Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
568/19.8T8PFR.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
PERDA DE MERCADORIAS
PRESUNÇÃO
DOLO
NEGLIGÊNCIA
VALOR DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – O artigo 17º, nº 1, da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR) estabelece uma presunção de responsabilidade do transportador pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega.
2 – Se o transportador não lograr ilidir a presunção que sobre ele recai, ainda assim, em princípio, beneficia de um regime próprio de limitação da sua responsabilidade.
3 – Tal regime de limitação da responsabilidade, nos termos do artigo 29º, nº 1, da CMR, é afastado se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.
4 – A CMR endossou à ordem jurídica nacional a definição do nexo de imputação ao transportador da responsabilidade efectivamente apurada; como para o nosso ordenamento o nexo de imputação é estabelecido tanto no caso de comportamento doloso como no de comportamento negligente, a falta em que este se traduz é equivalente àquele no quadro do artigo 29º da CMR.
5 – Para efeitos de definição da responsabilidade contratual, é indiferente que a falta de cumprimento ou a execução defeituosa da prestação se fique a dever a dolo ou a negligência do obrigado. O direito nacional lei equipara a negligência ao dolo no âmbito da responsabilidade contratual, enquanto pressuposto desta.
6 – A culpa em sentido lato abrange tanto o dolo como a negligência, pelo que, uma vez definida a culpa do transportador, este responde pela totalidade do prejuízo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. X – Mobiliário Internacional, SA, intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Y – Transportes Nacionais e Internacionais, SA, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 10.061,55, com fundamento no incumprimento de um contrato de transporte de mercadorias.
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A Ré apresentou contestação e requereu a intervenção acessória provocada de W – Transporte … International, Lda., e de K – Companhia de Seguros, SA.
Admitido o chamamento, as intervenientes K e W contestaram, tendo esta última requerido a intervenção acessória provocada de T. (Portugal), Transitários, Transportes e Serviços Complementares, Unipessoal, Lda.
Na sequência da admissão deste último chamamento, a T. também apresentou contestação.
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1.2. Depois da audiência prévia, proferiu-se despacho-saneador, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e a condenar a Ré Y no pagamento à Autora do valor de € 2.441,55, acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento desde a data da sentença.
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1.3. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«I. O presente recurso vem interposto da decisão do Tribunal a quo que julgou, de acordo com o Artigo 23º da convenção CMR, a indemnização dos danos da Recorrente dados como provados no montante de €6.277,55 limitados ao valor de € 2441,55, julgando a presente acção apenas parcialmente procedente para a aqui Recorrente;
II. Na aludida sentença (ref. nº 175238827), o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão no facto de “No caso dos autos provou-se que existiu um incumprimento contratual porquanto a ré Y não entregou a mercadoria no prazo contratado e mesmo quando a mercadoria foi encontrada estava totalmente danificada. Por outro lado, não se provou que tivesse existido dolo ou qualquer acto voluntário do transportador que tenha sido a origem ou a causa do incumprimento contratual. Teremos portanto, face aos factos provados, que aplicar o disposto no artigo 23º da Convenção.”;
III. Entendeu assim o Tribunal recorrido que “de acordo com o estipulado no artigo 23º da Convenção a autora terá direito a receber (…) uma indemnização limitada ao valor de € 2.441,55.”;
IV. A Recorrente nunca poderia conformar-se com tal decisão porquanto resulta claro da factualidade provada e não provada, não só o incumprimento contratual por parte da ora Recorrida e os danos sofridos pela aqui Recorrente, mas também a conduta negligente e grosseiramente temerária da Recorrida;
V. Resulta da factualidade dada como assente pelo digníssimo tribunal a quo, que a Recorrente celebrou com a Recorrida, em 21 de Maio de 2018, um contrato de transporte de mercadorias.
VI. A Recorrida obrigava-se a transportar a mercadoria da Recorrente, que consistia em mobiliário, de Portugal para França, mediante pagamento do preço;
VII. Ficou estipulado que o serviço de entrega dessa mercadoria seria em regime de “entrega expresso”;
VIII. A mercadoria teria que ser entregue impreterivelmente no dia 24 de Maio de 2018;
IX. A Recorrida não só não procedeu à entrega da mercadoria na data expressa e imperativamente acordada;
X. Como perdeu completamente o rasto à mercadoria que lhe havia sido entregue para transportar;
XI. E não se bastou pela perda absolutamente negligente do rasto da mercadoria;
XII. A partir da data em que não entregou a mercadoria como se havia obrigado, nunca indagou junto de quem quer que fosse sobre o sucedido, bem como nunca tentou localizar a mesma;
XIII. Interpelada sistematicamente pela Recorrente a Recorrida nunca prestou quaisquer informações à mesma;
XIV. A Recorrente nunca assumiu qualquer postura diligente ou activa no sentido de insistir junto da sua subcontratada (ou quaisquer outras) por informações ou explicações acerca da mercadoria transportada;
XV. O contrato descrito nos autos respeita a um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, regulado pela Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR);
XVI. O transportador é efectivamente responsável pela perda total ou parcial da mercadoria transportada;
XVII. É apanágio do nosso ordenamento jurídico que o responsável pelo dano está obrigado a reparar integralmente o dano sofrido pelo lesado;
XVIII. No âmbito da CMR está efectivamente previsto um regime especial de indemnização, limitando o seu valor;
XIX. Essa limitação da indemnização não ocorre se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, nomeadamente segundo a lei portuguesa, seja considerada equivalente ao dolo;
XX. Quando houver dolo do transportador ou falta equivalente, a indemnização deve reparar integralmente os danos verificados;
XXI. A jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido, para os efeitos do artigo 29º da CMR, como falta equivalente ao dolo, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu;
XXII. No regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR;
XXIII. Dúvidas não persistem de que a Recorrida deve indemnizar a Recorrente pela totalidade dos danos dados como provados em sede de audiência de julgamento decorrentes do incumprimento do contrato em crise nos autos;
XXIV. Incumbia à Recorrida ser diligente e zelar pela conservação da mercadoria enquanto a mesma se encontrasse sobre a sua posse, evitando que se perdesse sem paradeiro e se deteriorasse ao ponto em que posteriormente foi encontrada;
XXV. A Recorrida teve um comportamento totalmente inesperado, irresponsável, negligente e totalmente desfasado da actuação do homem médio;
XXVI. Incumpriu com o prazo de entrega “EXPRESSO” contratualmente estipulado;
XXVII. E perdeu absolutamente o rasto a uma mercadoria com 210kg, prestando em cada uma das sucessivas interpelações ao longo de vários dias seguintes, informações inócuas à Recorrente quanto à sua localização;
XXVIII. Acabando por ser esta a responsável pela localização da mercadoria que, por sua vez, se encontrava totalmente destruída;
XXIX. A Recorrida encontrava-se no dever de custódia da mercadoria, velando pela sua guarda e rastreando o seu paradeiro, tal como o faria um bonus pater famílias, o que manifestamente não fez;
XXX. Por tal, deve a Recorrente ser indemnizada pela totalidade dos danos e prejuízos dados como provados em sede de audiência de julgamento decorrentes da actuação grosseiramente negligente da Recorrente.
XXXI. Desta feita, nunca poderia a Recorrente conformar-se com a sentença recorrida uma vez que faz uma apreciação errada dos factos e do direito que justificam a exclusão da limitação da responsabilidade da Recorrida nos termos do artigo 29º da CMR;
XXXII. Assim devem vossas excelências, em conformidade com o exposto, revogar a sentença recorrida, condenando em definitivo a Recorrida a pagar à Recorrente o montante de danos dados como provados pelo tribunal a quo;
XXXIII. No montante de €1.181,55 (mil cento e oitenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos) relativo ao prejuízo com a mercadoria que apareceu totalmente destruída e mercadoria de substituição que teve de enviar, bem como €5.096,00 (cinco mil e noventa e seis euros) respeitante ao prejuízo com os seus colaboradores, nomeadamente com alimentação e estadia;
XXXIV. Danos num total global de €6.277,55 (seis mil euros, duzentos e setenta e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos).
Termos em que, revogando a decisão ora em crise e condenando a Recorrida no pagamento integral dos danos dados como provados pelo tribunal a quo no valor global de €6.277,55 (seis mil euros, duzentos e setenta e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos), farão V. Exas. a devida e costumeira justiça.».
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A Interveniente K apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação da Autora.

