Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ANA CRISTINA DUARTE | ||
| Descritores: | CONVENÇÃO DE HAIA SOBRE ASPETOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS RETENÇÃO ILÍCITA REGRESSO MOTIVOS DE RECUSA | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 02/24/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | 1 – A Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25/10/1980, ratificada por Portugal através do Decreto do Governo n.º 33/83, de 11/05 e o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27/11, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, visam proteger a criança no plano internacional dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícita, estabelecendo as formas que garantam o regresso mais rápido possível da criança ao Estado da sua residência habitual. 2 - Estando assente a ilicitude da retenção, os tribunais têm de determinar a entrega imediata da criança, sem que possam discutir a bondade da solução, salvo se ocorrerem as circunstâncias ponderosas que a Convenção da Haia e o referido Regulamento consideram aptas a fundamentar uma decisão de recusa. 3 – Tais circunstâncias podem passar pela prova de que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável, devendo avaliar-se, também, se a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente. 4 - A autoridade judicial pode também recusar‐se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO O Ministério Público, em representação do Estado Português, intentou a presente acção especial, peticionado a realização das diligências tidas por adequadas, de forma a decidir-se sobre o regresso da criança G. D. ao Luxemburgo, nos termos da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças e do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, através da DGRSP, autoridade central em Portugal. O menor nasceu a - de Julho de 2014 no Grão-Ducado do Luxemburgo, filho de M. M. e de F. F., todos de nacionalidade Portuguesa. O pedido apresentado funda-se, essencialmente, no facto de o menor ter sido ilicitamente deslocado para Portugal pela requerida, sua mãe, que, unilateralmente e sem o acordo do pai, decidiu fixar residência ao menor em Portugal. A DGRSP, na qualidade de autoridade central portuguesa para efeitos da Convenção de Haia e do Regulamento Bruxelas II Bis, tentou, sem sucesso, o regresso voluntário do menor ao Luxemburgo, invocando a mãe episódios de violência doméstica perpetrados pelo pai da criança. Não foi possível alcançar-se uma solução consensual, de acordo com os artigos 7.º e 10.º da Convenção de Haia de 1980 e artigo 55.º, alínea e) do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro. Mostram-se juntos aos autos os documentos e o teor das declarações prestadas pelo progenitor e a instrução do processo pela autoridade central portuguesa da D.G.R.S./M.J.. A progenitora, o progenitor e o menor foram ouvidos em declarações. O Ministério Público promoveu a realização de perícia de avaliação psicológica ao menor e à progenitora e avaliação social, mostrando-se juntos os respetivos relatórios. O Ministério Público emitiu parecer, considerando que deverá ser proferida decisão que denegue o regresso da criança G. D., ao Luxemburgo. Foi proferida sentença, cujo teor decisório é o seguinte: “Atentas as considerações tecidas e os preceitos legais citados, apesar de ter sido ilicitamente transferido do Luxemburgo para Portugal e aqui retido, considera-se verificada a situação prevista no artigo 12.º, 2º parágrafo da Convenção da Haia de 1980 e, em conformidade, este Tribunal recusa ordenar o regresso de G. D.”. O progenitor interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes Conclusões: 1.ª O presente recurso ordinário de apelação vem interposto da decisão-sentença proferida nos autos em epígrafe, em seguimento ao regresso da criança G. D. ao Luxemburgo, deslocado ilicitamente para Portugal pela requerida, que unilateralmente e sem acordo do requerido, decidiu fixar residência em Portugal, cuja decisão o ora recorrente não pode resignar-se. 2.ª A decisão recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia, em desrespeito ao previsto no n.º 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil, devido ao Tribunal não ter pronunciado acerca do processo n.º TAL-2020-05436 em que foi prolatada a Sentença n.º 2020TALJAF/003503, em que fixa o domicílio e residência habitual do menor em …, Luxemburgo e decide que a autoridade parental sobre o menor é exercida pelo progenitor, ora recorrido e que determina que a sentença é de execução imediata. 