trabalho evidencia que o sinistrado tem funções de montagem de tendas, manuseando-se materiais (alumínio, madeira, ferro, alcatifa e lona) e utilizando instrumentos que implicam constante movimentação das mãos/dedos (agarrar, prensar, aparafusar, etc…). Ora, no que se refere à desconsideração da sequela do polegar, na junta médica apenas consta uma alusão genérica e conclusiva, sem outra fundamentação. Devido ao exposto era exigível outro cuidado e pormenor, tanto mais que existem elementos que apontam para o facto de o sinistrado não manifestar anterior patologia da mão. A perícia médica apresenta, por conseguinte, abordagem simplista e deficiente - 485/2, CPC e Tabela Nacional de Incapacidades, instruções gerais, ponto 8. Além da parca fundamentação da junta médica, como referimos, também não constam dos autos outros exames, meios complementares de diagnóstico, ou pareceres especializados, mormente de ortopedia, especialidade onde foi seguido aquando da prestação de cuidados de saúde pela seguradora. Este vazio impede também que a Relação disponha de meios de prova capazes de decidir o recurso sobre a fixação da incapacidade para o trabalho. A força probatória das perícias por juntas médicas é valorada livremente pelo juiz segundo a sua livre convicção (489º CPC e 389º CC), não tendo força probatória vinculada. É certo que, sendo elaboradas por alguém que detém especiais conhecimentos técnicos, para delas divergir deve o juiz ter motivo justificado. Mas, no caso o senhor juiz a quo limitou-se a invocar o argumento da unanimidade de opinião dos peritos, o que no caso, face ao exposto, não se afigura bastante. A deficiência da fundamentação, além da insuficiência de per si, também se afere pela maior ou menor complexidade da questão, pela divergência relativamente a anteriores opiniões técnicas aparentemente habilitadas e desinteressadas e pela abundância ou ausência de outros meios probatórios. Assim, é de deferir o recurso sobre o despacho interlocutório, devendo ser determinadas as diligências que se revelem necessárias à fixação da incapacidade para o trabalho, repetindo-se a junta médica que deve fundamentar o relatório pericial e responder de novo aos quesitos. O que acarreta a anulação de todos os actos posteriores, incluindo do despacho que fixou a incapacidade para o trabalho, devendo, após se dar cumprimento ao anteriormente determinado, prosseguir-se os autos, sendo proferido, a final, novo despacho. Fica prejudicado o conhecimento do segundo recurso que versa sobre a nulidade e o mérito do despacho que fixa a incapacidade permanente para o trabalho. III. DECISÃO Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º, CPT, 662º/2, al. c), e 663º do CPC, acorda-se em conceder provimento ao recurso interposto do despacho que indeferiu a reclamação contra o relatório pericial, determinando-se: (i) a repetição da perícia por junta médica para resposta e fundamentação dos quesitos precedida das diligências que se revelem necessárias nos termos acima referidos (ii) a anulação do processado posterior, incluindo do despacho que fixou a incapacidade para o trabalho, devendo, após, ser de novo decidida a causa. Custas a cargo de quem for condenado nas custas da acção final. Notifique. 3-03-2022 Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora) Antero Dinis Ramos Veiga Alda Martins 1. Artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC. 2. O acidente dos autos é regulado por este diploma, atenta a data da sua ocorrência. |