1.4. A Ré Y apresentou igualmente contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação da Autora, e requereu a ampliação do âmbito do recurso, formulando a propósito as seguintes conclusões:
«17. Para acautelar e/ou prevenir os efeitos que adviriam da eventual procedência do recurso apresentado pela Apelante - o que somente por dever de patrocínio se hipotetiza -, a Recorrida impugna certos pontos da matéria de facto dada como provada, por entender que, em face da prova produzida e das regras de distribuição do respetivo ónus, jamais poderiam ter sido assentes.
18. Em concreto, a Recorrida discorda dos seguintes pontos da matéria de facto provada: “28. […] e que os seus colaboradores continuassem parados à espera da mesma. […] 32. A Autora teve prejuízo com os seus colaboradores, nomeadamente com alimentação, estadia, prejuízos esses no montante de € 5.096,00 (cinco mil e noventa e seis euros).”
19. Não obstante o thema decidendum contenda com as despesas alegadamente suportadas pela Recorrente com acomodação, alimentação e transporte de quatro trabalhadores, em Paris, ela não logrou efetuar prova documental dessas despesas.
20. O único documento junto aos autos para (tentar) demonstrar esse suposto prejuízo foi uma fatura absolutamente genérica e indiscriminada, emitida pela própria Recorrente à Recorrida, da qual consta o valor global de € 7.380,00, com a descrição “despesas suportadas com colaboradores pelo atraso de entrega de mercadoria durante um período de dez dias”, junta aos autos, com a petição inicial, como doc. n.º 19.
21. Esse documento não se afigura minimamente idóneo a fazer prova daqueles pretensos danos, já que, sendo a Recorrente uma sociedade comercial legalmente constituída, que possui contabilidade organizada, está obrigada à emissão e arquivo das faturas referentes a toda a atividade desenvolvida, bem como das despesas suportadas no seu exercício.
22. A junção das faturas que, alegadamente, titulariam essas despesas deveria ter sido oportunamente feita com os articulados, sendo que, apesar de, já em sede de audiência prévia, as partes terem requerido a suspensão da instância, com o único fito de que a Recorrente enviasse à Recorrida as tais faturas, essa circunstância nunca veio a ocorrer.
23. A existência de faturas e/ou qualquer documento contabilístico referente a despesas com acomodação, refeição e deslocações que, supostamente, a Recorrente, enquanto pessoa coletiva, terá liquidado não se afigura uma prova onerosa e/ou sequer difícil de fazer, sendo antes um corolário natural do regime de contabilidade organizada a que está sujeita uma sociedade comercial, com fim e escopo lucrativos.
24. Daí que a mera ausência dessa prova seja suficiente para se reconhecer que a Recorrente não logrou alcançar o patamar mínimo de certeza e segurança da existência do direito que pretende exercer, à luz das regras da distribuição do ónus da prova vigentes no nosso ordenamento jurídico (maxime, do art. 342.º, n.º 1 do CC).
25. Donde, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo quando deu como provados prejuízos sofridos pela Recorrente, no valor de € 5.096,00, com as alegadas despesas tidas com os seus trabalhadores.
26. Para dar como assente essa matéria, a douta sentença em crise estribou-se fundamentalmente na prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo, porém, certo que, atentas as declarações das testemunhas arroladas pela Recorrente, a Recorrida está absolutamente convencida de que jamais poderia ter fixado a matéria nos termos em que o fez.
27. Nesse sentido, a Recorrida pugna pela exclusão do acervo provado da matéria dos indicados pontos 28, in fine e 32, tendo por base as passagens das gravações e transcrições dos depoimentos que seguidamente se enumeram (nas transcrições escritas destacam-se a negrito e itálico as partes mais relevantes dos depoimentos). Assim, quanto aos meios de prova em que a Recorrida baseia a impugnação:
(i) Depoimento prestado pela testemunha da Recorrente, C. P., em sede de audiência de julgamento, entre os minutos 00:13:25 a 00:13:37, 00:21:28 a 00:22:48, 00:24:14 a 00:24:35, 00:24:47 a 00:26:29, 00:27:22 a 00:28:04, 00:36:06 a 00:36:37, 00:37:03 a 00:37:32, 00:42:45 a 00:43:18, 00:47:56 a 00:49:17, do ficheiro áudio com a identificação 20210920154138_5738151_2870570 x.wma.
(ii) Depoimento prestado pela testemunha J. P., em sede de audiência de julgamento, entre os minutos 00:25:34 e 00:26:24, 00:32:27 a 00:34:21, 00:35:50 a 00:36:08, 00:38:07 a 00:44:50, 00:46:47 a 00:47:05, 00:47:29 a 00:49:11, do ficheiro áudio com a identificação 20210920165928_5738151_2870570 x.wma.
28. No que concerne às razões de natureza argumentativa para a concreta impugnação da matéria de facto remete-se para tudo o que se referiu no corpo das alegações, sublinhando-se e enfatizando-se, os seguintes pontos:
(i) Quer no âmbito da ação, quer segundo a testemunha C. P., a Recorrente teria enviado para Paris quatro trabalhadores especializados apenas para a receção e colocação dos vidros que compunham a carga objeto do contrato de transporte. Já a testemunha J. P., diretor da obra que se encontrava no local e a acompanhou desde o início, refere expressamente que dois dos especialistas na colocação desses vidros já lá estavam desde o início da obra e que, em virtude do contrato de transporte celebrado com a Recorrida, a Recorrente só terá enviado dois trabalhadores, para além dos que lá se encontravam.
(ii) Quanto ao alojamento dos trabalhadores, a testemunha C. P. - responsável pela faturação e tratamento das despesas da Recorrente - referiu que a/o reserva/pagamento dos bungalow/casas foi efetuado por pessoa/trabalhador, enquanto que a testemunha J. P. garantiu que o pagamento era feito por bungalow/casas e não por trabalhador (apesar de, mais adiante, acabar por dizer que todos os custos a que se reportou - incluindo de alojamento - se refeririam a valores à cabeça, por colaborador, entrando em contradição com as suas próprias declarações).
(iii) Quando confrontada com a inexistência de prova documental - mormente, das faturas - acerca dos custos/despesas suportado(a)s com os trabalhadores, se, por um lado, a testemunha C. P. afirma perentoriamente que as faturas existem, embora não tenham sido juntas aos autos e diga já não se recordar do seu teor, por outro, ao longo de todo o seu depoimento, quando questionada acerca dos concretos custos referentes a acomodação, alimentação e deslocação e correspondente forma de cálculo, ela (responsável pelo departamento de faturação) reporta-se sempre a valores “muito por alto”, utilizando expressões como “mais ou menos”, “em média”, “calculamos pelo excedente de dias”, com “base na razoabilidade”, concluindo, sem mais, "Eu dei-lhe um valor em média mais ou menos que nós gastámos com todo o pessoal”.
(iv) Ainda segundo a mesma testemunha, os trabalhadores terão chegado ao local da obra dois dias antes da data inicialmente prevista para entrega do material. Mas, se esses trabalhadores só estavam aptos a efetuar a colocação dos espelhos a transportar, não desempenhando qualquer outra função em obra para além dessa, por que motivo foram enviados para o local da obra dois dias antes da data prevista para o início dos seus trabalhos?!
(v) Através do depoimento prestado por J. P., diretor da obra, foi possível perceber que, afinal, o material cujo transporte havia sido contratado à Recorrida era composto unicamente por peças de substituição de espelhos/vidros que se haviam danificado ao longo da execução da obra. A testemunha clarificou também que a obra em causa integrava a montagem de cerca de 220 a 225 quartos, comportando a instalação de um espelho por cada um deles. Segundo o que explicou, os vidros/espelhos a serem utilizados em todos os quartos já estavam no local da obra desde o seu início, sendo que, em virtude da danificação e/ou quebra de alguns deles ao longo da execução da obra, foi necessário enviar novo material para substituir o danificado, com vista à conclusão da obra. Percebeu-se também, já que foi pelo próprio diretor da obra referido, que dos 225 quartos que compunham a obra, mais de 200 já estavam totalmente concluídos, com a instalação dos identificados espelhos, trabalho esse que havia sido efetuado pelos dois colaboradores que já lá se encontravam, desde o início da obra, para o efeito. Daqui se depreende que, à data da celebração do contrato de transporte com a Recorrida, apenas se mantinha em falta a colocação de espelhos em cerca de 20 quartos. Ora, à luz das regras da experiência e do senso comum, é crível que uma sociedade comercial que visa a prossecução do lucro se disponha a pagar e suportar os custos de deslocação a um total de quatro funcionários, para uma tarefa a realizar em 20 quartos quando, previamente, apenas dois tinham, com êxito, conseguido executá-la em mais de 200 quartos?!
(vi) Em rigor, nem sequer a prova da efetiva deslocação e estadia desses funcionários a Recorrente logrou fazer. Para além de o Tribunal não ter tido contacto com qualquer um dos trabalhadores que, supostamente, terão sido enviados para o local da obra, não foram juntos aos autos quaisquer comprovativos das respetivas viagens, da identificação e/ou listagem dos trabalhadores destacados, nem sequer mencionados os nomes desses colaboradores. A agravar, a prova testemunhal produzida em sede de audiência também não conseguiu, salvo melhor opinião, colmatar essa insuficiência, já que se uma das testemunhas fala da deslocação de quatro trabalhadores, outra refere que apenas se deslocaram dois, ao que acresce que nenhuma delas parece saber concretizar o meio de deslocação entre Portugal e França, apresentando depoimentos inseguros, incoerentes e relutantes, características essas que, aliás, não passaram despercebidas ao Mmo. Juiz, que bem as elencou ao longo da audiência (cfr. transcrições supra).
(vii) Por outra banda, também não se afigura verosímel que uma sociedade com escopo lucrativo mantenha quatro funcionários, durante dez dias, numa obra para a qual terão sido deslocados, sem executarem qualquer tipo de tarefas, que não fosse “esperarem pela mercadoria, porque estavam na expectativa de que chegasse a qualquer momento”. Tendo em conta que, como a Recorrente afirma tão perentoriamente, foi ela quem tomou todas as diligências e expedientes para localizar o paradeiro da mercadoria, tendo constatado a perda total da carga, não se compreende por que motivo, sabendo que a mercadoria não estaria no local da obra, teve a (des)necessidade de enviar diariamente para lá quatro funcionários, cuja única especialidade e função a desempenhar era procederem à montagem e instalação de material que ainda não havia chegado.
A situação torna-se tanto mais inusitada quanto se atente no facto de o diretor da obra ter acrescentado que os trabalhadores se mantiveram lá diariamente, por oito horas, “a olhar uns para os outros e para mim”, adiantando ainda que dias terá havido em que foram obrigados a fazer horas extraordinárias e/ou a sair da obra perto das 22h/23h (?!)! Questiona a Recorrida: como e com que necessidade são efetuados turnos de 12h de trabalho em que, alegadamente, os trabalhadores estariam somente a olhar uns para os outros?!
O mesmo é dizer que uma de duas situações certamente ocorreu: ou a deslocação diária daqueles trabalhadores para obra nunca se verificou e a Recorrente pretende agora, desesperadamente, manipular e imputar à Recorrida custos que nunca teve ou, então, se efetivamente houve quatro trabalhadores que se deslocaram diariamente para a obra, sabendo de antemão que o material que necessitavam para concluírem a sua tarefa não lá se encontrava, fizeram-no com o propósito de auxiliarem na conclusão de outros trabalhos que não requeressem conhecimentos técnicos especializados, como ajustes e remates finas da obra em curso.
Neste particular, assume especial relevância a conclusão da testemunha C. P. nesse mesmo sentido, quando, a instâncias da Recorrente, retoricamente questiona: “O funcionário tem que ir para a obra, independentemente de receber ou não a mercadoria, ele tem que ir para a obra, porque a empresa não está a pagar, como deve calcular, ao funcionário para estar em casa sem fazer nada, certo?” (cfr. min. [00:22:16] do depoimento da testemunha, com o ficheiro áudio 20210920154138_5738151_2870570 x.wma)
29. A par do que vem de dizer-se e ressalvado o devido respeito, também não podem aceitar-se os cálculos elaborados pelo Tribunal a quo para o cômputo dos supostos prejuízos, porquanto, mesmo seguindo o raciocínio adotado na sentença, o valor diário das alegadas despesas nunca atingiria € 364,00 diários e, mesmo que o alcançasse - o que apenas por mera cautela se equaciona - jamais poderia a sentença tê-lo multiplicado por 14 dias, quando a Recorrente apenas alegou e sempre se reportou ao período de 10 dias!
30. Neste cenário, entende a Recorrida que, se a fixação daqueles concretos pontos da matéria de facto não consubstanciar um erro de julgamento, no mínimo extrapola o princípio da livre apreciação da prova, já que ao longo da audiência de julgamento foram notórias as dúvidas e contradições que assolaram o Tribunal relativamente à prova testemunhal produzida quanto a esta matéria, das quais são exemplos inequívocos os trechos/transcrições que a Recorrida destacou no corpo das suas alegações,
31. e, ainda, as palavras com que o próprio Mmo. Juiz rematou a sua fundamentação da decisão de facto naquela matéria: “[…] No que concerne às facturas juntas aos autos diga-se apenas que as mesmas constituem uma formalização dos valores exigidos pela autora mas não demonstram, por si só, que os custos ali peticionados de facto existiram. Exemplo paradigmático disto é o facto de numa das facturas constar a referência a custos com pessoal mas depois conter o custo imputado pela empresa francesa relacionada com os atrasos registados na obra. […]” - vide pp. 15 e 16 da sentença.
32. É, por todas estas razões, firme convicção da Recorrida que, perante a absoluta ausência de prova documental e a manifesta incongruência e/ou insuficiência da prova testemunhal produzida, o Tribunal nunca poderia ter dado como assente que os trabalhadores se mantiveram em obra, pelo período de dez dias, absolutamente inativos, muito menos que essa circunstância tenha causado à Recorrente prejuízos no valor de € 5.096,00,
33. devendo, nessa exata medida, expurgar-se os pontos 28, in fine e 32 do acervo da matéria de facto dada por provada.

