Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7037/22.7T8GMR.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA
LITISCONSÓRCIO
CONVITE DE SUPRIMENTO DE EXCEÇÕES DILATÓRIAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A ação de petição da herança prevista no art. 2075º do CC está delineada para os casos em que a controvérsia se centra sobretudo na qualidade de sucessor do autor e na existência de um bem pertencente à herança que está a ser possuído ou detido por outro herdeiro ou por um terceiro, daí se justificando que possa ser exercida por apenas um herdeiro, não se exigindo a intervenção conjunta de todos, por as razões da teleologia do art. 2091º, nº 1, do CC, aqui não se verificarem.
II - Todavia, no âmbito dessa ação, pode ocorrer que não seja líquido nem incontroverso que o bem pertence à herança e que para alcançar tal conclusão seja necessário previamente concluir que existe um negócio jurídico inválido no qual foi interveniente o de cuius e que, mercê dessa invalidade, determinado bem ou direito deve regressar à sua esfera patrimonial e assim passar a integrar a sua herança.
III - Se situação que é invocada no âmbito da ação da petição da herança como suporte para o requisito de que o bem pertence à herança implicar uma relação jurídica que, pela sua própria natureza, exija a intervenção de todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, regulando definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, então haverá uma situação de litisconsórcio necessário natural, nos termos do art. 33º, nºs 2 e 3, do CPC, relativamente a essa matéria.
IV - A preterição do litisconsórcio necessário configura a exceção dilatória de ilegitimidade, a qual tem como consequência a absolvição da instância (arts. 33º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2 e 577º, al. e) do CPC). Todavia, essa consequência só opera se a situação de ilegitimidade existente não puder ser suprida ou, podendo sê-lo, o suprimento não tiver lugar.
V - Os arts. 590º, nº 2, al. a) e 6º, nº 2, do CPC impõem um dever ao juiz, no sentido de que, verificada a hipótese normativa, este tem obrigatoriamente de proferir o despacho pré-saneador com a finalidade de providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias. Trata-se de normas que impõem um poder-dever ou um poder vinculado, e não um poder discricionário que permita que o juiz profira ou não tal despacho, de acordo com o seu próprio critério.
VI – Ocorrendo, no caso em apreço, uma situação de preterição de litisconsórcio necessário ativo, passível de suprimento, o juiz tem o dever de proferir despacho pré-saneador convidando o autor a suprir tal preterição mediante dedução do incidente de intervenção principal, nos termos dos arts. 316º e ss, do CPC, com vista a chamar à lide os demais herdeiros.
VI - A circunstância de alguns dos herdeiros já figurarem na ação como réus não torna a lide impossível nem torna insuprível a exceção de ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário ativo.
VII - Em situações em que existem co-herdeiros demandados relativamente a direitos da herança por outros co-herdeiros, a exigência de litisconsórcio necessário ativo decorrente do estatuído no 2091º, nº 1, do CC, tem de ser interpretada no sentido de que apenas têm que figurar como autores os restantes herdeiros, com exclusão dos que já figuram na ação na qualidade de réus, desta forma se garantindo e assegurando a exigência do citado normativo de que o direito seja exercido conjuntamente por todos os herdeiros.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

RELATÓRIO

AA veio propor contra BB e CC ação declarativa, com processo comum.

Formulou os seguintes pedidos quanto ao imóvel e móveis que identifica na petição inicial:

a)- Ordenar que se proceda, ao abrigo do disposto nos artigos 2º, 3º, 8ºA e 8º-B, Nº 3 al. a), todos do Código de Registo Predial, ao registo da presente ação junto da competente Conservatória do Registo Predial;
b)- Declarar-se o reconhecimento pelos Réus do Autor como herdeiro e Cabeça de Casal da herança aberta por óbito da falecida irmã D. DD;
c)- Ser declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda com reserva do usufruto constantes do documento particular e o termo de autenticação (junto doc. Nº ...5) outorgado perante a Solicitadora EE e no escritório desta, em .../.../2020, através do qual a falecida D. DD declarou vender, com reserva do usufruto, ao 1º Réu e este declarou comprar a nua propriedade do antecedentemente identificado prédio urbano e, bem assim, de todas as declarações de vontade imputadas à falecida D. DD naquele documento;
d)- Ou, subsidiariamente, todas as declarações contratuais vertidas no supra referido contrato serem anuladas em virtude de erro na declaração por parte da falecida D. DD ou de erro essencial, reserva mental e/ou dolo parte dos Réus;
e)- Em qualquer dos casos, ordenar-se a restituição à herança aberta por óbito de DD do supra identificado prédio urbano e de todos os bens móveis elencados no artigo 51º da petição inicial;
f)- Ordenar-se o cancelamento das inscrições e averbamentos dos registos correspondentes e dos que posteriormente fossem efetuados pelos Réus na sequência do documento particular autenticado junto como doc. Nº ...5 ou que deles dependam, nomeadamente, e entre outros, o cancelamento das inscrições e averbamentos dos registos constantes da Apresentação Nº ...68 de 2020/09/15 de aquisição a favor do 1º Réu marido e das Apresentações referentes à reserva do usufruto a favor de DD e do respetivo cancelamento;
g)- Ordena-se a repristinação ao registo predial da descrição urbana Nº ...52 da freguesia ..., concelho ..., do registo de aquisição a favor de DD efetuado através da Ap. ...8 de 2003/08/14;
h)- Caso assim se não entenda, o que se não concede e por mera hipótese se acautela, subsidiariamente serem os Réus condenados a pagar e a restituír à herança aberta por óbito de DD:
h.1)- O montante de € 39.534,25 (trinta e nove mil quinhentos e trinta e quatro euros e vinte e cinco cêntimos) a título do preço contratualizado e não pago pelos Réus na sequência da outorga perante a Solicitadora EE em .../.../2020 do contrato de compra e venda com reserva do usufruto (doc. Nº ...5);
h.2)- Os juros de mora à taxa legal de 4% sobre a supra peticionada quantia de € 39.534,25, contados desde o dia .../.../2020 e vincendos até integral pagamentos, sendo que os juros de mora vencidos ascendem, neste momento, ao montante de € 3.743,30 (três mil setecentos e quarenta e três euros e trinta cêntimos);
h.3)- Os bens móveis melhor identificados no artigo 51º da petição inicial ou, subsidiariamente, procederem ao pagamento do montante de € 10.500,00 (dez mil e quinhentos euros),
i)- Tudo com as legais consequências.

