Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2184/22.8T8GMR.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Ultrapassada a fase de jacência da herança, mantendo-se esta indivisa, o cabeça de casal pode propor, desacompanhado dos demais herdeiros, ação que se insira no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe concede.
2 – No exercício da administração da herança, competem ao cabeça de casal, para além dos definidos especialmente na lei, poderes de administração ordinária.
3 – O arrendamento celebrado por prazo não superior a 6 anos constitui, para o senhorio, um acto de administração ordinária. Em geral, considera-se como administração ordinária a prática de actos e negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens administrados.
4 – O cabeça de casal pode propor, nessa qualidade, ação destinada a obter a entrega do imóvel – integrante do acervo hereditário – na sequência da comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado por prazo não superior a 6 anos, bem como as quantias em dívida e a indemnização devida pelo atraso na restituição do imóvel.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. A Autora, que na petição se designou como «AA, (…) na qualidade de Cabeça-de-Casal da Herança jacente de BB e de CC», intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra DD, formulando os seguintes pedidos:

«- Devem ser reconhecidos os efeitos da oposição à renovação de contrato de arrendamento, reconhecendo-se cessado o contrato de arrendamento a 09/02/2022;
- Deve o Demandado ser condenado a entregar o prédio vago, livre de pessoas e bens e no mesmo estado em que o recebeu;
- Deve o Demandado ser condenado ao pagamento liquidado de 2.216,47€, relativo a rendas de Janeiro de 2021 até á cessação do contrato de arrendamento assim como relativo ao pagamento da compensação por atraso superior a 08 dias das rendas de Março a Agosto de 2021;
- Deve o Demandado ser condenado ao pagamento de compensação pela ocupação que manteve desde a cessação de contrato de arrendamento a 09/02/2022 até entrega efetiva, a liquidar com referência ao valor da renda mensal que vigorou de 152,86€;
- Considerando que a entrega do prédio livre de pessoas e bens compreende a prestação de facto infungível, deve o Demandado ser condenado em sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no artigo 829º-A do CC, em caso de incumprimento;
- Entende a Autora que o quantitativo da sanção pecuniária compulsória, não deverá ser inferior a 100€ por cada dia de atraso no cumprimento.»
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O Réu não apresentou contestação.  
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1.2. Foi proferida sentença, com o dispositivo que a seguir se transcreve:
«Pelo exposto, julgo a presente ação intentada por AA, na qualidade de cabeça-de-casal das heranças abertas por óbitos de BB e de CC, contra DD parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente:
- no que concerne ao mencionado prédio rústico, declara-se cessado o contrato de arrendamento celebrado entre as partes, por oposição à renovação promovida pela senhoria, a qual produziu os seus efeitos em 01 de fevereiro de 2022;
- condena-se o R. a entregar à A. o locado livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação;
- condena-se o R. no pagamento à A. da quantia de € 2.216,47 (dois mil duzentos e dezasseis euros e quarenta e sete cêntimos), relativa às rendas em dívida até à data da cessação do contrato de arrendamento, acrescidas da indemnização prevista no artigo 1041º, n.º 1, do CC;
- condena-se o R. no pagamento à A. da quantia mensal de € 152,86 (cento e cinquenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), devida desde a data da cessação do contrato de arrendamento até à data em que o locado for restituído à A.;
- absolvo o R. dos demais pedidos contra si deduzidos pela A.»
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1.3. Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação da sentença[1], formulando as seguintes conclusões:
«1. O Recorrente não se conforma com a decisão que admitiu a retificação do alegado erro de escrita e, em consequência, determinou o prosseguimento dos autos, e a procedência parcial da ação, por entender que tal decisão viola o disposto nos artigos 146.º, 260.º, 576.º, 577.º, al. c), todos do CPC.
2. Com efeito, os presentes autos iniciaram-se com a apresentação da Petição Inicial, onde a Autora, no introito, declara intervir “Na qualidade de Cabeça-de-Casal da Herança jacente de BB e de CC, contribuintes ...31 e ...92”.
3. O Réu foi citado da presente ação e, bem assim, do teor daquele articulado e dos documentos que o acompanham, que analisou, tendo optado por não apresentar contestação.
4. Assim, estabilizada a instância nos termos do disposto no artigo 260.º do CPC, não tendo sido apresentada contestação, o processo seguiu os trâmites previstos no artigo 567.º do CPC, tendo as partes sido notificadas para apresentar alegações escritas.