TERMOS EM QUE,
- Deverá o recurso interposto pela Apelante/Recorrente ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra a sentença proferida pelo Tribunal a quo; ou, se assim não se entender;
- Deverá ser admitida a ampliação do âmbito do recurso e a impugnação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 636.º, n.º 2 do CPC, e, por via disso, expurgados da matéria de facto provada os pontos 28, in fine e 32, com as demais consequências legais».
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A Recorrente respondeu à matéria da ampliação do objecto do recurso, pugnando pela respectiva improcedência.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. Foi também admitida a ampliação do âmbito do recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
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1.5. Questões a decidir

Atentas as conclusões da apelação e as formuladas no que respeita à ampliação do objecto do recurso, as quais delimitam o objecto do recurso (artigos 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 636º, nºs 1 e 2, do CPC), constituem questões a decidir:

i) Indevida limitação da indemnização ao valor de € 2.441,55, quando os danos causados à Autora e dados como provados na sentença são no montante de € 6.277,55, atenta a equiparação da negligência ao dolo;
ii) No caso de proceder este fundamento do recurso da Ré, verificar, já no âmbito da ampliação do objecto do recurso, se existiu erro no julgamento da matéria de facto no que respeita aos pontos 28, in fine, e 32 dos factos assentes, e se devem, nessa parte, ser julgados não provados;
iii) Na eventualidade de proceder a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, determinar as implicações do novo quadro factual no valor indemnizatório.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
«- Da Petição inicial:
1. A Autora é uma empresa que se dedica à fabricação de mobiliário de madeira para outros fins.
2. A Ré dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias.
3. A A. estava a desenvolver em Maio de 2018 uma obra de carpintaria em França, concretamente no “Motel ...... Paris, França. 4. Estavam deslocados pelo menos 4 colaboradores da A. a realizar esta obra em França.
5. Para conclusão da obra necessitavam de vários materiais, correspondendo a uma palete de mobiliário, com as medidas comprimento 2,15m e largura 0,67m, e altura, 036m.
6. Para este efeito, a A. contactou a R. em 21 de Maio de 2018 com vista a dar orçamento para entrega dos referido materiais impreterivelmente até ao dia 24 de maio de 2018 no destino da obra sito em “Motel ...... Paris, França.
7. A R. no âmbito do exercício de sua actividade de transporte mercadorias aceitou a receber a mercadoria nas instalações da R. na Maia e entregá-la na obra sita ... Paris, França, até ao dia 24 de Maio de 2018 mediante o pagamento da € 630,00.
8. A A. procedeu ao pagamento do preço e entregou a mercadoria no armazém da R. da Maia no dia 21 de Maio de 2018 nos termos acordados.
9. Ficou assim estipulado entre a Autora e a Ré que o serviço de entrega de mercadoria seria expresso e a mesma seria entregue no local do destinatário, imperativamente, no dia 24 de maio de 2018.
10. Sucede porém que, no dia 25 de maio de 2018, para seu espanto, teve a Autora conhecimento de que a mercadoria ainda não tinha sido entregue ao seu destinatário.
11. Por email enviado pela colaboradora da A. C. P. com endereço eletrónico .......pt para A. B. com endereço eletrónico ......@Y.com no dia 25 de Maio de 2018, pelas 09H13 refere:
Agradeço que nos informem qual o ponto de situação sobre a entrega de l volume com destino a Paris, entregue na passada segunda feira nas vossas instalações. Supostamente, este volume deveria ter sido entregue ontem, pois foi esse o acordado com a v/ colega Maria da delegação de Braga.”
12. Assim, a A., imediatamente, entrou em contacto com a Ré para saber o porquê de a mercadoria não ter sido entregue conforme o acordado.
13. A A. tinha quatro colaboradores em Paris no local da obra sem material para trabalhar, com custos nomeadamente de estadia, alimentação.
14. A A. insistiu através da sua colaboradora C. P. com vista a ter resposta por parte da R..
15. A R. não sabia onde se encontrava a mercadoria, apenas dizia que a mercadoria estava em França e nada mais sabendo ou tendo previsões de entrega.
16. A Ré não prestou esclarecimentos necessários para explicar o atraso nem tão pouco para referir o local onde se encontrava a mercadoria, apenas referiu que “Pelo presente informo que a V/ mercadoria está em França mas devido ao n/ agente estar com problemas em sistema não nos consegue facultar informações adicionais face à previsão da entrega da mesma.
Segue os contactos do n/ agente:
SK. – C. D.
Contacto: ........
Apresentamos as n/ desculpas pelo sucedido, ao V/ dispor.”.
17. A Autora, face a esta resposta e após indagar sobre o paradeiro da sua mercadoria, teve conhecimento de que o transporte foi efetuado por uma terceira empresa, a T., a qual não foi por si contratada.
18. A A. decidiu manter os seus colaboradores em França e colocá-los lá à procura da mercadoria através das informações que eram dadas pela colaboradora C. P. que esteve em contacto com a R. e demais empresas que a R. subcontratou para fazer o transporte. 19. A Autora, voltou a insistir com a Ré para que lhe desse explicações, tendo para o efeito, enviado um e-mail no dia 29 de maio de 2018, onde efetuou uma reclamação por escrito quanto ao serviço prestado.
20. Voltou novamente a Autora a questionar a Ré quanto ao atraso na entrega da mercadoria e o local exato onde se encontrava a mesma.
21. A Autora não sabendo do paradeiro da mercadoria viu-se obrigada a entrar em contacto com as várias empresas, nomeadamente a Y, a SK. e a T., tendo apenas, após várias tentativas de contacto, obtido no dia 29 de maio de 2018, por parte da empresa T., a informação de que a mercadoria se encontrava retida num armazém sito em França e que não seria nesse dia entregue, uma vez que o dito armazém se encontrava com problemas técnicos e encerrado.
22. A Ré no dia 30 de maio de 2018 limitou-se a dizer que não tinham informações adicionais às transmitidas pelo telefone.
23. No dia 1 de junho de 2018, a Autora, após vários telefonemas obteve informações contraditórias que a levaram a crer que a mercadoria se encontrava perdida, isto porque, a T. em França informou que a mercadoria se encontrava num armazém em ... e que, posteriormente, foi transferida para C..
24. Acontece que, a Autora, mandou alguns dos seus colaboradores se deslocarem ao armazém sito em ..., no passado dia 30 de maio de 2018, e os mesmos detetaram que não se encontrava lá a mercadoria e seria impossível que estivesse no armazém em C., uma vez que, este se encontrava encerrado por razões de segurança.
25. No dia 4 de junho de 2018, a aqui Autora comunicou à Ré que a mercadoria ainda não tinha sido entregue e que após consultar o site da T. verificou que o estado da mercadoria mantinha-se o mesmo desde o passado dia 24 de maio de 2018 e voltou a interpelar a mesma para esclarecer em que local se encontrava a mercadoria.
26. Ainda nesse mesmo dia, a Autora decidiu proceder à substituição da mercadoria por outra idêntica.
27. Informou a Ré de que no dia 6 de junho de 2018 teriam nas instalações da mesma um novo volume pronto a carregar que tinha de ser entregue no destino imperativamente no dia 8 de junho de 2018.
28. A Autora voltou a proceder ao envio de uma nova mercadoria para evitar que o seu cliente continuasse à espera da “mercadoria perdida” e que os seus colaboradores continuassem parados à espera da mesma.
29. A Autora continuou a sua busca pela mercadoria, para tal contou com a ajuda dos seus colaboradores que se deslocaram a vários armazéns da T. em França e encontraram a mercadoria totalmente destruída.
30. Os colaboradores da Autora fotografaram a mercadoria totalmente destruída e enviaram as fotografias à Autora.
31. A Autora teve prejuízo com a mercadoria que apareceu totalmente destruída, nomeadamente, com a mercadoria de substituição que teve de enviar prejuízo esse no montante de € 1.181,55 (mil cento e oitenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos).
32. A Autora teve prejuízo com os seus colaboradores, nomeadamente com alimentação e estadia, prejuízos esses no montante de € 5.096,00 (cinco mil e noventa e seis euros).
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- Da contestação da ré Y:
33. Para a realização do transporte contratado com a Autora, a Ré subcontratou a sociedade “W – TRANSPORTE ... INTERNATIONAL, LDA.”, detentora da marca “SK.”.
34. A qual, por sua vez, delegou a realização desse serviço na empresa “T. (PORTUGAL), TRANSITÁRIOS, TRANSPORTES E SERVIÇOS COMPLEMENTARES, UNIPESSOAL, LDA.” para a efetiva realização do transporte.
35. A ré colocou à disposição da autora o valor correspondente à mercadoria que entretanto se extraviou.
36. Como forma de ressarcimento dos prejuízos decorrentes da perda dos bens, a Ré disponibilizou-se para pagar à Autora o montante de € 1.181,55 (mil cento e oitenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos), referente ao valor da mercadoria extraviada.
37. A mercadoria transportada totalizava o peso bruto de 210 kg.
38. No dia em apreço o valor do direito de saque especial era de 1,23.
*
- Da contestação da ré K, Companhia de Seguros SA:
39. Foi celebrado entre a Ré Y – Transportes Nacionais e Internacionais, S.A., e a ora contestante um contrato de seguro mediante o qual esta garante a responsabilidade civil do Segurado, que, nos termos da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, lhe seja imputável na qualidade de Transportador Rodoviário Internacional de Mercadorias, nos termos e condições constantes da apólice …….92, de que se junta cópia e aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais.
40. O contrato de seguro ora invocado tem como capital anual seguro o valor de € 250.000,00,
41. Os factos descritos na petição inicial nunca foram participados à ora contestante.
*
- Da contestação da W - TRANSPORTE ... INTERNATIONAL, LDA:
42. No âmbito do contrato de transporte de mercadorias celebrado entre a Autora e a Ré Y – Transportes Nacionais e Internacionais, S.A., esta delegou na aqui Chamada “W” a realização desse serviço de transporte.
43. A “W” subcontratou a sociedade “T. (PORTUGAL), TRANSITÁRIOS, TRANSPORTES E SERVIÇOS COMPLEMENTARES, UNIPESSOAL, LDA.” (doravante “T.”) para que esta efetivasse e/ou realizasse esse transporte.
44. Na sequência do que foi emitida a carta de porte/guia de transporte nº ……21, relativa ao identificado serviço, assim como a respetiva fatura.
45. Logo que foi efetuado o pedido de realização de transporte pela Autora à Ré Y, esta incumbiu a aqui Chamada “W” da realização do serviço de transporte,
46. A Chamada “W” acabou por apresentar, no dia 18 de Junho de 2018, uma reclamação formal junto daquela sociedade, nos termos da qual reivindicou o pagamento da quantia de € 1.181,55 (mil cento e oitenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos), correspondente ao valor da mercadoria que havia sido extraviada.
47. Esta reclamação veio a ser aceite pela subcontratada “T.” que, a 22 de Junho de 2018, assumindo a responsabilidade pelo ocorrido, remeteu um e-mail à Chamada “W” aceitando a reclamação apresentada e, nessa medida, requerendo que fosse emitida a correspondente fatura e, subsequentemente, remetida para a sede da sociedade.
48. A “T.” acabou por emitir uma nota de crédito a favor da aqui Chamada “W”, referente ao valor do serviço de transporte que lhe havia sido subcontratado.
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- Da contestação da ré T. (Portugal), Transitários, Transportes e Serviços Complementares, Unipessoal, Lda.:
49. A Interveniente é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços de transporte de bens ou mercadorias e serviços complementares e, ainda, à prestação de serviços de consultoria em matéria de transportes, logística, bem como a actividade de declarar por conta de outrem.».
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2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos:
«- Da petição inicial:
Até porque a A. estava numa situação desesperada pois não sabia se mandava regressar os colaboradores a Portugal ou se os mantinha lá com os elevadíssimos custos inerentes.
A A. deixando os seus colaboradores em França podia demorar a ser entregue a mercadoria e os custos são incomportáveis.
Por outro lado, fazendo regressar os seus colaboradores a Portugal podia a mercadoria a todo tempo chegar ao a destino e depois teria de arranjar voo com as despesas inerentes para colocar os colaboradores em Paris.
Acresce que a A. não queria deixar a obra inacabada e mandar regressar os seus colaboradores pois poderia ser considerado pelo seu cliente abandono da obra.
A Autora, teve ainda de arcar com os custos do prejuízo atinente à penalização com o atraso da obra que ocorreram não por sua culpa mas sim por culpa da aqui Ré, no montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Da contestação da ré Y:
Logo que tomou conhecimento de que a mercadoria não havia sido entregue no dia 24 de Maio nas instalações indicadas, contrariamente às instruções expressas que havia dado à empresa que subcontratou, a Ré cuidou de indagar junto dessa entidade sobre o sucedido, bem como tentou localizar a mercadoria supostamente em trânsito.
A par disso, como meio de facilitar a comunicação e a obtenção das informações necessárias para a sua cliente, a Ré forneceu de imediato à Autora o contacto direto da pessoa que, na qualidade de funcionária da empresa subcontratada “W – TRANSPORTE ... INTERNATIONAL, LDA.”, estaria, no momento, melhor apta a esclarecer o sucedido.
No mais, a Ré assumiu sempre uma postura diligente e ativa no sentido de insistir junto da sua subcontratada acerca do sucedido, a fim de poder prestar todos os esclarecimentos necessários à sua cliente, aqui Autora.
Simplesmente, por razões que lhe são totalmente alheias, a Ré não logrou obter essas informações, porquanto a empresa na qual delegou esse serviço, W – TRANSPORTE ... INTERNATIONAL, LDA.” (detentora da marca “SK.”) estava também ela com dificuldades em perceber, junto da sua própria subcontratada, “T. (PORTUGAL), TRANSITÁRIOS, TRANSPORTES E SERVIÇOS COMPLEMENTARES, UNIPESSOAL, LDA.”, o que teria acontecido no decurso do serviço em causa.
- Da contestação da ré W:
A qual, de imediato e com a máxima diligência, subcontratou, ainda nesse mesmo dia 21 de Maio, a sociedade “T.” para a efetivação do serviço, assegurando que na guia de transporte ficasse consignado o dia 22 de Maio de 2018 como o dia para a remessa da mercadoria para o destino, no Motel ..., em França – cfr. doc. n.º 01 junto supra.
E fê-lo de forma célere, com o intuito de garantir o pontual e integral cumprimento dos prazo e obrigação de entrega da mercadoria.
Contudo, importa deixar bem claro que, à semelhança da conduta adotada pela Ré Y, assim que teve conhecimento do sucedido, a Chamada “W” fez tudo o que estava ao seu alcance para tentar obter informações acerca do paradeiro da mercadoria e, acima de tudo, para tentar resolver o problema e evitar a existência de prejuízos de maior relevo para a Autora.
Neste cenário, contactou imediata e insistentemente a sua subcontratada “T.”, para tentar localizar a mercadoria em causa.
Todavia, apesar das constantes – quase diárias – tentativas encetadas junto da “T.”, nunca obteve qualquer resposta concreta por parte desta sociedade que, de cada vez que era confrontada com a situação, não se mostrou capaz de dar uma resposta concreta e/ou esclarecer convenientemente a Chamada “W” (ou quem quer que fosse).
Acontece que, tanto quanto a Chamada “W” sabe, a Autora nunca chegou a emitir e/ou remeter a referida fatura à sociedade que realizou o serviço de transporte, a “T.”, nem tão pouco aceitou essa quantia, não obstante a Ré Y a tenha colocado à sua disposição.
Da contestação da ré T.:
As várias estruturas de vidro foram embaladas de forma amontoada e com uma insuficiente protecção entre elas no respectivo acondicionamento, circunstância essa que maximizou a possibilidade da ocorrência de danos na carga transportada em virtude das inerentes e inevitáveis turbulências que qualquer transporte rodoviário propicia.
A Interveniente conta com uma equipa de profissionais treinados e formados com base nos mais elevados parâmetros de exigência, pelo que os protocolos e trâmites comportamentais nos serviços de transporte que presta são sempre rigorosamente cumpridos, só assim evitando eventuais danificações de mercadoria que, naturalmente, não deixam de acontecer.
Devido à impossibilidade de assegurar as correctas condições dos embalamentos, especialmente devido ao facto de não serem os seus próprios profissionais a estarem encarregues dos mesmos.
Tendo a Interveniente recebido a mercadoria a transportar já embalada pela expedidora (ora Autora), nunca lhe foi possível identificar a partir do exterior qualquer defeito aparente na mesma, uma vez que não teve maneira de atestar o seu correcto acondicionamento que, como se veio a apurar, era insuficiente e ineficaz para o transporte internacional a efectuar.».
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2.2. Do objecto do recurso e da ampliação deste