Como fundamento dos seus pedidos alegou, em síntese, que DD faleceu e deixou como herdeiros os seus sete irmãos, sendo um deles o autor, ao qual compete o exercício das funções de cabeça de casal e a administração da herança, que ainda se encontra indivisa.
A falecida DD assinou um documento particular autenticado no qual declarou vender aos réus, com reserva de usufruto, um prédio urbano de que era proprietária, pelo valor de € 39.534,25.
Porém, DD assinou esse documento porque o réu a induziu em erro e a enganou, fazendo-a acreditar que apenas estaria a transmitir aos réus a propriedade de uma pequena parcela de terreno do prédio urbano, onde se localiza um poço e constituída por parcos metros quadrados, não tendo efetivo conhecimento do conteúdo do documento, das consequências decorrentes da sua assinatura e do negócio jurídico nele espelhado.
DD não tinha quer a consciência da declaração quer da vontade de transmitir aos réus a nua propriedade de parte ou da totalidade do prédio e de reservar para si apenas o usufruto e também nunca teve a consciência da declaração ou da vontade de receber dos réus o preço que consta no documento particular autenticado, o qual, aliás, nunca lhe foi pago.
A declaração de vontade de DD contida no contrato de compra e venda com reserva de usufruto não corresponde, nem nunca correspondeu, à sua vontade real, por ter sido determinada com recurso a erro, dolo e/ou reserva mental por parte dos réus, declarações de vontade que, por isso, são nulas e de nenhum efeito.
Por outro lado, para além de a falecida DD não ter recebido o preço da venda do prédio urbano, no valor de € 39.534,25, os réus impediram ainda que o autor e demais herdeiros retirassem do imóvel diversos bens móveis que pertenciam à falecida, os quais têm valor global não inferior a € 10 500,00.
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Os réus contestaram invocando, na parte que releva para o presente recurso, a ilegitimidade ativa do autor porquanto o mesmo não é o cabeça de casal da herança indivisa aberta por óbito de DD, sendo apenas um dos herdeiros.
Por outro lado, mesmo que o autor fosse o cabeça de casal, ainda assim não poderia intentar sozinho uma ação em que é pedida a anulação/nulidade de um contrato celebrado pela falecida e relativo a um bem imóvel de que a mesma era proprietária, tendo tal ação que ser proposta por todos os herdeiros.
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O autor pronunciou-se sobre a exceção de ilegitimidade ativa invocada pelos réus, defendendo que lhe compete o exercício do cargo de cabeça de casal e que a situação dos presentes autos se enquadra no artigo 2088º do CC, pois está em causa a restituição à herança de um bem imóvel cuja propriedade foi transmitida ilegitimamente e se encontra registada em nome dos réus e cuja posse os mesmos negam restituir à herança da falecida DD.
Por outro lado, o art. 2078º, nº 1, do CC, prevê que, sendo vários os herdeiros, qualquer um tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro.
Assim, conclui que possui legitimidade ativa para intentar a ação, sem necessidade de intervenção dos restantes herdeiros.
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Foi proferido despacho que, além do mais, dispensou a realização da audiência prévia, fixou à ação o valor de € 96.787,52 e julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa de AA, por preterição de litisconsórcio necessário, absolvendo os réus da instância.
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O autor não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1ª- Independentemente do respeito - que é muito e que o mesmo lhe merece – não pode o Recorrente conformar-se com o despacho proferido pelo Exmo. Tribunal a quo, que, julgando procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa do Autor, por preterição do litisconsórcio necessário, absolveu os Réus da presente instância declarativa;
2ª- Entendendo o Apelante que, na prolação da mui douta sentença recorrida, foi incorretamente efetuada a aplicação e interpretação da lei, nomeadamente, entre outras, as normas legais que disciplinam a legitimidade processual, as ações de petição de herança e de reivindicação e o poder-dever de gestão processual;
3ª- Intentada a ação em crise nos autos apenas pelo Recorrente, nas invocadas qualidades de herdeiro e de Cabeça de casal da herança aberta pela saudosa DD, a presente instância não padece da apontada exceção ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário;
4ª- Em matéria do exercício dos direitos relativos à herança, estabelece o Nº 1 do artigo 2091º do Código Civil o critério supletivo legal de litisconsórcio necessário e segundo o qual, fora dos casos declarados nos artigos anteriores e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º, aqueles direitos só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros;
5ª- Contudo, existem casos expressamente assinalados na lei em que se prevê a possibilidade de um único herdeiro ou o cabeça de casal possa litigar desacompanhados dos demais herdeiros, designadamente e entre outros, os artigos 2075º e 2078º e, ainda, 2088º e 2089º, todos do Código Civil, conferindo legitimidade, respetivamente, ao herdeiro e ao cabeça de casal para propor e fazer seguir a instância sem a presença em juízo dos demais herdeiros;
6ª- Como doutrinal e jurisprudencialmente se tem afirmado, atenta a grande semelhança entre a ação de petição da herança e a ação de reivindicação, a nota distintiva entre estes dois tipos de ação reside nos respetivos pedidos principais: enquanto na ação de petição de herança a pretensão principal reside no reconhecimento da qualidade sucessória do Autor, por sua vez a ação de reivindicação sustenta-se fundamentalmente no reconhecimento do invocado direito de propriedade;
7ª- Como refere Rodrigues Bastos, a ação de petição da herança “é a acção por meio da qual aquele que pretende ser chamado a uma herança reclama o reconhecimento da sua qualidade de herdeiro” e como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, o fundamental na petição da herança é “o fim duplo que a lei visa; por um lado, o reconhecimento judicial do título ou estatuto (de herdeiro) que o autor se arroga; por outro, a integração dos bens que o demandado possui no activo da herança ou da fracção hereditária pertencente ao herdeiro”;
8ª- Tendo em conta a configuração que legal, doutrinal e jurisprudencialmente vem sendo desenhada, a procedência da ação de petição da herança depende da verificação de três requisitos: i)- O reconhecimento judicial do Autor como herdeiro; ii)- O bem cuja restituição se peticiona pertença à herança, e iii)- A posse do Réu sobre o bem peticionado;
9ª- Compulsados os autos, verifica-se que na petição inicial dos presentes autos se encontram, devida e suficientemente, alegados todos os requisitos acima referidos e formulados os correspondentes pedidos;
10ª- Não se podendo concluir, como erroneamente fez a mui douta decisão recorrida, que “não é líquido que o bem objecto do pedido pertença à herança, pois que os Réus gozam, por ora, da presunção da propriedade decorrente do registo da aquisição”, presunção que, sendo ilidível, o Autor se propôs a afastar mediante a produção de prova em contrário e na qual se estriba o pedido de declaração de nulidade/anulação da compra e venda com reserva de usufruto com fundamento em falta ou vício da vontade da sua falecida irmã no documento que corporiza o aludido negócio jurídico;
11ª- O pedido declaração de nulidade/anulação, sendo um pressuposto do pedido de restituição à herança do prédio urbano melhor descrito nos artigos 7º a 9º da petição inicial, não ultrapassa o âmbito da ação de petição prevista nos artigos 2075º e seguintes do Código Civil;
12ª- Nos termos legalmente preceituados pelo Nº 1 do artigo 2088º do Código Civil, ao cabeça de casal também é reconhecida legitimidade para pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído;
13ª- Nos autos está em causa a restituição à herança de bens peticionada pelo Recorrente, também na qualidade de Cabeça de Casal e de administrador dos bens pertencentes à herança que o mesmo representa e administra nos termos disposto do Nº 2 do artigo 2087º do Código Civil, designadamente a restituição à herança de um prédio urbano (ou, subsidiariamente, do respetivo preço não pago pelos Réus) e diversos bens móveis (ou, subsidiariamente, do respetivo valor monetário), e que se encontram na posse dos Réus e que estes negam devolver à herança da falecida DD, irmã do Recorrente e Tia dos Recorridos;
14ª- Sem prescindir, mesmo caso se defenda que a ação vertida nos autos deve ser configurada como ação de reivindicação, nos termos jurisprudencialmente sufragados em vários arestos decisórios, deve reconhecer-se que “o cabeça de casal tem legitimidade para, através de uma ação de reivindicação, pedir, sozinho, a entrega de bens que deva administrar”;
15ª- Assim sendo, como respeitosamente se entende ser, verificando-se estar reunidos todos os legais, doutrinários e jurisprudencialmente pressupostos da aplicação do Nº 1 artigo 2075º e 2078º do Código Civil e da ação de petição da herança ou, subsidiariamente, do Nº 1 do artigo 2088º do Código Civil, podemos concluir que no caso vertidos nos autos não se verifica uma situação de litisconsórcio necessário e, por isso, o Autor, aqui Recorrente, na qualidade de herdeiro ou de cabeça de casal, não se pode considerar parte ilegítima por se encontrar a litigar desacompanhado dos demais herdeiros da herança aberta por óbito da saudosa irmã DD;
16ª- Finalmente, a alínea b) do Nº 1 do artigo 6ºdo Código de Processo Civil, na redação atualmente em vigor, consagra o legalmente denominado “Dever de gestão processual”, o qual impõe ao juiz a obrigação legal de providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo;
17ª- Por sua vez, sob a epigrafe de “Gestão inicial do processo”, o Nº 2 do artigo 590º do aludido diploma legal, prevê que, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do Nº 2 do artigo 6º e pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes (alíneas a) e b));
18ª- Acrescentando o Nº 3 seguinte que o juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa;
19ª- Deste modo, impendendo sobre o juiz do processo civil o aludido poder dever de gestão processual, a falta de um pressuposto processual deixou, assim, de determinar necessariamente à absolvição do Réu da instância, a qual só deverá lugar quando a sanação do pressuposto processual for impossível ou quando, dependendo ela da vontade da parte, esta se mantiver inativa perante o convite judicial ao aperfeiçoamento;
20ª- No caso vertido nos autos, a manter-se o entendimento plasmado na mui douta decisão recorrida, ao abrigo do supra referido poder-dever de gestão processual, por tal irregularidade ser sanável mediante o incidente de intervenção de terceiros, designadamente por intervenção provocada, o Ex.mo Tribunal podia e deveria ter procedido ao pré-saneamento dos presentes autos;
21ª- E, dessa forma, antes de prolatar decisão a absolver os Réus da instância, proferir o despacho pré-saneador a que alude os Ns. 2 e 3 do artigo 590º CPC e, bem assim, providenciando nos termos legais oficiosamente pelo suprimento das exceções dilatórias que, no seu entendimento, considerava verificarem-se nos autos, notificar o Apelante para, no prazo doutamente concedido, proceder ao suprimento da ilegitimidade processual ativa, fazendo intervir nos autos, nos termos e pelos mecanismos legalmente previstos para o efeito, os demais herdeiros da falecida DD;
22ª- E não o fazendo, proferindo, a decisão de absolver os Réus da instância, houve manifesta preterição pelo Ex.mo Tribunal a quo do dever de previamente convidar o Autor a suprir as insuficiências e irregularidades da presente instância, em conformidade com o que se encontra legalmente preceituado nos artigos 6º; 7º e 590º do CPC;
23ª- Tratando-se os aludidos despacho pré-saneador e convite ao suprimento de um despacho vinculado, a sua omissão constitui nulidade processual, uma vez que preterição desse poder-dever legal influi no exame ou na decisão da causa;
24ª- Pelo que a mui douta decisão recorrida padece de manifesta nulidade processual inominada que expressamente se invoca com todas as legais consequências dela decorrentes;
25ª- Pelo que deve ser revogada a mui douta decisão recorrida, já que naquela não foram, de forma sábia e prudente, corretamente apreciados, interpretados, respeitados e aplicados os preceitos legais previstos nos artigos 2075º, 2078º, 2087º e 2088º do Código Civil e 6º, 7º, 30º, 31º, 195º e 590º, estes do Código de Processo Civil.”