3.ª A progenitora ao deslocar e reter ilicitamente o menor, recusando-se a entregar ao pai, com quem reside permanentemente em Luxemburgo, por decisão transitada em julgado, proferida pelo Tribunal da Comarca de Luxemburgo que ficou o domicílio e residência e regulou a autoridade parental, subtraindo o menor à companhia e convívio com o genitor, que legalmente tem a sua custódia. 4.ª Com a recusa da recorrida em efetuar o regresso do menor ao Luxemburgo de forma a se manter e a conviver com a mãe, possibilitou a influência desta no comportamento e vontade do menor, subtraiu o contacto com o progenitor, que nem mesmo acontece por videoconferência já há meses, sempre o progenitor é ceifado de falar com o menor. 5.ª Com o devido respeito, o Tribunal ao violar o princípio da igualdade das partes, violou o disposto nos artigos 4.º do Código de Processo Civil e 13.º da Constituição da República Portuguesa, acabando por promover a desigualdade das partes. 6.º Ao violar os artigos 4.º do Código de Processo Civil, 13.º da Constituição da Republica Portuguesa, 414.º do Código de Processo Civil e 13.º da Convenção de Haia de 1980, saldo o devido respeito, o Tribunal recorrido, deu ênfase a desigualdade entre as partes e influiu assim na decisão a tomar, tendo por isso cometido uma nulidade dos termos das disposições conjugadas dos artigos 195.º, 196.º, 197.º, 198.º e 199.º, do Código de Processo Civil, o que gera a nulidade de todo o processado, em consequência a decisão proferida, ora recorrida, está com vício de nulidade. 7.ª Com todo o respeito, com esta conduta e violações, o Tribunal arrastou uma decisão no tempo, quer além do prazo estabelecido legalmente, quer para além de um excesso do mesmo, que possa ser considerado razoável, adequado, proporcional de diligenciar e cooperar com a Autoridade Central e outras entidades do País de origem no sentido do regresso rápido e imediato ao Luxemburgo, Estado da sua residência permanente, mantendo-se o progenitor ao longo destes meses impossibilidade de conviver e acompanhar seu filho, violou o direito do progenitor a um processo equitativo e o n.º4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o artigo 11.º da Convenção de Haia de 1980, e o artigo 11.º, n.º 3 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, para cujo atraso decisório o recorrente não contribuiu. 8.ª Salvo o devido respeito, para a morosidade decisória contribuiu o facto de o Tribunal não ter feito uso dos poderes que lhe estão conferidos pelo artigo 6.º do Código de Processo Civil, nem do artigo 417.º do mesmo Código, quando poderia e deveria tê-los usado, errando assim no julgamento de direito aplicável com a vista à consecução dos objetivos da convenção e do regulamento e violou tais disposições. Com a devida vénia, o tribunal confunde factos e meios de prova e fez constar nos factos provados declarações de meios probatórios, que não são factos e fez um julgamento errado dos artigos 154.º e 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, que assim violou, pelo que as declarações mencionadas não são factos mas declarações, pelo que se deve ordenar o regresso imediato do menor à sua residência permanente, no Luxemburgo, com a salvaguarda de estar protegido o seu superior interesse e garantia a proteção de não correr em qualquer eventual grave risco com o seu regresso que possa por em causa o seu bem-estar físico e psíquico. Nos termos e nos mais e melhores de direito aplicável, sempre com o muito douto suprimento de V.Ex.ªs, Venerando Juízes-Desembargadores, deve ser concedido provimento ao presente recurso nos termos propugnados, anulando-se/revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que ordene o regresso imediato da criança ao Luxemburgo e a realização de todas as diligências necessárias, designadamente junto ao Estado de origem, para o regresso imediato do menor à sua residência permanente, no Luxemburgo, com a salvaguarda de estar protegido o seu superior interesse e garantida a proteção de não correrem qualquer eventual grave risco com o seu regresso que possa pôr em causa o seu bem-estar físico e psíquico, com o que se fara fará sã, serena e douta justiça. O Ministério Público e a progenitora contra-alegaram, pugnando pela manutenção da sentença recorrida. O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo. Foram colhidos os vistos legais. As questões a resolver prendem-se com a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, violação do princípio da igualdade e direito a um processo equitativo e discordância quanto à decisão de mérito. II. FUNDAMENTAÇÃO Na sentença foram considerados os seguintes factos: Tendo em conta os documentos juntos aos autos, a tempestividade do pedido e o objeto do processo, estão apurados os seguintes factos com relevo para a decisão a proferir: 1 - A criança G. D. nasceu a - de Julho de 2014 no Grão-Ducado do Luxemburgo e é filha de M. M. e de F. F., todos de nacionalidade Portuguesa. 