2.2.1. Da responsabilidade da Ré por falta equivalente ao dolo

A Autora impugna a sentença na parte em que limitou a medida da indemnização devida à quantia de € 2.441,55, quando dá como provados danos no valor de € 6.277,55.
O âmbito da sua discordância cinge-se à aplicação do limite do valor da indemnização, por perda da mercadoria transportada, previsto no nº 3 do artigo 23º da Convenção CMR. Na sentença recorrida entendeu-se que a Ré, enquanto transportadora, não agiu com dolo e, por isso, aplicou esse limite.
Para a Recorrente, a negligência é equiparável ao dolo e inexiste fundamento para aplicar o disposto no artigo 23º da Convenção CMR, uma vez que este é afastado pelo artigo 29º do mesmo diploma.

O contrato de transporte é em geral definido como a convenção por via da qual alguém se obriga perante outrem, mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de pessoas e ou coisas de uma para outra localidade.
No caso em análise, estamos perante um contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada, habitualmente definido como aquele através da qual uma pessoa se obriga perante outra, mediante um preço, denominado frete, a realizar, por si ou por terceiros, a deslocação de uma determinada mercadoria desde um ponto de partida situado num dado país até outro ponto de destino localizado noutro país.
A Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, concluída em Genebra a 18.05.1956 (doravante CMR), introduzida no direito português pelo Decreto-Lei nº 46.235 de 18.03.1965 (alterado pelo Protocolo de Genebra de 05.07.1978, aprovado, para a sua adesão, pelo Decreto nº 28/88, de 6 de Setembro), nos termos do seu artigo 1º, «aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes» (artigo 1º, nº 1).
Por conseguinte, o contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada está sujeito a um regime próprio, a CMR, a qual regula, além do mais, a responsabilidade do transportador.
Nas prestações de resultado, como acontece no contrato de transporte, o transportador está obrigado a entregar a mercadoria no lugar do destino, no estado e quantidade recebida; não o fazendo, incumpre o contrato e constitui-se em responsabilidade e na obrigação de indemnizar, salvo nos casos ou limitações previstas na lei.
O contrato de transporte por estrada em causa nos autos, celebrado entre a Autora e a Ré, destinava-se a transportar mercadoria de Portugal, onde foi embarcada, para França, com destino aos empregados da Autora que aí se encontravam. A mercadoria não foi entregue à Autora no prazo estabelecido e, além disso, após as vicissitudes descritas na matéria de facto, verificou-se que se encontrava destruída.
Nos termos do estatuído no artigo 17º, nº 1, da CMR, o transportador é responsável «pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora na entrega».
Todavia, o transportador só fica desobrigado ou isento dessa responsabilidade quando ocorram algumas das circunstâncias previstas nos nºs 2 e 4 daquele preceito, sendo certo que, nesse caso, é sobre ele que impende o ónus de prova da ocorrência dessas circunstâncias (art. 18º, nºs 1 e 2, da CMR), não podendo ainda, além do mais, alegar defeitos do veículo para se desobrigar dessa responsabilidade (art. 17º, nº 3).
No caso de o transportador não beneficiar de nenhuma das causas de exclusão de responsabilidade, ainda assim a sua responsabilidade está limitada nos termos do artigo 23º, nº 3, da CMR, onde se estatui que «a indemnização não poderá, porém, ultrapassar 8.33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta».
Essa limitação de responsabilidade do transportador constitui um regime específico de indemnização por perdas e danos, traduzindo-se num desvio ao princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos.
Porém, o sistema normativo permite retirar ao transportador o benefício da limitação de responsabilidade se verificada a situação prevista no artigo 29º, nº 1, do CMR, onde se dispõe o seguinte: «O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitem a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo».
Por conseguinte, quando houver dolo do transportador ou falta equivalente, a indemnização deve reparar integralmente os danos verificados, de acordo com a teoria da diferença consagrada no artigo 566º, nº 2, do Código Civil.
O problema está em saber o que se deve entender por “falta equivalente ao dolo”, segundo a lei da nossa jurisdição, que é a que se encontra a julgar o caso.
Procurando ainda ser mais precisos na formulação da questão: será que a negligência pode ser equiparada ao dolo?
A jurisprudência está dividida sobre essa matéria, havendo duas correntes distintas:
Uma primeira, de que é exemplo paradigmático o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 06.07.2006 (Oliveira Barros), proferido no processo 06B1679 (2), tem recusado a aplicação do artigo 29º do CMR em caso de negligência do transportador. Considera que se não for provada a prática de conduta dolosa, mas tão só negligente, as causas exonerativas e limitativas da responsabilidade não devem ser excluídas, com base no argumento de que o nosso ordenamento jurídico não permite a equiparação entre dolo e negligência.
Uma segunda corrente, que se pode ver expressa, desde logo, no acórdão do STJ de 14.06.2011 (Hélder Roque), proferido no processo 437/05.9TBANG.C1.S1, entende que «uma falta que segundo a lei da jurisdição que julgar o caso seja considerada equivalente ao dolo, como acontece com a jurisdição nacional, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu». Segundo este acórdão, «a presunção de culpa que, por força da Convenção CMR, incide sobre o transportador, desde que não seja ilidida, implica, em caso de perda da mercadoria, provando-se a existência de prejuízo, o pagamento de uma indemnização forfetária, que deve ser equivalente ao preço do transporte, ao passo que se o dano emergente da perda resultou de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que segundo a jurisdição do país julgador seja considerada equivalente ao dolo, a indemnização deve, então, reparar, integralmente, os danos verificados, de acordo com a teoria da diferença».