5. Contudo, findo o prazo para o efeito, ao invés de proferir sentença, o douto Tribunal a quo convidou a Autora para, ao abrigo do art. 146.º do CPC, querendo, retificar a sua identificação.
6. Nessa sequência, após ter proferido alegações escritas, a Autora veio requerer a retificação da sua identificação, ao que se opôs o Réu.
7. Não obstante, o douto Tribunal a quo autorizou a “retificação do sobredito lapso de escrita”, vindo, posteriormente, a proferir sentença que julgou a ação parcialmente procedente.
8. Ora, entende o Recorrente que o disposto no artigo 146.º do CPC não pode ter aplicação in casu, uma vez que a identificação da Autora não padece de qualquer mero erro de escrita,
9. tanto mais que a Autora diz atuar na qualidade de cabeça-de-casal da “herança jacente” não apenas no introito da Petição Inicial, como o faz também do corpo do referido articulado, como na procuração forense outorgada a favor do seu ilustre mandatário, como, ainda, em todos os requerimentos apresentados nestes autos após aquele articulado inicial.
10. Mais, a admitir-se a correção do pretenso “erro de escrita”, o que não se admite, nem concede, sempre se verificaria outro vício processual, relativo à irregularidade no mandato conferido ao ilustre mandatário.
11. Se é certo que o direito não é uma ciência exacta (antes uma ciência social), os seus conceitos estão devidamente assimilados e sedimentados pela doutrina e pela jurisprudência, e, portanto, não podem (nem devem) ser usados de forma confusa, vaga ou genérica, antes de forma precisa. Aliás, assim o impõem o rigor doutrinal, mas, ainda, os próprios princípios da boa-fé e lealdade processual.
12. Nessa senda, ao admitir a correção da identificação da Autora, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 146.º do CPC.
13. Considerando que, de todos os elementos que constam dos presentes autos, resulta, pois, que a herança que a Autora pretende representar não é jacente, porquanto já foi aceite pelos herdeiros, não dispõe a Autora de personalidade judiciária,
14. Razão pela qual se verifica, pois, a existência de uma excepção dilatória insuprível, que conduz à absolvição do Recorrente da instância, nos termos do disposto nos artigos 576.º, 577.º, al. c) e 278.º, n.º 1, al. c), todos do Código de Processo Civil.
15. Ante o exposto, ao decidir como decidiu, violou o douto Tribunal a quo o disposto nos artigos 146.º, 260.º, 576.º, 577.º, al. c) e 278.º, n.º 1, al. c), todos do Código de Processo Civil,
16. Devendo ser alterada a decisão proferida, por outra que reconheça a verificação da alegada exceção dilatória e, em consequência, determine a absolvição do Recorrente da presente instância.
Termos em que deverá o presente recurso ser admitido, julgado procedente e, consequentemente, revogada a sentença recorrida, tal como é de JUSTIÇA.».
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A Autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir

i) Efeitos da não impugnação do despacho proferido em 07.02.2023;
ii) Inadmissibilidade da retificação da identificação da Autora (conclusões 1ª a 9ª, 11ª e 12ª);
iii) Irregularidade do mandato (conclusão 10ª);
iv) Falta de personalidade judiciária da Autora (conclusões 13ª a 16ª).
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto

Relevam para a apreciação das apontadas questões os factos descritos no relatório deste acórdão e ainda os seguintes, emergentes de actos praticados no processo:
2.1.1. Em 14.04.2021, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«Veio AA intentar a presente ação na qualidade de cabeça-de-casal da “Herança jacente de BB e de CC”.
A verdade é que, considerando a documentação carreada para os autos, parece que a referência à dita herança como sendo jacente poderá ter-se tratado de mero lapso, pois que tal herança, ainda não tenha sido partilhada, já terá sido aceite pelos respetivos herdeiros.
Deste modo, concedo à A. o prazo de 10 dias para vir aos autos informar se a referência por si feita à dita herança como sendo jacente efetivamente se tratou de mero lapso, caso em que, nos termos do disposto no artigo 146º do CPC, sempre poderá solicitar a retificação do mesmo.»
2.1.2. Por requerimento apresentado em 15.12.2023, «AA, contribuinte ..., na qualidade de Cabeça-de-Casal da Herança de BB e de CC, contribuintes ...31 e ...89, Autora nos autos supra», esclareceu que «[e]fetivamente não se trata de herança jacente, porquanto efetivamente já a herança foi aceite, referência feita apenas por mero lapso», e requereu, «nos termos do disposto no artigo 146 do CPC, a retificação de erro de escrita na identificação da Autora.»