2 - M. M. e F. F., viviam em condições análogas às dos cônjuges no Luxemburgo, juntamente com os pais daquele. 3 - O casal separou-se, em - de Maio de 2020 e a progenitora foi viver com G. D. para casa de uma prima, igualmente residente no Luxemburgo. 4 - No dia 2 de Junho de 2020, F. F. veio com o filho passar férias a Portugal e não regressou ao Luxemburgo. 5 - No seguimento desta conduta levada a cabo pela mãe, M. M., instaurou um pedido de regresso da criança junto da Autoridade Central, ao abrigo da Convenção de Haia de 1980. 6 - A Autoridade Central, em cumprimento do disposto no artigo 7.º, alínea c), e 9.º, da Convenção da Haia de 1980, enviou um ofício à mãe do menor, visando a sua colaboração no regresso voluntário da criança ao Luxemburgo, mas sem sucesso, invocando a progenitora episódios de violência doméstica perpetrados pelo pai da criança, pelo que não foi possível obter uma solução consensual. 7 – O menor, quando ouvido, referiu que “o pai lhe batia e que lhe tinha apertado o pescoço”. 8 - Sobre a ocorrência de contactos com o pai, G. D. relatou “manter contactos muito regulares, praticamente diários com o pai, através de videochamada, mas diz não pretender manter convívios presenciais ou pernoitar em casa do pai.” 9 - O G. D. frequenta o primeiro ano de escolaridade no Centro Escolar de ..., estabelecimento de ensino do Agrupamento de Escolas ..., sendo um aluno assíduo. 10 - Beneficia de acompanhamento psicológico regular na APAC, cuja intervenção é centrada na melhoria da capacidade de gestão emocional e na sua alteração comportamental, bem como no trabalho com a progenitora no sentido de potenciação de estratégias e de práticas educativas adequadas ao comportamento do menor. 11- Do relatório de perícia psicológica decorre que o menor nutre sentimentos positivos pelo pai, no entanto, é perentório em afirmar que não quer ir para o Luxemburgo. 12 - Verbaliza que quer manter contacto com o pai mas apenas por telefone, por se sentir mais seguro e protegido dessa forma. 13 - Relatou que “ele (pai) bateu-me e ameaçou a minha mãe. Ele estava sempre a bater-me e eu fico triste. Ele uma vez deixou-me sozinho no terraço, porque eu não queria comer, deixou-me lá sozinho para aí 5 horas com a porta fechada e eu fiquei sozinho sem comer e chorei muito. Eu quando comi pude sair, mas eu não queria, era massa com salsichas… eu só gostava com molho de tomate” 14 - O menor refere acerca do pai que “uma vez apertou-me o pescoço! Deu-me pontapés”. 15 - G. D. gosta da escola que frequenta e identifica amigos com que interage. 16- O menor verbaliza gostar mais de Portugal do que do Luxemburgo, associando sentimentos mais positivos em relação à família do lado materno do que paterno. 17- O G. D. rejeita ir para o Luxemburgo e estar perto do pai referindo que “ele ao telemóvel não ameaça, mas no Luxemburgo ameaça e bate-me”; “ele é querido, gosta de mim e quer que eu vá para o Luxemburgo”, “eu acho mal, porque quando vou para o Luxemburgo ele já fica mau”. 18- A progenitora apresenta-se como a figura de referência do G. D.. 19 - A progenitora e o G. D. evidenciam integração social e familiar no nosso país. 20 - Em data posterior à entrada do G. D. em Portugal, foi proferida sentença pelos Tribunais do Luxemburgo, sem audição da mãe nesse processo, que fixou a residência habitual da criança junto do pai. 21 – O Ministério Público intentou no Juízo de Família e Menores de Barcelos, ação que corre termos sob o n.º 1681/20.4T8BCL – Juiz 1 - para regulação do exercício das responsabilidades parentais do menor G. D., a qual está suspensa, a aguardar a decisão a proferir nestes autos. Nos presentes autos, ao abrigo do disposto na Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25/10/1980, ratificada por Portugal através do Decreto do Governo n.