Terminou pedindo que se julgue o autor como parte legítima nos autos ou, caso assim não se entenda, que se determine a notificação do autor para, em prazo a fixar, proceder ao suprimento da falta de legitimidade ativa, mediante a intervenção processual dos demais herdeiros da falecida DD.
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Os réus contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“A) - O recurso interposto, pelo Recorrente, não merece, com o devido respeito, o menor provimento, uma vez que a decisão em causa, limitou-se a aplicar o Direito, pelo que, as suas Alegações, como se irá tentar demonstrar, carecem de fundamento material e legal.
B) - O MM. Juiz do Tribunal a quo, não atropelou a ciência dos factos e a verdade nela contida.
C) - Relativamente ao ponto III.a.1) – na qualidade de herdeiro, tem razão o Recorrente ao socorrer-se do disposto no art. 1091º nº 1 do CC, o qual dispõe que os direitos relativos à herança, só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros.
D) - O Recorrente, entende que conforme se afirma pela doutrina e jurisprudência, a ação de reivindicação sustenta-se fundamentalmente no reconhecimento do invocado direito de propriedade, pelo que, a procedência da petição de herança – art. 2075º e 2078º CC – depende da verificação de 3 requisitos:
- o reconhecimento judicial do Autor como herdeiro,
- o bem cuja restituição se peticiona pertencente à herança e,
- a posse do Réu sobre o bem peticionado.
E) - Salvo o devido respeito por melhor opinião, a ação formulada pelo Recorrente, não tem como fundamento a restituição do bem, mas sim, a nulidade / anulabilidade do negócio celebrado entre os Recorridos e Autor da herança.
F) - Está assim fora deste preceito legal, a apreciação da (in)validade de negócio jurídico transmitido em vida do “de cujus” por erro/vício da vontade e o cancelamento do respetivo registo de aquisição que, no caso vertente, vêm peticionados, constituindo momentos prévios e determinantes da eventual restituição do bem à herança.
G) - Relativamente ao prescrito no art. 2078º do CC, entendem os Recorridos, salvo respeito também por melhor opinião, que se trata de matéria também diversa da dos autos.
H) - Pois neste caso pede-se o reconhecimento da qualidade sucessória do Recorrente e, bem assim, a restituição de um bem que pertence à herança.
I) - No caso vertente, o bem objeto do pedido não pertence à herança, pois os Recorridos gozam, por ora, da presunção da propriedade decorrente do registo da aquisição, de acordo com o art. 7º do CRPredial,
J) - Aliás, a ação proposta pelo Recorrente, peticiona a declaração da nulidade / anulação da compra e venda subjacente ao registo, fundada em falta ou vício da vontade da falecida DD,…determinada com recurso a erro, dolo e/ou reserva mental por parte dos Réus. (cfr. Artigo 63º da p.i.).
L) - O pedido do Recorrente encontra-se assim fora do âmbito da ação de petição da herança prevista pelos artigos 2075º e ss. do Código Civil, pelo que também se não aplica à presente demanda a previsão do n.º 1 do artigo 2078º em apreço.
M) – Pois, a restituição de um bem à herança difere do pedido de anulação de um negócio sobre determinado bem.
N) - Só após a anulação de um negócio sobre determinado bem da herança, seria possível lançar mão da ação de petição da herança.
O) - A ação, objeto dos presentes autos, em que se peticiona, além do mais, a nulidade / anulabilidade de um negócio, exige o cumprimento do disposto no art. 2091º do CC,
P) - Ou seja, que do lado ativo se encontrem presentes todos os herdeiros,
Q) - Não cumprindo este preceito legal, estamos perante ilegitimidade ativa, por preterição de listisconsórcio necessário ativo, conforme prescreve o art. 33, nº 1 do CC.
R) - Entende ainda o Recorrente, que a ação está também abrangida pela previsão do artigo 2088º do CC, pois segundo ele, nestes autos está em causa a restituição de um bem imóvel à herança ilegitimamente transmitido a favor dos Réus.
S) - E que o Recorrente, na qualidade de cabeça de casal, tem legitimidade singular para pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar, que eles tenham em sua posse.
T) - Entendemos que o preceituado neste artigo, abrange tão só a ações possessórias e manutenção e restituição de posse, tudo no âmbito dos poderes decorrentes da administração da herança conferidos a cabeça de casal.
U) - Conforme supra se referiu, o pedido de nulidade / anulação de negócio com o Autor da herança, não se sucumbe ao preceituado no art. 2088º do CC
V) - Pois este preceito, pressupõe a existência de um bem pertencente à herança, o qual se encontra na posse de um herdeiro ou terceiro.
X) - Trata-se de uma ação possessória e não de uma ação de nulidade / anulação de negócio.
Z) - Também aqui se refere, que os Recorridos gozam, por ora, da presunção da propriedade decorrente do registo da aquisição, de acordo com o art. 7º do CRPredial,
AA) – Uma vez que o bem em causa não está apenas na posse dos Recorridos, mas sim é propriedade deles.
AB) - Assim, ao contrário do entendimento de Recorrente, o caso dos autos, configura uma situação de litisconsórcio necessário e, por isso, o Recorrente é parte ilegítima por se encontrar a litigar desacompanhado dos demais herdeiros daquela herança.
AC) - Pelos mesmos motivos, também entendemos, que a ação proposta pelo recorrente não configura uma ação de reivindicação.
AD) - A ação de reivindicação é uma ação real, petitória e condenatória, destinada à defesa da propriedade, sendo a respetiva causa de pedir integrada pelo direito de propriedade do reivindicante, (que seria o aqui Recorrente) sobre a coisa reivindicada e pela violação desse direito pelo reivindicado que detém a posse ou a mera detenção desta.
AE) - O pedido desta ação, é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante (Recorrente) sobre a coisa e a restituição desta àquele.
AF) - Ora, no caso dos autos, a propriedade do bem é exclusiva dos Recorridos, pelo que está vedado ao recorrente lançar mão da referida ação de reivindicação.
III b) Quanto ao dever de gestão processual,
AG) - O tribunal a quo na sentença recorrida, referiu expressamente:
«Nos termos previstos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 592º do CPC, dispenso a realização da audiência prévia.»
AH) – Na sentença recorrida, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, fez uma breve resenha sobre o pedido do Recorrente, a contestação dos Recorridos e ainda sobre a resposta novamente do Recorrente.
AI) - Às partes foi dado a oportunidade de alegarem de facto e de direito sobre o objeto dos autos.
AJ) - Em sede de contestação, os Recorridos, invocaram que à data da propositura da ação eram herdeiros da herança aberta em discussão nestes autos.
AL) - Tal situação, torna a causa impossível, já que os Recorridos passariam a ser simultaneamente Autores e Réus na mesma ação - Com interesses contraditórios e incompatíveis.
AM) - Por seu turno, o art. 311 do CPC refere que estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objeto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu.
AN) - Assim, entendemos que se trata de uma situação insuprível, pois é impossível ou inútil a continuação da lide, na qual os Recorridos seriam Autores e Réus em simultâneo.
AO) - Pelo que, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, esteve bem ao conhecer da exceção dilatória de ilegitimidade, após ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem sobre esta questão, nos respetivos articulados,
AP) Uma vez que, a legitimidade invocada pelos Recorridos é insuprível, quer pelas partes quer pelo Tribunal.
AQ) E, nos termos do disposto no art. 592º, nº 2 do CPC, é dispensada a realização de audiência prévia, quando ocorra procedência de exceção dilatória e a questão tenha sido debatida nos articulados.
AR) Assim, concluímos pela inexistência de qualquer irregularidade processual ou nulidade.
AS) - De facto, como afirmado supra nas considerações gerais, a intervenção do juiz está reservada, para o que ora importa, ao controlo do cumprimento das normas aplicáveis, por forma a assegurar a legalidade da Decisão.
AT) - Pelo que a Decisão recorrida deve manter-se inalterada, uma vez que, a sentença proferida apreciou e interpretou corretamente todos os preceitos legais invocados em sede de alegações.”
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:
I - saber se o autor tem legitimidade para intentar a presente ação;
II - concluindo-se que não possui legitimidade e que houve preterição de litisconsórcio necessário ativo, saber se, previamente à absolvição dos réus da instância, deveria ter sido proferido despacho a convidar o autor a suprir a ilegitimidade, mediante a intervenção dos litisconsortes.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que se mostram enunciados no relatório, resultando os mesmos do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I – Legitimidade do autor