2.1.3. O Réu, por requerimento de 11.01.2023, opôs-se à retificação requerida pela Autora, por entender que «não tem aplicação neste caso o disposto no citado artigo 146º», sustentando que «deve ser julgada procedente a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da herança» e que, por isso, o demandado deve ser absolvido da instância.
2.1.4. Em 07.02.2023, sob a referência Citius ...26, foi proferido despacho em que se decidiu:
«Veio a A. requerer a retificação do lapso de escrita respeitante à sua identificação, por forma a que passe a entender-se que esta ação foi intentada pelas heranças de BB e de CC.
O R. veio opor-se ao requerido.
Cumpre decidir.
Estipula o artigo 146º, n.º 1, do CPC, que “É admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada.”.
In casu, apesar de a A. se identificar como herança jacente, decorre claramente do alegado na petição inicial e, bem assim, da documentação carreada para os autos que as ditas heranças já foram aceites pelos respetivos herdeiros, não podendo, pois, ser consideradas heranças jacentes.
Deste modo, defiro o requerido pela A., autorizando a retificação do sobredito lapso de escrita.»
2.1.5. Este despacho foi notificado às partes por comunicações eletrónicas elaboradas em 08.02.2023, tendo a relativa ao Réu a referência Citius ...05
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2.2. Do objeto do recurso

2.2.1. A questão que liminarmente se suscita é a de saber se transitou em julgado o despacho, proferido em 07.02.2023, que admitiu a retificação do lapso cometido aquando da identificação das heranças no introito da petição inicial.
A este propósito, o requerimento de interposição do recurso é perfeitamente explícito sobre o facto de a decisão impugnada ser a sentença e não qualquer outro despacho: «(…) Tendo sido notificado da douta sentença que antecede, que julgou a presente ação parcialmente procedente, e não se conformando com a mesma, dela pretende interpor RECURSO para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, o qual é de Apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo, nos termos do disposto nos artigos 629.º, n.º 3, al. a), 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (…)». Assim sendo, atenta a expressa declaração constante do requerimento de interposição do recurso, o Réu recorre da sentença e não de qualquer despacho.
Complementarmente, é elucidativo o facto de nas alegações do presente recurso se pretender a revogação da sentença («… revogada a sentença recorrida …») e não de qualquer outra decisão.
Portanto, o despacho proferido em 07.02.2023, que apreciou matéria de direito adjetivo, por não impugnado, transitou em julgado.
Quanto à questão concretamente apreciada, tal despacho tem força obrigatória dentro do processo (art. 620º, nº 1, do CPC). Essa concreta questão mostra-se definitivamente decidida e está dotada da qualidade de imutabilidade no âmbito deste processo, vinculando as partes e o tribunal, que está impedido de a modificar.
Estando definitivamente assente a identificação da Autora, com a eliminação da referência a “jacente”, improcedem ou ficam prejudicadas as conclusões 1ª a 9ª, 11ª e 12ª das alegações do Recorrente.
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2.2.2. Suscita o Recorrente, na conclusão 10ª do seu recurso, a questão da irregularidade do mandato.
A presente ação foi intentada por AA, no seu dizer, na qualidade de cabeça de casal da herança (em rigor, das heranças) de BB e de CC.
Os autos demonstram, e o Réu não o questiona, que a dita AA é cabeça de casal daquelas duas heranças.
Como AA desempenha o cargo de cabeça de casal dessas heranças e foi nessa qualidade que emitiu a procuração a favor do Exmo. Advogado que subscreve a petição inicial, não se verifica qualquer irregularidade do mandato. Conferiu validamente mandato ao Sr. Advogado para a representar na apontada qualidade: é suficiente a indicação de quem confere o mandato, a qualidade em que o faz e a declaração de quais os poderes que concede ao mandatário judicial, que no caso até engloba os especiais para transigir (arts. 43º, al. a), 44º, nº 1, 45º, nºs 1 e 2, do CPC).
A caraterização da herança como jacente, cuja noção nos é fornecida pelo artigo 2046º do Código Civil como sendo a herança aberta ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado[2], é uma mera qualificação jurídica, de direito, de uma situação de facto. O que releva é esta última: mesmo que erradamente se qualifique numa procuração uma herança como jacente, daí não resulta qualquer falta ou irregularidade do mandato, desde que a pessoa que emite a procuração seja efetivamente cabeça de casal da herança deixada por determinada pessoa já falecida.