Esta segunda corrente é agora predominante na jurisprudência do STJ, exemplificada nos seguintes acórdãos:

i) de 05.06.2012 (relator Azevedo Ramos – processo 3303/05.4TBVIS.C2.S1), no qual se considerou que uma «falta que, segundo a lei portuguesa, seja considerada equivalente ao dolo, para efeito do art. 29, nº 1, da CMR, não pode deixar de ser, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa em sentido lato»;
ii) de 15.05.2013 (Granja da Fonseca - 9268/07.0TBMAI.P1.S1), onde se entendeu que tanto o dolo como a negligência são «duas modalidades de culpa lato sensu, sendo certo que tal equivalência a nível contratual flui logo do artigo 798º do Código Civil, em que para existir responsabilidade contratual é indiferente uma conduta dolosa ou negligente, apenas se exigindo como pressuposto a culpa lato sensu»;
iii) de 12.10.2017 (Olindo Geraldes - 4858/12.2TBMAI.P1.S1), assim sumariado: «Face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)».

Pela nossa parte, propendemos para esta última corrente jurisprudencial, na medida em que o nosso ordenamento jurídico acolhe a concepção de que também a mera culpa está abrangida pelo juízo de reprovabilidade que se erige como pressuposto da responsabilidade. No fundo, no âmbito da responsabilidade contratual, é indiferente que a inexecução ou a execução defeituosa da prestação se fique a dever a dolo ou a negligência do obrigado. É responsável em ambas as situações, pois, no direito português, a qualificação como negligente do comportamento do devedor não tem como consequência a limitação da sua responsabilidade.
Aliás, este é o único entendimento coerente e que está de harmonia com a letra da lei: o transportador não pode invocar disposições da CMR que excluem ou limitam a sua responsabilidade se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei nacional, seja considerada equivalente ao dolo. É incontornável que a lei equipara a negligência ao dolo no âmbito da responsabilidade contratual, enquanto pressuposto desta, em conformidade com o brocardo culpa lata dolo aequiparatur. A culpa em sentido lato abrange tanto o dolo como a negligência, pelo que, uma vez definida a culpa do transportador, este responde pela totalidade do prejuízo. No fundo, a Convenção CMR endossou à ordem jurídica nacional – a lex fori – a definição do nexo de imputação ao transportador da responsabilidade efectivamente apurada; como para o nosso ordenamento o nexo de imputação (3) é estabelecido tanto no caso de comportamento doloso como no de comportamento negligente, a falta em que este se traduz é equivalente àquele no quadro do artigo 29º da CMR.
Também não se descortinam razões para proteger o transportador no caso de este agir com negligência, sobretudo se for grosseira, restringindo a sua responsabilidade aos limites estabelecidos no artigo 23º, nº 3, da CMR. Enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar e da extensão desta, não existe fundamento substancial para distinguir, por exemplo, entre o transportador que propositadamente “perde” a mercadoria e aquele que não toma as devidas cautelas para que a perda não ocorra.
Pelo contrário, uma tal limitação da responsabilidade é pouco consentânea com a natureza da actividade e os interesses de quem recorre a um serviço de transporte internacional de mercadoria por estrada, não podendo a questão ser apenas abordada sob o prisma dos transportadores (4), mas de toda a actividade económica e do comércio jurídico em geral. Com efeito, não pode perder-se de vista que, no âmbito da atividade transportadora, o transporte é realizado por profissionais, que, como tal, têm um dever acrescido de observar todas as precauções e diligências necessárias a efectuar a completa e perfeita deslocação das mercadorias para o destinatário, prevendo eventuais situações de risco que possam surgir e que, por serem profissionais da arte, compete-lhes saber evitá-las, agindo de acordo com os interesses do expedidor. Donde se entende que, perante circunstâncias que evidenciem um comportamento grave e negligente do transportador, concretizado pelos seus empregados, agentes, representantes e outras pessoas a quem recorra para a execução do contrato, deverá responder pela totalidade dos danos causados, afastando-se as causas que excluem ou limitem a sua responsabilidade.
Como bem se refere no acórdão da Relação do Porto de 26.06.2014 (Araújo Barros), «a equiparação entre dolo e mera culpa constante do nº 1 do artigo 483º do Código Civil é princípio que, embora apenas expressamente formulado por referência à responsabilidade civil extracontratual, se estende seguramente à responsabilidade contratual, abrangendo o conceito de “falta culposa” aludido no artigo 798º daquele código. Ninguém podendo seriamente sustentar que resulte elidida a presunção do nº 1 do artigo 799º, relativa à culpa do devedor que falta ao cumprimento da prestação, com a demonstração por este de que esse incumprimento não resultou de acto seu doloso mas tão só negligente. Como expressamente se fez constar do nº 2 do mesmo preceito - «a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil». Remissão inequívoca para os preceitos do nº 1 do artigo 483º e do nº 2 do artigo 487º. Ou seja, «dolo ou mera culpa», a ser «apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso». Nas palavras de Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, 4ª Edição, II Vol., pág. 96, “quer isto dizer que vigoram para a responsabilidade contratual, tanto os critérios de fixação da inimputabilidade estabelecidos no artigo 488º, como o princípio básico de que a culpa do devedor se mede em abstracto, tendo como padrão a diligência típica de um bom pai de família, e não em concreto, de acordo com a diligência habitual do obrigado, ao contrário do que preconizava a doutrina dominante em face do Código de 1867”. Assim, ao conceito genérico de culpa para efeitos civis não interessa a distinção entre dolo e negligência que, atendendo aos momentos intelectivo e volitivo, estabelece uma graduação que vai do dolo directo à negligência inconsciente. Antes relevando como seu critério delimitativo, dentro da mera culpa, a referida diligência do bonus pater familias. Julgamos, por outro lado que, ao complementar no referido nº 1 do artigo 29º o “dolo” do transportador com outra “falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”, o legislador da Convenção CMR quis remeter para a ordem jurídica nacional a definição do nexo de imputação ao agente da responsabilidade efectivamente apurada”, apenas “deixando de lado os casos em que a mesma se não tenha conseguido estabelecer”. Nesse circunstancialismo residual, em que se não consiga apurar factos tendentes à responsabilização do transportador, “segundo a lei da jurisdição que julgar o caso”, este continuará todavia a ser responsabilizado, com os limites estabelecidos no nº 3 do artigo 23º, se não provar nenhuma das circunstâncias de tal excludentes, previstas no nº 2 do artigo 17º - que a perda, avaria ou demora teve por causa “uma falta do interessado”, “uma ordem deste que não resulte de falta do transportador”, “um vício próprio da mercadoria” ou “circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.

Em conclusão, na parte em que julgou relevante a negligência para limitar a responsabilidade da Ré, a sentença não fez uma correcta interpretação do artigo 29º da CMR, pelo que procede a questão suscitada pela Recorrente.
Daí que deva ser apreciada a ampliação do âmbito do recurso, deduzida subsidiariamente para o caso de proceder a apelação da Autora, em conformidade com o disposto no artigo 636º, nº 2, do CPC.
*

2.2.2. Impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.2.1. A Recorrida, no âmbito da ampliação do objecto do recurso, impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância relativamente aos pontos 28, na parte em que no mesmo se refere «(…) e que os seus colaboradores continuassem parados à espera da mesma», e 32 dos factos (v. conclusão 18ª).

Como se vê da articulação das conclusões 18ª e 33ª, a Recorrida pretende que:
a) O ponto 28 seja expurgado da parte em que se refere «(…) e que os seus colaboradores continuassem parados à espera da mesma»;
b) O ponto 32 seja considerado não provado.
*

2.2.2.2. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise dos documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação dos depoimentos das testemunhas C. P. e J. P., ambos trabalhadores da Autora. A primeira testemunha é empregada de escritório na Autora há 13 anos, exercendo funções no departamento de logística e facturação. O segundo é técnico de engenharia, desempenha funções na Autora há 8 anos e era responsável pela obra em França, à qual se destinava a mercadoria em causa nos autos; estava na obra, em França, quando ocorreram os factos objecto deste processo, traduzidos na falta de entrega da mercadoria expedida e na posterior verificação de que se encontrava destruída.
*

2.2.2.3. Ponto de facto nº 28

O ponto de facto impugnado tem o seguinte teor:
«28. A Autora voltou a proceder ao envio de uma nova mercadoria para evitar que o seu cliente continuasse à espera da “mercadoria perdida” e que os seus colaboradores continuassem parados à espera da mesma».