A decisão recorrida julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa do autor, por preterição do litisconsórcio necessário, e absolveu os réus da instância.
Em apertada síntese, a decisão recorrida considerou que a ação não se enquadrava em nenhuma das situações em que a lei confere legitimidade ao herdeiro ou ao cabeça-de-casal para intentar uma ação relativa a uma herança indivisa e que, por isso, face à regra geral constante do art. 2091º, nº 1, do CC, a ação tinha que ser intentada por todos os herdeiros e, não o tendo sido, ocorreu preterição do litisconsórcio necessário ativo.

O autor discorda desta decisão e entende que tem legitimidade para intentar a presente ação, sem necessidade de intervenção dos co-herdeiros, pois a mesma não se enquadra no art. 2091º, nº 1, do CC, que consagra a regra geral de litisconsórcio necessário e impõe a intervenção de todos os herdeiros.
Em abono da sua pretensão, argumenta, no essencial, que a ação deve ser qualificada como de petição de herança, nos termos do art. 2075º, podendo ser intentada por qualquer herdeiro, conforme estabelecido no art. 2078º, nº 1, ambos do CC.

Não se sufragando este entendimento, considera que a ação deve ser integrada no art. 2088º, do CC, tendo legitimidade para intentar a presente ação, sem necessidade de intervenção dos demais herdeiros, porquanto exerce o cargo de cabeça-de-casal e a referida norma permite-lhe pedir a entrega do bem que, no exercício do referido cargo, lhe compete administrar.

Os recorridos consideram que a presente ação se enquadra na regra geral do art. 2091º, nº 1, do CC, acompanhando no essencial a fundamentação constante da decisão recorrida.
Defendem ainda que a restituição de um bem à herança difere do pedido de anulação de um negócio sobre determinado bem e que só após a anulação de um negócio sobre determinado bem da herança seria possível lançar mão da ação de petição da herança.

Vejamos, então, à luz dos pedidos formulados e da causa de pedir invocada nos autos, se o autor tem legitimidade para intentar a presente ação, na qualidade de herdeiro e de cabeça-de-casal da herança, ou se, ao invés, ocorre uma situação de litisconsórcio necessário ativo e a ação tem de ser intentada por todos os herdeiros, de acordo com a regra geral constante do art. 2091º, nº 1, do CC.

Dispõe o art. 30º, do CPC, relativamente ao conceito de legitimidade que:

1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Da leitura desta norma, conclui-se, utilizando as palavras de Castro Mendes (in Direito Processual Civil, Vol. II, págs. 187 e 192) que “a legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto do processo.” (...) Assim, a legitimidade da parte depende da titularidade, por esta, dum dos interesses em litígio”.
No mesmo sentido ensinava já o Prof. Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, 2ª edição, Vol. I, pág. 41) que a “questão da legitimidade é simplesmente uma questão de posição quanto à relação jurídica substancial. As partes são legítimas quando ocupam na relação jurídica controvertida uma posição tal que têm interesse em que sobre ela recaia uma sentença que defina o direito.”
A exigência deste requisito pretende acautelar que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, tornando-se, assim, necessário que estejam em juízo, como autor e réu, as pessoas titulares da relação jurídica em causa (Acórdão da Relação de Guimarães, de 18.1.2018, P 181/16.1T8PRG.G1, in www.dgsi.pt).
À legitimidade, enquanto pressuposto processual definido no art. 30º, do CPC, interessa saber quem são os sujeitos da relação controvertida, tal como ela é configurada pelo autor. Saber se essa relação existe ou não e quem são efetivamente os seus sujeitos é matéria que pertence ao mérito da ação, e que se prende com a legitimidade em sentido material, e não com a legitimidade enquanto pressuposto processual.