Em todo o caso, a mero título subsidiário, quod abundat non nocet, sempre se dirá que mesmo que se verificasse a irregularidade do mandato, em conformidade com o disposto no artigo 48º, nºs 1 e 2, do CPC, sempre o vício poderia ser corrigido.
Mas a realidade é que, pelas razões apontadas, a situação não carece de regularização, improcedendo a argumentação do Recorrente.
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2.2.3. Na situação em apreciação estamos perante duas heranças indivisas, em que já ocorreu a respetiva aceitação, circunstancialismo que é afirmado por ambas as partes (a Autora, desde logo, no requerimento de 15.12.2022 e o Réu nas suas alegações, designadamente na conclusão 13ª). Não são, por isso, heranças jacentes.
Por isso, o Recorrente sustenta que «não dispõe a Autora de personalidade judiciária» e que, por isso, deve o Réu ser absolvido da instância.
Vejamos.
Como resulta do artigo 12º, nº 1, al. a), do CPC, a herança jacente tem personalidade judiciária, pese embora não tenha personalidade jurídica.
Por sua vez, a herança já aceite pelos respetivos herdeiros não dispõe de personalidade judiciária. Daí que, em princípio, os direitos relativos à herança só possam ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, nos termos do disposto no artigo 2091º, nº 1, do Código Civil; nessa fase em que a herança, depois de aceite, permanece na situação de indivisão, os herdeiros não têm direito a qualquer dos bens que a integram.
Porém, a apontada regra tem de ser compatibilizada com a circunstância de, nos termos do artigo 2087º, nº 1, do Código Civil, os bens próprios do falecido serem administrados pelo cabeça de casal e de, segundo o artigo 2088º, nº 1, do mesmo código, este poder pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias.
Com relevo para o caso vertente, dispõe o artigo 1024º, nº 1, do Código Civil que «a locação constitui, para o locador, um acto de administração ordinária, exceto quando for celebrada por prazo superior a seis anos».
Portanto, a resolução de uma questão relativa a um contrato de arrendamento celebrado por prazo não superior a seis anos constitui um acto de administração ordinária para o cabeça de casal se o bem imóvel integrar o acervo de bens administrado por este.
Num caso como o dos autos, em que o contrato de arrendamento foi celebrado pelo período de 5 anos, renovável por períodos iguais (art. 4º da p.i.), com duração inicial até 09.02.2022 (art. 5º da p.i.), a cabeça de casal podia ocupar-se do assunto aqui em discussão sem necessitar da intervenção dos demais herdeiros. Tanto a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento como o subsequente recurso a juízo para ver resolvida a questão, atento o facto de o Réu não ter procedido à desocupação do imóvel e à sua entrega (art. 15º da p.i.), mantendo-se na posse do mesmo (art. 16º), e de estarem em dívida valores reclamados nesta ação.

Dito isto, parece-nos que o recurso assenta num equívoco, o qual facilmente se desfaz se atentarmos em quem é a parte ativa nesta ação. Autora é a pessoa singular indicada na petição inicial, na qualidade de cabeça de casal das duas heranças: como expressivamente consta no dispositivo da sentença, «a presente ação [foi] intentada por AA, na qualidade de cabeça-de-casal das heranças abertas por óbitos de BB e de CC, contra DD». A Autora na presente ação não é a herança (qualquer uma das duas heranças em causa), mas sim a cabeça de casal, enquanto tal.
Daí que, ressalvado o devido respeito, seja descabido considerar que a Autora, que para todos os efeitos é AA, não tem personalidade judiciária.
Todas as pessoas singulares dispõem de personalidade jurídica desde o momento do nascimento, a qual só cessa com a morte – arts. 66º, nº 1, e 68º, nº 2, do CCiv.
E, nos termos do artigo 11º, nº 2, do CPC, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.
Por isso, a Autora tem inequivocamente personalidade judiciária.

Diferente é a questão de saber se a ação podia seu intentada apenas pela cabeça de casal ou se carecia da intervenção dos demais herdeiros. Não é uma questão de personalidade judiciária, mas de legitimidade.
Essa é uma questão que se resolve com base na consideração de que está em causa um acto de administração ordinária, por natureza inserido dentro dos poderes do cabeça de casal[3], nos termos já apontados. Estando em causa uma herança indivisa já não jacente, quando o cabeça de casal propõe uma ação no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe concede, atua no interesse da herança e não em interesse próprio e exclusivo, ainda que, em termos processuais, seja ele a parte e não a herança, na medida em que esta não dispõe de personalidade jurídica e tão pouco de personalidade judiciária.