Revistos os meios de prova produzidos sobre este ponto de facto, concluímos inexistir fundamento para suprimir o segmento objecto de impugnação.
Aliás, o facto de os trabalhadores da Autora estarem “parados à espera” da mercadoria resulta directamente da postura da Ré e das empresas subcontratadas, conforme emerge, na nossa firme convicção, da prova produzida em audiência através das testemunhas C. P. e J. P., sobretudo desta última (acerca do ponto impugnado, releva do depoimento da testemunha C. P. o tipo de informação que lhe foi prestado sobre onde se encontrava a mercadoria e a previsão da sua entrega, uma vez que essas diligências foram por si desenvolvidas), na medida em que nos permite determinar a posição e a expectativa de quem se encontrava à espera da mercadoria para poder concluir uma específica tarefa numa obra.
Com efeito, conforme bem explicou a testemunha J. P., estando em causa uma equipa especializada (em rigor duas equipas, pois cada uma era composta por dois homens: «Para colocar um espelho é preciso dois homens. O que está aqui em causa nesta parte final são duas equipas de trabalho. Porque tinha consciência que tinha um planeamento para cumprir e que precisava de um ritmo acelerado. Com o ritmo, foram definidas duas equipas, daí terem estado quatro homens» - 39m54s) e que tinha exclusivamente como tarefa a colocação de espelhos (e não eram quaisquer espelhos, pois tinham que ser recortados e incorporados na estrutura a que se destinavam, exigindo elevada capacidade técnica dos respectivos profissionais) nos cerca de vinte quartos que restavam dos duzentos e vinte e cinco iniciais do hotel, os quatro trabalhadores apenas estavam na obra para o aludido efeito e não para o exercício de outras funções. Era uma tarefa que ia ser executada na fase final do projecto e a obra devia ser concluída de imediato, até ao final do mês de Maio de 2018, recordando-se que a mercadoria deveria ter sido entregue no dia 24.05.2018.
Portanto, aquela mercadoria destinava-se à fase final da obra e os quatro trabalhadores, especializados no manuseio do vidro, estavam em França apenas para executarem aquele concreto serviço, após o qual a obra ficaria concluída, entrando finalmente a empresa de limpeza, para permitir a inauguração do hotel.
Tendo sido convencionado entre as partes (v. pontos 6 a 9) que a Ré entregaria a mercadoria na obra (sita na Avenue …, França) até ao dia 24.05.2018, o certo é que não a entregou nesse dia, nem nos seguintes, e que nunca foi prestada à Autora qualquer informação minimamente esclarecedora sobre o que tinha sucedido com a mercadoria e quando é que a mesma iria ser entregue (v. pontos 11 a 25). Foi prestada à Autora informação de que a mercadoria se encontrava em França, mas que não tinham outras informações adicionais (v. pontos 11, 15, 16, 18, 21, 22, 23, 24 e 25).
Pelo menos até ao dia 04.06.2018, as informações prestadas à Autora eram no sentido de que a mercadoria se encontrava em França e de que não se sabia quando se procederia à sua entrega, sem que em momento algum lhe tenha sido comunicada a destruição da mercadoria, facto que apenas foi constatado na sequência de diligências feitas pessoalmente por empregados da Autora.
Ora, num quadro destes, perante a informação de que a mercadoria estava em França, qualquer pessoa, colocada na posição do coordenador da execução do projecto (que era o referido J. P.), ficaria na expectativa de que em qualquer um dos dias seguintes a 24.05.2018 a mercadoria poderia ser entregue na obra e que, por isso, era necessário esperar pela mesma para, após tal entrega, iniciar de imediato a execução do que se encontrava pendente e, assim, concluir a empreitada.
Isso mesmo foi esclarecido pela testemunha J. P., ao dizer que face às informações prestadas estava na expectativa de que a qualquer momento a mercadoria podia chegar, pelo que dava instruções aos quatro trabalhadores para estarem na obra e poderem, assim que chegasse a mercadoria, iniciar a execução das tarefas (gravação do seu depoimento aos 13m20s, cujo extrato foi ignorado e não transcrito por Recorrente e Recorrida: «os trabalhadores iam todos os dias para obra porque eu todos os dias tinha a expectativa de que a mercadoria iria chegar»; já na parte transcrita, aos 41m28s, «estavam em obra com a expectativa de receber espelhos e colocar espelhos»).
Quanto ao facto de os quatro trabalhadores estarem “parados”, a resposta da testemunha J. P., quando confrontado com a questão, é inteiramente esclarecedora e plausível: «Eu não consigo converter vidraceiros em carpinteiros» (42m04s).
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2.2.2.4. Ponto de facto nº 32

Este ponto de facto impugnado tem o seguinte teor:

«A Autora teve prejuízo com os seus colaboradores, nomeadamente com alimentação e estadia, prejuízos esses no montante de € 5.096,00 (cinco mil e noventa e seis euros)».
Revistos integralmente todos os meios de prova produzidos sobre este ponto de facto, e não apenas aqueles que as partes mencionam em abono da sua tese, entendemos que a Recorrida apenas tem razão quanto a dois aspectos, que indicaremos, pois no mais o Tribunal a quo decidiu bem.

Primeiro, quanto às alegadas contradições ou incongruências da prova produzida, verifica-se que assentam, sobretudo, na circunstância de a testemunha C. P. ter prestado um depoimento muito pouco esclarecedor sobre a matéria do ponto nº 32 (v. os pontos i, ii, iii e iv da conclusão 28ª das contra-alegações da Ré), o que à partida não seria de esperar de alguém que trabalha há 13 anos no “departamento de logística e facturação” da Autora. Dito de uma forma ainda mais incisiva: de uma pessoa que trabalha com “logística e facturação” seria expectável um depoimento pormenorizado sobre os valores suportados pela Autora e não que, ao responder sobre montantes relativos a alojamento, estadia e deslocações, recorresse sucessivamente a expressões como «mais ou menos», «à volta de», «por alto», «muito por alto» ou «não lhe posso precisar valores». Aliás, a testemunha acabou por revelar durante o seu depoimento que não tinha consultado os elementos existentes em arquivo, o que se afigurava como indispensável, na medida em que ia depor sobre um assunto ocorrido em 2018.
Em contrapartida, a testemunha J. P. foi convincente sobre esta matéria, prestando um depoimento pormenorizado e esclarecedor que emerge de um conhecimento directo dos factos em virtude de ter sido o gestor do projecto/obra.
Durante quase uma hora a testemunha foi “bombardeada” com perguntas, algumas das quais formuladas em termos pouco apropriados, e conseguiu sempre trazer ao conhecimento do Tribunal elementos que permitem o esclarecimento dos factos nos quais foi interveniente.
Aponta-lhe a Recorrida incongruências, mas, ressalvada a devida consideração, sem razão.
Por exemplo, afirma-se no ponto vii da conclusão 28ª que a testemunha terá afirmado que os trabalhadores da Autora foram obrigados «a sair da obra perto das 22h/23h (?!)!», mas não corresponde à verdade que tenha feito tal afirmação. E na origem de tal asserção está um equívoco do Sr. Juiz, depois replicado pelas partes (5), que a determinada altura afirma que a testemunha terá dito que os trabalhadores saiam da obra às 23 horas ([00:44:33] Juiz: «Pronto. Então, agora pergunto-lhe: se eles passaram o dia sem fazer nada, qual era a necessidade que eles tinham de ficar lá até à 23h00 (da noite)? Porque é que eles não iam mais cedo, no fim do horário das oito horas de trabalho, porque é que eles não iam para casa?»; [00:44:46] J. P.: «Senhor doutor, há aqui uma correção, nunca disse que estiveram até às 23h00 (da noite). Aquilo que eu disse…»; [00:44:49] Juiz: «Ai disse, disse»; [00:44:50] J. P.: Não, aquilo que eu disse é que tinham oito horas de trabalho, e houve dias onde fizeram 10 horas de trabalho, que não é 22h00 (da noite)». Sucede que esta Relação ouviu toda a gravação e constatou que a testemunha não produziu, em momento algum, a aludida afirmação de que os trabalhadores saíam da obra às 23.00 horas, pelo que não tinha a mínima justificação o confronto com algo que não disse.
Existem vários outros pontos em que a testemunha foi indevidamente confrontada sobre discrepâncias que não existiam no seu depoimento. Mas isso não é um problema de quem responde às perguntas, que em nada influencia na apreciação da credibilidade do seu depoimento, mas sim de quem as formula. Pior: fazia-se a aludida confrontação e nem sequer se deixava a testemunha, que o queria fazer, prestar o devido esclarecimento.
O que se acaba de dizer é válido para as múltiplas extrapolações que a Recorrida faz no âmbito da ampliação do objecto do recurso, como sucede com a questão de as duas equipas (de dois homens cada) já estarem em França antes da data prevista para a entrega da mercadoria (v. ponto v da conclusão 28ª), uma delas há vários meses, tendo o depoimento da testemunha sido cristalino sobre tal circunstancialismo.