A relação material controvertida invocada pode respeitar a uma pluralidade de titulares, quer do lado ativo, quer do lado passivo, quer de ambos.
Quando tal sucede, ou seja, quando uma única relação jurídica tem vários titulares, estamos perante uma situação de litisconsórcio, o qual pode ser voluntário ou necessário, estando o primeiro previsto no art. 32º e o segundo no art. 33º, ambos do CPC.
Relativamente ao litisconsórcio necessário, que é aquele que interessa para a decisão do presente recurso, a obrigatoriedade da presença simultânea de todos os interessados pode resultar da lei (litisconsórcio legal), de negócio jurídico (litisconsórcio convencional) ou da própria natureza da relação jurídica em litígio (litisconsórcio natural) quando esta torne necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
De acordo com a definição do nº 3 do art. 33º do CPC, a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.

Existindo uma situação de litisconsórcio necessário em qualquer uma das modalidades referidas no art. 33º, do CPC, a sua preterição, com a falta de intervenção em juízo de qualquer dos vários interessados, é motivo de ilegitimidade (nº 1) e determina a absolvição da instância (arts. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. e), do CPC).

No que respeita à herança indivisa, ou seja, à herança que foi aceite, mas que ainda não foi partilhada, a mesma não dispõe nem de personalidade jurídica nem de personalidade judiciária, posto que esta apenas é conferida à herança jacente pelos arts. 11º e 12º, al. a), do CPC, considerando-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado (art. 2046º, nº 1, do CC).

A herança indivisa configura uma situação de comunhão em que o direito dos herdeiros não incide diretamente sobre cada um dos elementos que constituem o património hereditário, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário. Significa isto que aos membros da comunhão, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos sobre cada um dos bens que integram o património global que constitui o acervo hereditário, sendo os herdeiros apenas titulares de uma quota ideal desse património.

Daí que, dada a natureza jurídica da herança indivisa, o art. 2091º, nº 1, do CC, disponha, como regra geral, que, fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.
O art. 2091º, nº 1, consagra, assim, uma situação de litisconsórcio necessário legal impondo que, fora das situações nele ressalvadas, os direitos relativos à herança tenham obrigatoriamente que ser exercidos por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

A ratio desta norma deriva precisamente do reconhecimento por parte do legislador de que nas situações de herança indivisa é necessária a intervenção de todos os herdeiros para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, pois o direito dos herdeiros não incide diretamente sobre cada um dos elementos que constituem o património hereditário, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário. Na sequência do reconhecimento de que o exercício de direitos por ou contra a herança indivisa integra, em regra e do ponto de vista material, uma situação de litisconsórcio necessário natural, de acordo com o conceito explanado nos nºs 2 e 3 do art. 33º, do CPC, o legislador estabeleceu expressamente no art. 2091º, nº 1, do CC, essa regra, impondo o litisconsórcio necessário legal relativamente à legitimidade para atuação em juízo da herança indivisa ou contra essa herança

Ressalvou, porém, dessa regra geral do litisconsórcio necessário legal algumas situações por entender que, nelas, o concreto direito que se pretende exercer não justifica nem exige a intervenção de todos os herdeiros, bastando a intervenção de qualquer deles ou do cabeça-de-casal, por se tratar de situações em que, embora se trate de uma herança indivisa, a decisão a obter na ação pode produzir o seu efeito útil normal e regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado sem necessidade de intervenção de todos os herdeiros.

Desse conjunto de ressalvas, destacam-se, em primeiro lugar, as ações que podem ser intentadas pelo cabeça de casal, no exercício das funções de administração da herança, as quais lhe pertencem até que ocorra a sua liquidação e partilha (art. 2079º do CC).

Designadamente, estabelece o art. 2088º, do CC, que:

1. O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.
2. O exercício das ações possessórias cabe igualmente aos herdeiros ou a terceiro contra o cabeça-de-casal.

Compreende-se e explica-se a estatuição desta norma porque, para que o cabeça-de-casal possa exercer cabal e adequadamente as suas funções, é pressuposto que tenha a detenção material dos bens que lhe compete administrar e, por isso, justifica-se a possibilidade que o citado normativo lhe confere de poder exigir, quer dos próprios herdeiros, quer de terceiro, a entrega dos bens que estão sujeitos à sua administração, podendo para o efeito intentar ações de reivindicação ou possessórias contra qualquer pessoa que possua ou detenha bens da herança, ações essas que pode intentar sozinho, sem necessidade de intervenção dos demais herdeiros, em exceção à regra geral consagrada no art. 2091º, nº 1, do CC. Tendo em conta a descrita finalidade da ação - que é a de permitir que o cabeça-de-casal tenha a detenção material dos bens que lhe compete administrar - não existe neste caso a situação de litisconsórcio natural decorrente da natureza da relação jurídica que levou a que o legislador consagrasse como regime regra em ações relativas à herança indivisa o litisconsórcio necessário legal pois a decisão a obter nestas ações pode produzir o seu efeito útil normal e regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado sem necessidade de intervenção de todos os herdeiros.

O cabeça de casal pode ainda cobrar as dívidas ativas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente (art. 2089º, do CC).
Pode também pedir a entrega dos bens que deva administrar, conforme estabelecido no art. 2078º, nº 2, do CC, o qual lhe confere legitimidade para propor uma ação de petição de herança, ainda que não seja herdeiro, uma vez que lhe cabe a tarefa de administrar os bens que integram o acervo hereditário (cf. Cristina Pimenta Coelho em anotação ao art. 2078º, in CC Anotado, Coord. Ana Prata, Vol. II, pág. 1004).

As razões que justificam estas exceções são idênticas às que já explanámos propósito do art. 2088º, nº 1, do CC.

Em segundo lugar, exceciona-se da regra geral do litisconsórcio necessário decorrente do art. 2091º, nº 1, do CC, a ação de petição da herança dispondo o art. 2075º, do CC, que:

1. O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título.
2. A ação pode ser intentada a todo o tempo, sem prejuízo da aplicação das regras da usucapião relativamente a cada uma das coisas possuídas, e do disposto no artigo 2059.º

A ação de petição da herança pode ser exercida por um só herdeiro, dispondo o art. 2078º, nº 1, do CC, que, sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro.

A ação de petição da herança (...) destina-se apenas a dirimir eventuais litígios existentes entre aquele que se considera herdeiro e com direito aos bens da herança e aquele que os possui, seja a título de herdeiro, seja a qualquer outro título ou mesmo sem qualquer título.
Através desta ação, o requerente solicita o reconhecimento judicial da sua qualidade de herdeiro, sendo consequência do mesmo a entrega dos bens da herança que se encontravam na posse do demandado” (cf. Cristina Pimenta Coelho em anotação ao art. 2078º, in CC Anotado, Coord. Ana Prata, Vol. II, pág. 1002).
A petição da herança “é a acção por meio da qual aquele que pretende ser chamado a uma herança reclama o reconhecimento da sua qualidade de herdeiro. Esta acção, não tende tanto à entrega das coisas como ao reconhecimento da qualidade de herdeiro, com o propósito de recuperar, no todo ou em parte, o que constituir o património hereditário” (cfr. Rodrigues Bastos, in “Direito das Sucessões” pág. 158).
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, o fundamental na petição da herança é “o fim duplo que a lei visa; por um lado, o reconhecimento judicial do título ou estatuto (de herdeiro) que o autor se arroga; por outro, a integração dos bens que o demandado possui no activo da herança ou da fracção hereditária pertencente ao herdeiro” (Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 131).