º 33/83, de 11/05 e ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27/11, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, considerou-se ter existido uma deslocação ilícita do menor para Portugal, promovida pela sua mãe e sem o conhecimento ou autorização do pai. Todos os intervenientes no processo estão de acordo quanto a esta conclusão. Tanto a Convenção de Haia como o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, têm em conta os interesses da criança, visando proteger a mesma no plano internacional dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícita, estabelecendo as formas que garantam o regresso mais rápido possível da criança ao Estado da sua residência habitual. A questão do direito de custódia e da deslocação ilícita estão suficientemente explanadas na sentença recorrida e não estão em causa nos presentes autos, pois todos concordam que existiu de facto uma deslocação ilícita do menor para Portugal, motivo pelo qual nos dispensamos de repetir argumentos a este respeito. Vem, aliás, o apelante, sustentar a nulidade da sentença por omissão de pronúncia por não ter a sentença recorrida apreciado a questão que deriva do facto de o Tribunal do Luxemburgo ter fixado o domicílio e residência do menor com o pai e ter decidido que a autoridade parental é exercida exclusivamente por este. Ora, salvo o devido respeito, essa questão foi considerada nos autos, não só porque consta da matéria de facto que se deu como provada: “20 - Em data posterior à entrada do G. D. em Portugal, foi proferida sentença pelos Tribunais do Luxemburgo, sem audição da mãe nesse processo, que fixou a residência habitual da criança junto do pai”. como, sobretudo, porque na sentença recorrida, para se chegar à conclusão da existência da deslocação ilícita, se percorrem os artigos 3.º e 5.º da Convenção, para se concluir que foi efetivada uma violação do direito de custódia: “O artigo 3º da Convenção vem explicitar que a deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando: a) tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da transferência ou da sua retenção; e b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido. O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado. Por seu turno, o artigo 5º refere que o direito de custódia inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência, enquanto que o direito de visita compreende o direito de levar uma criança, por um período limitado no tempo, para um lugar diferente daquele onde ela habitualmente reside”. de onde resulta, claramente, que, para se concluir pela deslocação ilícita se teve em conta que havia uma violação do direito de custódia que, apesar de no momento da deslocação estar a ser exercido, apenas, de facto, resultou, posteriormente, de uma decisão judicial (apesar de esta ter sido proferida à revelia da mãe). Não há, portanto, qualquer omissão de pronúncia, tanto mais que a questão da custódia apenas releva, neste processo, para se concluir pela deslocação ilícita e, quanto a esta, todos estão de acordo. A questão que importava dirimir nos autos era a de saber se, apesar do menor ter sido ilicitamente deslocado, havia motivos para recusar o regresso da criança ao país de origem, motivos esses que estão contemplados na Convenção de Haia. De acordo com o artigo 12º da Convenção de Haia: “Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida e tiver decorrido um período de menos de um ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança”. Porém refere também este artigo que “A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente”. É verdade que, conforme resulta dos factos provados, “a Autoridade Central, em cumprimento do disposto no artigo 7.º, alínea c), e 9.º, da Convenção da Haia de 1980, enviou um ofício à mãe do menor, visando a sua colaboração no regresso voluntário da criança ao Luxemburgo, mas sem sucesso, invocando a progenitora episódios de violência doméstica perpetrados pelo pai da criança, pelo que não foi possível obter uma solução consensual”, não tendo, assim, produzido os seus efeitos a fase pré-contenciosa a que se refere o artigo 10.º da Convenção. Mas foi, precisamente pelos motivos invocados pela progenitora para recusar o regresso do menor que se decidiu instruir o processo com relatório social, relatório de avaliação psicológica e declarações da mãe, do pai e do menor, elementos de prova, esses, que foram decisivos para a sentença que o tribunal veio a proferir (veja-se, a este propósito, o Acórdão da Relação de Lisboa de 27/01/2011, processo 2273/07.9TMLSB-A.L1-2 (Maria da Luz Figueiredo), in www.dgsi.pt: “No âmbito da acção especial interposta pelo Ministério Público ao abrigo do disposto nos artigos 1º, b), 2º, 3º, b), 5º a), c) e f), 11º e 21º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em, Haia, em 25-10-1980, aprovada pelo Estado português, pelo decreto do Governo n.