Segundo, como se vê na conclusão 19ª das contra-alegações, a Ré sustenta que a Autora «não logrou efetuar prova documental» das «despesas alegadamente suportadas pela Recorrente com acomodação, alimentação e transporte de quatro trabalhadores, em Paris».
É inteiramente verdade que a Autora não logrou fazer tal prova documental, pois a factura junta aos autos, emitida pela Autora à Ré, não demonstra a realização dessas despesas.
Porém, já não parece legítima a conclusão de que «a mera ausência dessa prova seja suficiente para se reconhecer que a Recorrente não logrou alcançar o patamar mínimo de certeza e segurança da existência do direito que pretende exercer, à luz das regras da distribuição do ónus da prova vigentes no nosso ordenamento jurídico» (conclusão 24ª).
Por um lado, não vigora nesta matéria qualquer ónus de prova vinculada, em que o facto relativo a tais despesas só possa ser provado por documento. Por outro, podendo essas despesas ser provadas através de outros meios de prova, o problema é já de outra ordem: saber se os meios de prova produzidos convencem da realidade da realização de tais despesas.
No caso vertente, o depoimento da testemunha J. P., diferentemente do depoimento da testemunha C. P., afigura-se-nos suficiente para dar como demonstrado o essencial dos factos (pois não é apenas um simples facto) constantes do ponto de facto nº 32, pelas razões que o Tribunal recorrido expôs na motivação da decisão da matéria de facto, sendo certo que também refere expressamente que, «no que concerne especificamente aos custos de alimentação e alojamento o tribunal valorou as declarações desta testemunha J. P. em detrimento das da testemunha C. P.».
Aliás, mesmo que tivessem sido juntos tais documentos, como dificilmente os mesmos se refeririam expressa e exclusivamente aos quatro trabalhadores encarregados de colocar os espelhos, estaríamos nesta altura a discutir quase a mesma matéria, embora um pouco mais delimitada ou circunscrita. A este propósito, embora a prova produzida seja perfeitamente clara sobre a permanência em França de quatro trabalhadores para realizar a colocação do material que integrava a mercadoria expedida, a Recorrida, se bem que nem sequer tenha impugnado o ponto nº 4 dos factos provados, continua a alegar que «nem sequer a prova da efetiva deslocação e estadia desses funcionários a Recorrente logrou fazer. Para além de o Tribunal não ter tido contacto com qualquer um dos trabalhadores que, supostamente, terão sido enviados para o local da obra, não foram juntos aos autos quaisquer comprovativos das respetivas viagens, da identificação e/ou listagem dos trabalhadores destacados, nem sequer mencionados os nomes desses colaboradores».
Ou seja, para a Recorrida essas despesas provam-se, em princípio, com documentos, mas mesmo isso, ao fim e ao cabo, não é suficiente. É necessário que esses quatro trabalhadores, ou pelo menos um deles, sejam arrolados como testemunhas, apesar de ter sido ouvida como testemunha a pessoa que coordenava a execução de toda a obra, pela qual era responsável e que demonstrou ter conhecimento directo e exaustivo do facto ora impugnado. Nessa ordem de ideias, também nada garante que a prestação de depoimento pelos quatro trabalhadores fosse suficiente sem ouvir também as pessoas que prestaram os serviços de alojamento e alimentação. Como é bom de ver, um tal raciocínio levar-nos-ia, na maior parte dos casos, à exigência de um standard de prova que normalmente os litigantes não conseguem produzir.
Em todo o caso, sempre se dirá que a testemunha C. P. afirmou, pelo menos duas vezes, durante a prestação do seu depoimento que estava em condições de apresentar os documentos em causa (para o que seria suficiente a mera interrupção da audiência), o que nem o Tribunal nem as partes consideraram necessário.

Terceiro, estando os quatro trabalhadores deslocados em França, longe do local onde residem e habitualmente tomam as suas refeições, continuaram a precisar de dormir – em algum lugar o tinham de fazer – e de se alimentarem. Todas essas despesas, como são de trabalhadores ao serviço da Autora, foram suportadas por esta.
Daí que em caso algum se poderia dar como não demonstrado que a Autora suportou despesas com alojamento e alimentação. Quando muito, poderia ser dada uma resposta restritiva à matéria do ponto nº 32.
O problema é de quantificação do valor das despesas e não de realização destas.
E para essa quantificação contribuiu decisivamente o depoimento da testemunha J. P., que não só “geriu o camping” (v. 47m07s), onde os trabalhadores da obra estiveram alojados durante cerca de seis meses, como sabia que os trabalhadores, entre os quais os quatro que procederam à colocação dos espelhos, almoçavam e jantavam em restaurante e quais os custos em que isso importava.
Por isso, parece-nos inteiramente pertinente a motivação constante da sentença, na parte em que valora o depoimento da testemunha J. P. em detrimento do depoimento de C. P. (6):
«A testemunha J. P., técnico de engenharia, funcionário da autora há 8 anos. Era responsável pela obra em causa nos autos. Estava na obra quando ocorreu o atraso na entrega da mercadoria.
A testemunha clarificou que a casa onde os trabalhadores estavam era de 6 pessoas e custava cerca de € 250,00 diários.
A casa em causa tinha cozinha mas, segundo a testemunha, não era utilizada. A testemunha referiu ainda que o material em causa era essencial para o fecho da obra e que correspondia, no grosso, a material de substituição de material que se estragou durante a obra.
A testemunha depôs de uma forma isenta, rigorosa e fundamentada revelando conhecimentos sustentados sobre as matérias, fruto do trabalho específico e conhecimento técnico que evidenciou. Por estes motivos o tribunal valorou as declarações da testemunha tendo as mesmas servido para se perceber o tipo de obra em causa e os trabalhos que eram desenvolvidos e ainda a necessidade para a conclusão da obra do material que vinha na palete que se extraviou.
As suas declarações foram ainda relevantes para se perceber o custo diário de cada trabalhador, quer no alojamento, quer na alimentação (€ 40,00 a nível de alojamento e € 50,00 a nível de alimentação). Nesta matéria a testemunha depôs de uma forma muito mais assertiva e conhecedora do que a testemunha C. P. (que por exemplo disse que a casa em causa tinha dois quartos e que a estadia do trabalhador ficava a € 70,00). Por este motivo o tribunal fixou em € 364,00 o valor de custo diário dos 4 trabalhadores e multiplicou esse valor pelos 14 dias de espera que os mesmos protagonizaram (desde o dia 25 de Maio até ao dia 08 de Junho de 2018)».
Se mesmo para o nosso país os apontados valores já não seriam despropositados, por maioria de razão, para um país como a França e uma região como a de Paris, com um custo de vida reconhecidamente superior ao nosso, tais montantes suportados pela Autora parecem-nos curiais. Para além de serem esses os valores que resultam do depoimento de J. P., o alojamento para uma pessoa por € 40 e a realização de três refeições (7) (pequeno-almoço, almoço e jantar) diárias por € 50 está longe de ser uma exorbitância.

Quarto, na conclusão 29ª, a Recorrida alega não poder aceitar «os cálculos elaborados pelo Tribunal a quo para o cômputo dos supostos prejuízos». Na motivação explicita: «desconhece-se como o Mmo. Juiz a quo chegou ao cômputo de € 364,00 (trezentos e sessenta e quatro euros) diários através da imputação de € 40,00 a nível de alojamento e de € 50,00 referentes a alimentação, quanto a cada trabalhador, já que, mesmo nesse raciocínio, o resultado seria, quando muito, de € 360,00 [€ 40,00 x 4 + € 50,00 x 4]. Similarmente, ainda menos se alcança por que motivo multiplicou esse montante diário por 14 dias (!), já que em momento algum foi peticionado e/ou sequer alegado pela Recorrente que os custos hipoteticamente suportados ter-se-iam reportado a esse período, mas tão só a 10 dias - reitere-se, foi sempre a 10 dias que a Recorrente e as suas testemunhas se referiram!».
São duas questões distintas, embora assista razão à Recorrida em ambas. Uma é o apuramento do valor diário dos custos e outra o período a que respeitam esses custos.
Quanto à primeira, se o Sr. Juiz a quo na fundamentação apenas aludiu aos valores diários do alojamento (€ 40) e da alimentação (€ 50) (8), que perfazem, por trabalhador, € 90,00, o valor diário pelo conjunto dos quatro trabalhadores só poderia ser de € 360,00 ({40+90}x4=360). Ignora-se completamente por que razão foi acrescentado o valor de € 4,00, de modo a perfazer € 364,00, designadamente se isso se deveu a erro material ou de cálculo.
Não estando fundamentado o acréscimo e desconhecendo-se a respectiva razão de ser, não pode tal parcela da conta permanecer intocada, pelo que apenas pode ser considerado, para efeitos de cálculo, o valor diário de € 360,00.
Também a razão está do lado da Recorrida quanto à limitação do valor a dez dias.
A Autora emitiu uma factura à Ré em que aludia a «despesas suportadas com colaboradores com o atraso na entrega da mercadoria durante 10 dias» (doc. 19), expressamente invocou o aludido período de 10 dias na interpelação que fez à Ré (doc. nº 16), o prejuízo foi alegado nesta acção, como se pode ver no artigo 39º da p.i. («Vide docs. 19 que por brevidade aqui se dá por integralmente reproduzido»), por remissão para a aludida factura (ou seja, circunscrevendo o pedido às despesas suportadas durante dez dias) e as duas testemunhas sempre aludiram nos seus depoimentos a “dez dias”.

Termos em que se julga parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e se determina que o ponto nº 32 dos factos provados passe a ter a seguinte redacção:
32. A Autora teve prejuízo com os seus colaboradores, com alimentação e estadia, no montante de € 3.600,00 (três mil e seiscentos euros).
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2.2.3. Da responsabilidade da Ré

A execução material da prestação de facto a que o transportador se obriga desdobra-se em três operações:
a) A recepção da mercadoria;
b) A sua deslocação – transporte em sentido estrito;
c) A sua entrega ao destinatário no local de destino.
Como se trata dum contrato de resultado, a obrigação só se pode ter por cumprida com a entrega da mercadoria transportada ao seu destinatário.
Desde logo, verifica-se que a Ré não entregou a mercadoria no local de destino no dia 24.05.2018, conforme tinha sido estipulado entre as partes no contrato de transporte.
Mas a apreciação da conduta não se esgota na constatação de que não fez a entrega na data fixada.
Há ainda que apreciar a sua conduta posterior a tal data.
Nos termos do artigo 406º, nº 1, do Código Civil, o contrato deve ser pontualmente cumprido, no sentido de que as prestações devem ser realizadas não só no tempo convencionado, como o devem ser integralmente, ou seja, ponto por ponto. Essa regra não se satisfaz com comportamentos que apenas tenham em conta interesses próprios, antes postula uma colaboração leal (de boa-fé) entre credor e devedor, avultando, de entre os deveres acessórios de conduta, o dever de cooperação e de consideração dos legítimos interesses da contraparte cujo âmbito e exigência depende de cada tipo contratual.
Os deveres acessórios de conduta implicam a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exacto da prestação. Segundo José João Abrantes (9), «são os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas». Por sua vez, para Antunes Varela (10), «são os deveres de conduta que, não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (cfr. art. 817º e segs.), são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra».