De onde decorre que os pedidos típicos da ação de petição da herança são o reconhecimento da qualidade de herdeiro e a restituição de bens da herança.

Quanto à causa de pedir da ação, a mesma é complexa, sendo integrada pelos seguintes elementos:
- que o autor seja herdeiro do de cuius;
- que o bem peticionado faça parte da herança do de cuius;
- que o réu possua o bem peticionado (cf. Acs. da Relação de Lisboa, de 12.11.2018, P 5262/17.1T8FNC.L1-7 e da Relação do Porto, de 11.10.2022, P 973/18.7T8MTS.P1 in www.dgsi.pt).

A ação de petição da herança prevista no art. 2075º está delineada para os casos em que a controvérsia se centra sobretudo na qualidade de sucessor do autor e na existência de um bem pertencente à herança que está a ser possuído ou detido por outro herdeiro ou por um terceiro.
Daí que se justifique que possa ser exercida por apenas um herdeiro, não se exigindo a intervenção conjunta de todos, por as razões da teleologia do art. 2091º, nº 1, do CC, aqui não se verificarem, como já supra esclarecemos.
Todavia, no âmbito dessa ação, pode ocorrer que não seja líquido nem incontroverso que o bem pertence à herança e que para alcançar tal conclusão seja necessário previamente concluir que existe um negócio jurídico inválido no qual foi interveniente o de cuius e que, mercê dessa invalidade, determinado bem ou direito deve regressar à sua esfera patrimonial e assim passar a integrar a sua herança.
Não vemos qualquer óbice a que tal ocorra na própria ação de petição da herança pois o art. 2075º do CC não exige, como condição para o exercício da ação, que seja líquido e incontroverso que o bem pertence à herança, razão pela qual se considera ser possível que essa questão seja aí analisada e decidida, sendo, naturalmente, pressuposto e condição da sua procedência.
Daí que, no âmbito da causa de pedir complexa da ação de petição da herança, se possa alegar a invalidade do negócio jurídico mediante o qual o bem foi transmitido a terceiro com vista a demonstrar que, mercê dessa invalidade, a propriedade do bem não se transmitiu validamente e deve retornar à esfera jurídica do de cuius, integrando deste modo a sua herança.
Porém, se situação que é invocada no âmbito da ação da petição da herança como suporte para o requisito de que o bem pertence à herança implicar uma relação jurídica que, pela sua própria natureza, exija a intervenção de todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, regulando definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, então haverá uma situação de litisconsórcio necessário natural, nos termos do art. 33º, nºs 2 e 3, do CPC, relativamente a essa matéria.
O que vale por dizer que sempre que a ação de petição da herança envolva a análise da (in)validade de uma relação jurídica como pressuposto e condição de verificação do requisito atinente à pertença do bem à herança, a questão tem que ser aferida e decidida casuisticamente, verificando se ocorre ou não uma situação de litisconsórcio necessário natural quanto à concreta relação jurídica cuja invalidade é invocada.

Assentes nestas premissas e analisando os diversos pedidos formulados pelo autor verifica-se que nas als. a) a g) o autor pede o reconhecimento da sua qualidade de herdeiro e cabeça-de-casal da herança aberta por óbito da falecida DD e a restituição à herança do bem imóvel que a integra, em virtude de o negócio jurídico pelo qual a falecida transmitiu aos réus a propriedade desse bem ser nulo ou anulável.

A decisão recorrida afastou a possibilidade de enquadramento desta demanda na ação de petição de herança prevista no art. 2075º, nº 1, do CC, com a seguinte fundamentação:

A norma em apreço inscreve-se no capítulo da “Petição da herança” que, como expressamente refere o n.º 1 do artigo 2075º do CC, está dependente da dedução do pedido de reconhecimento da qualidade sucessória do demandante e, bem assim, de que o(s) bem(ns) peticionado(s) pertençam à herança.
Sucede que, no caso vertente, não é líquido que o bem objecto do pedido pertença à herança, pois os Réus gozam, por ora, da presunção da propriedade decorrente do registo da aquisição (cfr. artigo 7º do C. R. Predial), razão pela qual o Autor veio formular o pedido de declaração da nulidade / anulação da compra e venda subjacente ao registo, fundada em falta ou vício da vontade da falecida DD, …determinada com recurso a erro, dolo e/ou reserva mental por parte dos Réus. (cfr. artigo 63º da p.i.).
A declaração da invalidade do negócio jurídico da compra e venda, sustentada pelo Autor na presente acção na falta ou no vício da vontade de DD, extravasa o âmbito da acção de petição da herança prevista pelos artigos 2075º e ss. do Código Civil, pelo que também se não aplica à presente demanda a previsão do n.º 1 do artigo 2078º em apreço.

Como já acima referimos, é condição de procedência da ação de petição da herança que o bem cuja restituição é pedida integre a herança. No entanto, não é condição para o exercício dessa ação que seja líquido, incontroverso e adquirido que o bem integra a herança. Tal exigência não é feita no art. 2075º, do CC e, a nosso ver, nada impede que seja na própria ação de petição da herança que se discuta e demonstre que o bem integra a herança.
É precisamente o que sucede no caso dos autos em que o autor invoca que o imóvel integra a herança da falecida porquanto o negócio pelo qual a mesma o transmitiu aos réus é inválido e, mercê dessa invalidade, a propriedade não se transmitiu aos réus e o imóvel pertence ao acervo hereditário.
Se o conseguir demonstrar na ação, bem como aos demais requisitos, designadamente a sua qualidade de herdeiro e a posse do bem por parte dos réus, estão reunidos os requisitos legais de que depende a procedência da ação de petição da herança.
Não o conseguindo demonstrar, a ação improcede.

Assim, divergimos da decisão recorrida e consideramos que a circunstância de não ser líquido que o bem imóvel integra a herança não impede o exercício da ação de petição da herança nem extravasa o seu âmbito.
Consequentemente, discordamos também do entendimento dos recorridos, os quais  sustentam que só após a anulação de um negócio sobre determinado bem da herança seria possível lançar mão da ação de petição da herança. Não encontramos na letra nem no espírito do art. 2075º essa exigência de existência de uma ação prévia na qual se declare anulado o negócio e, como explicámos, sendo a invalidade do negócio um pressuposto prévio, porquanto dele depende a conclusão de que o imóvel integra a herança, caberá ao autor demonstrar a sua verificação como condição de procedência da ação.
Por outro lado, o princípio da economia processual também aponta no sentido de que a questão seja resolvida numa única ação, não se encontrando justificação para a exigência de propositura de duas ações, uma primeira em que se declarasse anulado o negócio e outra subsequente em que se reconhecesse a qualidade de herdeiro e, por o bem pertencer à herança, se ordenasse a sua restituição àquela.

Por isso, tal como defendido pelo recorrente, o pedido de declaração de nulidade/anulação, sendo um pressuposto do pedido de restituição à herança do prédio urbano objeto dos autos, não ultrapassa o âmbito da ação de petição de herança prevista nos artigos 2075º e seguintes do Código Civil.