Como bem salienta Rui Pinto[4], «é entendimento pacífico de que têm legitimidade activa e passiva, respectivamente, as partes que à data da instauração da acção – i.e., do recebimento da petição inicial não recusada ou beneficiando do art. 476.º CPC, após primeira recusa – estão nas posições de senhorio e de arrendatário nos termos contratuais (…). Havendo compropriedade ou contitularidade do lado do senhorio qualquer comproprietário tem legitimidade para intentar sozinho a acção de despejo, pois o arrendamento é tido, em regra, como acto de administração ordinária – sem prejuízo da necessidade de consentimento por força do art. 1024.º, n.º 1, CC – actividade que qualquer comproprietário pode levar a cabo, ao abrigo do art. 1407.º, n.º 1, CC. Contudo, isso não sucederá se tiver havido acordo diferente quanto à administração, como o mesmo art. 1407.º CC prevê. (…). Por outro lado, se existir cabeça de casal de herança aberta por óbito do senhorio, tem aquele legitimidade para, desacompanhado dos restantes herdeiros, intentar acção de despejo relativamente a um imóvel da herança arrendado pelo falecido[5]».
Por conseguinte, ultrapassada a fase de jacência da herança e mantendo-se esta indivisa[6], o cabeça de casal pode propor, desacompanhado dos demais herdeiros, uma ação que se insira no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe concede. No exercício da administração do cabeça de casal competem, para além dos definidos especialmente na lei, poderes de administração ordinária. No que respeita ao arrendamento já vimos que constitui um acto de administração ordinária aquele que seja celebrado por prazo não superior a 6 anos, mas em geral há que considerar como administração ordinária a prática de actos e negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens administrados[7]. Como é óbvio, o cabeça de casal não pode praticar, nessa qualidade e desacompanhado de todos os herdeiros, actos de disposição de bens ou que excedam os poderes de administração ordinária[8], sendo exemplo desta última situação o arrendamento de um imóvel por prazo superior a 6 anos. Por conseguinte, tudo depende da natureza do conflito e do direito em litígio, suscitado quando a herança já haja sido aceite mas permaneça indivisa; tanto pode ser suficiente estar em juízo o cabeça de casal (por exemplo, nas situações previstas nos artigos 2087º, 2088º, 2089º e 2090º do CCiv) como pode ser necessária a intervenção de todos os herdeiros (v. artigo 2091º do CCiv).


Em conclusão, a Autora AA podia propor uma ação como a presente. Tem personalidade judiciária e dispõe de legitimidade para intentar a ação desacompanhada dos restantes herdeiros.
Pelo exposto, improcedem as conclusões 13ª a 16ª.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.
Custas a suportar pelo Recorrente.
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Guimarães, 21.09.2023
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
António Figueiredo de Almeida
Eva Almeida



[1] O requerimento de interposição do recurso é perfeitamente explícito sobre o facto de a decisão impugnada ser a sentença e não qualquer outro despacho: «(…) Tendo sido notificado da douta sentença que antecede, que julgou a presente ação parcialmente procedente, e não se conformando com a mesma, dela pretende interpor RECURSO para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, o qual é de Apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo, nos termos do disposto nos artigos 629.º, n.º 3, al. a), 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (…)».
[2] A herança jacente nasce no momento da abertura da sucessão, que corresponde ao da morte do de cuius (art. 2031º do Código Civil), e finda quer no momento em que, por falta ou repúdio dos demais sucessíveis, é declarada vaga para o Estado – Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 6 e 7.
[3] Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 27.04.2006, proferido no proc. 1567/2006-6 (rel. Manuela Gomes), «nos poderes de administração incluem-se aqueles que visam a valorização e protecção do património, que são os objectivos principalmente visado com a acção de despejo».
[4] O Novo Regime Processual do Despejo, 2ª edição, Coimbra Ed., págs. 35 e 37-38.
[5] Aposição de negrito da nossa autoria.
[6] É de recordar que o regime da administração da herança termina, segundo o artigo 2079º do CCiv, com a «sua liquidação e partilha».
[7] Na definição de Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Almedina, 1992, pág. 62.
[8] Mas existem exceções legais – v. as situações previstas nos artigos 3327º e 2328º.