No que respeita à conduta da Ré posterior à data (24.05.2018) em que deveria ter entregue a mercadoria transportada, são relevantes os seguintes factos:
- No dia 25.05.2018, para seu espanto, teve a Autora conhecimento de que a mercadoria ainda não tinha sido entregue ao seu destinatário (ponto 10);
- Por email enviado pela colaboradora da Autora, C. P., com endereço eletrónico .......pt para A. B. com endereço eletrónico ......@Y.com no dia 25.05.2018, pelas 09H13 refere:
Agradeço que nos informem qual o ponto de situação sobre a entrega de l volume com destino a Paris, entregue na passada segunda feira nas vossas instalações. Supostamente, este volume deveria ter sido entregue ontem, pois foi esse o acordado com a v/ colega Maria da delegação de Braga.” (11);
- A Autora, imediatamente, entrou em contacto com a Ré para saber o porquê de a mercadoria não ter sido entregue conforme o acordado (12);
- A Autora tinha quatro colaboradores em Paris no local da obra sem material para trabalhar, com custos nomeadamente de estadia, alimentação (13);
- A Autora insistiu através da sua colaboradora C. P. com vista a ter resposta por parte da Ré (14);
- A Ré não sabia onde se encontrava a mercadoria, apenas dizia que a mercadoria estava em França e nada mais sabendo ou tendo previsões de entrega (15);
- A Ré não prestou esclarecimentos necessários para explicar o atraso nem tão pouco para referir o local onde se encontrava a mercadoria, apenas referiu que “Pelo presente informo que a V/ mercadoria está em França mas devido ao n/ agente estar com problemas em sistema não nos consegue facultar informações adicionais face à previsão da entrega da mesma.
Segue os contactos do n/ agente:
SK. – C. D.
Contacto: ........
Apresentamos as n/ desculpas pelo sucedido, ao V/ dispor.” (16);
- A Autora, face a esta resposta e após indagar sobre o paradeiro da sua mercadoria, teve conhecimento de que o transporte foi efetuado por uma terceira empresa, a T., a qual não foi por si contratada (17);
- A Autora decidiu manter os seus colaboradores em França e colocá-los lá à procura da mercadoria através das informações que eram dadas pela colaboradora C. P. que esteve em contacto com a Ré e demais empresas que a Ré subcontratou para fazer o transporte (18);
- A Autora voltou a insistir com a Ré para que lhe desse explicações, tendo para o efeito, enviado um e-mail no dia 29.05.2018, onde efetuou uma reclamação por escrito quanto ao serviço prestado (19); - Voltou novamente a Autora a questionar a Ré quanto ao atraso na entrega da mercadoria e o local exato onde se encontrava a mesma (20);
- A Autora não sabendo do paradeiro da mercadoria viu-se obrigada a entrar em contacto com as várias empresas, nomeadamente a Y, a SK. e a T., tendo apenas, após várias tentativas de contacto, obtido no dia 29.05.2018, por parte da empresa T., a informação de que a mercadoria se encontrava retida num armazém sito em França e que não seria nesse dia entregue, uma vez que o dito armazém se encontrava com problemas técnicos e encerrado (21);
- A Ré no dia 30.05.2018 limitou-se a dizer que não tinham informações adicionais às transmitidas pelo telefone (22);
- No dia 01.06.2018, a Autora, após vários telefonemas obteve informações contraditórias que a levaram a crer que a mercadoria se encontrava perdida, isto porque, a T. em França informou que a mercadoria se encontrava num armazém em ... e que, posteriormente, foi transferida para C. (23);
- Acontece que, a Autora, mandou alguns dos seus colaboradores se deslocarem ao armazém sito em ..., no dia 30.05.2018, e os mesmos detetaram que não se encontrava lá a mercadoria e seria impossível que estivesse no armazém em C., uma vez que, este se encontrava encerrado por razões de segurança (24);
- No dia 04.06.2018, a Autora comunicou à Ré que a mercadoria ainda não tinha sido entregue e que após consultar o site da T. verificou que o estado da mercadoria mantinha-se o mesmo desde o passado dia 24 de Maio de 2018 e voltou a interpelar a mesma para esclarecer em que local se encontrava a mercadoria (25);
- Ainda nesse mesmo dia, a Autora decidiu proceder à substituição da mercadoria por outra idêntica (26);
- Informou a Ré de que no dia 06.06.2018 teriam nas instalações da mesma um novo volume pronto a carregar que tinha de ser entregue no destino imperativamente no dia 08.06.2018 (27);
- A Autora voltou a proceder ao envio de uma nova mercadoria para evitar que o seu cliente continuasse à espera da “mercadoria perdida” e que os seus colaboradores continuassem parados à espera da mesma (28);
- A Autora continuou a sua busca pela mercadoria, para tal contou com a ajuda dos seus colaboradores que se deslocaram a vários armazéns da T. em França e encontraram a mercadoria totalmente destruída (29);
- Os colaboradores da Autora fotografaram a mercadoria totalmente destruída e enviaram as fotografias à Autora (30).

Ora, perante estes factos provados, ter-se-á de concluir, em primeiro lugar, que a Ré não adoptou todos os cuidados que a situação concreta lhe impunha para cumprir a obrigação de resultado de que se incumbira, que consistia em transportar a mercadoria, tal como a tinha recebido, até ao local do destino, pois só com a entrega dessa mercadoria ao destinatário se poderá considerar cumprido o contrato de transporte. Ao transportador impõe-se a guarda e a conservação da mercadoria, bem como a tomada das providências apropriadas para cumprir o encargo que lhe é cometido de efectuar a deslocação incólume da mercadoria para o destinatário, em condições de integral satisfação do interesse deste, tal como o faria um profissional experiente, conhecedor e responsável, com o padrão de diligência adoptado por um bonus pater familias. Pese embora tenha subcontratado uma outra empresa (a W) e esta, por sua vez, tenha subcontratado uma terceira empresa (a T.) para realizar o transporte, a Ré responde perante a Autora pelos factos ocorridos.
Depois, a conduta da Ré é, seja qual for a perspectiva em que a encaremos, censurável, pois, não deu pronta e satisfatória resposta aos insistentes pedidos da Autora acerca do paradeiro da mercadoria e, perante a mera notícia de que se encontrava em França, da data em que poderia ser entregue, bem como nunca informou que a mercadoria havia sido destruída, facto que só resultou apurado das diligências desenvolvidas pelos trabalhadores da Autora.
O transportador (a Ré e as empresas que sucessivamente intervieram no transporte, pela actuação das quais responde aquela) não só perdeu o rasto à mercadoria, como prestou informações contraditórias e outras que até não correspondiam à realidade (veja-se, a título de exemplo, a informação prestada no sentido de que a mercadoria se encontrava num armazém em ... e que, posteriormente, fora transferida para C. (23), quando o certo é que os colaboradores da Autora, a mando desta, deslocaram-se ao armazém de ... e constaram que não se encontrava lá a mercadoria e que seria impossível que estivesse no armazém em C., uma vez que este se encontrava encerrado por razões de segurança (24)).
Mas além dessa deficiente prestação de informações, afinal a mercadoria estava destruída e não extraviada.
E a Autora tinha o direito a que lhe fosse imediatamente prestada informação sobre o que havia sucedido com a mercadoria, para agir em conformidade, designadamente para remeter nova mercadoria e atenuar pelos menos os prejuízos que a situação lhe estava a causar.
Fruto da manifesta falta de diligência da Ré e seus agentes, a Autora viu-se na necessidade de andar a investigar, in loco, de armazém em armazém, onde poderia estar a mercadoria, quando era o transportar que deveria ter procedido a essas diligências e informado do seu resultado.
No nosso entender, a actuação do transportador desconsiderou os interesses da parte contrária e não acatou a medida de esforço exigível na execução dos deveres acessórios de conduta que emergem de um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada. Não actuou – longe disso – com a diligência exigível segundo o padrão de um profissional experiente, conhecedor e responsável.
Por isso, nas concretas circunstâncias do caso, a falta é imputável à Ré a título de negligência grosseira.

O incumprimento contratual culposo por parte da Ré produziu danos na esfera jurídica da Autora, pelos quais esta tem o direito de ser indemnizada de harmonia com a regra estabelecida do artigo 566º, nº 2, do Código Civil.
Os prejuízos são os relativos à destruição da mercadoria, no valor de € 1.181,55 (mil cento e oitenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos) e os que resultam da circunstância de a Autora ter suportado despesas, no montante de € 3.600,00 (três mil e seiscentos euros), com alojamento e alimentação dos seus quatro trabalhadores, no período em que tiveram que permanecer em França para concluir a obra à qual se destinava a mercadoria destruída.
Tais prejuízos perfazem um valor global de € 4.781,55 (quatro mil, setecentos e vinte e um euros e cinquenta e cinco cêntimos).

Termos em que procede parcialmente a apelação.
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2.3. Sumário

1 – O artigo 17º, nº 1, da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR) estabelece uma presunção de responsabilidade do transportador pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega.
2 – Se o transportador não lograr ilidir a presunção que sobre ele recai, ainda assim, em princípio, beneficia de um regime próprio de limitação da sua responsabilidade.
3 – Tal regime de limitação da responsabilidade, nos termos do artigo 29º, nº 1, da CMR, é afastado se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.
4 – A CMR endossou à ordem jurídica nacional a definição do nexo de imputação ao transportador da responsabilidade efectivamente apurada; como para o nosso ordenamento o nexo de imputação é estabelecido tanto no caso de comportamento doloso como no de comportamento negligente, a falta em que este se traduz é equivalente àquele no quadro do artigo 29º da CMR.
5 – Para efeitos de definição da responsabilidade contratual, é indiferente que a falta de cumprimento ou a execução defeituosa da prestação se fique a dever a dolo ou a negligência do obrigado. O direito nacional lei equipara a negligência ao dolo no âmbito da responsabilidade contratual, enquanto pressuposto desta.
6 – A culpa em sentido lato abrange tanto o dolo como a negligência, pelo que, uma vez definida a culpa do transportador, este responde pela totalidade do prejuízo.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação da Autora, revogar a sentença e, em consequência, condenar a Ré a pagar à Autora a quantia € 4.781,55 (quatro mil, setecentos e vinte e um euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a data da sentença até integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento.
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Guimarães, 10.03.2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Acessível em www.dgsi.pt, tais como todos os demais acórdãos que se citarem.
3. O nexo de imputação, como elemento integrante do acto ilícito, distingue-se do nexo de causalidade, o qual respeita à relação de adequação entre o facto e o dano, a considerar nos requisitos da reparabilidade dos prejuízos, como critério delimitador deste.
4. Bem presente na argumentação de alguns autores, quando aludem à inadmissibilidade da “perda do direito à limitação”, configurando-o como um verdadeiro direito do transportador negligente.
5. Tal como sucedeu, por exemplo, com o propugnado regresso dos trabalhadores a casa, numa carrinha, enquanto a mercadoria não fosse entregue (48m38s).
6. A discrepância no que respeita aos valores das despesas respeitava ao custo com o alojamento de cada trabalhador: a testemunha C. P. disse que seria “mais ou menos” € 70, enquanto que da testemunha J. P. resulta que seriam € 40. Ressalve-se, contudo, que a própria testemunha J. P. afirmou que o custo variava consoante a época do ano.
7. V. gravação do depoimento da testemunha entre 21m12s e 21m21s.
8. Como se pode ver nos artigos 13º e 39º da p.i., a Autora apenas alegou despesas com “estadia” e “alimentação”, sendo que a expressão “nomeadamente”, aí utilizada, não corresponde à alegação de qualquer despesa ou dano concreto. Portanto, na motivação da decisão sobre a matéria de facto o Sr. Juiz, e bem, pronunciou-se exclusivamente sobre essas duas despesas (alojamento e alimentação), quantificando-as.
9. A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, Almedina, pág. 42, nota 8.
10. Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 115.