Todavia, pretendendo-se a declaração de invalidade do negócio jurídico pelo qual a falecida DD transmitiu aos réus a propriedade do imóvel e sendo que só se esta invalidade proceder o imóvel passará a integrar a herança da falecida, a apreciação desta relação jurídica, pela sua própria natureza, exige a intervenção de todos os interessados para que a decisão a proferir possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Com efeito, a apreciação da validade do negócio celebrado entre a falecida DD e os réus só pode regular definitivamente a situação se estiverem na lide todos os intervenientes nesse contrato que, no caso em concreto, são os réus e os sucessores de DD. Doutro modo, a situação nunca ficaria definitivamente regulada, pois seria possível outros sucessores de DD virem novamente discutir a (in)validade desse contrato.
Por conseguinte, conclui-se que, no que concerne à apreciação da invalidade do contrato celebrado entre DD e os réus, ocorre uma situação de litisconsórcio necessário natural que exige a intervenção de todos os sucessores da mesma.
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O autor formula ainda, subsidiariamente, o pedido da al. h) no qual pede o pagamento do preço da venda do imóvel que os réus não pagaram à falecida, acrescido de juros de mora, bem como o valor dos bens móveis que ficaram no imóvel.
Ora, este pedido subsidiário extravasa a ação de petição da herança, tratando-se de uma ação para exercício de um direito de crédito da herança.

O art. 2089º, do CC, que já supra referimos, apenas permite que o cabeça-de-casal cobre dívidas ativas da herança quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente, situações que não se verificam nos presentes autos.
Por conseguinte, não se enquadrando o pedido subsidiário formulado na al. h) em nenhuma das situações excecionais que supra analisámos em que é possível que a ação seja intentada por qualquer herdeiro ou pelo cabeça-de-casal, tal pedido fica abrangido pela regra geral do art. 2091º, nº 1, do CC, que impõe que os direitos relativos à herança sejam exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, tratando-se de uma situação de litisconsórcio necessário ativo.

Por conseguinte, e quanto à primeira questão recursória, conclui-se que:

a) no que concerne à apreciação da invalidade do contrato celebrado entre DD e os réus, ocorre uma situação de litisconsórcio necessário natural que exige a intervenção de todos os sucessores da mesma;
b) face ao disposto no art. 2091º, nº 1, do CC, o autor não possui legitimidade para intentar a presente ação relativamente ao pedido subsidiário formulado na al. h), havendo preterição do litisconsórcio necessário ativo porquanto é necessária a intervenção de todos os herdeiros para o exercício do peticionado direito da herança.

II – Necessidade de prolação de despacho a convidar o autor a suprir a ilegitimidade, mediante a intervenção dos litisconsortes

Atentas as conclusões de a) e b) de que existe preterição do litisconsórcio necessário, impõe-se agora saber se a consequência é a imediata absolvição dos réus da instância, conforme foi determinado na decisão recorrida, ou se, ao invés, deve ser proferido despacho convidando o autor a proceder ao suprimento da ilegitimidade processual ativa, fazendo intervir nos autos, nos termos e pelos mecanismos legalmente previstos para o efeito, os demais herdeiros da falecida DD, conforme defende o recorrente.

Como já acima aflorámos, a preterição do litisconsórcio necessário configura a exceção dilatória de ilegitimidade a qual tem como consequência a absolvição da instância (arts. 33º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2 e 577º, al. e) do CPC).

Todavia, essa consequência só opera se a situação de ilegitimidade existente não puder ser suprida ou, podendo sê-lo, o suprimento não tiver lugar.

Caso exista possibilidade de sanação, o juiz deve proferir despacho convidando a parte a proceder ao seu suprimento e só se o convite não for aceite e a ilegitimidade permanecer poderá, então, proferir decisão de absolvição da instância.

Importa ter presente que o art. 6º do CPC, que consagra o dever de gestão processual, estabelece no seu nº 2 que o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
Por seu turno, dispõe o art. 590º, nº 2, al. a), do CPC, que, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º.

Resulta da conjugação destas normas, de forma que nos parece inequívoca e incontroversa, que as mesmas impõem um dever ao juiz, no sentido de que, verificada a hipótese normativa, este tem obrigatoriamente de proferir o despacho pré-saneador com a aludida finalidade de providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias. Trata-se de normas que impõem um poder-dever ou um poder vinculado, e não um poder discricionário que permita que o juiz profira ou não tal despacho, de acordo com o seu próprio critério.

Como refere Paulo Pimenta (in Processo Civil Declarativo, 3ª ed., págs. 244 e 245) “[r]elativamente ao despacho pré-saneador a proferir nos termos do da alínea a) do nº 2 do art. 590º, importa realçar que o propósito do legislador é o de garantir condições para que o processo evolua em termos de vir a ser proferida nos autos uma decisão de mérito, uma decisão que aprecie os argumentos materiais invocados pelas partes, o mesmo é dizer que se pretende evitar que o desfecho da lide seja condicionado (em maior ou menor escala) por motivos de caráter processual. (...) Será, portanto ilegítima a actuação do juiz que, perante a falta de um pressuposto processual suceptível de sanação ou a existência de uma exceção dilatória suprível, não diligencie pela sanação ou pelo suprimento e, logo a seguir, profere despacho saneador (art. 595º) no qual declara a violação do tal pressuposto ou a verificação de tal excepção, fixando as respectivas consequências processuais (traduzidas, habitualmente, na absolvição da instância: art. 278º 1)”.
Considera o mesmo autor que a não prolação de despacho pré-saneador constitui uma irregularidade passível de influir no exame ou decisão da causa, o mesmo é dizer que a omissão desse despacho gera uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, traduzida na omissão pelo juiz de um ato que a lei prescreve.

Assim, ocorrendo uma situação de preterição de litisconsórcio necessário ativo, como é o caso nos presentes autos, a qual é passível de suprimento, o juiz tem o dever de proferir despacho pré-saneador convidando o autor a suprir tal preterição mediante dedução do incidente de intervenção principal, nos termos dos arts. 316º e ss, do CPC, com vista a chamar à lide os demais herdeiros.

Defendem os recorridos que, como à data da propositura da ação, eram também herdeiros da herança aberta por óbito de DD, tal situação torna a causa impossível porque, por via da operância da regra de litisconsórcio ativo decorrente do art. 2091º, nº 1, do CC, que impõe que o direito seja exercido conjuntamente por todos os herdeiros, os recorridos passariam a ser simultaneamente autores e réus na mesma ação, o que torna a ação impossível e torna a preterição de litisconsórcio insuprível.