º33/83, de 11 de Maio, e pelo Estado Italiano, a 01 de Maio de 1995 ex vi artigos 2º a), 8º, 10º e 11º do Regulamento do Conselho n.º2201/2003 (CE), de 27 de Novembro de 2003 visando o regresso dos menores ao Estado da sua residência habitual, deve proceder-se à produção de prova requerida para a demonstração da excepção constante do artigo 13º alínea b) daquela Convenção que visa a retenção dos menores”). E isto porque, dispõe o artigo 13.º da Convenção de Haia: “Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar: a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar‐se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança”. Bem como dispõe o artigo 11.º, n.º 2 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003: “Ao aplicar os artigos 12.º e 13.º da Convenção da Haia de 1980, deve-se providenciar no sentido de que a criança tenha a oportunidade de ser ouvida durante o processo, excepto se tal for considerado inadequado em função da sua idade ou grau de maturidade”. Veja-se, também, o Acórdão do STJ de 05/11/2009, processo nº 1735/06.OTMPRT.S1 (Maria dos Prazeres Beleza), in www.dgsi.pt, onde se pode ler: “Estando assente a ilicitude da retenção, os tribunais têm de determinar a entrega imediata da criança, sem que possam discutir a bondade da solução, salvo se ocorrerem as circunstâncias ponderosas que a Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto nº 22/83 de 11 de Maio e o referido Regulamento consideram aptas a fundamentar uma decisão de recusa”. Ora, da instrução do processo, veio a resultar a conclusão que o regresso ao Luxemburgo podia implicar a sujeição do menor ao risco de “novos comportamentos de maus tratos, atentatórios da sua integridade física e psíquica” Os factos provados – que não foram postos em causa, pelo menos na forma prevista no artigo 640.º do CPC – dão-nos conta disso mesmo: “7 – O menor, quando ouvido, referiu que “o pai lhe batia e que lhe tinha apertado o pescoço”. 8 - Sobre a ocorrência de contactos com o pai, G. D. relatou “manter contactos muito regulares, praticamente diários com o pai, através de videochamada, mas diz não pretender manter convívios presenciais ou pernoitar em casa do pai.” 11- Do relatório de perícia psicológica decorre que o menor nutre sentimentos positivos pelo pai, no entanto, é perentório em afirmar que não quer ir para o Luxemburgo. 12 - Verbaliza que quer manter contacto com o pai mas apenas por telefone, por se sentir mais seguro e protegido dessa forma. 13 - Relatou que “ele (pai) bateu-me e ameaçou a minha mãe. Ele estava sempre a bater-me e eu fico triste. Ele uma vez deixou-me sozinho no terraço, porque eu não queria comer, deixou-me lá sozinho para aí 5 horas com a porta fechada e eu fiquei sozinho sem comer e chorei muito. Eu quando comi pude sair, mas eu não queria, era massa com salsichas… eu só gostava com molho de tomate” 14 - O menor refere acerca do pai que “uma vez apertou-me o pescoço! Deu-me pontapés”. 16- O menor verbaliza gostar mais de Portugal do que do Luxemburgo, associando sentimentos mais positivos em relação à família do lado materno do que paterno. 17- O G. D. rejeita ir para o Luxemburgo e estar perto do pai referindo que “ele ao telemóvel não ameaça, mas no Luxemburgo ameaça e bate-me”; “ele é querido, gosta de mim e quer que eu vá para o Luxemburgo”, “eu acho mal, porque quando vou para o Luxemburgo ele já fica mau”. A este propósito, o apelante invoca a nulidade do processado por se ter violado o princípio da igualdade, tendo o tribunal privilegiado a posição da parte requerida em detrimento da do requerente, colocando este numa posição inferior à daquela e violando, assim, o direito a um processo equitativo. De modo nenhum se pode concordar com tal asserção. Não esquecendo que estamos perante um processo de jurisdição voluntária, em que o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita – artigos 986.º e 987.