É manifesto e evidente que os recorridos não podem estar na mesma ação na qualidade simultânea de autores e réus. Mas daí não decorre a conclusão de que a lide é impossível ou de que a preterição de litisconsórcio é insuprível.
O art. 2091º, nº 1 do CC impõe o litisconsórcio necessário ativo e passivo nas situações de herança indivisa para que todos os herdeiros estejam na ação, como autores ou réus, e a decisão a todos abranja, o que se compreende visto a herança indivisa constituir um património relativamente ao qual todos os herdeiros são titulares de uma quota.
Em situações, como a dos autos, em que existem co-herdeiros demandados relativamente a direitos da herança por outros co-herdeiros, a interpretação do art. 2091º, nº 1, do CC tem se restringir à necessidade de intervenção dos demais herdeiros, com exclusão dos que já figuram na ação, na qualidade de réus.
A interpretação que os recorridos propugnam conduziria, na prática, a uma inaceitável paralisação da possibilidade de exercício dos direitos por parte dos demais herdeiros em situações em que algum dos herdeiros tivesse cometido atos relativamente à herança que justificassem a sua demanda como réus.
Na propugnada interpretação, desde que um dos herdeiros praticasse um qualquer ato ilícito ou ilegal relativamente à herança justificativa da sua demanda na qualidade de réus, tal paralisaria automaticamente a possibilidade dos restantes herdeiros exercerem os seus direitos porque teriam que o fazer em conjunto com os réus, que também são herdeiros, e tal não seria possível porque não poderiam figurar na ação na dupla qualidade de autores e réus.
Esta interpretação não é lógica e na prática conduziria a uma absoluta impossibilidade de exercício do direito, violadora do direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20º da CRP.
Assim, a exigência de litisconsórcio necessário ativo decorrente do estatuído no 2091º, nº 1, do CC, tem de ser interpretada no sentido de que, quando alguns dos herdeiros já figurem na ação na qualidade de réus, apenas têm que figurar como autores os restantes herdeiros, desta forma se garantindo e assegurando a exigência do citado normativo de que o direito seja exercido conjuntamente por todos os herdeiros.

Sobre uma situação análoga, pronunciou-se o Ac. Relação de Coimbra, de 9.3.2010, (P 121/08.1TBANS.C1 in www.dgsi.pt) constando do respetivo sumário, na parte que para o caso releva, que:

II – A coincidência na mesma pessoa da posição de A. e R., na mesma acção, mesmo em situações de legitimidade plural, corresponde a uma impossibilidade lógica, ofendendo o princípio da dualidade das partes.
IV – No caso de uma acção de reivindicação de bens pertencentes a uma herança, diversamente do que sucede com a chamada petição de herança, não tem aplicação o disposto no artigo 2078º do CC, funcionando, no que respeita à legitimidade, a regra do artigo 2091º, nº 1 do CC.
V – Nestes casos (acção de reivindicação), quando o acto ofensivo do direito de propriedade do património hereditário indiviso for subjectivamente atribuído a um co-herdeiro (por exemplo, por este ter registado em seu nome bens da herança), a posição deste último como R. (em confronto com os outros co-herdeiros reivindicantes) já preenche plenamente o fim que preside à imposição do litisconsórcio (artigo 28º, nºs 1 e 2 do CPC).
VI – Com efeito, neste caso, ocorrendo a intervenção do co-herdeiro como R., está assegurada, por um lado, a participação no processo desse co-interessado na relação material controvertida (na relação respeitante à dominialidade dos bens reivindicados), conforme exige o nº 1 do artigo 28º do CPC. Da mesma forma, por outro lado, a decisão a proferir produz, relativamente ao co-herdeiro destinatário da pretensão reivindicatória (na qualidade de R.), o seu efeito útil normal (nº 2 do artigo 28º do CPC).

Idêntica posição foi ainda seguida no Acórdão da Relação de Coimbra, de 26.2.2019 (P 1222/16.8T8VIS-C.C1 in www.dgsi.pt), sumariado em termos análogos ao acórdão atrás citado.

Por conseguinte, procede a segunda questão recursória e, perante a ilegitimidade do autor por preterição do litisconsórcio necessário, exceção essa que é suprível, ao abrigo dos arts. 6º, nº 2 e 590º, nº 2, al. a) do CPC, deverá o autor ser convidado a deduzir incidente de intervenção principal dos herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de DD que não sejam ainda parte na ação, na qualidade de seus associados, sob pena de, não o fazendo, serem os réus absolvidos da instância por ilegitimidade decorrente da preterição do litisconsórcio necessário ativo.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Atentas as posições do recorrente e dos recorridos quanto à questão da ilegitimidade e quanto à possibilidade do seu suprimento, entende-se que ambos ficaram vencidos no recurso em igual proporção, pelo que devem nessa medida suportar o pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.
DECISÃO

Pelo exposto, os juízes deste Tribunal da Relação acordam em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:

A) consideram que ocorre preterição do litisconsórcio necessário, nos termos supra expostos;
B) revogam a decisão de absolvição dos réus da instância e determinam que seja proferida decisão providenciando pelo suprimento da exceção dilatória de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário ativo, mediante convite ao autor para deduzir incidente de intervenção principal provocada, como seus associados, dos restantes herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de DD, com exceção daqueles que já figuram na ação na qualidade de réus, sob pena de, não o fazendo, serem os réus absolvidos da instância.

Custas por recorrente e recorridos, na proporção de metade para cada um.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - A ação de petição da herança prevista no art. 2075º do CC está delineada para os casos em que a controvérsia se centra sobretudo na qualidade de sucessor do autor e na existência de um bem pertencente à herança que está a ser possuído ou detido por outro herdeiro ou por um terceiro, daí se justificando que possa ser exercida por apenas um herdeiro, não se exigindo a intervenção conjunta de todos, por as razões da teleologia do art. 2091º, nº 1, do CC, aqui não se verificarem.
II - Todavia, no âmbito dessa ação, pode ocorrer que não seja líquido nem incontroverso que o bem pertence à herança e que para alcançar tal conclusão seja necessário previamente concluir que existe um negócio jurídico inválido no qual foi interveniente o de cuius e que, mercê dessa invalidade, determinado bem ou direito deve regressar à sua esfera patrimonial e assim passar a integrar a sua herança.
III - Se situação que é invocada no âmbito da ação da petição da herança como suporte para o requisito de que o bem pertence à herança implicar uma relação jurídica que, pela sua própria natureza, exija a intervenção de todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, regulando definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, então haverá uma situação de litisconsórcio necessário natural, nos termos do art. 33º, nºs 2 e 3, do CPC, relativamente a essa matéria.
IV - A preterição do litisconsórcio necessário configura a exceção dilatória de ilegitimidade, a qual tem como consequência a absolvição da instância (arts. 33º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2 e 577º, al. e) do CPC). Todavia, essa consequência só opera se a situação de ilegitimidade existente não puder ser suprida ou, podendo sê-lo, o suprimento não tiver lugar.
V - Os arts. 590º, nº 2, al. a) e 6º, nº 2, do CPC impõem um dever ao juiz, no sentido de que, verificada a hipótese normativa, este tem obrigatoriamente de proferir o despacho pré-saneador com a finalidade de providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias. Trata-se de normas que impõem um poder-dever ou um poder vinculado, e não um poder discricionário que permita que o juiz profira ou não tal despacho, de acordo com o seu próprio critério.
VI – Ocorrendo, no caso em apreço, uma situação de preterição de litisconsórcio necessário ativo, passível de suprimento, o juiz tem o dever de proferir despacho pré-saneador convidando o autor a suprir tal preterição mediante dedução do incidente de intervenção principal, nos termos dos arts. 316º e ss, do CPC, com vista a chamar à lide os demais herdeiros.
VI - A circunstância de alguns dos herdeiros já figurarem na ação como réus não torna a lide impossível nem torna insuprível a exceção de ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário ativo.
VII - Em situações em que existem co-herdeiros demandados relativamente a direitos da herança por outros co-herdeiros, a exigência de litisconsórcio necessário ativo decorrente do estatuído no 2091º, nº 1, do CC, tem de ser interpretada no sentido de que apenas têm que figurar como autores os restantes herdeiros, com exclusão dos que já figuram na ação na qualidade de réus, desta forma se garantindo e assegurando a exigência do citado normativo de que o direito seja exercido conjuntamente por todos os herdeiros.
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Guimarães, 18 de janeiro de 2024

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) José Alberto Martins Moreira Dias
(2º/ª Adjunto/a) Pedro Maurício