º do CPC - o tribunal baseou a sua decisão na conjugação das provas que recolheu e lhe foram oferecidas, sendo que, entre elas estiveram as declarações do próprio progenitor, para além das declarações da progenitora, documentos juntos, e relatórios de avaliação psicológica e social. Baseou-se, também, nas declarações do menor, já com 7 anos de idade, “cujos termos não nos suscitaram quaisquer dúvidas, nomeadamente quanto à plena compreensão do declarado ou espontaneidade e liberdade na declaração” (motivação da decisão). Como já vimos o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 incentiva a audição da criança, dando-lhe um especial relevo. Daí que alguns dos factos provados se reportem às declarações do menor, não só perante o tribunal como perante as técnicas que elaboraram os relatórios analisados em sede de prova. Contudo, não se esconde esse facto, ou seja, resulta claramente da redação dos mesmos que são factos relatados pelo menor, a quem se conferiu uma especial credibilidade, como resulta da motivação da decisão, credibilidade essa, aliás, também assegurada pelas técnicas já referidas. O apelante discorda do facto de não ter sido dado relevo a alguma dificuldade demonstrada pela progenitora na educação do menor, designadamente por adotar um estilo permissivo, que estaria expresso no relatório social. Tal dificuldade foi considerada e resulta, aliás, do ponto n.º 10 dos factos provados o trabalho que vem sendo desenvolvido com o intuito de melhorar a prática educativa da progenitora (“Beneficia de acompanhamento psicológico regular na APAC, cuja intervenção é centrada na melhoria da capacidade de gestão emocional e na sua alteração comportamental, bem como no trabalho com a progenitora no sentido de potenciação de estratégias e de práticas educativas adequadas ao comportamento do menor”). Contudo, neste tipo de processo e ultrapassado o prazo inicial de regresso imediato da criança ao país de origem (que, repete-se, aconteceu, devido à necessidade de instruir o processo em face das acusações de violência perpetrada pelo progenitor sobre o menor), o que cabia averiguar era se havia motivo para recusar o regresso do menor, considerando o disposto no já citado artigo 13.º da Convenção de Haia: “a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar (…) que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável”. Sendo certo que, nos termos do mesmo artigo: “A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar‐se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto”. Em face dos factos provados, a decisão não podia ser outra, considerando, até, a perfeita integração do menor no seu novo ambiente (cfr. artigo 12.º da Convenção) como resulta destes factos: “9 - O G. D. frequenta o primeiro ano de escolaridade no Centro Escolar de ..., estabelecimento de ensino do Agrupamento de Escolas ..., sendo um aluno assíduo. 10 - Beneficia de acompanhamento psicológico regular na APAC, cuja intervenção é centrada na melhoria da capacidade de gestão emocional e na sua alteração comportamental, bem como no trabalho com a progenitora no sentido de potenciação de estratégias e de práticas educativas adequadas ao comportamento do menor. 15 - G. D. gosta da escola que frequenta e identifica amigos com que interage. 16- O menor verbaliza gostar mais de Portugal do que do Luxemburgo, associando sentimentos mais positivos em relação à família do lado materno do que paterno. 18- A progenitora apresenta-se como a figura de referência do G. D.. 19 - A progenitora e o G. D. evidenciam integração social e familiar no nosso país”. Considerando, ainda, que rejeita frontalmente o regresso a casa do pai: “8 - Sobre a ocorrência de contactos com o pai, G. D. relatou “manter contactos muito regulares, praticamente diários com o pai, através de videochamada, mas diz não pretender manter convívios presenciais ou pernoitar em casa do pai. 11- Do relatório de perícia psicológica decorre que o menor nutre sentimentos positivos pelo pai, no entanto, é perentório em afirmar que não quer ir para o Luxemburgo”. Conforme se concluiu na sentença sob recurso “o superior interesse da criança passa por não ser sujeito a uma decisão de regresso que frontalmente contrarie a sua vontade”, sendo certo que o seu regresso ao Luxemburgo poderia implicar a sujeição a maus tratos idênticos aos já ocorridos no passado, atentatórios da sua integridade física e psíquica. Por tudo o exposto, improcede a apelação, sendo de manter a sentença recorrida. III. DECISÃO Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida. Custas pelo apelante. *** Guimarães, 24 de fevereiro de 2022 Ana Cristina Duarte Alexandra Rolim Mendes Maria dos Anjos Melo Nogueira |